RESUMO: O objetivo do presente trabalho é realizar uma comparação entre a participação de entes subnacionais na Espanha e Brasil – comunidades autônomas e estados federados, respectivamente. Tomando-se por fase a forma de estado adotada por ambos países, busca-se demonstrar as contradições na política internacional diante do unitarismo espanhol permeado de autonomia e o federalismo brasileiro com fortes traços de unitarismo.
Palavras-chave: paradiplomacia, entes subnacionais, unitarismo, federalismo, autonomia.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. O cenário brasileiro – 3. O caso espanhol – 4. Razões para o tratamento contraditório do tema nos dois países – 5. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
A regionalização do direito internacional, resultado do processo de globalização tão característico do mundo contemporâneo, operou o surgimento de novos atores no palco das relações internacionais: os entes não centrais, que passaram a protagonizar relações de cooperação internacional. O fenômeno atraiu a atenção de estudiosos e passou a ser chamado pela doutrina de paradiplomacia, que diz respeito ao desenvolvimento de uma política externa própria do ente subnacional voltada ao atendimento de seus interesses regionais. Essa política se constrói por meio destas relações entre unidades não centrais e está diretamente relacionada à celebração de tratados internacionais por um país e ao grau de descentralização nele presente, o que se conecta, por sua vez, com a própria forma de estado adotada.
Diante disso, realiza-se estudo de direito comparado entre Brasil e Espanha, estados Federado e Unitário, respectivamente, analisando-se as implicações destas formas de estado na seara internacional de cada país, mormente no que diz respeito ao desenvolvimento de atividades paradiplomáticas, bem como a participação dos entes federados e comunidades autônomas no procedimento de celebração de um tratado internacional pelo Estado soberano.
O federalismo vivenciado no Brasil e o unitarismo experimentado pela Espanha se interconectam quando analisados sob um enfoque prático, de modo que este assume aspectos mais descentralizadores que aquele, em verdadeira contradição ao preceituado para cada uma destas formas de estado.
Posto isto, propõe-se a ideia de que o surgimento destes novos atores quebra o paradigma clássico de subjetividade internacional, o que requer uma evolução paralela do direito internacional público e do direito interno de cada país no mesmo sentido.
2. O CENÁRIO BRASILEIRO
O Brasil adotou a forma federada de estado, o que pressupõe, segundo os ensinamentos doutrinários ( Bonavides, 2007), uma descentralização do poder e maior autonomia aos seus componentes em relação ao estado chamado unitário. A legitimidade da forma federada decorre do Direito Constitucional e da própria Constituição em si, e não do Direito Internacional (Bonavides, 2007, p. 196), como se poderia imaginar, embora sobre ele dormitem os seus reflexos. Isso ocorre na medida em que um poder constituinte soberano é que determina a adoção desta forma de estado e delimita a sua estrutura básica na Carta Magna de um determinado país.
Esta autonomia, todavia, é limitada e constitucionalmente não é conferido aos Estados membros o poder de celebrar tratados com outros sujeitos de direito internacional (países e organizações internacionais). É o que aduz o artigo 21 da Constituição Federal de 1988, que reserva tal competência à União, enquanto ente dotado de soberania e com personalidade de pessoa jurídica de direito público externo:
Art. 21. Compete à União:
I - manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais;
Tal vedação, no entanto, vai de encontro, de certa forma, à própria forma federada adotada pelo Brasil. Em um país com uma extensão de mais de 8 milhões km² e com tantas diferenças regionais, seja no âmbito cultural, econômico e até mesmo geográfico, os interesses de cada Estado-membro nem sempre são atendidos pela atuação da União enquanto ente soberano. Determinado Estado poderia ter maiores possibilidades de desenvolvimento, se lhe fosse possível defender seus interesses específicos também no âmbito internacional, o que refletiria igualmente no desenvolvimento do país como um todo, uma vez que nem sempre é possível à União conjugar as necessidades e interesses particulares de cada região.
