RESUMO: O discurso jurídico atual ainda é baseado em um modelo de pensamento positivista, cujo desenvolvimento se deu a partir do início da Modernidade. Para essa forma de pensamento, o Direito e a justiça se limitariam àquilo que o Estado impõe através de suas leis e decisões, não havendo muito espaço para questionamento das normas já positivadas. Ocorre que mesmo o discurso positivista, que se diz neutro por apenas realizar a aplicação da lei, é carregado de uma ideologia baseada nos interesses dominantes no modo de vida capitalista. Por isso, é necessário buscar a superação do paradigma dominante do discurso do Direito.
Palavras-chave: cientificismo; positivismo; discurso dominante; ensino jurídico.
INTRODUÇÃO
No século atual, percebe-se que o pensamento jurídico dominante, responsável pela formação de estudantes, intérpretes e aplicadores, é profundamente influenciado por uma postura cientificista, oriunda do modo de pensar positivista existente desde o século XVII. Isso faz com que os juristas ainda se baseiem na crença de que o Direito é limitado àquilo que está positivado nas normas, impedindo que se desenvolva um pensamento crítico-reflexivo nos diversos âmbitos do uso do Direito.
Ocorre que em todas as normas e discursos positivados pelo Estado, há inevitavelmente interesses implícitos, que, na maioria das vezes, auxilia na consolidação da forma moderna de dominação e de incongruências normativas inaceitáveis. Constitui-se, assim, uma formação imagética que trata o Direito como uma linguagem científica/epistemológica que não precisa dialogar com outros saberes para ser aplicado. Ignora-se que o Direito é uma ciência social, uma ciência da compreensão, a qual deve interagir com a complexidade das relações dos seus sujeitos, ouvindo seus interesses e necessidades reais, independente do discurso normativo consolidado.
Para superar tal paradigma dominante do discurso, verifica-se necessária a implementação de práticas que estimulem a crítica e a construção do conhecimento, especialmente no bojo do ensino jurídico.
DESENVOLVIMENTO
1.1 A formação do legado positivista e a introdução da pureza metodológica
Com o advento da Modernidade, o Estado passou a monopolizar o Direito de presidir a distinção entre ordem e caos, lei e anarquia, pertencimento e exclusão, produto útil e “refugo” (BAUMAN, 2005. p. 45). De fato, a partir do progressivo rompimento com o modo de vida feudal típico da Idade Média, emerge uma nova forma de interpretação da vida, com a qual se está vinculado até hoje: o modo de pensar objetivista e racionalista. A compreensão moderna do mundo ocidental está sedimentada em uma nova postura frente à racionalidade, a qual abandona a ideia da fundamentação através de conceitos metafísicos e transcendentes, dominantes nos séculos anteriores.
Essa postura predomina em nossa sociedade desde o surgimento do contratualismo Hobbesiano – que pregou que a sociedade abdica de uma parcela de sua liberdade para garantir a proteção e a segurança concedidas pelo Estado. Para Hobbes e os demais contratualistas, a sociabilidade só ocorre a partir da vontade racional do homem, posto que ela é construída por este em uma forma de convenção estabelecida, na qual o Estado seria o único soberano e teria como obrigação o controle da sociedade, usando a força e os recursos de todos da maneira que considerasse conveniente para assegurar a paz e a defesa comuns.
Conforme Hobbes, “Só o Estado prescreve e ordena a observância das regras a que chamamos de leis, então o Estado é o único legislador” (HOBBES, 2002, p. 197). Para ele, as leis são as regras do justo e do injusto, e ninguém pode fazer leis a não ser o Estado. Neste sentido, o Estado elabora leis para que os cidadãos se sintam protegidos e ao mesmo tempo coagidos, visto que naquilo que a lei veda, eles não sofrerão interferências de terceiros, mas também não poderão interferir em âmbitos que não são seus.
