RESUMO: O presente trabalho busca analisar a participação dos entes não centrais na política internacional – fenômeno denominado paradiplomacia – e demonstrar como práticas paradiplomáticas podem ser utilizadas como instrumento para concretização de políticas/ações públicas em benefício da coletividade.
Palavras-chave: paradiplomacia, entes não centrais, políticas públicas, globalização.
SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. Considerações sobre a paradiplomacia. – 3. Exemplos de atividades paradiplomáticas na consecução de políticas públicas. – 4. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
A chamada era da globalização operou profundas mudanças estruturais na sociedade contemporânea, o que se refletiu sobremaneira nas relações internacionais, empregando-lhe novos contornos, e no próprio direito internacional, enquanto área da ciência jurídica reguladora destas relações.
O desenvolvimento de tecnologias que possibilitaram maior facilidade na comunicação e na troca de informações dinamizou a operacionalização das relações internacionais, e foi responsável também pelo aumento da importância do estudo do direito internacional em si, que evolui de modo a acompanhar esta dinamização.
Nesse cenário, surgiu a existência de novos atores que passaram a protagonizar estas relações: os entes não centrais ou entes subnacionais, assim entendidas as circunscrições administrativas que constituem um Estado, como os entes federados, no Brasil, as comunidades autônomas, na Espanha e as províncias, na Argentina.
Estes entes não-centrais atuam na perseguição de seus interesses locais que, muitas vezes, estão dissociados do interesse nacional. Dizem respeito a um tema local por demais específico, que não merece a mobilização de esforços por parte do ente central, mas que interessa de maneira substancial ao ente subnacional, podendo a celebração de acordos e convênios trazer-lhe relevantes benefícios.
A paradiplomacia permite, portanto, a participação destes entes no cenário internacional, na busca pelo desenvolvimento local, podendo ser usada como instrumento para a consecução de políticas públicas.
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A PARADIPLOMACIA
A aparição dos entes não centrais no cenário internacional é atribuída à possibilidade que estes entes passaram a vislumbrar de perseguir seus próprios interesses, de forma independente do Estado soberano, por meio do estabelecimento de relações diretas com outros entes subnacionais ou com os próprios sujeitos de direito internacional (Estados soberanos e Organizações Internacionais), de modo que não ficassem adstritos a atuação de um poder central que nem sempre logra atender aos reclames de todo o seu território. Esta possibilidade adveio justamente desse processo de globalização, que conduziu à regionalização do direito internacional (Hocking, 2004)
Assim foi que a doutrina internacionalista (Lessa, 2006 apud Castelo Branco, 2011) passou a denominar de paradiplomacia esse fenômeno de participação dos entes não centrais na política externa de um país. O estudo do tema evolui a cada dia, no entanto, ainda é incipiente, tanto a nível nacional como internacional, dado que se trata de um fenômeno ainda considerado recente no mundo jurídico.
Essa participação dos entes não centrais no cenário internacional se revela principalmente pelo estabelecimento de relações de caráter econômico, mas elas podem ter como objeto as mais variadas matérias. A expressão máxima da paradiplomacia, no entanto, se perfaz pela possibilidade de celebração de tratados internacionais pelos entes subnacionais, o que ainda não é muito comum na prática internacional.
3. EXEMPLOS DE ATIVIDADES PARADIPLOMÁTICAS NA CONSECUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Algumas unidades subnacionais já vivenciaram experiências práticas com caráter paradiplomático, por meio, principalmente, da celebração de convênios, diante da impossibilidade de celebração de tratados, buscando, com a cooperação internacional, o desenvolvimento local. Outro meio de materializar a prática paradiplomática é o estabelecimento, por determinado ente não central, de escritórios em outras unidades estratégicas, a fim de ali desenvolver atividades de caráter internacional, facilitando a troca de informações e a conjugação de interesses.
Há exemplos do fenômeno tanto em nível de estados quanto de cidades, tendo este último se desenvolvido visivelmente na América do Sul, mormente no âmbito do Mercosul.
