Resumo: O presente artigo pretende analisar como o princípio da intranscendência subjetiva impede a aplicação das sanções previstas na LRF, segundo o entendimento do STF. Analisa se, em relação aos órgãos do ente, esse entendimento não criaria uma imunidade material absoluta, tornando ineficaz as disposições legais.
Palavras-chave: Lei de Responsabilidade Fiscal – Intranscendência subjetiva das sanções – Supremo Tribunal Federal.
INTRODUÇÃO
A Lei de Responsabilidade Fiscal representa uma importante avanço na proteção do erário. Suas disposições visam garantir que o administrador atue com responsabilidade na gestão do patrimônio público. Seus dispositivos garantem que os órgãos de fiscalização tenham substratos objetivos para analisar as decisões tomadas pelos administradores.
O presente artigo pretende analisar as punições previstas para o administrador que descumpre dispositivos da LRF e o entendimento dos tribunais superiores de que essas sanções não serão aplicas ao próprio ente político, caso o descumprimento tenha ocorrido por atos de entes da administração indireta, poderes do próprio ente (Legislativo ou Judiciário) ou por administrações anteriores.
Analisaremos ainda se referidas exceções não atribuiriam ao ente uma carta branca para violar à LRF, algo que tornaria a lei ineficaz. Em tempos de crise econômica, a proteção do erário deve ser ainda mais eficiente, de modo que questões como a da intranscendência subjetiva merecem maior atenção.
A jurisprudência dos Tribunais Superiores aplicaram o referido princípio em duas situações especiais: a impossibilidade de realização de transferências voluntárias e a inscrição do ente nos cadastros de inadimplentes, de modo que teceremos breves comentários sobre essas dois casos específicos.
TRANSFERÊNCIAS VOLUNTÁRIAS E CADASTRO FEDERAL DE INADIMPLÊNCIAS
Segundo a LC 101/00 considera-se transferência voluntária a entrega de recursos correntes ou de capital a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, que não decorra de determinação constitucional, legal ou os destinados ao Sistema Único de Saúde. (art. 25 da LRF).
Segundo Harrison Leite: “Tratam-se de recursos geralmente utilizados para a implementação de ações constantes do orçamento da União e dos Estados, que não podem ser por eles aplicados diretamente pela falta de estrutura administrativa federal ou estadual no ente beneficiário” (LEITE, Harrison. Manual de Direito Financeiro. 5ª Edição. Juspodivm. 2016. p. 341). Assim, também é de interesse da União a transferência de recursos, uma vez que, segundo o autor, tais transferências visam atender as áreas de competência comum aos entes federados (art. 23 da CF).
Ainda sobre o tema, ressalte-se que as transferências voluntárias não se confundem com os repasses de verbas estabelecidos pela lei ou pela Constituição. Como ocorre, por exemplo, com a repartição de receitas tributárias (art. 157 a 162 da CF/88). As transferências tidas por voluntárias ocorrem, principalmente, por meio de termos de parceria, contratos de repasse ou convênios (LEITE, Harrison. Manual de Direito Financeiro. 5ª Edição. Juspodivm. 2016. p. 341).
A Lei 101/00 estabelece alguns requisitos para que possa existir a transferência voluntárias. Em seu art. 25, §1º, dispõe que será necessário: existência de dotação específica; observância do disposto no inciso X do art. 167 da Constituição e a comprovação, por parte do beneficiário, de: a) que se acha em dia quanto ao pagamento de tributos, empréstimos e financiamentos devidos ao ente transferidor, bem como quanto à prestação de contas de recursos anteriormente dele recebidos; b) cumprimento dos limites constitucionais relativos à educação e à saúde; c) observância dos limites das dívidas consolidadas e mobiliária, de operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, de inscrição em Restos a Pagar e de despesa total com pessoal; d) previsão orçamentária de contrapartida.
Percebe-se, portanto, que, estando o ente que receberá a transferência em débito quanto ao pagamento de tributos, empréstimos e financiamentos devidos ao ente transferidor, ele ficará impossibilitado de receber os recursos.
Para um maior controle sobre os entes que estão em débito, criou-se, no âmbito federal, o Cadastro Único de Convênio (CAUC), disponibilizado na internet. Consiste em um banco de dados onde a União poderá obter informações sobre a existência ou não de débitos nos Estados ou Municípios que pretendem receber transferências voluntárias.
