RESUMO: Com o advento do Estado Moderno, o sistema processual penal teve como finalidade precípua a aplicação de penas privativas de liberdade ao infrator pela prática de condutas contrárias à ordem jurídico-social, imputando-lhe a culpa e a dor pelo ato delituoso. A punição se tornou, além de uma resposta para a sociedade, uma justa retribuição pelo mal cometido e um símbolo de ameaça estatal, distanciando-se dos princípios e dos fundamentos que alicerçam o Estado Democrático de Direito. Assim, o presente trabalho possui dois enfoques principais. O primeiro consiste na demonstração da crise do sistema penal tradicional, tanto no seu viés processual, quanto na órbita da execução da pena de prisão. O segundo decorre do primeiro, na medida em que surge danecessidade de averiguar um modelo alternativo de tratamento de conflitos penais. Nessa problemática, a Justiça Restaurativa, através de uma “nova lente” de analisar o crime, atravessa a superficialidade do paradigma repressivo e mergulha fundo na intersubjetividade do conflito, oportunizando um espaço dialogal entre a vítima, o ofensor e a própria comunidade atingida com a prática do delito. Busca-se, portanto, uma restauração dos sujeitos de forma harmônica com os princípios consagrados na Constituição Federal de 1988, pois, além de haver a possibilidade da reparação do dano, aplica-se os princípios da resolução alternativa do conflito, do consenso, do respeito absoluto aos direitos humanos e, por fim, mas não menos importante, da dignidade da pessoa humana.
Palavras-Chaves: crise do paradigma dominante; justiça restaurativa; intersubjetividade do conflito; espaço dialogal.
INTRODUÇÃO
Com o advento do Estado Moderno, o sistema processual penal teve como finalidade precípua a aplicação de penas privativas de liberdade ao infrator pela prática de condutas contrárias à ordem jurídico-social, imputando-lhe a culpa e a dor pelo ato delituoso. A punição se tornou além de uma resposta para a sociedade, uma justa retribuição pelo mal cometido e um símbolo de ameaça estatal, distanciando-se dos princípios e dos fundamentos que alicerçam o Estado Democrático de Direito.
O presente trabalho possui dois enfoques principais. O primeiro consiste em demonstrar a crise do sistema penal tradicional, tanto no seu viés processual, quanto na órbita da execução da pena privativa de liberdade. O segundo decorre do primeiro, na medida em que surge a necessidade de averiguar um modelo alternativo de tratamento de conflitos penais. Nessa problemática, a Justiça Restaurativa, mediante uma “nova lente” de analisar o crime, atravessa a superficialidade do paradigma dominante - eminentemente repressivo - e mergulha fundo na intersubjetividade do conflito, oportunizando um espaço dialogal entre a vítima, o ofensor e a própria comunidade atingida com a prática do delito.
DESENVOLVIMENTO
Durante todo o período da idade média, a ideia de pena de prisão não se mostra uma resposta apta e adequada aos anseios sociais, na medida em que a privação da liberdade era apenas um pressuposto para a aplicação de penas cruéis e torturantes. Assim, as sanções desse período histórico, segundo Bitencourt, eram submetidas ao arbítrio dos governantes, considerando o status social a que pertencia ao réu, sendo que a pena de prisão era excepcional, pois restrita àqueles casos em que os crimes não tinham suficiente gravidade para sofrer condenação à morte ou à pena de mutilação.[1]
Foucault enuncia que os suplícios tornaram-se revoltantes, visto pela perspectiva do povo; vergonhoso, considerando a visão da vítima; e, de qualquer modo, perigoso, tendo sido percebido que “a justiça criminal puna em vez de se vingar”[2], justificando que:
O protesto contra os suplícios é encontrado em toda a parte na segunda metade do século XVIII: entre os filósofos e teóricos do direito; entre juristas, magistrados, parlamentares; nos chaiers de deléances e entre os legisladores das assembleias. É preciso punir de outro modo: eliminar essa confrontação física entre soberano e condenado; esse conflito frontal entre a vingança do príncipe e a cólera do povo, por intermédio do suplicado e do carrasco. O suplício tornou-se rapidamente intolerável.[3]
Com o surgimento do Estado Moderno ocasionou-se uma quebra do paradigma, substituindo a visão teocêntrica do período medieval para dar espaço ao antropocentrismo, tornando o homem e toda a sua realidade o centro do universo, bem como buscando construir a ordem social através de uma visão racional de mundo.
