RESUMO: A pesquisa intitulada “Denunciação da lide pela Fazenda Pública em sede de responsabilidade civil do Estado” busca trazer o enfrentamento da celeuma, explicitando as três correntes doutrinárias existentes, bem como o posicionamento jurisprudencial majoritário sobre a temática.
Palavras-chave: Denunciação da lide. Fazenda Pública. Responsabilidade Civil do Estado.
INTRODUÇÃO
A denunciação da lide é uma modalidade de intervenção de terceiros que está regulada nos artigos 70 a 76 do Código de Processo Civil Brasileiro. É assente na doutrina que tal modalidade, é a que apresenta mais dificuldades e polêmicas, sendo inúmeras as obras dedicadas ao seu estudo.
No âmbito do Direito Público, temos que a responsabilidade civil evidencia-se na obrigação que tem o Estado de indenizar os danos patrimoniais ou morais que seus agentes, atuando em seu nome, ou seja, na qualidade de agentes públicos, causem à esfera juridicamente tutelada dos particulares.
O art. 37, §6º, da CF, em sua parte final, estabelece que a Administração poderá ajuizar uma ação de regresso em face do agente, na hipótese de este ter agido com culpa ou dolo.
O regresso é uma faculdade ou é uma obrigação da Administração? Está a Administração obrigada a ajuizar a ação contra o agente? Essa questão é muito importante, pois se está diante da aplicação do princípio da indisponibilidade do interesse público, daí porque a Administração não tem a disponibilidade de optar pelo ajuizamento ou não da ação.
Nesse diapasão, enfrentar-se-á a posição do ente público quando for demandado pelo particular em ação reparatória, se cabe ou não a denunciação de seu agente supostamente causador do dano para integrar a demanda e possibilitar de logo a via regressiva pelo Estado.
1. OBRIGATORIEDADE DA DENUNCIAÇÃO DA LIDE
Diz o artigo 70 que a denunciação da lide é obrigatória. Contudo, a referência que faz o dispositivo não é relativo ao substantivo “obrigação”, em seu sentido de direito material, mas sim, o simples ônus processual.
Washington de Barros Monteiro, em sua doutrina, revela o conceito de obrigação:
Obrigação é a relação jurídica, de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor e cujo objeto consiste numa prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo, garantindo-lhe o adimplemento através de seu patrimônio.[1]
Ao dizer o artigo 70 que a denúncia da lide é “obrigatória”, não pretende dizer que haja uma obrigação (como dever) da parte denunciar a lide e, tão pouco, um direito de terceiro à denúncia. E muito menos que a parte não denunciante tenha seu patrimônio sujeito ao adimplemento de tal “obrigação” em face de qualquer direito de terceiro não denunciado.
O problema da obrigatoriedade da denunciação da lide está intimamente ligado à modalidade de garantia pretendida exercer pelo denunciante. Em se tratando de garantia própria, fundada na transmissão de direitos, a ausência de denunciação gera a perda do direito de regresso, isto é, o adquirente perde a garantia dada pelo transmitente. Já no caso da garantia imprópria, intrínseca à responsabilização civil, mantém-se o direito de ação regressiva em demanda autônoma.
O inciso I do artigo 70 traz a hipótese de denunciação da lide como providência obrigatória para que o denunciante possa exercer o direito da evicção que lhe resulta.
O codificado cível em seu artigo 447 dispõe que, “nos contratos onerosos, o alienante responde pela evicção” subsistindo esta garantia ainda que “a aquisição tenha se realizado em hasta pública”, sendo lícito às partes, por cláusula expressa, “reforçar, diminuir ou excluir a responsabilidade pela evicção” (art. 448).[2]
É a intelecção do artigo 456 do Código Civil, o entendimento que impõe ao adquirente, “para poder exercitar o direito que da evicção que lhe resulta” o dever de informar “do litígio ao alienante imediato, ou qualquer dos anteriores, quando e como lhe determinarem as leis do processo.”