Esse contexto refletia exatamente os interesses da sociedade burguesa em ascensão a partir do final século XVII, que buscava afastar as arbitrariedades impostas pelos monarcas da Idade Média em nome da religião e da Igreja, e que acabou criando condições propícias ao desenvolvimento do positivismo cientificista. Isso porque o objetivo principal da classe era garantir a segurança do seu modo de vida e de suas propriedades.
Nesse cenário, Hobbes consegue demonstrar e convencer sobre a necessidade de adoção de um pacto diferenciado entre os homens, baseado na racionalidade e que dá ao Estado o monopólio do poder coercitivo. O autor articula sua filosofia social tendo como referencial um modelo de ciência racionalista e demonstrativa, dando impulso a uma visão mecanicista que posteriormente seria reforçada e reconstruída pelo positivismo cientificista e pelo positivismo jurídico.
O cientificismo continuou a ser desenvolvido até século XVIII, vindo a afirmar-se como atitude intelectual no século XIX, quando emergiu a denominada era da positividade. O maior precursor da escola positivista foi o filósofo francês Auguste Comte. Conforme Marques Neto (2001, p. 57), o autor defendia a neutralidade científica absoluta, e formulou a lei dos três estados (ou estágios). Nessa concepção, a humanidade evoluiria de um estado teológico inicial, passando por um estado metafísico intermediário, até atingir um estado propriamente científico, que ele chama de positivo. Esse último seria uma etapa final e definitiva da forma de pensar, no qual a ciência se preocupa primordialmente com os estudos das leis naturais, defendendo uma unidade metodológica de pesquisa.
Dessa forma, a partir do positivismo, o conhecimento sujeitou a especulação à observação, ao experimento e à ciência como o principal motor do progresso humano. Conforme Alberto Cupani (1985, p. 13-20), o positivismo entende a ciência como a única forma de conhecimento válido, preciso, perfectível e desinteressado, buscando leis e teorias conforme a previsão científica, deixando de lado qualquer pretensão ao saber científico que não fosse formulado a partir de tais objetivos.
Conforme referido, o desenvolvimento da Modernidade, que tem início a partir da desvinculação com a Aristocracia feudal e a consequente ascensão da burguesia, é concomitante à evolução do pensamento positivista. O racionalismo foi abarcado pelas teorias contratualistas, e atendeu aos interesses da nova classe dominante, de forma a se tornar o novo paradigma do modo social de pensamento.
Tal interpretação continua atendendo aos interesses das classes dominantes, sendo mantido até os dias atuais. Ocorre que a concepção meramente cientificista da realidade não se revela suficiente para responder às demandas e necessidades sociais.
1.1.1 O Juspositivismo e a apropriação pelos juristas do discurso kelseniano
A moderna cultura liberal-burguesa e a expansão material do capitalismo produziram uma forma específica de racionalização do mundo. O pensamento cientificista irradiou-se nos diversos campos do conhecimento, e no Direito, isso não poderia ser diferente.
Segundo Bobbio (1995, p. 27), a sociedade medieval era construída por uma pluralidade de agrupamentos sociais, cada um dos quais dispondo de um ordenamento jurídico próprio. Nessa fase, o Direito era considerado norma fundada na própria vontade de Deus e por este participada à razão humana: “como diz São Paulo, como lei escrita por Deus no coração dos homens” (BOBBIO, 1995, p. 95).
Dessa forma, o julgador tinha uma certa liberdade de escolha na determinação da norma a aplicar: poderia deduzi-la das regras do costume ou daquelas elaborada pelos juristas, ou ainda poderia resolver o caso baseando-se em critérios equitativos, extraindo a regra do próprio caso em questão segundo princípios da razão natural.
Todavia, com a formação do Estado Moderno, a sociedade assumiu uma estrutura monista, na qual o Estado concentrou em si todos os poderes, principalmente o de criar Direitos de forma exclusiva: “Assiste-se, assim, àquilo que em outro curso chamamos de processo de monopolização da produção jurídica por parte do Estado” (BOBBIO, 1995, p. 27). Consequentemente, o juiz torna-se órgão do Estado, o qual deve resolver controvérsias segundo as regras emanadas do legislativo.