Essa época influenciou e interferiu em todas as áreas do conhecimento científico, não sendo diferente para o discurso jurídico, principalmente, na seara criminal. Nesse contexto, Marcelo Gonçalves Saliba aduz que “razão e ordem unem-se numa relação espiral na modernidade, estando no centro da espiral a razão e o no extremo oposto a ordem, amarrando e entrelaçando o conhecimento e as ciências humanas.”[4]
Iniciou-se, desse modo, um movimento de grande mudança no desenvolvimento das penas privativas de liberdade, na criação e na construção de prisões organizadas, tendo como objetivo a punição do ato e, simultaneamente, a recuperação dos apenados.
Nesse sentido, a sanção penal mostrou-se necessária para impor a paz social como resposta à prática de infrações penais.
Assim, pode-se perceber que na idade moderna o que se deseja é a ordem, sendo que qualquer ato que combate tal objetivo deve ser reprimido. Nas elogiosas palavras de Zygmunt Bauman, a modernidade é beleza, coisa inútil, que se espera seja valorizada pela civilização; limpeza, no sentido de que qualquer espécie de “sujeira” parece não ser compatível com o mundo civilizado; e ordem, que seria uma forma de repetição compulsória, estabelecida por um regulamento, que decide quando e como deve ser feita uma determinada coisa, para que em todas as circunstâncias parecidas não exista indecisão ou hesitação. [5]
Da mesma forma em que um objeto pode ser considerado “puro” ou “impuro”, o ser humano também pode ser submetido a tal classificação, na medida em que o infrator da lei é rotulado e estigmatizado pela sociedade como um indivíduo anormal, estranho, incontrolável e causador de desordem, sendo necessário o seu isolamento do meio social, mediante a restrição da sua liberdade em uma instituição total.
Bauman afirma que “as ‘classes perigosas’ são assim redefinidas como classes de perigosos. E, desse modo, as prisões agora, completa e verdadeiramente, fazem as vezes das definhantes instituições do bem-estar”.[6]
Tais premissas são estudas e enfrentadas, com profundidade, na sociologia. Howard S. Becker, ao tratar do desvio e das rotulações dele advindas, alude, com propriedade, que:
Uma pessoa recebe o status como resultado da violação de uma regra, e a identificação prova-se mais importante que a maior parte das outras. Ela será identificada primeiro como desviante, antes que outras identificações sejam feitas. Formula-se a pergunta: “Que tipo de pessoa infringiria uma regra tão importante?” E a resposta é dada: “Alguém que é diferente de nós, que não pode ou não quer agir como um ser humano moral, sendo portanto capaz de infringir outras regras importantes.” A identificação desviante torna-se a dominante.
Tratar uma pessoa como se ela fosse em geral, e não em particular, desviante produz uma profecia auto-realizadora. Ela põe em movimento vários mecanismos que conspiram para moldar a pessoa segundo a imagem que os outros têm dela.[7]
Sendo assim, a resposta do Estado pela prática do ato delituoso é a pena, “vista como a única capaz de colocar a ordem na desordem, afastar o caos e a ambivalência, para fazer prevalecer a razão” segundo as ideias de Saliba, pois, enquanto o crime expressa a “sujeira”, a sanção penal restabelece o status de “beleza”, o qual foi interrompido.[8]
Diante desta breve análise histórica, é possível concluir que o direito penal está, intimamente, ligado com a pena. Arriscou-se, na doutrina, em dizer que “sem pena, não há direito penal, numa relação inversa também verdadeira”.[9]
Nesta senda, pode-se auferir que a pena traz duas finalidades distintas. Segundo Ferrajoli, a pena, na teoria absoluta, “é um fim em si própria, ou seja, como ‘castigo’, ‘reação’, ‘reparação’ ou, ainda, como ‘retribuição’ do crime”; ou pode se inclinar pelas teorias relativas ou utilitaristas, “que consideram e justificam a pena enquanto meio para a realização do fim utilitário para a prevenção de delitos futuros”.[10] Posteriormente, foi criada a teoria eclética, a qual une ambos os fundamentos teóricos citados, tornando a pena a retribuição pelo mal causado, mas, também, uma medida de prevenção com o intuito de inibir novas práticas delituosas.