O processo de celebração de um tratado internacional, pelo Brasil, se inicia, regra geral, com os atos de negociação, que, aqui, são de competência privativa do Poder Executivo, representado pelo Presidente da República ou pelo Ministro das Relações Exteriores, devendo ainda ser acompanhado por funcionário diplomático. Após, o texto final deve ser aprovado pela Consultoria Jurídica do Itamaraty, que realizará análise de direito material, e pela Divisão de Atos Internacionais, que analisará o ato internacional sob o enfoque processual. O Itamaraty, portanto, é verdadeiro auxiliar da Presidência da República neste campo (Mazzuoli, 2004, p. 59).
Devidamente analisado e aprovado, a fase seguinte será a da assinatura do ato internacional. A assinatura representa o fim das negociações e a conclusão do texto final do tratado, de modo que, uma vez aposta ao ato, não poderá mais seu texto ser alterado. O Estado estará manifestando sua intenção de aderir ao tratado conforme o pactuado, no entanto não estará se obrigando ainda no plano internacional. Será possível a partir daí a apresentação de reservas ao texto do tratado pelas partes que pretendem aderi-lo. Qualquer autoridade pode assinar um ato internacional, desde que munida de carta de plenos poderes, firmada pelo Presidente da República e referendada pelo Ministro das Relações Exteriores.
Uma vez assinado o tratado, ele será submetido à apreciação e aprovação pelo Poder Legislativo, conforme determina a Constituição no inciso I do seu art. 49, seguindo, caso aprovado, para ratificação pelo Poder Executivo, na pessoa do Presidente da República. Apenas após o referendo parlamentar e a ratificação indelegável do Presidente é que o tratado passará a irradiar efeitos no plano internacional, portanto. A ratificação, aqui, se presta a confirmar a assinatura anteriormente aposta, e, somente após o crivo dos Poderes Legislativo e Executivo é que o tratado passará a ter efetiva validade, obrigando o Brasil no plano internacional.
Da breve exposição do procedimento de celebração e adoção de um tratado internacional no Brasil, extrai-se que não há, em nenhum momento, espaço para a participação dos entes federados neste processo. Conforme já exposto, aos membros federados não é dada personalidade externa pela ordem internacional (Rezek, 1996), no entanto, a ordem interna brasileira também não confere possibilidade alguma de participação destes entes no processo de elaboração de um ato internacional, nem mesmo o direito de serem ouvidos nas matérias que lhe afetem de alguma maneira.
Percebe-se, portanto, que essa regra constitucional não é capaz de atender a contento o equilíbrio do pacto federativo, na linha do que assevera Castelo Branco:
‘Em verdade, chega-se à conclusão de que todo o modelo de celebração de tratados, tendo por base a capacidade exclusiva dos entes dotados de personalidade jurídica internacional (Estados soberanos e organizações internacionais) foi levado a cabo e desenvolvido a partir de um modelo de federalismo tradicional e assimétrico, com a concentração de vários poderes e prerrogativas nas mãos de um ente central’
O modelo adotado pelo Brasil para celebração de tratados internacionais com a exclusão dos entes não centrais, portanto, demonstra que o federalismo por nós vivenciado não é apto a cumprir sua função primordial de distribuição de autonomias e resguardo de interesses locais, uma vez que dotado de uma marcante faceta centralizadora.
2. O CASO ESPANHOL
Analisemos o que ocorre paralelamente na Espanha, Estado Unitário formado por Comunidades Autônomas.
No direito espanhol, igualmente não é dado às Comunidades Autônomas – que, em uma equiparação grosseira, corresponderiam aos nossos estados federados – iniciar ou participar do processo de celebração de um tratado internacional. Aduz o art. 149, I, AP 3º, da Constituição Espanhola, em consonância com o direito constitucional pátrio, que é competência exclusiva da União tratar de matérias que dizem respeito às relações internacionais:
1. El Estado tiene competencia exclusiva sobre las siguientes materias.
(...)
3. Relaciones internacionales.
Muito embora não possam as Comunidades Autônomas celebrarem diretamente tratados internacionais, elas detém uma série de direitos que lhes conferem um maior poder de participação na política internacional espanhola, quais sejam: o direito de iniciativa, o direito de informação e o direito a realizar atividades de relevância internacional. (Jiménez Piernas, 2010.)