Fica clara a mudança radical ocorrida na Modernidade, quando o Direito que prevalece e domina a sociedade passa a ser o positivo – deixando-se de lado os mandamentos do Direito natural. Dessa forma, legitima-se o positivismo jurídico, o qual busca estudar o Direito tal qual é, e não como deveria ser (BOBBIO, 1995, p. 131). Essa forma de pensar separa a validade da norma do seu valor: a validade está relacionada com a sua existência em um ordenamento, enquanto o valor diz respeito à correspondência do Direito com a vida real, fator que, segundo Bobbio, não preocupa o juspositivista. Isso porque este apenas leva em conta o que está na realidade da ciência jurídica, independente da realidade deontológica.
O maior nome relacionado ao positivismo jurídico é, sem dúvida, Hans Kelsen. Para ele, a norma possui um sentido objetivo, dotado de um poder para que seja seguida (denominado sanção). Ao propor sua teoria pura, Kelsen (1999, p. 1) afirma que:
Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito.
Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental.
Kelsen defende que o objeto da ciência jurídica são as normas jurídicas, e a conduta humana só importa na medida em que constitui conteúdo dessas normas: “A ciência jurídica procura apreender o seu objeto ‘juridicamente’ [...] Apreender algo juridicamente não pode, porém, significar senão apreender algo como Direito [...] como norma jurídica ou conteúdo de uma norma jurídica [...]” (1999, p. 61).
Para o autor, deve-se delimitar o Direito em face da natureza e a ciência jurídica como ciência normativa, que analisa um sistema de normas (1999, p. 69). De fato, segundo ele, o Direito é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano.
Assim, com o termo “norma”, Kelsen identifica algo que deve ser ou acontecer, uma forma como o homem se deve conduzir em determinada situação. O autor faz uma distinção entre o mundo normativo (do dever-ser, objetivo) e o mundo dos fatos (o ser, que deverá corresponder ao dever-ser para não sofrer uma sanção – posto que o Direito é uma ordem coativa). Como sua proposta é o estudo das normas, evidentemente, tornar-se-á objetivo, e não se preocupará com sua respectiva correspondência no mundo dos fatos (exceto para instituir uma sanção):
Os juízos jurídicos, que traduzem a idéia de que nos devemos conduzir de certa maneira, não podem ser reduzidos a afirmações sobre fatos presentes ou futuros da ordem do ser, pois não se referem de forma alguma a tais fatos, nem tampouco ao fato (da ordem do ser) de que determinadas pessoas querem que nos conduzamos de certa maneira. Eles referem-se antes ao sentido específico que tem o fato (da ordem do ser) de um tal ato de vontade, e o dever-ser, a norma, é precisamente esse sentido, o qual é algo de diferente do ser deste ato de vontade [...]
Neste sentido, a Teoria Pura do Direito tem uma pronunciada tendência antiideológica. Comprova-se esta sua tendência pelo fato de, na sua descrição do Direito positivo, manter este isento de qualquer confusão com um Direito “ideal” ou “justo”. Quer representar o Direito tal como ele é, e não como ele deve ser: pergunta pelo Direito real e possível, não pelo Direito “ideal” ou “justo”. Neste sentido é uma teoria do Direito radicalmente realista, isto é, uma teoria do positivismo jurídico. Recusa-se a valorar o Direito positivo. Como ciência, ela não se considera obrigada senão a conceber o Direito positivo de acordo com a sua própria essência e a compreendê-lo através de uma análise da sua estrutura. Recusa-se, particularmente, a servir quaisquer interesses políticos, fornecendo-lhes as “ideologias” por intermédio das quais a ordem social vigente é legitimada ou desqualificada. Assim, impede que, em nome da ciência jurídica, se confira ao Direito positivo um valor mais elevado do que o que ele de fato possui, identificando-o com um Direito ideal, com um Direito justo; ou que lhe seja recusado qualquer valor e, conseqüentemente, qualquer vigência, por se entender que está em contradição com um Direito ideal, um Direito justo. (KELSEN, 1999, p. 74-75).