Em que pese o avanço da concepção moderna de direito penal, principalmente, se for levado em consideração a crueldade das penas na Idade Média, pode-se dizer que ele não foi uma resposta suficiente, uma vez que o sistema das prisões se encontra insustentável.
Alessandro Baratta analisa a crise na seguinte perspectiva:
A comunidade carcerária tem, nas sociedades capitalistas contemporâneas, características constantes, predominantes em relação às diferenças nacionais, e que permitiram a construção de um verdadeiro e próprio modelo. As características desse modelo, do ponto de vista que mais nos interessa, podem ser resumidas no fato de que os institutos de detenção produzem efeitos contrários à reeducação e à reinserção do condenado, e favoráveis à sua estável inserção na população criminosa. O cárcere é contrário a todo moderno ideal educativo, porque este promove a individualidade, o autorrespeito do indivíduo, alimentado pelo respeito que o educador tem dele. [...]
Exames clínicos realizados com os clássicos testes de personalidade mostraram os efeitos negativos do encarceramento sobre a psique dos condenados e a correlação desses efeitos com a duração daquele. A conclusão a que se chegam estudos deste gênero é que ‘a possibilidade de transformar um delinquente antissocial violento em um indivíduo adaptável, mediante uma longa pena carcerária, não parece existir’ e que ‘o instituto da pena não pode realizar a sua finalidade como instituto de educação’. [11]
A prisão deixou de ser uma forma de frear a prática de condutas delituosas, pois, a contrario sensu, estimula-a, sendo, inclusive, um instrumento de desumanidade.
As mais variadas deficiências na estrutura física do estabelecimento, como, por exemplo, escassez de higiene, falta de espaço para separação de presos, carência de assistência à saúde, à educação, somando-se a inexistência de zelo e cuidado à integridade física do preso, de distribuição adequada do tempo ao ócio, ao trabalho, ao lazer, ao exercício físico[12]; ou, ainda, o amadurecimento do apenado a práticas criminosas, estimulando à formação de associações delitivas; e, também, o isolamento de uma pessoa ao meio social[13] podem ser elencados como apenas alguns dos fatores que contribuem para a falência das prisões.
Diz-se, então, que as instituições totais possuem um caráter criminógeno, funcionando como “escolas de delinquência e de recrutamento da criminalidade organizada”[14], nos dizeres de Ferrajoli. Ademais, o penalista[15] defende que:
Portanto, se é verdade que o grau de dureza tolerável das penas está ligado em cada ordenamento ao grau de desenvolvimento cultural alcançado por ele, resulta possível hoje desenhar uma estratégia de reforma do direito penal que aponte, a longo prazo, a supressão integral da pena privativa de liberdade e, a curto e médio prazos, uma drástica redução de seu tempo de duração legal, começando pela abolição dessa moderna barbárie que é a prisão perpétua.
Em decorrência disso, surgiu, no Brasil, a necessidade de imposição de penas alternativas para determinadas condutas delituosas. Através do advento da Lei n.º 9.099/1995 e da Lei n.º 9.714/1998, penas alternativas aos crimes de menor potencial ofensivo e a outros praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa, mediante realização da transação penal, da suspensão condicional do processo e da substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos.
Apesar de este avanço ser significativo, principalmente para se tentar “desafogar” o caos do sistema carcerário brasileiro, os mecanismos são insuficientes, não mostrando uma resposta efetiva para a modificação do paradigma punitivo, já que a resposta da praticado do delito continua sendo uma “pena”. E como toda sanção penal, quando descumprida de forma injustificada, retorna ao foco principal, qual seja: o prosseguimento ou o início do processo e, consequentemente, a aplicação da pena privativa de liberdade. Assim, o ciclo se recomeça.