Em virtude do dispositivo acima, têm-se como obrigatória a denunciação nos casos do inciso I. A não apresentação da denunciação acarreta perecimento do direito de regresso. Importante salientar, que neste caso da evicção, a obrigatoriedade não deriva somente da ideia de ônus processual, mas englobando também no sentido do direito material, pois implicaria a impossibilidade de reconhecimento por meio autônomo. Nesta esteira, DINAMARCO:
Isso acontece realmente no caso da parte que corre o risco da evicção (art. 70, inc. I), porque o art. 456 do Código Civil, portador de disposição de puro direito substancial, impõe que a denunciação se faça, sob pena de direito ao ressarcimento.[3]
Ainda neste sentido, a lição de Arruda Alvim:
O significado da nossa lei ao falar em que a “denunciação da lide é obrigatória, para o caso do n. I do art. 70, deve ser entendido como constituindo-se em condictio sine qua non – ao exercício do direito que da evicção resultará para o denunciante, no caso deste perder a ação real. [4]
A maior parte da doutrina, hoje em dia, entende que a obrigatoriedade da denunciação existe apenas nas hipóteses do inciso I, justamente pela inteligência do artigo 456, isto é, apenas em relação ao inciso I há regra de direito material que imporia a denunciação da lide.
As hipóteses trazidas nos incisos II e III, como não possuem regra em direito material que exija a denunciação no processo principal, não são revestidas de obrigatoriedade, tendo como consequência apenas a mera preclusão, isto é, a faculdade de oferecer demanda capaz de permitir o exercício do direito de regresso no mesmo processo, ficando, com isso, resguardado o direito de propor demanda autônoma em face do terceiro.
A hipótese de denunciação da lide ao servidor responsável pelo dano em casos de responsabilidade civil do Estado, nos termos do art. 37, § 6º da Constituição, alvo da temática principal da presente obra.
2. ADMISSIBILIDADE DA DENUNCIAÇÃO AO AGENTE CAUSADOR
Diante de tudo que foi exposto, chega-se ao punctum saliens deste estudo monográfico, isto é, se é possível a Fazenda Pública denunciar a lide ao agente público, em sede de ação indenizatória ajuizada pelo cidadão. A discussão proveniente da hipótese de denunciação da lide ao servidor responsável pelo dano em casos de responsabilidade civil do Estado, nos termos do art. 37, § 6º da Constituição, decorrente do artigo 70, inciso III, é intensa e vem gerando demasiada polêmica tanto na jurisprudência como na doutrina pátria.
A celeuma doutrinária se instaura precipuamente na forma de duas correntes antagônicas: a) a restritiva, defendida por Sidney Sanches, Nelson Nery Jr[5]., Cassio Scarpinella Bueno, Vicente Greco Filho, Marcelo Abelha Rodrigues[6], entre outros; b) e a ampliativa, defendida por Cândido Rangel Dinamarco, Luiz Fux[7], Ada Pellegrini Grinover[8], Pontes de Miranda, William Couto Gonçalves[9], Arruda Alvim, Athos Gusmão Carneiro, Aroldo Plínio Gonçalves, Calmon de Passos[10], Barbosa Moreira, Humberto Theodoro Jr., etc.
2.1 Corrente restritiva
Na concepção restritiva, os autores interpretam o dispositivo em comento, admitindo a denunciação da lide apenas nos casos de garantia própria, dessa maneira, negando a possibilidade da Fazenda Pública denunciar seu agente nos casos em que é responsável perante o administrado. Sobre a questão, Vicente Greco Filho:
Parece-nos que a solução se encontra em admitir, a denunciação da lide nos casos de simples ação de regresso, isto é, a figura só será admissível quando, por força da lei ou do contrato, o denunciado for obrigado a garantir o resultado da demanda, ou seja, a perda da primeira ação, automaticamente, gera responsabilidade do garante.[11]
Reforçando seu posicionamento, Greco Filho traz à baila a discussão travada no Conselho da Assembléia Legislativa, que analisou o Código italiano, concluindo por uma interpretação restritiva da chiamata in garanzia, de molde a nela só se poder deduzir pretensão de garantia própria, dada a inconveniência de se introduzir no processo discussão sobre lide cujos fundamentos fáticos e jurídicos nenhum vínculo imediato tenham com os que justificaram a propositura da ação originária.[12]
Contudo, são dois os fundamentos principais que justificam a inadmissibilidade da denunciação da lide em responsabilidade civil, um de ordem material e o outro de ordem processual.