No mesmo sentido, a interpretação jurídico-científica não poderia fazer outra coisa senão estabelecer as possíveis significações de uma norma jurídica (1999, p. 250). Tal atividade só poderia ser realizada pelo órgão que, segundo a ordem jurídica, é competente para aplicar o Direito:
Um advogado que, no interesse do seu constituinte, propõe ao tribunal apenas uma das várias interpretações possíveis da norma jurídica a aplicar a certo caso, e um escritor que, num comentário, elege uma interpretação determinada, de entre as várias interpretações possíveis, como a única “acertada”, não realizam uma função jurídico-científica mas uma função jurídico-política (de política jurídica). Eles procuram exercer influência sobre a criação do Direito. Isto não lhes pode, evidentemente, ser proibido. Mas não o podem fazer em nome da ciência jurídica, como freqüentemente fazem (KELSEN, 1999, p. 251).
Ross (2000, p. 25), outro grande nome do positivismo jurídico, afirma que as normas independem de valores éticos ou considerações políticas, como afirmavam as escolas naturalistas e histórico-sociológicas. A ciência jurídica, portanto, deveria ser disciplina isolada dos demais conhecimentos, que não abordasse nada além do conteúdo estabelecido pelas normas.
Portanto, as normas a serem seguidas deveriam ser criadas sem influências de outros conhecimentos e positivadas no ordenamento jurídico estatal, não admitindo que o aplicador da lei utilizasse de suas influências pessoais para expedir decisões. Sendo assim, o Direito se resumiria à lei, o que garantiria segurança aos cidadãos (visto que imparcial e “pura”) e, ao mesmo tempo, legitimaria o poder do Estado, que passou a ser o mais novo soberano.
Nesse contexto, portanto, a lei se torna uma forma de controle social, imposta pelo soberano e seguida por todos, independentemente dos valores a que serve ou do seu conteúdo.
Para Galuppo (2005, p. 198), o positivismo jurídico trata a lei como um objeto autoexistente e neutro, que possui um comprometimento metodológico e está relacionado a um racionalismo sistemático, deixando de lado o Direito natural anteriormente predominante. Ante essa realidade, o Direito liberal-burguês esvaziaria e apartaria do âmbito jurídico o conteúdo jusnaturalista, sendo concebido como Direito do Estado que culminou na assimilação do jurídico pelo poder político.
Dessa forma, só seria Direito aquele positivo, e só teria positividade o Direito promulgado validamente pelos órgãos do Estado. Por sua vez, o Estado, governado pela burguesia, acabava instrumentalizado como recurso para defesa e proteção dos interesses da classe, que encontrava abrigo em um Direito predominantemente cético e neutro (JULIOS-CAMPUZANO, 1999, p. 172).
Com esse pensamento, era necessário excluir do Direito as proposições metafísicas, consagrando uma ciência do Direito que possuísse um método próprio, produzido através da razão e separado das demais disciplinas afins. Entretanto, o Direito não pode ser entendido como um fato isolado. Pêpe (2007, p. 25-26) defende que o Direito positivo coloca o homem cotidiano à margem do sistema, impossibilitando uma experiência comunicativa. Com as normas positivadas, haveria um monopólio da ordem, descaracterizando princípios éticos que sedimentaram outros sistemas normativos. A lei imposta por classes privilegiadas acaba causando uma cegueira parcial no resto da sociedade, que não percebe que ao pensamento e prática jurídicas interessa apenas o que certos órgãos do poder social impõem e rotulam como Direito.
