Resumo: O presente artigo versa acerca do regime jurídico da remessa necessária em face do Código de Processo Civil de 2015, analisando as principais alterações decorrentes do advento do novo texto legal.
Palavras-chave: processo civil; regime jurídico; remessa necessária.
Sumário: 1. Introdução 2. Natureza jurídica da remessa necessária 3. Hipóteses de cabimento da remessa necessária 4. Hipóteses de dispensa da remessa necessária 5. Questões controvertidas 5.1. Recurso voluntário e remessa necessária 5.2. Ação monitória e remessa necessária 6. Conclusão 7. Referências bibliográficas.
1. Introdução
O Código de Processo Civil de 2015, mais do que uma simples atualização, consistiu em verdadeira mudança estrutural no processo brasileiro. Não obstante tal contexto, a remessa necessária foi um dos institutos mantidos pelo novo regramento jurídico, muito embora tenha sido consideravelmente alterado pelo legislador infraconstitucional.
A figura da remessa necessária, também conhecida como remessa ex officio ou duplo grau obrigatório, constitui instituto típico do denominado direito processual público, estando sua aplicação diretamente relacionada à participação de um ente público em processo judicial.
Com origem no direito português, encontrou a remessa necessária previsão expressa em todos os Códigos de Processo Civil adotados no Brasil, desde o diploma de 1939, perpassando pelo de 1973, até o atual, recentemente promulgado no ano de 2015.
No que toca à sua finalidade, funciona o instituto como instrumento de proteção do ente público, e por via de consequência, do próprio interesse público. Sucumbente o Estado nas situações expressamente previstas no texto legal, a sentença obrigatoriamente deve ser submetida à apreciação do Tribunal respectivo, não sendo eficaz o comando jurisdicional enquanto não confirmado pelo órgão ad quem.
2. Natureza jurídica da remessa necessária
Celeuma constante no direito processual brasileiro consiste em se determinar qual a natureza jurídica da remessa necessária: se recurso ou condição de eficácia da sentença, discussão que ainda persiste no Código de Processo Civil de 2015.[i]
Contrariando o entendimento que classifica o instituto como espécie de recurso, sustenta-se que o mesmo, por não ser dotado do requisito da voluntariedade, próprio das figuras recursais, não seria, pois, recurso.
Por seu turno, a doutrina amplamente majoritária entende se tratar o reexame necessário de condição de eficácia da sentença, posto que enquanto não efetivado o reexame, a sentença resta impedida de transitar em julgado.
Nesse sentido é o enunciado 423 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, que não obstante tenha sido editado com fundamento no Código de Processo Civil pretérito, permanece plenamente aplicável:
Súmula 423. Não transita em julgado a sentença por haver omitido o recurso ex officio, que se considera interposto ex lege.
3. Hipóteses de cabimento da remessa necessária
Antes de analisar especificamente cada uma de suas hipóteses de cabimento, vejamos o tratamento dispensado pelo Código de Processo Civil ao instituto:
Art. 496. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:
I – proferida contra a União, os Estados, o distrito Federal, os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações de direito público;
II – que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução fiscal.
§ 1º Nos casos previstos neste artigo, não interposta a apelação no prazo legal, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, e, se não o fizer, o presidente do respectivo tribunal avocá-los-á.
§ 2º. Em qualquer dos casos referidos no § 1º, o tribunal julgará a remessa necessária.
§ 3º Não se aplica o disposto neste artigo quando a condenação ou o proveito econômico obtido na causa for de valor certo e líquido inferior a:
I – 1.000 (mil) salários-mínimos para a União e suas respectivas autarquias e fundações de direito público;
II – 500 (quinhentos) salários-mínimos para os estados, o Distrito Federal, as respectivas autarquias e fundações de direito público e os Municípios que constituam capitais dos Estados;
III – 100 (cem) salários-mínimos para todos os demais Municípios e respectivas autarquias e fundações de direito público.
§ 4º Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em:
I – súmula de tribunal superior;
II – acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de justiça em julgamento de recursos repetitivos;
III – entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competências;
IV – entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa.
