Resumo: O presente artigo objetiva analisar a possibilidade de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do Direito Administrativo, demonstrando-se a possibilidade de sua utilização pela Administração Pública, ainda que diante da ausência de norma expressa autorizativa.
Palavras-chave: desconsideração da personalidade; administração pública; licitações; contratos administrativos.
Sumário: 1. Introdução 2. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro 3. O regime jurídico administrativo e a teoria da desconsideração da personalidade jurídica 4. Conclusão 5. Referências bibliográficas.
1. Introdução
A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, também denominada disregard doctrine, já não mais pode ser tida como novidade em nosso ordenamento jurídico, havendo diversos estudos e inúmeras decisões judiciais em que é amplamente discutida e utilizada como embasamento para, no caso concreto, afastarem-se os regulares efeitos da personificação, atingindo-se o patrimônio dos sócios ou de sociedades integrantes de grupo econômico, que, de outra forma, não responderiam pela obrigação.
Contudo, ainda são incipientes os estudos acerca de sua utilização no Direito Administrativo.
O presente estudo objetiva, assim, contribuir, ainda que modestamente, para o suprimento dessa lacuna, tendo-se em mente que, impedir que haja o desvio de função da pessoa jurídica em licitações e em contratos administrativos, implica evitar que o patrimônio público suporte prejuízos que, por certo, atingem toda a coletividade e não uma pessoa ou um grupo de pessoas, o que demonstra a importância da disseminação de seu uso no Direito Administrativo.
2. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica consiste em instrumento eficaz de combate em face de situações que configuram manifesto abuso de direito. A necessidade de aplicação da disregard doctrine decorre, portanto, de um desvio de função do instituto da pessoa jurídica, consistente na falta de correspondência entre o fim perseguido pelas partes e o conteúdo que, segundo o ordenamento jurídico, é próprio da forma utilizada, podendo-se afirmar que é o critério básico para operar a desconsideração.[i]
No ordenamento jurídico pátrio, a desconsideração só foi prevista legalmente, de forma direta, pela Lei 8.078 de 1990 (Código do Consumidor), em seu artigo 28; pela Lei 8.884 de 1994, que dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, em seu artigo 18; pela Lei 9.605 de 1998.que disciplina a responsabilidade por lesões ao meio ambiente. Igualmente, o Código Civil de 2002, consagrou a desconsideração em seu artigo 50, proporcionando avanço considerável em relação ao tema, constituindo o dispositivo verdadeira disciplina geral acerca da desconsideração.
Mais recentemente, a Lei 12.846 de 2013, comumente denominada Lei Anticorrupção, também previu expressamente o instituto ao dispor sobre a responsabilização objetiva, administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos ilícitos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.
De acordo com a referida Lei, a personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos nela previstos ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa.
Por seu turno, necessário destacar que a Lei 8.666 de 1993 não contempla regra específica de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica em relação a licitações e contratos administrativos. Contudo, a inexistência de regra expressa em lei não constitui óbice à aplicação da teoria, pois, em se tratando da desconsideração da personalidade jurídica, como acima exposto, a simples constatação do desvio de função ou do abuso de direito autoriza, no caso concreto, que seja a personalidade desconsiderada, atingindo-se a pessoa do sócio ou de outras sociedades integrantes do grupo econômico, com fundamento nos princípios gerais do Direito e nos que regem o Direito Administrativo, que, como veremos, fornecem-lhe embasamento.
3. O regime jurídico administrativo e a teoria da desconsideração da personalidade jurídica
No âmbito do presente trabalho, refoge a seu objetivo discutir acerca da natureza dos princípios constitucionais ou sobre as teorias que os fundamentam. Partiremos do pressuposto, amplamente difundido e aceito pela doutrina, de que os princípios constitucionais, e em especial aqueles que fundamentam o regime jurídico administrativo, possuem normatividade incontestável, sendo conformadores de todo o ordenamento jurídico.[ii]
Fixadas tais premissas quanto à interpretação dos princípios constitucionais, passemos à análise de alguns dos princípios que regem a Administração Pública, inscritos no artigo 37 da Constituição Federal de 1988, que servem de embasamento à aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.