Atualmente, o pensamento positivista permanece enraizado na formação dos juristas. Conforme Habermas (1987, p. 321-339), o Direito, desde a Modernidade, passou a ser uma disciplina exclusivamente de juristas, que o aplicam da forma sistematicamente instituída e especializada.
Os princípios da legalidade não exigem motivação ética fora de uma obediência geral ao Direito, sancionando apenas ações, e não intenções. Passa-se a um critério abstrato de valor, em busca da retitude normativa. Dessa maneira, segundo Habermas, o racionalismo acaba entrando em crise diante dos conflitos modernos. Além disso, fica cada vez mais evidente que a positividade apenas expressa a vontade de um legislador soberano, legitimando a dominação política.
A sociedade, que depende do Direito para regulamentar suas relações sociais, mesmo sentindo diretamente a insuficiência do paradigma dominante, não encontra alternativas que possibilitem sua participação nas decisões e manifestações jurídicas.
Consequentemente, a realidade dos jurisdicionados continua repetindo-se constantemente, e o poder de decisão (tanto na elaboração das leis, quando na sua interpretação e aplicação) continua sendo de uma minoria que ainda detém o poder político e econômico da nossa sociedade.
1.2 Evidências da insuficiência do paradigma cientificista dominante
A ciência é representação simbólica do real, da nossa maneira de entender. Explica Ricoeur (1977, p. 56-57) que o discurso humano é composto pelo evento e pela significação. Esse último é a forma como o evento é apreendido, de maneira que um se articula sobre o outro, em ultrapassagens. Isso porque entre o real e o discurso, há um referencial de segunda ordem: um ser no mundo que opera sobre as duas esferas. Em suma: tem-se uma compreensão à distância e não se pode atingir o real, pois é impossível uma libertação da palavra, tendo em vista nossos limites de comunicação.
Na mesma obra (1977, p. 143), o autor afirma que é dessa forma que as relações de dominação e desigualdade necessárias ao funcionamento do sistema industrial conseguem se legitimar. A “realidade” que estamos dispostos a ouvir passa inevitavelmente por filtros, ditados por quem se encontra no Poder. Assim, a ideologia da ciência e da tecnologia passa despercebida por aqueles que ainda defendem o pensamento positivista.
Japiassu (1975, p. 10-11) afirma que a razão científica é historicamente condicionada, é sempre uma interpretação, e por tal motivo, um cientista jamais poderia se dizer neutro. Conforme o autor:
A produção científica se faz numa sociedade determinada que condiciona seus objetivos, seus agentes e seu modo de funcionamento. É profundamente marcada pela cultura em que se insere. Carrega em si os traços da sociedade que a engendra, reflete suas contradições, tanto em sua organização interna quanto em suas aplicações. Talvez não seja exagero dizermos que o “poder do conhecimento” está transformando-se rapidamente em “conhecimento do poder”.
Nessa toada, o ensino da ciência como uma verdade revelada acaba por criar no grande público uma essência quase mística, e certamente, irracional, que exclui todo saber que não seja o da ciência, ditando que os experts são os detentores exclusivos do conhecimento.
Conforme Japiassu, “o cientificismo justifica a hierarquização rígida da sociedade, e tende a fortalecê-la sempre mais, colocando em seu cume uma tecnocracia fortemente hierarquizada que tomará as decisões” (1975, p. 88-90). Enquanto tal, a ciência acaba sendo utilizada para fornecer as justificações e as racionalizações às filosofias do progresso e do desenvolvimento técnicos, os quais constituem uma das forças motrizes mais importantes para fortalecer a produção crescente.
Segundo Santos (1995, p. 10-11), sendo um modelo global, a nova racionalidade científica é também um modelo totalitário, na medida em que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que não se pautarem pelos princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas. Esta preocupação em testemunhar uma ruptura fundante que possibilita uma e só uma forma de conhecimento verdadeiro está, segundo o autor, bem demonstrada na atitude mental dos protagonistas, no seu espanto perante as próprias descobertas e a extrema e ao mesmo tempo serena arrogância com que se comparam com seus contemporâneos.