De acordo com o fundamento de ordem material, a denunciação da lide vai esvaziar a regra do Art. 37, §6º, CF. Isto, porque vai permitir o surgimento de uma discussão nos autos sobre o dolo ou culpa do agente causador do dano.
Neste sentido, é a lição de Vicente Greco Filho, um dos principais defensores da corrente restritiva, “em outras palavras, não é permitida, na denunciação, a intromissão de fundamento jurídico novo, ausente na demanda originária, que não seja responsabilidade direta decorrente da lei e do contrato”.[13]
Cassio Scarpinella Bueno traz algumas hipóteses em que a denunciação não deve ser admitida, reforçando a ideia anterior:
[...] quando a denunciação basear-se em fundamento fático diverso que rende ensejo a instrução diversa daquela que tomará lugar na “ação principal; quando o direito de regresso decorrer imediatamente de texto expresso de lei ou de previsão contratual expressa [...].[14]
O entendimento dos doutrinadores que filiam-se a esta concepção é no sentido que, de que adianta o Art. 37, §6º, da Constituição Federal dizer que não é preciso se preocupar com o dolo ou culpa para que o Estado responda, se um dispositivo do CPC (art.70, III) acarreta esta consequência de trazer para os autos uma discussão que pela Constituição é desnecessária. Atrasando e dificultando a situação da vítima sob o ponto de vista material, postergando assim, o ressarcimento.
Reconhecendo o prejuízo que causaria ao administrado, Sidney Sanches elucida sobre o tema:
Se se admitir, porém, que a Fazenda Pública possa, nos mesmos autos, deduzir pretensão regressiva contra o funcionário causador do dano, porque agiu com culpa ou dolo, inevitavelmente o processo sofrerá entraves maiores, sobretudo com relação à instrução. E sempre em detrimento da vítima do dano. E sempre com desatenção ao princípio da economia processual, pois, pelo menos a primeira lide terá sua solução desnecessariamente retardada.[15]
Reforçando a ideia, Celso Ribeiro Bastos coloca-se contrário à denunciação da lide ao agente público, “já que isso se traduziria em compelir o agente a participar da própria ação de indenização, que, como vimos, por força da Constituição, tem por sujeito passivo as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos.”[16]
Então para os defensores desta corrente, não teria fundamento desobedecer indiretamente a benesse que a Constituição trouxe ao administrado, isto é, dispensando-o de provar a culpa do agente, sob a pena de, no mesmo processo, ser obrigado a esperar o confronto entre o Estado e seu agente, fundado exatamente na culpa.
Sob a ótica do fundamento processual, existe outro problema. É sabido que o juiz da causa precisa decidir com base na causa de pedir, com base nos fundamentos de fato e de direito e no pedido. Ele não deve considerar aspectos estranhos à causa de pedir. No entanto, quando a vítima ajuíza uma ação em face do Estado, ela não apresenta, via de regra, como causa de pedir o dolo ou culpa do agente causador do dano. Logo, a partir do momento em que a denunciação da lide ocorre, o juiz passa a ter de apreciar o dolo ou culpa do agente causador do dano. Evento que não integra a causa de pedir.
Com a entrada do agente na lide, restaria ao Estado provar a culpa deste para assegurar seu direito de regresso, de tal modo, que a discussão travada entre a Fazenda Pública e seu preposto seria certamente conflitante com aquela que já está arrimada na demanda original, ou seja, em face do particular na lide principal.
Tal situação configurar-se-ia um verdadeiro entrave a celeridade processual, haja vista que a denunciação da lide faz com que o processo se desenvolva de maneira mais devagar em função da citação do denunciado, para que o mesmo tome ciência dos fatos e se defenda.
Então, seja sob a ótica material, que atrasa o ressarcimento violando o Art. 37, §6º, CF; seja sob a ótica processual, porque vai fazer com que o juiz passe a apreciar e considerar na sentença questões que extrapolam a causa de pedir ou que foram incrementadas com elementos não diretamente ligados aos expostos no início do litígio, obstacularizando assim, a celeridade processual, a denunciação tem sido rejeitada pelo filiados à concepção restritiva.