Essa modificação mostra-se, ainda, insuficiente frente à crise que está estabelecida. Ferrajoli aduz que:
Um sintoma da crise das penas privativas de liberdade é, sem dúvida, o desenvolvimento de medidas alternativas e das sanções substitutivas, que representam, talvez, as principais inovações deste século em matéria de técnicas sancionadoras. Mas este desenvolvimento é também um sinal da resistência tenaz do paradigma carcerário. Medidas alternativas e sanções substitutivas não tem substituído, na realidade, a pena de prisão como penas ou sanções autônomas, mas tem-se somado a ela como seu eventual corretivo, acabando, assim, por dar lugar a espaços incontroláveis de discricionariedade judicial ou executiva.[16]
Como se não bastasse, há outras causas que contribuem para a deslegitimação do paradigma punitivo-retributivo. Hodiernamente, predomina o interesse do Estado como forma de punir o agente que praticou o fato delituoso, buscando a reconstrução de um evento pretérito para se revelar a “verdade real”, mediante decisões cientificistas, as quais não se comprometem em dar atenção à participação dos protagonistas envolvidos no conflito, quais sejam: a vítima, o ofensor e a comunidade local. Na concepção de Daniel Achutti,
O processo penal é, portanto, apresentado como a fórmula mágica para a solução dos conflitos na contemporaneidade: através de seu arcabouço teórico cientificamente legitimado, assume lugar de destaque e habilita-se como meio eficiente para a reconstrução de um evento pretérito, a atribuição de culpas no presente e a determinação de uma pena a ser cumprida no futuro.[17]
Define-se, assim, que o objetivo principal do processo penal é a determinação de culpa e administração de dor, dependendo de procuradores profissionais que representam os interesses do réu e do Estado[18]. Assim, nas exatas palavras de Howard Zehr, o atual paradigma “afasta o processo de justiça dos indivíduos e da comunidade que foram afetados pelo delito. Vítima e ofensor tornam-se espectadores que não participam de seu próprio processo”[19].
Em face disso, é possível afirmar que o crime é visto através de uma perspectiva retributiva, não conseguindo atender a necessidades da vítima, do ofensor e da comunidade, pois a tramitação processual não valoriza a palavra e a vontade da vítima e, simultaneamente, fracassa na responsabilização do ofensor e na coibição de novas práticas delituosas.
Atingimos um ponto em que o Poder Judiciário não consegue responder a todos os problemas sociais, tornando imperiosa uma modificação do sistema, incluindo uma análise de outros profissionais, como, por exemplo, assistentes sociais, psicólogos, antropológicos e, também, integrantes da própria comunidade. Logo, os tradicionais representantes do Estado (juízes, promotores, defensores públicos, delegados) devem ser auxiliados por conciliadores ou mediadores.
Desse modo, como forma de se modificar os problemas existentes, tornou-se necessária a reflexão de uma redefinição da justiça criminal. Questionando-se: o que efetivamente é justo para o ofendido? E para o ofensor? Por qual motivo a conduta criminosa foi praticada? Será que a vítima, realmente, quer ver o réu preso? Ou, simplesmente, precisa de uma reparação do dano causado em sua vida? E, por fim, qual a contribuição da comunidade local para o evento ocorrido? Será possível um diálogo entre os protagonistas dando ensejo a um processo transdisciplinar?
Diante de tantas indagações, bem como em razão da deslegitimação dos aparelhos repressivos do Estado, mas, principalmente, pelo respeito da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos, foi criada uma nova modalidade de análise dos conflitos penais, retirando a vítima e o ofensor de função secundária no processo para colocar-lhes no lugar de protagonistas da relação. Segundo Zehr,
Os ofensores devem responder pelos seus atos, mas a sociedade também. A sociedade deve responder às vítimas, ajudando a identificar e atender a suas necessidades. Da mesma forma, a comunidade deve atender às necessidades dos ofensores, buscando não apenas restaurar, mas transformar. A responsabilização é multidimensional e transformadora.[20]
Com o advento da Justiça Restaurativa tais premissas tornaram-se possíveis. Saliba a conceitua como sendo um processo de soberania e democracia participativa através de um diálogo das partes envolvidas no conflito e da comunidade para a melhor solução do caso, “numa concepção de direitos humanos extensíveis a todos, em respeito ao multiculturalismo e à autodeterminação”[21].