Ocorre que, depois da euforia cientificista do século XIX e da consequente aversão à reflexão filosófica, chega-se, ao final do século XX, com o desejo, quase desesperado, de complementar-se o conhecimento das coisas. Explica Santos (1995, p. 24-28):
A ideia de que não conhecemos do real senão o que nele introduzimos, ou seja, que não conhecemos do real senão a nossa intervenção nele, está bem expressa no princípio da incerteza de Heisenberg: não se podem reduzir simultaneamente os erros da medição de velocidade e da posição de partículas; o que for feito para reduzir o erro de uma das medições aumenta o erro da outra. [...] A própria filosofia da matemática, sobretudo a que incide sobre a experiência da matemática, tem vindo a problematizar criativamente esses temas e reconhece hoje que o rigor matemático, como qualquer outra forma de rigor, assenta num critério de selectividade e que, como tal, tem um lado construtivo e um lado destrutivo.
[...] A importância desta teoria está na nova concepção da matéria e da natureza que propõe uma concepção dificilmente compaginável com a que herdámos da física clássica. Em vez da eternidade, a história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetração, a espontaneidade e a auto-organização; em vez de reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente.
Nessa toada, percebe-se mesmo nas ciências físicas e matemáticas uma superação da dicotomia entra as ciências naturais e as ciências sociais, revalorizando-se os estudos humanísticos e deixando de lado a concepção positivista. Com o desenvolvimento desses pensamentos, desde o século passado não é mais possível aceitar, no mundo jurídico, que a norma (assim como qualquer texto) é destituída de ideologias no momento de sua construção e/ou recepção.
Sabe-se hoje que a lei positivada reflete os interesses de uma sociedade, e, portanto, não pode ser tratada como uma ciência meramente empírica, conforme objetivavam os juspositivistas. Além disso, o Direito enquanto uma ciência social, e para que seja efetivo e adequado, deve levar em conta as condições da sociedade em que se vive, bem como o conhecimento existente em outros campos do saber.
Em suas diversas obras, Bauman ressalta como o progresso apregoado pela Modernidade se revelou excludente, e como existem dificuldade para enfrentar os novos problemas:
Talvez, e mais importante, hoje em dia tenhamos a tendência a sentir que o remédio patenteado e herdado do passado não funciona mais. Não importa a habilidade que possamos ter na arte de gerenciar crises, na verdade, não sabemos como enfrentar esse problema. Talvez nos faltem até mesmo as ferramentas para imaginar formas razoáveis de enfrentá-lo (Bauman, 2005, p. 24).
Isso porque, a partir do novo paradigma moderno, o espaço ordenado passa a ser governado pela norma, que é uma norma exatamente à medida que proíbe e exclui. Para o autor, “a lei se torna lei quando exclui do domínio do permitido os atos que seriam autorizados se não fosse a presença da lei – e de atores que teriam autorização de viver no estado de anarquia” (Bauman, 2005, p. 43).
De fato, a lei jamais alcançaria a universalidade sem o direito de traçar o limite de sua aplicação, criando, como prova disso, uma categoria universal de marginalizados/excluídos, e o estabelecimento de um “fora dos limites”, fornecendo assim o lugar de despejo dos que foram excluídos.
Do ponto de vista da lei, a exclusão é um ato de autossuspensão. Isso significa que a lei limita sua preocupação com o marginalizado/excluído para mantê-lo fora do domínio governado pela norma que ela mesma circunscreveu. A lei atua sobre essa preocupação proclamando que o excluído não é assunto seu. Não há lei para ele. A condição de excluído consiste na ausência de uma lei que se aplique a ela. (Bauman, 2005, p. 43). Em suma: a lei, por si só, é excludente. Seleciona seus tutelados e pune as condutas que entende inadequadas. Entretanto, aqueles que definem a legislação são poucos, e refletem diretamente o interesse das classes dominantes da nossa sociedade.