No Brasil, as experiências paradiplomáticas ocorrem mais a nível estadual, o que pode ser atribuído ao baixo grau de independência e desenvolvimento presente nos municípios, se analisados sob uma perspectiva geral, com ressalva para as grandes cidades brasileiras. Os estados-membros apresentam maiores condições, normalmente econômicas, de desenvolver ações de política externa.
Há, inclusive, casos de cooperação entre regiões do Brasil e Espanha, pelo que se traz à luz pela pertinência das experiências diante do estudo aqui desenvolvido. Um exemplo trata-se de convênio celebrado entre a comunidade autônoma da Galícia e o estado de Santa Catarina, no início dos anos 90, relacionado à atividade da pesca.[1]
A Junta da Galícia mantém dois escritórios na área do Mercosul, um dos quais situado em Florianópolis – Santa Catarina e outro em Buenos Aires, na província de Formosa, cujas principais funções estão direcionadas para a área industrial e econômica, havendo também atuação nos âmbitos cultural e turístico. O papel destes escritórios é elaborar e propor convênios nas matérias acima relacionadas bem como promover a execução daqueles já firmados, além de apoiar a participação da Galícia em missões, feiras e eventos diversos na região.
Assim, foi firmado o referido convênio a fim de atender uma necessidade local da Galícia, que, por meio da cooperação, comprava de Santa Catarina pescados cuja pesca era proibida em determinada época do ano naquela região. A cooperação possibilitou o atendimento do interesse regional galego e fomentou a atividade da pesca catarinense, refletindo na exportação do estado.
Este é um típico exemplo em que estão presentes apenas interesses locais, pelo que não seria necessária – como não o foi – a intervenção do poder central e a celebração de um tratado internacional entre os Estados soberanos Brasil e Espanha para tratar de um tema muito específico das regiões envolvidas. A cooperação direta entre as unidades subnacionais permitiu a desburocratização do estabelecimento de uma relação internacional, facilitando o atendimento de necessidades regionais.
Como dito, a atividade paradiplomática não se restringe aos estados, podendo ocorrer também a nível municipal e um interessante exemplo recente deste tipo de experiência protagonizada por cidades foi o acordo firmado entre as cidades de Quito, no Equador, e Madri, capital espanhola, para a construção da rede de metrô na cidade latino americana.
A rede de metrô de Madri é referência mundial, destacando-se pela organização e gestão na solução de problemas de mobilidade, e a capital espanhola foi a cidade européia que mais investiu em metrô nos últimos anos[2]. Diante disso, o apoio madrileño está sendo de premente importância para a viabilização do projeto de mobilidade urbana da prefeitura de Quito.
O acordo foi subscrito em outubro de 2010, por meio do Protocolo de Cooperação Técnica firmado entre Quito e a Comunidade de Madri, que, em 2011, designou a Metro Madrid, empresa pública, como a responsável por desenvolver os estudos e desenhos do metrô de Quito. A construção da rede de metrô se encontra em andamento, atualmente na fase 2. O projeto está previsto para acontecer em 36 meses, com um investimento de $1.400 (um milhão e quatrocentos mil dólares).[3]
Este é outro exemplo de situação em que pontuais interesses locais foram atendidos por meio da cooperação transfronteiriça de entidades não centrais. É interessante notar que a iniciativa não gera nenhum prejuízo à economia nacional equatoriana, no sentido de que o empreendimento não será concretizado pela empresa espanhola, mas sim pela empresa equatoriana, Metro Quito, também empresa pública, de modo que não se estará dando preferência a uma empresa estrangeira em detrimento de empresas nacionais.
O que a empresa espanhola Metro Madri prestará será ajuda para a elaboração do projeto, emprestando sua excelência e experiência na condução do tema. O acordo, portanto, além de ser um importante passo na área de mobilidade urbana para a cidade de Quito, viabiliza a prestação de um serviço de melhor qualidade pela prefeitura quiteña, a partir do apoio da Comunidade de Madri.