Como bem se depreende do texto legal, a diretriz estabelecida pelo Código de Processo Civil de 2015 é a da observância da remessa necessária de sentenças contrárias à União, Estados, Municípios e Distrito Federal, bem como suas autarquias e fundações de direito público (essas últimas, a rigor, também têm natureza de autarquia). Trata-se das pessoas jurídicas de direito público interno, às quais tradicionalmente se confere a denominação de “Fazenda Pública”.
Portanto, em regra, a remessa necessária não se aplica a pessoas jurídicas de direito privado, nem mesmo àquelas que integram a Administração Pública indireta, como é o caso de empresas públicas e sociedades de economia mista, podendo ser estabelecidas exceções por meio de leis específicas.
O artigo 496 enuncia duas hipóteses de cabimento do reexame de ofício que podem ser reconduzidas a uma. No inciso I, mencionam-se as sentenças contrárias à Fazenda Pública. No inciso II, alude-se às sentenças de procedência de embargos à execução fiscal. Ocorre que a execução fiscal apenas pode ser promovida por entes da Fazenda Pública. Daí que as sentenças de procedência dos embargos à execução fiscal sempre são contrárias à Fazenda Pública. Ou seja, a hipótese do inciso II já estaria abrangida pela do inciso I.[ii]
4. Hipóteses de dispensa da remessa necessária
Não é toda sentença desfavorável à Fazenda Púbica que se submete à remessa necessária. Os §§ 3.º e 4.º do artigo 496 estabelecem exceções de duas ordens.
A primeira consiste em um limite quantitativo, de dimensão econômica (artigo 496, § 3.º). Não há remessa necessária de sentenças cuja condenação ou proveito econômico para o vitorioso tenha valor certo e líquido de até: (I) mil salários mínimos, quando contrárias à União e respectivas autarquias e fundações; (II) quinhentos salários mínimos, quando contrárias aos Estados, o Distrito Federal, as respectivas autarquias e fundações ou os Municípios que constituam capitais dos Estados; e (III) cem salários mínimos, no caso de todos os demais municípios e respectivas autarquias e fundações.
O Código de Processo Civil de 2015, ao prever expressamente que o valor deve ser líquido, recepcionou entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça já sumulada, no sentido de que as hipóteses de dispensa da remessa necessária por limite de valor somente incidem quando for líquida a sentença (Enunciado 490 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça).
A segunda exceção concerne a um limite qualitativo, de consonância da sentença com orientação jurisprudencial ou administrativa já fixada (artigo 496, § 4.º). Assim, não se submeterão ao reexame necessário as sentenças em concordância com: (I) acórdão proferido em procedimento de resolução de recursos repetitivos no Supremo Tribunal Federal ou Superior Tribunal de Justiça; (II) súmula de tribunal superior, (III) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência ou (III) entendimento que esteja em conformidade com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa.
Além das situações ora analisadas e expressamente previstas no Código de Processo Civil de 2015, cabe destacar mais duas situações em que também se observa a dispensa da remessa necessária: (I) nas causas que tramitem perante os Juizados Especiais Federais, nos termos do artigo 13 da Lei 10.259 de 2001; (II) nas ações que tramitem perante os Juizados Especiais da Fazenda Pública, na forma do artigo 11 da Lei 12.153 de 2009.
5. Questões controvertidas
Delineadas as linhas gerais acerca das hipóteses de cabimento e dispensa da remessa necessária no âmbito do Código de Processo Civil de 2015, vejamos situações controvertidas, que sem dúvida merecerão análise e definição por parte de nossos Tribunais Superiores.
5.1. Recurso voluntário e remessa necessária
No Código de Processo Civil anterior, nas hipóteses de reexame de ofício, determinava-se que o juiz remetesse o processo para o tribunal, houvesse ou não apelação (artigo 475, § 1º, do CPC/1973).[iii] No Código de Processo Civil de 2015, contudo, o dever de remessa está limitado aos casos em que não houver apelação ou eventual recurso voluntário.
