Resumo: O presente artigo versa sobre a denominada teoria das autolimitações administrativas e sua possível aplicação em face da Administração Tributária, atuando como instrumento voltado à proteção dos cidadãos frente ao poder estatal, impondo a este o dever de respeito e manutenção de seus atos próprios, assim como o dever de observar, em situações futuras, seus precedentes administrativos já firmados
Palavras-chave: segurança jurídica, teoria das autolimitações; administração tributária; contencioso administrativo; precedentes; vinculação.
Sumário: 1. Introdução 2. O princípio da segurança jurídica e a proteção à confiança legítima 3. A teoria das autolimitações administrativas 4. A teoria das autolimitações aplicada à Administração Tributária: dever de observância de seus precedentes administrativos 5. Conclusão 6. Referências bibliográficas.
1. Introdução
Em tempos de constantes e inevitáveis mudanças, a estabilidade e a previsibilidade transmudam-se em valores de complexo alcance. Não obstante, sua necessidade é indiscutível na busca do desenvolvimento almejado pela sociedade e pelo Estado, cujas relações devem fundar-se em estruturas seguras e coerentes. Sem tais alicerces, os vínculos e relações estabelecidas entre o Estado e os particulares seriam cercados de instabilidade e, consequentemente, fragilidade.
Desta forma, sob uma ótica publicística, a segurança jurídica constitui princípio que busca garantir certo grau de previsibilidade em relação às condutas da Administração Pública perante os cidadãos, garantindo que estes não sejam surpreendidos por eventuais mudanças de comportamento ou orientação do Estado, sobretudo quando estas lhes sejam prejudiciais.
Neste contexto, o presente artigo buscará abordar, sob a ótica da teoria das autolimitações, a temática da efetivação da segurança jurídica no âmbito da Administração Tributária, sobretudo por meio do dever de observância de seus precedentes administrativos, vedando-se, desta forma, a prática de comportamentos contraditórios.
Visando tal objetivo, o trabalho tecerá breves considerações acerca da noção de segurança jurídica, da proteção à confiança e da vedação à prática de comportamentos contraditórios. Em seguida, busca-se abordar a denominada teoria das autolimitações administrativas, analisando, sobretudo, seus efeitos em face da Administração Pública, para ao fim relacionar a citada teoria ao dever do Fisco em, visando proteger a legítima expectativa dos contribuintes e evitar a prática de atos contraditórios, observar os seus precedentes administrativo-tributários.
2. O princípio da segurança jurídica e a proteção à confiança legítima
Inicialmente, consigne-se que a análise de todos os aspectos do princípio da segurança jurídica exigiria uma exposição deveras aprofundada sobre o mesmo, objeto que, contudo, refoge ao proposto no presente trabalho, que pretende esboçar algumas ideias acerca da segurança jurídica para posteriormente relacioná-las com os demais temas ora abordados.
Feita tal consideração, cumpre salientar que o princípio da segurança jurídica não encontra fundamento específico em qualquer dispositivo constitucional, sendo, porém, decorrência direta da própria essência do Direito.
Em sua concepção tradicional, a segurança jurídica é tida como um princípio geral do ordenamento jurídico, que, embora não contando com previsão constitucional expressa, é figura inerente ao próprio Estado Democrático de Direito. Sua compreensão, antes de se atrelar ao regime jurídico de qualquer dos ramos do Direito, está submetida à concepção de Estado Democrático e do papel nele desempenhado pelos princípios jurídicos, como forma de garantir o exercício de direitos e liberdades fundamentais.[i]
Para Heleno Taveira Torres, a segurança jurídica configura uma garantia material de concretização de direitos e liberdades fundamentais, que se funda em um tripé: certeza, estabilidade do sistema jurídico e proteção às expectativas de confiança legítimas. Nesse sentido, referido autor conceitua o princípio em análise como:
Princípio-garantia constitucional que tem por finalidade proteger expectativas de confiança legítimas nos atos de criação ou de aplicação de normas, mediante certeza jurídica, estabilidade do ordenamento e confiabilidade na efetividade de direitos e liberdades, assegurada como direito público fundamental.[ii]
Dentro deste contexto, a segurança jurídica apresenta-se como forma de orientação geral, devendo nortear a elaboração das normas jurídicas e sua efetiva aplicação, garantindo não apenas um grau de estabilidade e certeza nas relações jurídicas, como também o máximo de previsibilidade acerca das consequências dos atos jurídicos praticados.