Nesse sentido, o monopólio do Estado sobre o desempenho da função legisladora permaneceu incontestado, principalmente pelos demais Estados, que possuíam o mesmo poder. Para a maioria dos fins práticos, esse monopólio permanece incontestado ainda hoje, a despeito do acúmulo de evidências sobre o status ficcional das afirmações de soberania do Estado.
A postura positivista reafirma o poder excludente do Estado, ao determinar que o objeto do Direito é, única e exclusivamente, a lei. Sem diálogo com outras disciplinas e conhecimentos, a lei permanece supostamente em sua pureza – enquanto na realidade, atende apenas aos interesses de alguns, em detrimento de uma grande classe de pessoas também jurisdicionadas.
Com isso, percebemos tanto nas decisões judiciais, quanto nas manifestações doutrinárias dos experts do Direito, uma postura conservadora, que ao mesmo tempo em que desagrada a população, impede que o conhecimento chamado de “vulgar” (posto que social ou mesmo derivado de outras disciplinas) se infiltre e modifique a realidade jurídica. Fica evidente que a postura jurídica procura ser legalista, mas, de maneira nenhuma, revela-se pura. O modo de tratamento de atores diferentes em situações similares revela os interesses protegidos tanto pela lei quanto pela sua interpretação dada pelos juízes e ministros.
Olhando de maneira mais aprofundada para o que acontece no mundo jurídico, fica fácil perceber que a raiz do problema se encontra desde os primeiros anos do ensino superior jurídico. Os estudantes de Direito aprendem com Manuais e com base em casos muito distantes da realidade social, sendo obrigados a entender institutos jurídicos através de hipóteses que dificilmente ocorreriam na vida “real”.
Diante dessa forma de ensino, cristaliza-se o modo de pensar mecânico e positivista, que refletirá diretamente na prática profissional desses futuros bacharéis. Ante a essas “aberrações” causadas pelo mundo jurídico e por quem se utiliza dele, há que se concluir que tanto o ensino, quanto a aplicação e interpretação efetuadas pelo Direito merecem uma reformulação que supere o paradigma dominante atual.
Aqui, cabe referir a crítica de Luis Alberto Warat acerca do modo como as Escolas de Direito formam os juristas. Para o professor, o formalismo e o afastamento da vida foram pontos de referência para que se reivindicasse a necessidade de um ensino e de uma teoria crítica do Direito, ainda na segunda metade dos anos setenta (WARAT, 2004, p. 149-150).
Entretanto, a relação do conhecimento jurídico que atualmente forma os juristas com a práxis do Direito pode ser considerada retórica, pois seus teóricos pensam que sua principal função é a de formular instruções para a atividade do legislador, dando indicações para a sistematização das sentenças e seus fundamentos. Desta maneira, o saber oficialmente instituído do Direito e sua divulgação acadêmica movem-se principalmente no interior de um mesmo discurso especializado nas práticas de ofício, não revolucionando o modo de pensar e por consequência, mantendo a compreensão positivista nas Escolas de Direito.
Conforme Warat, para manter a função prática do saber jurídico, os estudantes são forçados a ignorar os efeitos sociais de sua própria formação, sob a invocação do caráter científico do saber ensinado, em razão de um paradigma epistemológico que reivindica a objetividade do Direito e de seu conhecimento, como também a objetividade de sua aplicação. Como consequência, o jurista prático termina sendo afastado do olhar sociológico e político: a neutralidade convida-o a comportar-se em sua prática profissional como cientista puro. De tal maneira, conclui o autor, “o postulado da pureza metódica torna-se uma regra da práxis do Direito, uma regra que efetivamente nega muitos dos princípios e valores que a teoria e a prática tradicional do Direito proclamavam como guia” (WARAT, 2004, p. 151).