De plano, guarda a regra certa lógica e razoabilidade: se a Fazenda Pública já recorreu, fazendo com isso que o pronunciamento se submeta ao reexame do tribunal, é desnecessária a sobreposição de medidas. Não obstante, tal dispositivo deve ser interpretado com parcimônia, haja vista as seguintes situações:
(I) eventual recurso interposto pela Fazenda Pública pode ser parcial, ou seja, não atingir todo o objeto de sua sucumbência na causa. Por exemplo, imaginemos que fora a Fazenda Pública condenada a pagar dez milhões de reais e recorre apenas pedindo a redução da condenação para seis milhões. Contra uma parte da condenação, de seis milhões, não há impugnação recursal. Contra essa parcela – e ressalvada a hipótese do art. 496, § 4.º -, impõe-se reexame de ofício;
(II) eventual recurso interposto pela Fazenda não é conhecido, por falta de cumprimento dos pressupostos de admissibilidade recursal. A hipótese equivale à de não interposição de recursos, para o fim de definição do cabimento do reexame necessário. O recurso interposto, por não preencher os pressupostos de admissibilidade, não permitirá o reexame da solução dada ao mérito da causa. Então, terá de haver reexame de ofício - observados os limites dos §§ 3.º e 4.º do art. 496.
Acerca do tema o Fórum Permanente de Processualistas Civil (FPPC) editou o Enunciado 432, dispondo o seguinte:
“(art. 496, §1º) A interposição de apelação parcial não impede a remessa necessária. (Grupo: Impacto do novo CPC e os processos da Fazenda Pública).”
Assim, percebe-se que a literalidade do dispositivo indica uma solução, enquanto a doutrina aponta para outra, razão pela qual tais questionamentos, sem dúvida, em breve serão alvo de análise por parte de nossas Cortes Superiores.
5.2. Ação monitória e remessa necessária
A ação monitória é um procedimento especial do processo de conhecimento em que, em determinadas condições, a tutela jurisdicional condenatória pode ser produzida independentemente de sentença: a própria decisão inicial do juiz, fundada em cognição sumária, constituirá título executivo judicial, se o réu não opuser embargos monitórios (artigo 700 e seguintes do Código de Processo Civil de 2015). Quando for ré a Fazenda Pública, se ela não interpuser tais embargos, não haverá a imediata formação do título executivo. Ressalvados os limites dos §§ 3.º e 4.º do art. 496, haverá reexame necessário, para só depois, se houver confirmação da decisão pelo tribunal, formar-se-á o título executivo (artigo 701, § 4.º).
Trata-se, portanto, de caso em que o reexame necessário não incide sobre sentença, mas sobre decisão interlocutória.
6. Conclusão
Como bem consignado, o Código de Processo Civil de 2015, a par de promover uma verdadeira mudança estrutural no processo brasileiro, optou por manter certos institutos, caso da remessa necessária, ainda que consideravelmente alterados pelo novo texto legal.
Desta forma, a par de questionamentos decorrentes do novo regime jurídico, que sem dúvida serão objeto de apreciação e solução pelo Poder Judiciário, são estas as linhas gerais do regime jurídico da remessa necessária decorrentes do regime instituído pelo Código de Processo Civil de 2015.
7. Referências bibliográficas
ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. 2ª Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
CUNHA, Leonardo Carneiro. A Fazenda Pública em Juízo. 13ª Edição, Rio de Janeiro: Forense, 2016.
DIDIER, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro. Curso de Direito Processual Civil – Volume III. 13ª Edição, Salvador: Editora Juspodivm, 2016.
NNERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante. 11ª Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
[i] CUNHA, Leonardo Carneiro. A Fazenda Pública em Juízo. 13ª Edição, Rio de Janeiro: Forense, 2016.
[ii] DIDIER, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro. Curso de Direito Processual Civil – Volume III. 13ª Edição, Salvador: Editora Juspodivm, 2016.
[iii] NNERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante. 11ª Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
Advogado. Graduado em Direito pela Faculdade Asces.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GALINDO, Lucas Pepeu. O regime jurídico da remessa necessária à luz do Código de Processo Civil de 2015 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 ago 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47217/o-regime-juridico-da-remessa-necessaria-a-luz-do-codigo-de-processo-civil-de-2015. Acesso em: 23 dez 2024.
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