Acerca do princípio da legalidade, apropriadamente denominado por Carmen Lúcia Antunes Rocha como da juridicidade, afirma-se:
“Sendo a lei, entretanto, não a única, mas a principal fonte do Direito absorveu o princípio da legalidade administrativa toda a grandeza do Direito em sua mais vasta expressão, não se limitando à lei formal, mas à inteireza do arcabouço jurídico vigente no Estado. Por isso este não se bastou como Estado de Lei, ou Estado de Legalidade. Fez-se Estado de Direito, num alcance muito maior do que num primeiro momento se vislumbrava no conteúdo do princípio da legalidade, donde a maior justeza de sua nomeação como ‘princípio da juridicidade’”.[iii]
Nesse sentido, a desconsideração da personalidade jurídica visa exatamente garantir que não haja desvio de função da pessoa jurídica, impedindo que, ainda que por vias transversas, o ordenamento jurídico deixe de ser observado.
Do mesmo modo, o princípio da moralidade embasa a aplicação da teoria da desconsideração, sendo de destacar que, apesar de ter-se formado a partir do princípio da legalidade, para que se chegasse ao conceito de moralidade foi necessário acrescer-se a ideia de legitimidade do Direito, podendo-se afirmar que a Administração Pública deve ser ética para que seus atos sejam juridicamente válidos.
A respaldar as considerações acima elencadas, o Superior Tribunal de Justiça já aplicou a desconsideração da personalidade com embasamento nos princípios da legalidade, da moralidade, da indisponibilidade e da supremacia do interesse público, como se verifica da ementa transcrita:
“ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANCA. LICITAÇÃO. SANÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR. EXTENSÃO DE EFEITOS À SOCIEDADE COM O MESMO OBJETO SOCIAL, MESMOS SÓCIOS E MESMO ENDEREÇO. FRAUDE À LEI E ABUSO DE FORMA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA ESFERA ADMINISTRATIVA, POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PÚBLICOS.
- A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em substituição a outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar a aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações, Lei n.º 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída.
- A Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular.” (STJ – RMS 15166 / BA – Relator: Ministro CASTRO MEIRA – SEGUNDA TURMA – DJ 08.09.2003 p. 262.)
Ainda em relação ao precedente citado, cabe salientar que o Relator do caso, Ministro Castro Meira, enfrentou expressamente a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica na esfera administrativa, sem que houvesse norma autorizadora, para concluir ser ela possível, aplicando os princípios que regem a Administração Pública, como se depreende do trecho a seguir transcrito, que pela clareza, merece transcrição:
“se, por um lado, existe o dogma da legalidade, como garantia do administrado no controle da atuação administrativa, por outro, existem Princípios com o da Moralidade Administrativa, o da Supremacia do Interesse Público e o da Indisponibilidade dos Interesses Tutelados pelo Poder Público, que também precisam ser preservados pela Administração. Se qualquer deles estiver em conflito, exige-se do hermeneuta e do aplicador do direito a solução que melhor resultado traga à harmonia do sistema normativo.
A ausência de norma específica não pode impor à Administração um atuar em desconformidade com o Princípio da Moralidade Administrativa, muito menos exigir-lhe o sacrifício dos interesses públicos que estão sob sua guarda. Em obediência ao Princípio da Legalidade, não pode o aplicador do direito negar eficácia aos muitos princípios que devem modelar a atuação do Poder Público.