O primeiro confere à Comunidade Autônoma a possibilidade de solicitar do governo central a celebração de tratados internacionais com relação a determinadas matérias que sejam de seu interesse. Tais matérias, contudo, devem estar expressamente previstas nos estatutos de autonomia de cada comunidade, e, portanto, o âmbito material varia de acordo com a região, podendo ser mais ou menos amplo. Ressalte-se que tal solicitação não vincula o governo central, que decidirá se é oportuno ou não a celebração do tratado.
Como exemplo, citaremos o caso do Estatuto da Galícia, que traz apenas dois âmbitos materiais sobre os quais poderá o direito de iniciativa ser exercido, previstos nos artigos 7 e 35.3:
Artículo 7
1. Las Comunidades gallegas asentadas fuera de Galicia podrán solicitar, como tales, el reconocimiento de su galleguidad entendida como el derecho a colaborar y compartir la vida social y cultural del pueblo gallego. Una ley del Parlamento regulará, sin perjuicio de las competencias del Estado, el alcance y contenido de aquel reconocimiento a dichas Comunidades, que en ningún caso implicará la concesión de derechos políticos.
2. La Comunidad Autónoma podrá solicitar del Estado español que para facilitar lo dispuesto anteriormente celebre los oportunos tratados o convenios con los Estados donde existan dichas Comunidades.
Artículo 35
3. La Comunidad Autónoma gallega podrá solicitar del Gobierno que celebre y presente, en su caso, a las Cortes Generales, para su autorización, los tratados o convenios que permita el establecimiento de relaciones culturales con los Estados con los que mantenga particulares vínculos culturales o lingüísticos.
O segundo diz respeito ao direito de cada Comunidade ser informada sobre os tratados internacionais firmados pelo governo central que tratem das respectivas matérias previstas em seus estatutos ou que sejam de sua competência. É um direito mínimo, uma vez que implica unicamente o direito de informação, não podendo a Comunidade Autônoma atuar de nenhuma maneira. Não deixa de ser, no entanto, um direito de extrema relevância.
Já o terceiro é mais complexo e trata do direito de cada Comunidade de realizar atividades de relevância internacional e assinar instrumentos com terceiros estados ou outros entes territoriais intermediários estrangeiros, desde que não gerem relações jurídicas internacionais. As Comunidades podem realizar atividades internacionais, mas tal atividade não deve conter nunca uma dimensão jurídica.
Cada um dos direitos elencados acima deve estar previsto no Estatuto de Autonomia da Comunidade, para que ela possa efetivamente exercê-lo, caso contrário não o poderá. Isso quer dizer que a Galícia, por exemplo, pode deter apenas o direito de iniciativa e o direito de informação, se o direito de realizar atividades de relevância internacional não venha previsto em seu Estatuto, ainda que existente na prática e doutrina espanholas.
Percebe-se, portanto, que, muito embora não possam as Comunidades Autônomas espanholas atuar diretamente como sujeitos de direito na celebração de tratados internacionais, lhes é assegurada certa participação em matéria internacional que não encontra tratamento similar no tocante aos Estados-membros brasileiros. Existem direitos mínimos, como o direito à informação, que não têm corresponde no ordenamento jurídico pátrio. E tudo isso em um Estado Unitário, onde o poder é centralizado e a autonomia conferida às regiões é, pelo menos em tese, menor que aquela conferida aos entes federados, na forma de estado federal.
3. RAZÕES PARA O TRATAMENTO CONTRADITÓRIO DO TEMA NOS DOIS PAÍSES:
Comparando-se o federalismo centralizado brasileiro e o unitarismo descentralizado espanhol, percebe-se que a diferença de tratamento aos entes subnacionais no plano internacional está ligada intimamente ao nascedouro destas Nações e às motivações para o modelo de Estado adotado.
No Brasil, o sistema federalista foi adotado, por assim dizer, por opção. Foi escolhido como o modelo a ser seguido após a Proclamação da República em 1889, aparecendo como legítima forma de estado da então República Federativa dos Estados Unidos do Brasil, no Decreto n°1 de 1889.
Enquanto nos Estados Unidos esse modelo surgiu de maneira natural e estruturada – federalismo por agregação - por meio de um lento processo, na busca do melhor atendimento às necessidades internas daquele país, no Brasil, ele foi adotado bruscamente, no chamado federalismo por segregação, passando o país de Estado Unitário Imperialista a uma República Federativa por força da lei, sem qualquer adequação anterior que pudesse conferir real efetividade ao novo sistema adotado, o que apenas seria alcançado posteriormente.