No âmbito local, o estado do Ceará foi palco de uma tentativa de atividade paradiplomática que restou infrutífera por decisão final do Ministério das Relações Exteriores. Em 2006, visando o estreitamento de relações internacionais com a África Ocidental para a abertura de novos mercados destinatários das exportações cearenses, o Governo do Estado firmou convênio com Senegal.
O acordo, consubstanciado no Memorando de Entendimento firmado pelos dois entes, buscava desenvolver atividades de intercâmbio e cooperação, por meio da ação conjunta das duas regiões. Havia previsão, ainda, de eventual conexão área direta entre Fortaleza e Dakar, a ser estabelecida pela companhia cearense TAF Linhas Aéreas S/A.
O Memorando foi submetido à apreciação do Departamento de Atos Internacionais do Ministério das Relações Exteriores - MRE, para revisão técnica e jurídica, no entanto, este órgão obstou o prosseguimento do acordo, pelas razões apresentadas por sua Assessoria Especial para Assuntos Federativos e Parlamentares. Colaciona-se parte do parecer de conclusão desta Assessoria, pela didática com que foi apresentado e elucidação do tema ora em estudo:
‘3. No âmbito do Poder Executivo, cabe, por determinação presidencial, ao Ministério das Relações Exteriores negociar e celebrar tratados internacionais. À Divisão de Atos Internacionais (DAÍ), mencionada por Vossa Senhoria como ‘competente’ para a revisão técnica do Memorando de Entendimento em negociação entre o Governo do Estado do Ceará e o Governo do Senegal, cabe realizar o acompanhamento dos tratados e atos internacionais a serem firmados pela República Federativa do Brasil, inclusive em matéria que envolva estados federados e municípios.
4. Nesse quadro, apenas a União, portanto, têm personalidade jurídica de Direito Internacional e a atribuição constitucional para celebrar tratados, convenções ou atos internacionais. As conseqüências de atos internacionais firmados pelo Estado do Ceará, com base em argumentos ligados à sua inconstitucionalidade, poderão ser questionados judicialmente, inclusive no que se refere à responsabilidade por gastos públicos decorrentes de obrigações estabelecidas entre as partes signatárias.
(...)
7. Diante do exposto, gostaria de reafirmar o apoio que o Ministério das Relações Exteriores, por intermédio da Assessoria Especial para Assuntos Federativos e Parlamentares (Afepa) do Gabinete do Ministro de Estado, vem prestando à ação externa de estados e municípios, sempre dentro do marco legal e institucional estabelecido. Nesse contexto, a ação do Estado do Ceará é exemplar no sentido de obter a difusão de seus atrativos turísticos no exterior, ampliar os mercados consumidores de seus produtos e, em suma, ampliar a presença internacional do Brasil.
8. Continuamos à disposição do Ceará para a negociação, pelos canais estabelecidos pela Constituição, de instrumentos que, assinados em nome da República Federativa do Brasil com Estados soberanos, possam atender às legítimas aspirações cearenses. Sublinho que a ação externa de entes federados brasileiros pode se dar ao amparo dos instrumentos firmados pela União, sem a necessidade de incorrer em procedimentos contrários ao que estabelece a Constituição Federal. A Secretaria de Estado e os postos no exterior têm procurado dar todo apoio possível à execução dos projetos de desenvolvimento e cooperação de interesse de estados e municípios. ’
O aspecto mais interessante desta experiência foi que o estado do Ceará enviou o esboço da negociação para apreciação do MRE, o que não costuma acontecer, e justamente por isso o acordo se tornou mera tentativa, não se concretizando. O órgão ministerial deixou clara sua posição no sentido de não reconhecer e tampouco tolerar acordos firmados diretamente pelos entes federados, uma vez que afirma que eventual responsabilidade do estado-membro pode ser apurada diante da inconstitucionalidade do ato.