Há de se ressaltar, porém, a importância desta corrente, existindo inúmeras decisões judiciais neste sentido[17].
2.2 Corrente ampliativa
Afastando-se da concepção restritiva encabeçada por Vicente Greco Filho, muitos doutrinadores adotaram uma interpretação ampla do inciso III, do artigo 70 do CPC, por entenderem que, entre outros argumentos, o instituto da denunciação da lide traria considerável economia processual e possibilitaria uma maior uniformidade de julgados, haja vista que as duas demandas (principal e de regresso) seriam decididas em conjunto. Portanto, os adeptos desta corrente tiveram o cuidado de rebater cada um dos argumentos defendidos pela teoria restritiva.
A começar pela distinção entre garantia própria e imprópria, calcada no sistema italiano da chiamata in garanzia, para os filiados à teoria restritiva, o ordenamento jurídico brasileiro tinha abraçado as lições advindas do Código Italiano, que trazia a diferenciação entre a garantia própria e a imprópria. Contudo, a concepção ampliativa defende que tal ideia não pode ser transplantada para o “sui generis modelo brasileiro de denunciação da lide”.[18]
Neste sentido, o magistério de Dinamarco:
E o Código não apresenta distinção alguma entre os casos de garantia própria ou de garantia imprópria - assim como também não a autoriza o Código Civil ou qualquer outro texto legislativo brasileiro. Não é como na Itália, onde, fora dos casos de evicção ou de condenação a pagar dívida alheia (garantia própria), a parte dispões de outro caminho (o intervento coatto). Aqui no Brasil, em que inexiste a dualidade de institutos associados a espécies de garantias, ou o sujeito denuncia a lide ao terceiro, ou nada poderá fazer.[19]
E ainda, acrescenta Aroldo Plínio Gonçalves que:
Primeiro, não tem razão o Professor Vicente Greco Filho quando diz que o sistema brasileiro é igual ao italiano. Não o é. [...] Além do mais, na Itália não existe um dispositivo de lei com a redação ampla e clara do inciso III, do art. 70, do Código de Processo Civil, de 1973. Depois, com apoio no art. 106 do Código de Processo Civil peninsular, parte da jurisprudência e da doutrina, como se deixou demonstrado, tem admitido a chiamata in garanzia em casos de garanzia impropria. Isto, saliente-se, mesmo sem um texto como o do Direito brasileiro.[20]
Como visto, o direito brasileiro não abarcou a distinção entre garantia própria e imprópria, diferença esta existente no direito italiano, que prevê duas vias processuais a serem seguidas, uma para cada tipo de garantia. Por isso, inexistia no ordenamento pátrio, instituto aplicável à espécie de garantia imprópria.
Daí, os que coadunam com a presente corrente, acreditam que a introdução do inciso III do artigo 70 do CPC, se deu por força da pressão doutrinária e da jurisprudência, que sentiam a necessidade de um mecanismo processual que abreviasse a pretensão regressiva nas hipóteses de garantia imprópria, com redação intencionalmente ampla e com aplicabilidade vasta, ensejando maior efetividade do instituto e da tutela jurisdicional. Na expressão de Barbosa Moreira, trata-se de dispositivo escrito em “termos louvavelmente genéricos”.[21]
Para essa corrente, “ação regressiva” adquiriu sentido jurídico bastante amplo, isto é, há direito regressivo toda vez que vai a pessoa buscar das mãos de outrem aquilo de que se desfalcou ou foi desfalcado o seu patrimônio para reintegrá-lo na posição anterior, com a satisfação do pagamento ou da indenização devida.[22]
Contra o argumento de que a denunciação do agente causador do dano traz, essencialmente, fato novo à demanda, implicando uma afronta ao princípio da celeridade processual, Candido Rangel Dinamarco explica que:
Não é economizar ou acelerar a todo custo, com espírito imediatista. Muito mais do que cada processo em particular, é o exercício da jurisdição como um todo que precisa ser regido pelas regras da economia e celeridade. Assim, parte-se do princípio de que todo o possível deve ser feito para extrair do processo o máximo proveito útil. É sempre mais econômico fazer um processo só, em vez de dois ou três, ainda que a matéria cognoscível resulte alargada e talvez dilatada a instrução.[23]
Humberto Theodoro Junior ressalta que é a própria Carta Magna, que ao passo que consagra o dever objetivo da Administração de reparar o dano causado por seu agente a terceiros, institui também a ação regressiva do Estado contra o servidor responsável, desde que tenha agido com dolo ou culpa nos termos do artigo 37, §6º constitucionalizado. Ainda observa o autor que:
[...] se o fato mesmo em litígio está previsto em contrato ou em texto legal expresso como causa de ação regressiva, não há como negar à parte da ação principal a faculdade de promover o cúmulo sucessivo de ações por meio da denunciação da lide a fim de que seu direito de regresso seja, desde logo, discutido e executado.[24]
Outrossim, autores ainda pontuam como vantagem da denunciação da lide, neste caso em especial, a dificuldade do agente fraudar ou mesmo oferecer obstáculos à execução, já que o mesmo estará sendo executado diretamente pela vítima, não havendo necessidade de um novo processo.