Para a inclusão dos entes no referido cadastro, o STF já decidiu sobre a necessidade de se garantir o contraditório e a ampla defesa, bem como o julgamento de tomada de contas especial pelo TCU para fins de inscrição dos entes inadimplentes no CAUC (STF. 1ª Turma. ACO 2.159-MC-REF, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 02/06/2014).
É importante ressaltar que, ainda que estejam inadimplentes, os entes federativos poderão receber recursos oriundos de transferências voluntárias no caso de a transferência for destinada para área de saúde, educação e assistência social (art. 25, §03º da LRF), bem como transferências oriundas de emenda individual impositiva (art. 166, §13º da CF) (LEITE, Harrison. Manual de Direito Financeiro. 5ª Edição. Juspodivm. 2016. p. 344).
TEORIA DA INTRANSCENDÊNCIA SUBJETIVA DAS SANÇÕES
O princípio da intranscendência subjetiva das sanções impede que sanções pessoais atinjam pessoas que não participaram do ato ou que não tinham como evitá-lo. Referido princípio já está consagrado na jurisprudência do STF e decorre, em última análise, da previsão do art. 5º, XLV da CF, que dispõe: nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido.
O STF reconheceu a aplicação do referido princípio à administração pública em três hipóteses diferentes, quais sejam, no caso de ato praticado por ente da administração pública indireta, por órgãos que constituem poderes do próprio ente (Legislativo e Judiciário) e por gestores anteriores.
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PRINCÍPIO DA INTRANSCENDÊNCIA OU DA PERSONALIDADE DAS SANÇÕES E DAS MEDIDAS RESTRITIVAS DE ORDEM JURÍDICA. ART. 5º, XLV, DA CF. IMPOSSIBILIDADE DE ATRIBUIÇÃO DE RESPONSABILIDADE AO ENTE ESTATAL POR ATO PRATICADO POR ENTIDADE DA ADMINISTRAÇÃO INDIRETA OU PELO PODER LEGISLATIVO OU JUDICIÁRIO. TESE ADOTADA EM COGNIÇÃO SUMÁRIA PELO PLENO DO STF. POSSIBILIDADE DE JULGAMENTO IMEDIATO. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I – O Supremo Tribunal Federal entende que as limitações jurídicas decorrentes do descumprimento de obrigação por entidade da administração indireta não podem ser atribuídas ao ente federal da qual participam e, pelo mesmo motivo, quando o desrespeito for ocasionado pelo Poder Legislativo ou pelo Poder Judiciário, as consequências não podem alcançar o Poder Executivo. II – Situação dos autos diversa daquela em que se afasta a adoção do princípio se a responsabilidade deriva de ato praticado por órgão do próprio Poder Executivo. III – O caráter provisório de orientação adotada pelo Pleno desta Corte, ainda que proferida em cognição sumária, não impede o julgamento imediato de causas que versem sobre idêntica controvérsia, nem dá ensejo a necessário sobrestamento do feito. IV – Agravo regimental a que se nega provimento.” (RE 768.238-AgR/PE, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI – grifei)
Em decisão mais recente, o STF reconheceu a aplicação do referido princípio aos casos envolvendo gestões distintas. São essas as informações disponibilizadas pelo informativo 791 de sua jurisprudência:
O princípio da intranscendência subjetiva das sanções, consagrado pelo STF, inibe a aplicação de severas sanções às administrações por ato de gestão anterior à assunção dos deveres públicos. Com base nessa orientação e, com ressalva de fundamentação do Ministro Marco Aurélio, a Primeira Turma, em julgamento conjunto, negou provimento a agravos regimentais em ações cautelares ajuizadas com a finalidade de se determinar a suspensão da condição de inadimplente de Estado-Membro, bem como das limitações dela decorrentes, com relação a convênios com a União. Na espécie, em face de decisões que julgaram procedentes os pedidos a favor dos entes federativos, a fim de suspender as inscrições dos requerentes de todo e qualquer sistema de restrição ao crédito utilizado pela União, foram interpostos os presentes recursos. A Turma consignou que, em casos como os presentes, em que os fatos teriam decorrido de administrações anteriores e os novos gestores estivessem tomando providências para sanar as irregularidades verificadas, aplicar-se-ia o princípio da intranscendência subjetiva. O propósito seria neutralizar a ocorrência de risco que pudesse comprometer, de modo grave ou irreversível, a continuidade da execução de políticas públicas ou a prestação de serviços essenciais à coletividade. Nesse sentido, a tomada de contas especial seria medida de rigor com o ensejo de alcançar-se o reconhecimento definitivo de irregularidades, permitindo-se, só então, a inscrição dos entes nos cadastros de restrição aos créditos organizados e mantidos pela União. O Ministro Marco Aurélio asseverou que, por se tratar de governança, preponderaria o princípio contido no art. 37 da CF, ou seja, o da impessoalidade. Precedentes citados: ACO 1.848 AgR/MA (DJe de 21.11.2014) e ACO 1.612 AgR/MS (DJe de 12.12.2014). AC 2614/PE, rel. Min. Luiz Fux, 23.6.2015. (AC-2614)
AC 781/PI, rel. Min. Luiz Fux, 23.6.2015. (AC-2614)
AC 2946/PI, rel. Min. Luiz Fux, 23.6.2015. (AC-2614)
É esse, portanto, o cenário atual da matéria no âmbito do STF e do STJ.