Esse conteúdo material da segurança jurídica, inicialmente, acaba por impor algumas regras para a Administração Pública, como o dever de reconhecer expectativas de direitos e direitos que foram incorporados ao patrimônio jurídico do cidadão a partir de uma dada posição administrativa; a aplicação de uma nova interpretação administrativa somente a novos fatos; a proibição de comportamentos contraditórios, entre outras regras.
Assim, afigura-se inerente ao Estado Democrático de Direito a diminuição do grau de incerteza quanto às consequências futuras dos atos do cidadão e do Estado, de tal sorte que se possa esperar, sobretudo da Administração Pública, a prática de condutas previsíveis, estáveis e adequadas aos padrões de comportamento já praticados.
Sobre o tema, válido transcrever as palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello:
É sabido e ressabido que a ordem jurídica corresponde a um quadro normativo proposto precisamente para que as pessoas possam se orientar, sabendo, pois, de antemão, o que devem ou o que podem fazer, tendo em vista as ulteriores consequências imputáveis a seus atos. O Direito propõe-se a ensejar certa estabilidade, um mínimo de certeza na regência da vida social. Daí o chamado princípio da “segurança jurídica”, o qual, bem por isto, se não é o mais importante dentre todos os princípios gerais de Direito, é, indisputavelmente, um dos mais importantes entre eles. Tanto mais porque inúmeras dentre as relações compostas pelos sujeitos de direito constituem-se em vista do porvir e não apenas da imediatidade das situações, cumpre, como inafastável requisito de um ordenado convívio social, livre de abalos repentinos ou surpresas desconcertantes, que haja certa estabilidade nas situações destarte constituídas.[iii]
Portanto, do princípio da segurança jurídica haverão de emanar regras de conformação do agir da Administração Pública, essencialmente limitativas de sua discricionariedade, destacando-se entre estas o dever de proteção à confiança, que configura valor inerente ao princípio da segurança jurídica, visando garantir que o Estado não frustrará as legítimas expectativas que depositam os indivíduos – e, neste estudo, mais especificamente, os contribuintes.
Como visto, a redução do grau de incerteza constitui objetivo inerente à própria ideia de Estado Democrático de Direito. Em decorrência de tal finalidade e da necessidade de estabilidade do próprio sistema jurídico, deve-se proteger a confiança que os cidadãos legitimamente depositam na atuação estatal.
Ressalte-se, contudo, que essa confiança afigura-se legítima não apenas em função do princípio da segurança jurídica, mas, também, em razão do princípio da legalidade, previsto no artigo 37 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), que impõe à Administração Pública o dever de agir conforme a disciplina normativa preestabelecida, que confere à sua atuação um padrão de previsibilidade que não pode ser desconsiderado.
Assim, por consistir em dever do Estado agir em conformidade ao Direito, o cidadão encontra-se legitimado a depositar manifesta confiança em tal atuação, devendo, portanto, ser a mesma protegida, preservando-se os direitos dela decorrentes.[iv]
3. A teoria das autolimitações administrativas
Verificados os fundamentos do dever de proteção à confiança legítima, identificado, principalmente, nos princípios da segurança jurídica e da legalidade, chega-se à conclusão de que configura dever da Administração Pública pautar-se de forma a vedar a prática de condutas que, embora pautadas em uma suposta discricionariedade e aparente legalidade, apresentam-se substancialmente arbitrárias e incoerentes.
Visando a defesa da confiança depositada na Administração, entre outras limitações, veda-se à mesma que, em seu agir, proceda a práticas ou comportamentos que destoem dos já por ela praticados em situações idênticas, em manifesta aplicação da máxima nemo potest venire contra factum propium.