Para ele, nas salas de aula comuns os estudantes e os professores estimulam-se reciprocamente para instalar-se confortavelmente na servidão das vozes instituídas, aprendendo a operar com uma ordem simbólica que unicamente reconhece máscaras para negar as ressonâncias da autonomia, para assegurar a inscrição do poder na linguagem e para reforçar a opacidade da dominação.
Por tal motivo, entende que o ensino do Direito tem que se reconhecer comprometido com as transformações da linguagem, aceitar-se como prática genuinamente transgressora da discursividade instituída, como exercício de resistência a todas as formas de violência simbólica, isto é, como uma prática política dos Direitos do homem à sua própria existência (WARAT, 2004, p. 375-376).
CONCLUSÃO
Do progressivo rompimento do modo de vida típico da Idade Média emergiu uma nova forma de interpretação da vida, centrada na objetividade e na racionalidade. De fato, o Estado Moderno foi marcado pela transmissão do poder dos antigos Monarcas ao Estado, o qual seria o único soberano capaz de ditar leis e impor obrigações aos seus cidadãos. O monopólio do poder coercitivo nas mãos do Estado refletia exatamente os interesses da sociedade burguesa em ascensão a partir do final século XVII, que buscava afastar as arbitrariedades impostas pelos monarcas da Idade Média em nome da segurança do modo de vida e do seu patrimônio.
Esse modo de pensamento centrado na segurança das relações criou condições propícias ao desenvolvimento do positivismo cientificista, que teve seu ápice como atitude intelectual no século XIX, sendo seu maior precursor o filósofo francês Auguste Comte. O pensamento positivista difundiu na sociedade o entendimento de que só seria válido o conhecimento científico, deixando de lado qualquer pretensão ao saber que não fosse formulado a partir de métodos empiricamente verificáveis.
Influenciado por essa forma de pensamento e pela moderna cultura liberal-burguesa, o Direito absorveu o modo de agir racionalista, surgindo então o juspositivismo. Dessa forma, enquanto na sociedade medieval o Direito era produzido como um fenômeno social, na Modernidade o Direito é unicamente aquilo que o Estado emana, seja pelas leis que constrói, ou mesmo pelas decisões dos juízes, os quais se tornaram órgãos do Estado.
Entretanto, o racionalismo acaba entrando em crise e se tornando insuficiente diante dos conflitos diários pelos quais passa a sociedade, o que evidencia que a positividade apenas se preocupa com a pureza em sua aplicação porque deseja manter a vontade de um legislador soberano, legitimando a dominação política daqueles que possuem poder frente ao Estado.
O Direito enquanto uma ciência social deve levar em conta as condições da sociedade em que se vive, bem como o conhecimento existente em outros campos do saber. De tal maneira, os juristas, os professores do Direito e, até mesmo, os acadêmicos, devem buscar formas de superação do discurso jurídico dominante, tanto pelo modo de (re)pensar a linguagem do Direito e de adotar uma postura inconformista com o que é coativamente imposto à sociedade, quanto na transformação do ensino e da forma de tratamento de conflitos.
Deve-se buscar o rompimento com o discurso paralisante, alargando a mentalidade do sistema jurídico e permitindo que ele dialogue com outros saberes, de forma a contribuir com a superação do paradigma dominante do discurso jurídico, violentando instituições para não violentar a vida.
REFERÊNCIAS
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WARAT, Luis Alberto. Epistemologia e ensino do Direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004-a.
Bacharel em Direito na Universidade Federal de Santa Maria. Analista Judiciária da Justiça Federal do Rio Grande do Sul/TRF4.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PSZEBISZESKI, Rafaela Fernanda Fontoura. O paradigma dominante do discurso jurídico e do ensino do Direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 jul 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47137/o-paradigma-dominante-do-discurso-juridico-e-do-ensino-do-direito. Acesso em: 23 dez 2024.
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