Sob outro enfoque, é a lição de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart:
Hoje, porém, prepondera a orientação no sentido do cabimento da denunciação, mormente considerando que está em jogo o patrimônio público, que, como elemento indisponível pertence a toda coletividade, depende da mais pronta reintegração.[25]
Deste ensinamento, decorre a ideia que se o servidor tornar-se parte, o particular receberá a indenização diretamente, sem precatório ou ação de regresso, o que agilizará o feito. Tal intervenção também beneficiará o Estado, que terá o seu patrimônio resguardado, podendo distribuir melhor os recursos públicos.
Em suma, pela concepção ampliativa, a responsabilidade do agente poderá ser apurada nos autos da ação indenizatória movida pelo particular, via denunciação da lide, já que a sentença abarcará tanto o conflito existente entre o Estado e a vítima, assim como aquele instaurado pelo primeiro em face do agente. Ocasionando assim, maior economia processual, celeridade, harmonia dos julgados e eficiência, evitando decisões conflitantes.
Da mesma forma que a teoria restritiva, é inegável sua importância também muito prestigiada pela jurisprudência do STJ.[26]
2.3 Corrente Mista
As duas concepções tratadas acima foram muito bem construídas e defendidas por seus adeptos, como são direcionadas em sentidos opostos, tais correntes acabam por culminar numa situação de impasse quando analisada no plano geral, ou seja, em abstrato. Percebendo isso, o processualista Fredie Didier Júnior, fez a seguinte ponderação:
A constatação da pertinência dos principais argumentos das correntes contrapostas é o suficiente para que se perceba a impossibilidade de obtenção de soluções apriorísticas ou abstratas, quer pela ampla admissão, quer pela proibição em hipóteses de garantia imprópria.[27]
Consciente de que essa “peleja” dificilmente chegaria a um denominador comum, a corrente mista levou o problema para uma seara mais prática, isto é, a solução da problemática deveria ser decidida casuisticamente, ainda na esteira de Didier Jr.:
[...] o magistrado, aplicando o princípio da proporcionalidade, verificará, no caso concreto, se a admissão da denunciação da lide pode comprometer a rápida solução do litígio, a ponto de não valer a pena a economia processual que por ela se busca alcançar; se isso ocorrer, inadmissível, in concreto, a denunciação, restando ao prejudicado exercer por vias autônomas a sua pretensão regressiva.[28]
Reconhece o autor, que de fato, a denunciação da lide implica um incremento cognitivo na demanda, e com a ampliação do thema probandum, ocasionaria a necessidade de apreciação de provas não constante na instrução inicial, o que dificultaria a prestação da tutela jurisdicional. Por isso, só no caso prático, poderá o juiz analisar se a carga cognitiva a ser anexada ao processo originário obstacularizará o bom andamento do feito ao ponto de justificar que o Judiciário seja acionado em uma demanda autônoma, ocasionando mais dispêndios e atrasando mais ainda o deslinde do litígio.