Tal cláusula, diretamente fundada no princípio da segurança jurídica, objetiva coibir que a Administração Pública, diante de uma mesma situação fática, venha a conferir tratamento prejudicial em relação ao conferido à situação semelhante já submetida à sua apreciação, violando desta forma o princípio que lhe fundamenta e o próprio princípio da isonomia.[v]
Nesse contexto apresenta-se a denominada teoria das autolimitações dministrativas, que constitui verdadeiro conjunto de instrumentos que visam a assegurar a razoabilidade, a coerência e a isonomia no tratamento conferido pela Administração Pública aos cidadãos, vedando toda e qualquer forma de iniquidade estatal. Assim, a citada teoria correlaciona-se com a própria essência do Estado Democrático de Direito, na medida em que garante dois de seus postulados fundamentais: a segurança e a liberdade.
É, portanto, visando conferir efetividade a esses imperativos do Estado Democrático que a teoria das autolimitações administrativas foi construída, englobando em seu âmbito instrumentos de proteção dos cidadãos frente ao poder estatal, tais como o dever de respeito, por parte do ente, de seus atos próprios e dos seus precedentes administrativos.[vi]
A incidência e relevância da teoria das autolimitações administrativas podem ser facilmente observáveis nos casos em que a Administração, modificando sua interpretação, pratica ato incompatível com o anterior sem que tenha havido modificação no plano fático. Em casos como esse se aplica a denominada teoria das autolimitações administrativas, que consubstancia a incidência do nemo potest venire contra factum propium no âmbito da Administração Pública, impedindo que o mesmo, quando diante dos mesmos elementos de fato, adote entendimentos contraditórios ou em desacordo com os precedentes anteriormente firmados em sede administrativa.[vii]
Para que referida teoria incida no âmbito das relações jurídico administrativas, deve-se apurar, em especial, a presença dos requisitos da identidade subjetiva e objetiva: (i) pelo requisito da identidade subjetiva, exigi-se que o emissor do ato anterior e do ato posterior seja o mesmo ente administrativo ou qualquer dos órgãos integrantes de sua estrutura administrativa, cuidando-se assim que toda a estrutura administrativa atue de forma coordenada; (ii) já para atender ao requisito da identidade objetiva, é preciso que sejam similares as circunstâncias determinantes em que foram praticados os atos administrativos tidos por incoerentes. Se as circunstâncias são as mesmas e a Administração decide de forma diferente, o ato contraditório é inválido por vulnerar os princípios da confiança legítima e da vedação ao comportamento contraditório, princípios estes que a teoria das autolimitações administrativas visa preservar.
Dessa forma, ao dever de obediência aos atos administrativos anteriormente praticados corresponde à proibição de exercício arbitrário, incoerente e desigual por parte do Poder Público, garantia esta que a Teoria das Autolimitações Administrativas visa efetivar ao garantir a vigência dos atos anteriormente praticados pela Administração Pública bem como o dever desta de, diante de uma mesma situação jurídica, atuar de forma a preservar as expectativas nela depositadas em virtude de comportamentos por ela já apresentados.
4. A teoria das autolimitações aplicada à Administração Tributária: dever de observância de seus precedentes administrativos
No tópico precedente restou delineado o conteúdo da denominada teoria das autolimitações administrativas, expondo-se seus principais efeitos em relação à Administração Pública, que diante de sua incidência vê-se no dever de agir em estrita observância e coerência em relação a seus atos próprios, assim como no dever de observância de seus precedentes administrativos.
Feitas tais considerações, desponta no presente tópico a necessidade de indagar- se acerca da aplicação da já citada teoria no âmbito da Administração Tributária, sobretudo no que toca ao dever desta de observar, quando do exercício de sua competência administrativa, os seus próprios precedentes.
O cerne de tal questão, que já fora anteriormente exposto, encontra-se no dever de coerência dos atos da Administração Pública, na qual a Administração Tributária encontra-se organicamente inserida, e no dever de previsibilidade das suas decisões, vedando-se, consequentemente, a prática de comportamentos contraditórios.