Trata-se, consoante demonstra Renato Sócrates Gomes Pinto, de um processo relativamente informal em espaços comunitários, sem o “peso e o ritual solene da arquitetura do cenário judiciário”, com a intervenção de mediadores através de técnicas de conciliação, mediação e transação para se alcançar a restauração, objetivando “suprir as necessidades individuais e coletivas das partes e se lograr a reintegração social da vítima e do infrator”[22].
Marcos Rolim afirma que essa alternativa de resolução de conflito pode até atingir um valor monetário para eventual reparação de danos, mas tem como foco primordial a superação do trauma psicológico ou do dano emocional sofrido pela vítima, na medida em que “exigem que as partes exponham com toda a franqueza seus sentimentos, suas angústias, seus temores e que tornem claras suas expectativas”[23].
Nessa perspectiva, impõe-se um procedimento dialogal entre os participantes, encontrando apoio nas concepções desenvolvidas pelo filósofo Jürgen Habermas na sua Teoria do Agir Comunicativo. Alexandre Dupeyrix ao compreender a teoria habermasiana sintetiza que:
uma dimensão essencial própria à ética da discussão é a dimensão de inclusão: estar disposto a integrar potencialmente todos os participantes que desejariam participar da discussão, a incluir todos os pontos de vista, a estudar todos os argumentos.[24]
O clássico estudioso desta temática, Zehr, induz a reflexão de que os fracassos do atual sistema enseja uma análise do crime através de uma “nova lente”, mas demonstra receio ao se falar de um “novo paradigma”[25]. Isso porque:
Um paradigma é mais do que uma forma de ver ou uma perspectiva. Exige uma teoria muito bem articulada, combinada com uma sólida gramática e uma física de aplicação – além de certo grau de consenso. Ele não precisa resolver todos os problemas, mas pelo menos os mais prementes, e deve indicar a direção a seguir. Não creio que tenha chegado a esse ponto ainda.
Um objetivo mais realista para o nosso estágio seria a de visões alternativas fundamentadas em princípios e experiências, e que possam guiar nossa busca de soluções à crise atual. Podemos adotar uma lente diferente, mesmo que ainda não seja um paradigma plenamente desenvolvido. [26]
Não obstante eventuais dúvidas e receios, é preciso arriscar o (im)possível, buscando uma nova forma de analisar o conflito penal, mediante uma perspectiva restaurativa, a qual humaniza o sistema penal e o torna harmônico com o Estado Democrático de Direito consagrado na Constituição Federal de 1988.
Portanto, imperioso arriscar, utilizando-se das reflexões do filósofo Gustav Radbruch, que este trabalho não almejará fazer do Direito Penal algo melhor, mas sim fazer algo melhor do que o Direito Penal[27], sob pena de se não se chegar a lugar algum e, consequentemente, não se superar a atual crise da jurisdição repressiva, que tornou ilusória a realização da justiça criminal, que está desprovida de credibilidade perante a sociedade, a vítima, ao condenado e aos juristas.
CONCLUSÃO
A pesquisa desenvolvida teve como foco a análise das soluções trazidas pelo Direito Penal e pela sua respectiva sistemática processual com a justificativa de auxiliar o efetivo tratamento dos conflitos sociais. Através de um estudo aprofundado da temática, mas não exaustivo, verificaram-se que essas respostas são incapazes de evitar delitos, tampouco contribuir, de forma positiva, para a recuperação do ofensor, principalmente porque, ao invés de visar a responsabilização, busca, tão somente, a punição mediante o uso de dor e da imposição da culpa.