Em recente julgado, o Ministro Relator Desembargador Luiz Cézar Medeiros, reconheceu que apesar da introdução de elemento jurídico novo fundado em dolo ou culpa do agente estatal violar os princípios da economia e celeridade processuais, neste caso em particular, deve ser admitido o instituto da denunciação a fim de garantir a satisfação do litígio, in verbis:
EMENTA: AÇÃO DE INDENIZAÇÃO EM FACE DO ESTADO. ALEGADAS AGRESSÕES PRATICADAS POR POLICIAIS MILITARES. DENUNCIAÇÃO À LIDE DOS AGENTES PÚBLICOS. PECULIARIDADES DO CASO QUE RECOMENDAM O PROCESSAMENTO DA INTERVENÇÃO DE TERCEIRO. ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA RECURSAL DEFERIDA. DENUNCIADOS, ADEMAIS, QUE JÁ COMEÇARAM A SER CITADOS NO JUÍZO DE ORIGEM. AGRAVO PROVIDO.
A denunciação da lide, nos termos do art. 70, III, do Código de Processo Civil, é imperativa "àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda", não se podendo introduzir fundamento jurídico novo, sob pena de violação dos princípios da economia e celeridade processuais. A ação indenizatória movida contra o Estado tem por fundamento a responsabilidade objetiva. Em regra, a integração da lide pelos servidores públicos, requerida pela Administração através de pedido de denunciação da lide, introduz discussão acerca da culpa ou dolo daqueles. Todavia, excepcionalmente se autoriza a adoção dessa medida quando não há possibilidade de averiguar a responsabilidade do ente público sem a análise acurada da ocorrência dos fatos atribuídos ao servidor, cujos elementos probatórios não se encontram na esfera de disponibilidade e da possibilidade de o Estado produzi-los.[29]
Desta forma, acreditam os filiados a esta concepção, que não adianta ficar imaginando uma solução no plano abstrato, devendo ficar ao crivo do magistrado, se a admissibilidade do terceiro comprometerá ou não a satisfação da tutela jurisdicional em questão.
CONCLUSÃO
É possível o Estado denunciar a lide ao agente causador do dano, em ação de indenização que lhe move o particular, nos termos do inciso III do artigo 70? A questão se mostrou de intensa discussão tanto em sede doutrinária como jurisprudencial. Para tanto, foram formadas três correntes.
A primeira no sentido da não possibilidade de denunciação do agente, que ficou conhecida como concepção restritiva. Onde defendia ser inaplicável às ações de responsabilidade estatal, porque a mesma se dar de maneira objetiva, isto é, trazer o agente a demanda, implicaria apurar sua responsabilização subjetiva e consequentemente fatos jurídicos novos, tumultuando assim, o bom desenvolvimento do processo e descaracterizando a função primordial do instituto da denunciação que é a celeridade processual.
Para a segunda corrente, denominada ampliativa, por uma questão de economia processual, harmonia dos julgados e eficiência, e ainda para evitar decisões conflitantes, a responsabilidade do agente poderá ser apurada nos autos da ação reparatória movida pelo particular, via denunciação da lide, já que a sentença abarcará tanto o conflito existente entre o Estado e o prejudicado, assim como aquele instaurado pelo primeiro em face do servidor.
Por fim, uma terceira corrente, capitaneada por Fredie Didier Junior, traz para o plano concreto a solução do impasse, isto é, o juiz é o mais indicado no caso prático, para averiguar se o ingresso do terceiro vai trazer elemento jurídico novo ao ponto de criar entraves ao andamento do processo que os benefícios trazidos pelo instituto da denunciação da lide se revelariam inúteis.
É a teoria a qual nos filiamos, explica-se: a admissibilidade da denunciação da lide pelo Estado ao agente público não encontra guarida no artigo 70, III, do Código de Processo Civil; da mesma forma que sua inadmissibilidade não repousa no artigo 37,§ 6º, da Constituição. Procurar a solução em dispositivos isolados não pode gerar outro desfecho que não a alimentação da insuperável controvérsia, pela parcialidade dos posicionamentos assumidos.