Desta forma, inevitável apresenta-se a aplicação da teoria das autolimitações em sede da Administração Tributária, despontando inclusive como um dos mais férteis campos para sua incidência, sobretudo no que toca ao dever de observância dos precedentes anteriormente firmados.
Assim, ao observar seus precedentes quando da análise de processos administrativos a Administração Tributária privilegia a coerência e a isonomia no tratamento conferido aos contribuintes, estimulando o desenvolvimento de um sistema dotado de elementos que auxiliam na concretização da tão almejada previsibilidade e segurança jurídica.
5. Conclusão
A par de consistir em objetivo ínsito à própria noção de Direito, a segurança jurídica configura elemento de complexo alcance no atual contexto social, sobretudo quando se analisa a questão sobre o prisma da relação jurídica-tributária. Não obstante tal constatação, a busca pela segurança, estabilidade e coerência do sistema tributário configura objetivo que não pode ser relegado, sob pena de comprometimento da própria estrutura do Estado Democrático de Direito.
Assim, afigura-se inerente ao Estado Democrático de Direito a busca pela redução do grau de incerteza quanto às consequências futuras dos atos dos cidadãos e do Estado, de tal sorte que se possa esperar, sobretudo da Administração Pública, a prática de condutas previsíveis, estáveis e adequadas aos padrões de comportamento já praticados.
Em tal realidade é que desponta a aplicação da denominada teoria das autolimitações administrativas, atuando como instrumento voltado à proteção dos cidadãos frente ao poder estatal, impondo a este o dever de respeito e manutenção de seus atos próprios, assim como o dever de observar, em situações futuras, seus precedentes administrativos já firmados.
6. Referências bibliográficas
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Teoria das Autolimitações Administrativas: atos próprios, confiança legítima e contradição entre órgãos administrativos. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 14, maio/junho/julho de 2008. Disponível na Internet: <http://www.direitodoestado.com.br/redae.asp>. Acesso em 16 de novembro de 2014.
ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica: entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. 2ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2012.
MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro: (administrativo e judicial). 6ª ed., São Paulo: Dialética, 2012.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2010.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2010.
MODESTO, Paulo. Autovinculação da Administração Pública. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 24, outubro/novembro/dezembro de 2010. Disponível na Internet: <http://www.direitodoestado.com/revista/REDE-24-OUTUBRO-2010-PAULO- MODESTO.pdf>. Acesso em 16 de novembro de 2014.
TORRES, Heleno Taveira. Direito constitucional tributário e segurança jurídica: metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário – Volume II – Valores e princípios constitucionais tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
[i] TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário – Volume II – Valores e princípios constitucionais tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
[ii] TORRES, Heleno Taveira. Direito constitucional tributário e segurança jurídica: metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, página 276.
[iii] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2010, página 349.
[iv] ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica: entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. 2ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2012.
[v] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2010.
[vi] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Teoria das Autolimitações Administrativas: atos próprios, confiança legítima e contradição entre órgãos administrativos. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 14, maio/junho/julho de 2008. Disponível na Internet: <http://www.direitodoestado.com.br/redae.asp>. Acesso em 16 de novembro de 2014.
[vii] MODESTO, Paulo. Autovinculação da Administração Pública. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 24, outubro/novembro/dezembro de 2010. Disponível na Internet: <http://www.direitodoestado.com/revista/REDE-24-OUTUBRO-2010-PAULO- MODESTO.pdf>. Acesso em 16 de novembro de 2014.
Advogado. Graduado em Direito pela Faculdade Asces.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GALINDO, Lucas Pepeu. Teoria das autolimitações e a vinculação da Administração Tributária a seus precedentes administrativos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 ago 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47167/teoria-das-autolimitacoes-e-a-vinculacao-da-administracao-tributaria-a-seus-precedentes-administrativos. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
Por: Roberto Rodrigues de Morais
Por: Roberto Rodrigues de Morais
Por: Roberto Rodrigues de Morais
Por: Roberto Rodrigues de Morais
Precisa estar logado para fazer comentários.