A violação dos direitos humanos e das garantias fundamentais nos presídios brasileiros, o alto índice de retorno ao cárcere, a insatisfação da vítima com o resultado do processo e a ausência de diálogo entre as pessoas envolvidas no conflito são apenas alguns dos fatores que contribuíram para o amadurecimento e a conscientização da falência da jurisdição repressiva. Agrega-se a isso, a falta de percepção da vítima e do ofensor como protagonistas do processo, posto que, atualmente, a primeira é vista como mera informante no procedimento; e o segundo é encarado como um expectador secundário do cenário, pois o objetivo principal volta-se ao cumprimento das “regras do jogo” através da participação do Juiz, do membro do Ministério Público e do defensor, resultando-se em decisões cientificistas, insensíveis e abstraídas da realidade social, na medida em que não atendem às necessidades e à satisfação do tripé vítima-ofensor-comunidade.
Assim, como forma de superação desse paradigma e, consequentemente, com o intuito de melhorar a qualidade de vida dos grupos criminalizados e de diminuir os elevados índices de encarceramento, introduziram-se políticas de substitutivos penais com as denominadas penas restritivas de direito e a promulgação da Lei n.º 9.099/1995.
Todavia, conforme foi explanado no decorrer deste trabalho, tais medidas, apesar de louváveis, não lograram êxito para a transformação da justiça penal tradicional, tornando-a, ainda mais repressiva, arbitrária e burocrática. Como se não bastasse, contribuiu com a lotação do sistema carcerário, na medida em que, apesar de se tratar de uma tentativa de introdução de um sistema dialogal na seara criminal, as penas restritivas de direitos e outras semelhantes não são penas, efetivamente, alternativas. Isso porque, ao contrário de excluir as penas de prisão, apenas integram-na, o que corrobora a persistência de um sistema evasivo e insustentável.
Dessa forma, é possível auferir que a Justiça Restaurativa se insere no contexto da insuficiência da pena privativa de liberdade como resposta estatal à prática de delitos e da necessidade de ultrapassagem da ganância punitiva-retributiva do sistema processual penal. Surge, assim, a busca por meios alternativos para o tratamento da conflitualidade social a fim de descobrir novos caminhos para o abandono do arcaico modelo de justiça tradicional, que, ao contrário da sua finalidade teórica, potencializa, na prática, violação de direitos fundamentais dos apenados, dos presos provisórios, dos acusados e dos investigados, além de todos os seus familiares e as pessoas próximas ao conflito, incluindo, a vítima e a comunidade local.
Contudo, para que as finalidades deste incipiente modelo de justiça sejam atingidas, deve-se lembrar que a flexibilidade das medidas restaurativas e a introdução da mediação e da conciliação na esfera penal, através da introdução de um processo dialogal e transdisciplinar, não pode ocasionar o comprometimento das garantias já consagradas na Constituição Federal de 1988. Sendo isso respeitado, torna-se possível atingir a redução da aplicação de sanções punitivas, mas, acima de tudo, tornar o acesso à justiça mais equânime, reduzindo-se a distância entre o acesso formal ao Judiciário e o acesso material à efetivação da justiça.
Salienta-se, além disso, que a Justiça Restaurativa proporciona a democratização do processo, pois, com a observância dos princípios do processo comunicacional, da resolução alternativa e efetiva dos conflitos, do consenso, da voluntariedade e da dignidade da pessoa humana, propõe, sempre com a ajuda de um mediador/facilitador, uma aproximação e um diálogo entre partes, retirando do Estado o papel principal de legitimador do jus puniendi e, consequentemente, rompendo com a ideia de que as consequências do crime são de propriedade exclusivamente estatal.
Não obstante a existência de diversos empecilhos para a modificação da sistemática processual, podendo ser destacada a resistência e a aversão dos atores do processo e da própria sociedade ao abandono da punição e da vingança como significado de “justiça”, dificultando a consolidação de um novo paradigma plenamente desenvolvido, isso não pode ser considerado um obstáculo para a efetivação de visões alternativas que possam guiar a busca de soluções à crise atual.