Assim, permitir-se que uma empresa constituída com desvio de finalidade, com abuso de forma e nítida fraude à lei, venha a participar de processos licitatórios, abrindo-se a possibilidade de que a mesma tome parte em um contrato firmado com o Poder Público, afronta os mais comezinhos princípios do direito administrativo, em especial, ao da Moralidade Administrativa e ao da Indisponibilidade dos Interesses Tutelados pelo Poder Público.” [iv]
Igualmente, o Tribunal de Contas da União tem aplicado a desconsideração da personalidade jurídica com base não só no disposto no artigo 46 de sua Lei Orgânica (Lei 8.443 de 1992), como também com apoio do princípio da equidade, a chamada “justiça do caso concreto”. É o que se depreende de trecho do Acórdão n. 189/2001 (Processo n. 675.295/1994-7, Tribunal Pleno), relatado pelo Ministro Guilherme Palmeira:
“Concluindo, não é de justiça e conforme o direito contemporâneo esquecer os fatos insertos nos autos para não aplicar ao verdadeiro culpado as penalidades cabíveis, principalmente porque, se não aplicada a regra da desconsideração da personalidade jurídica, poder-se-á estar inviabilizando a execução, não punindo o verdadeiro infrator, impossibilitando a aplicação de sanções outras que não o débito (multa, por exemplo) àqueles que praticaram os ilícitos, usufruíram pessoalmente das verbas ilicitamente auferidas (já que não contabilizaram na empresa e sacaram diretamente no banco) e que não figurarão nos autos, dificultando a apuração da responsabilidade dos mesmos e consequente encaminhamento dos fatos ao Ministério Público Federal para as ações de direito, enfim, uma séria de consequências jurídicas capazes de tornar este processo inefetivo e injusto.”
Desta forma, os princípios constitucionais da juridicidade, da moralidade, da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, bem como o da equidade, que orientam o ordenamento jurídico como um todo, são suficientes para fundamentar a aplicação da teoria da desconsideração no Direito Administrativo, ainda que não haja previsão normativa específica disciplinando o tema.[v]
4. Conclusão
A desconsideração da personalidade jurídica constitui solução eficaz para coibir os desvios de função da pessoa jurídica, bem como para resolver as hipóteses em que a aplicação dos efeitos da personificação produziria resultados diversos das valorações que inspiram o ordenamento jurídico.
Não obstante a inexistência de regra expressa em lei, não há impeditivo para a aplicação da teoria da desconsideração no âmbito do Direito Administrativo, eis que a simples constatação do desvio de função ou do abuso da regra de que a pessoa jurídica tem personalidade distinta da de seus sócios, autoriza, no caso concreto, seja ela ignorada, atingindo-se a pessoa do sócio ou outras sociedades integrantes do grupo econômico, com fundamento nos princípios gerais do Direito e nos que regem a Administração Pública.
Igualmente, a desconsideração da personalidade coaduna-se com os princípios reitores da atuação da Administração Pública, havendo ampla possibilidade de sua aplicação no Direito Administrativo, sem que importe violação ao devido processo legal ou à ampla defesa, desde que configurado o desvio de função da pessoa jurídica, objetivamente comprovado por meio de processo administrativo.
5. Referências bibliográficas
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 27ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2010.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 26ª Edição. São Paulo: Editora Atlas, 2013.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial – Volume II. 11ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 14ª Edição. São Paulo: Dialética, 2010.
ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.
WATANABE, Ricardo. Desconsideração da personalidade jurídica no âmbito das licitações. http://www.direitonet.com.br/artigod/exibir/2746. Acesso em 17 de abril de 2016.
[i] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial – Volume II. 11ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.
[ii] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 27ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2010.
[iii] ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.
[iv] Superior Tribunal de Justiça – RMS 15166 / BA – Relator: Ministro CASTRO MEIRA – SEGUNDA TURMA – DJ 08.09.2003 p. 262.
[v] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 14ª Edição. São Paulo: Dialética, 2010.
Advogado. Graduado em Direito pela Faculdade Asces.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GALINDO, Lucas Pepeu. A desconsideração da personalidade jurídica pela Administração Pública no âmbito das licitações e contratos administrativos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 ago 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47200/a-desconsideracao-da-personalidade-juridica-pela-administracao-publica-no-ambito-das-licitacoes-e-contratos-administrativos. Acesso em: 23 dez 2024.
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