O fato é que o que se verifica na atual conjectura brasileira é a incapacidade de solução de problemas locais por governos locais – como o é a questão da seca no Nordeste – seja por insuficiência de recursos financeiros, o que decorre justamente da repartição de competências tributárias constitucionalmente estabelecida, ou pela própria ineficiência de tais governos, e a consequência disso é o maior aporte de questões a ser resolvidas pela União, que passa também a tratar de matérias de interesse local, indo de encontro ao princípio da predominância do interesse que norteia o sistema federal. Os demais entes federados se apoiam na União para solução de seus problemas, delegando-os a ela e confiando na sua atuação, como em uma relação de dependência entre filhos e mãe, algo que parece haver sido herdado do passado monárquico e centralizador e se incorporou à essência da organização do País. E o mesmo não se verifica em outros Estados, até mesmo nos que adotam o modelo unitário, como é o caso da Espanha.
O território espanhol, por sua vez, foi constituído a partir da conquista, conjugação e desmembramento de várias regiões anteriormente pré-constituídas para a construção de um novo estado soberano. Estas regiões, no entanto, resguardaram quase que intactas suas peculiaridades, de onde adveio o brocardo de que a Espanha é uma “Nação de nações” e a razão pela qual a história espanhola sempre esteve marcada por movimentos separatistas.
Nesse contexto, o estado unitário autonômico surge como uma solução a estas pretensões nacionalistas, como meio capaz de conferir maior autonomia a estas regiões, de modo a acalmar os ânimos secessionistas e impedir uma fragmentação territorial, superando o conceito de descentralização meramente administrativa, que já não se mostrava capaz de manter a unidade do Estado Espanhol.
A Espanha, portanto, optou por tornar-se um Estado Unitário visando manter sua integridade e unificação territorial, de modo a tolher a autonomia de que já gozavam as Comunidades Autônomas e aplacar os sentimentos separatistas, buscando uma integração nacional. Já o Brasil conferiu autonomia a entes que, até então, apenas se organizavam de maneira unitária.
4. CONCLUSÃO
Do breve estudo comparado de ambos os ordenamentos, conclui-se que o Brasil necessita de evolução no tocante à participação internacional de seus Estados-membros ao que seria uma democracia participativa na política externa[1], pois o que se vê é a completa centralização do poder de tratar do tema, em um país que adotou uma forma de estado que preza a descentralização e a repartição de competências e autonomias.
A possibilidade de os Estados federados atuarem como sujeitos de direito em âmbito internacional, especialmente no que diz respeito à celebração de tratados internacionais, faz-se necessidade cada vez mais premente no atual cenário brasileiro, e a forma como o tema é tratado no País se mostra contraditória frente a outros ordenamentos jurídicos que regem Estados Unitários.
O objetivo, portanto, é que a legislação nacional evolua no sentido de acompanhar este fenômeno que se dá no plano fático, a fim de regulamentar a participação dos entes federados no plano internacional, particularmente na celebração de tratados.
BIBLIOGRAFIA:
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 14ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
CASTELO BRANCO, Álvaro Chagas. Paradiplomacia & Entes Não-Centrais no Cenário Internacional. Curitiba: Juruá, 2011
JIMÉNEZ PIERNAS, Carlos. Introducción al Derecho Internacional Público. Práctica de España y de la Unión Europea. 2. ed., Madri: Tecnos, 2011
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
______________________. Direito Internacional Público - parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
[1] A.RODRIGUES, Gilberto Marcos. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 51, nº 4, 2008, pp. 1015 a 1034
Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Aprovada nos concursos da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais (2015), Procuradoria do Estado do Paraná (2015) e Advocacia Geral da União (2016).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTI, Vanessa Malveira. A participação de entes subnacionais na celebração de tratados internacionais no federalismo brasileiro e no unitarismo espanhol Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 jul 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47115/a-participacao-de-entes-subnacionais-na-celebracao-de-tratados-internacionais-no-federalismo-brasileiro-e-no-unitarismo-espanhol. Acesso em: 23 dez 2024.
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