Com base nos estudos das principais deficiências do sistema processual penal e da falência da pena privativa de liberdade como forma de reprovação e de prevenção do delito, bem como considerando os pilares e os fundamentos teóricos que alicerçam a Justiça Restaurativa e os métodos de tratamento de conflitos, através do exercício da mediação e do perdão entre os protagonistas envolvidos, abre-se, segundo as lições de Howard Zehr, uma “nova lente” de analisar os conflitos sociais tipificados como crime.
Em face disso, pode-se afirmar que a principal contribuição dessa nova maneira de analisar e interpretar o fato criminal consiste no desafio de atravessar a superficialidade do paradigma repressivo e mergulhar fundo na intersubjetividade do conflito, compreendendo os motivos pelos quais levaram o infrator a praticar o ato desviante, bem como as consequências e os sentimentos que sobrevieram na vida da vítima, sem excluir a participação da comunidade esse momento de profunda restauração dos vínculos sociais.
Portanto, arrisca-se em afirmar que a Justiça Restaurativa é um modelo alternativo de tratamento do conflito penal, que necessita ser estudado, explorado, experimentado e aperfeiçoado com a árdua tentantiva de atingir, no futuro, a superação do paradigma punitivo dominante.
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[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: causas e alternativas. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 09.
[2] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópoles: Vozes, 2006, p. 63.
[3] Ibidem, p. 63.
[4] SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo. Curitiba: Juruá, 2009, p. 34.
[5] BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 14-15.
[6] Ibidem, p. 57.
[7] BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiza X. Borges; revisão técnica Karina Kuschnir. – 1 ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. p. 44.
[8] SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo. Curitiba: Juruá, 2009, p. 41.
[9] Ibidem, p. 43.
[10] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 236.
[11] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia crítica. Tradução Juarez Cirino dos Santos. 6 ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2011, p. 183-184.
[12] Conselho Nacional do Ministério Público. A visão do Ministério Público sobre o Sistema Prisional Brasileiro. Brasília: CNMP, 2013. Disponível em: <http://www2.cnmp.mp.br/portal/images/portal-2013/noticias/2013/Sistema%20Prisional_web_final_2.pdf>. Acesso em: 28 jul. 2013.
[13] BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: causas e alternativas. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 158-159.
[14] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 379
[15] Ibidem, p. 379.
[16] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 378.
[17]ACHUTTI, Daniel. Os estrangeiros no processo penal: breve análise da justiça restaurativa. Disponível em: <http://gabrieldivan.files.wordpress.com/2010/02/achutti-jusrest.pdf>. Acesso em: 30 abri 2013.
[18] ZEHR, Howard. Trocando as lentes: Um novo foco sobre o crime e a justiça. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008, p. 74.
[19] Ibidem, p. 76.
[20] ZEHR, Howard. Trocando as lentes: Um novo foco sobre o crime e a justiça. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008, p. 190.
[21] SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo. Curitiba: Juruá, 2009, p. 148.
[22] PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é possível no Brasil? In: Slakmon, Catherine; Vitto de, Renato Campos Pinto; Pinto, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa. Disponível em: < http://www.sel.eesc.usp.br/informatica/graduacao/material/etica/private/justica_restaurativa_livro_com_coletanea_de_artigos.pdf>. Acessado em: 13 abri 2013.
[23] ROLIM, Marcos. A síndrome da rainha vermelha – Policiamento e segurança pública no século XXI. 2 ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.; Oxford, Inglaterra: University of Oxford, Centre for Brazilian Studies, 2009, p. 250.
[24] DUPEYRIX, Alexandre. Compreender Habermas. Tradução Edson Bini. São Paulo: Loyola, 2012, p. 50.
[25] ZEHR, Howard. Trocando as lentes: Um novo foco sobre o crime e a justiça. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008, p. 169-170.
[26] Ibidem, p. 169-170.
[27] RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Tradução Marlene Holzhausen. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 246.
Advogada. Bacharel em Direito na Universidade Federal de Santa Maria.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DARONCH, Bruna. Da jurisdição repressiva à justiça restaurativa: a busca pela superação da crise do sistema penal brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 ago 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47221/da-jurisdicao-repressiva-a-justica-restaurativa-a-busca-pela-superacao-da-crise-do-sistema-penal-brasileiro. Acesso em: 27 dez 2024.
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