Ressalta ainda que estes entes somente podem ter seus interesses atendidos por meio de tratados firmados pela União, enquanto ente soberano. Todavia, afirma que, para tanto, é possível a negociação dos entes federados com a AFEPA, a fim de que apresentem seus interesses a serem perseguidos pela União, o que demonstra uma posição um pouco menos severa por parte do MRE, embora extremamente apegada ao legalismo constitucional.
4. CONCLUSÃO
A repartição de competências no direito brasileiro, estabelecida constitucionalmente, é norteada pelo princípio da predominância do interesse, um dos pilares do modelo de Estado Federal. De acordo com este princípio, entes locais devem tratar de temas referentes a interesses locais e entes nacionais daqueles que interessam a toda a população de determinado território. Assim é que foram delimitadas as competências privativas da União, no arts. 21 e 22 da Constituição Federal, dos Municípios, no art. 30 da Carta Magna e dos Estados pelo critério residual.
Este princípio deve nortear a atuação dos entes no plano internacional, da mesma maneira, posto que se mostra improvável que o ente central mobilize esforços para sua atuação no cenário internacional de modo a atender ao interesse de apenas determinada região de seu território, ou seja, para tratar de tema local.
Neste cenário, a paradiplomacia se revela um importante instrumento para a atuação do ente subnacional no âmbito externo. Por meio dela, seria possível a este ente celebrar acordos e convênios com outros entes subnacionais, com Estados Soberanos ou Organizações Internacionais na perseguição do interesse local e como parte de um plano de implementação de determinada política pública.
Assim, seria possibilitado ao ente buscar apoio de outro ente subnacional que tenha excelência na implementação de transportes públicos, por exemplo, de forma a melhorar o sistema de mobilidade urbana, ou buscar orientação de determinada Organização Internacional especializada, de modo a melhor administrar e otimizar a prestação de serviços de saúde ou buscar suporte para implementação de determinada técnica de ensino, tudo isso por meio da celebração de acordos e convênios internacionais.
O fato é que, diversas vezes, o ente central não presta este apoio aos entes subnacionais, seja por falta de qualificação técnica, por ineficiência ou mesmo por se tratar de matérias fora do seu âmbito de atuação e estes entes acabam desamparados, o que prejudica a população local como um todo. Neste cenário, a paradiplomacia pode ser utilizada como instrumento para busca de apoio técnico e de gestão, orientação e suporte para a melhoria ou mesmo surgimento de políticas públicas nas mais diversas áreas, mormente de saúde, educação e mobilidade urbana.
BIBLIOGRAFIA
CASTELO BRANCO, Álvaro Chagas. Paradiplomacia & Entes Não-Centrais no Cenário Internacional. Curitiba: Juruá, 2011.
HOCKING, Brian. Regionalismo: uma perspectiva das relações internacionais. In: VIGEVANI, Tullo. (Org.). A dimensão subnacional e as reações internacionais. São Paulo: Unesp, 2004.
LOS objetivos del mundo global se alcanzarán desde las capitales. Paradiplomacia.org, 17 setembro 2011. Disponível em: <http://www.paradiplomacia.org/noticias.php?lang=sp&seccion=6¬a=76>. Acesso em: 01 jul. 2013
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
______________________. Direito Internacional Público - parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
METRO QUITO. [Página Institucional]. Quito, 2013. Disponível em: <http://www.metrodequito.gob.ec/>. Acesso em: 01 jul. 2013.
[1]Informação disponível em: http://www.igadi.org/arquivo/te_se04/america_latina_na_accion_exterior_de_galicia.htm
[2] Informação disponível em: http://www.paradiplomacia.org/noticias.php?lang=sp&seccion=6¬a=76
[3] Informações extraídas da página institucional do metrô de Quito: http://www.metrodequito.gob.ec
Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Aprovada nos concursos da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais (2015), Procuradoria do Estado do Paraná (2015) e Advocacia Geral da União (2016).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTI, Vanessa Malveira. A paradiplomacia enquanto instrumento para consecução de políticas públicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 jul 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47088/a-paradiplomacia-enquanto-instrumento-para-consecucao-de-politicas-publicas. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Guilherme Waltrin Milani
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