Parece-nos que uma resposta segura à questão só pode ser encontrada por uma abordagem sistemática, que concatene os princípios e regras do processo em geral e da intervenção de terceiros em particular, tendo como base a busca de um processo justo. O que importa é saber, caso a caso, se o acesso à justiça pelo Estado implicará em irrazoável embaraço ao acesso à justiça pelo administrado. Vale dizer, se a busca da economia processual, pelo julgamento simultâneo da demanda principal e da demanda regressiva, comprometerá a celeridade processual, obstando à entrega da prestação jurisdicional ao autor da demanda principal em prazo razoável. Inclusive esta, vem sendo a orientação predominante no Superior Tribunal de Justiça para a admissão da denunciação da lide em geral.
Contudo, a matéria está longe de ser exaurida por um todo, cumprindo este trabalho apenas o papel de trazer a discussão e a exposição dos principais pontos de vistas presente tanto na doutrina como na jurisprudência.
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[1] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil – Direito das Obrigações, vol 4º, 1ª parte, p.8
[2] CARNEIRO, op. cit., p. 100/102.
[3] DINAMARCO, op. cit. p. 404.
[4] ARRUDA ALVIM, José Manoel de. Código de Processo Civil Comentado, vol. III. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. P272
[5] JÚNIOR, Nelson Nery e Rosa Maria de Andrade Nery. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 7ª edição, 2003.
[6] RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de direito processual civil. 2 ed. São Paulo: RT, 2003, v.2. p 295
[7] FUX, Luiz. Intervenção de Terceiros. São Paulo: Saraiva, 1991. P.37
[8] Grinover, Ada Pellegrini. Ação Civil publica em matéria ambiental e denunciação da lide. Revista de Processo. São Paulo: RT, 2002, abril-junho, n.106, p.16
[9] Gonçalves, William couto. Intervenção de terceiros. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. P. 249
[10] PASSOS, José Joaquim Calmon de. “denunciação da lide”. Enciclopédia saraiva do direito. São Paulo: Saraiva, 1979, v.23.
[11] GRECO FILHO, op cit. p 91
[12] Idem, ibidem p. 92
[13] Idem, ibidem p. 91
[14] SCARPINELLA BUENO, Cassio . Intervenção de terceiros - questões polêmicas. 2. ed. São Paulo: CPC, 2002. v. 1. p 111
[15] SANCHES, op. cit., p. 121
[16] BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à constituição do Brasil. v. 3, tomo III. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 187
[17] REsp 697566/PR 3ª T. Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, publicado no DJ de 14.11.2005, p. 319; REsp 661696/PR 2ª T. Rel. Min. Eliana Calmon publicado no DJ de 10.10.2005, p.311.
[18] FLAKS, Milton. Denunciação da lide. Rio de Janeiro: Forense, 1984 p. 171
[19] DINAMARCO, op. cit., p. 179
[20] GONÇALVES, op. cit., p. 240
[21] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Estudos sobre o novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Líber Juris, 1974, p.85
[22] PASSOS, op. cit. p 320.
[23] DINAMARCO, op. cit., p. 185
[24] THEODORO JÚNIOR, op. cit,, p. 127
[25] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento : a tutela jurisdicional através do processo de conhecimento 3. ed. rev., atual, e ampl -São Paulo : Revista dos Tribunais, 2004. P. 186
[26] REsp 439788/SP 4ª T. Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, publicado no DJ de 29.09.2003 p 256; REsp 163096/SP 1ª T. Rel. Min. Milton Luiz Pereira, publicado no DJ de 18.02.2002, p. 239
[27] DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. v.1 9ª Ed. Salvador: JusPODIVM, 2008; p.359
[28] Idem,ibidem. P. 359
[29] Agravo de Instrumento Nº552534/SC, Rel. Des. Luiz Cézar Medeiros, julg. em 07/05/2009.
Analista Judiciário no Tribunal de Justiça de Pernambuco. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera Uniderb. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOUVEIA, Henanh Meireles. Denunciação da lide pela Fazenda Pública em sede de responsabilidade civil do Estado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 jul 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47083/denunciacao-da-lide-pela-fazenda-publica-em-sede-de-responsabilidade-civil-do-estado. Acesso em: 23 dez 2024.
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