No âmbito da administração pública, a própria Advocacia-Geral da União editou súmula de nº 46, com o seguinte teor: " Será liberada da restrição decorrente da inscrição do município no SIAFI ou CADIN a prefeitura administrada pelo prefeito que sucedeu o administrador faltoso, quando tomadas todas as providências objetivando o ressarcimento ao erário."
POSSIBILIDADE DE SUPERAÇÃO DO ENTENDIMENTO
Em recente precedente, o Ministro Marco Aurélio reconheceu a possibilidade de inscrição do ente público estadual no CAUC, caso esteja em débito com a União. Segundo seu voto, a administração pública rege-se pelo princípio da impessoalidade (art. 37 da CF/88), de modo que a relação jurídica é estabelecida entre a União e Estado e não a União e o governador do referido Estado.
Ressaltou que o governo represente uma realidade passageira, enquanto que o Estado, com ente político, permanente. Nesse sentido, a mudança de gestão não pode servir para exonerar o ente de obrigações assumidas. (STF. 1ª Turma. AC 2614/PE, AC 781/PI e AC 2946/PI, Rel. Min. Luiz Fux, julgados em 23/6/2015).
De fato, tal entendimento parece ser o mais correto. A sanção prevista na LRF possui o escopo de proteger a boa administração e gestão de receitas públicas. Não representa uma sanção específica para determinado gestor, uma vez que visa impedir novas e sucessivas operações que oneram os cofres públicos federais.
Os Estados-Membros possuem dívidas com a União que comprometem o correto funcionamento da máquina administrativa, a LRF pretende mudar esse cenário e fazer com que as verbas tenham a destinação mais adequada. Relativizar a aplicação de sanções pelo descumprimento de obrigações é tornar a LRF ineficaz.
Com efeito, nos moldes como atualmente ocorre, o descumprimento das obrigações pactuadas não sofre nenhuma sanção, de modo que os valores dificilmente serão adimplidos, o que representa um grave prejuízo aos cofres públicos.
Por fim, ressalte-se que o entendimento que continua prevalecendo é o de aplica-se a intranscendência subjetiva das sanções aos casos envolvendo mudança de gestão, razão pela qual não se pode afirmar que houve superação do anterior precedente.
CONCLUSÃO
O STF entende que o descumprimento de obrigações por parte de Estado-Membro não faz com que a sanção atinja a atual gestão desse Estado, bem como se o descumprimento decorreu de algum dos Poderes não atingirá o Poder Executivo, algo também aplicável ao descumprimento de obrigações por entidades da administração indireta em relação ao ente da administração direta.
Em que pese ser esse o entendimento pacificado no âmbito dos tribunais superiores, é preciso sua modificação para fins de compreender que a relação pactuada será sempre com o Estado -Membro e que o descumprimento deve acarretar as sanções previstas na LRF, bem como a inscrição no cadastro federal de inadimplentes.
Tal superação visa garantir o cumprimento das obrigações, bem como a proteção do erário federal.
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Advogado. Especialista em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JúLIO CéSAR ALVES FIGUEIRôA, . Lei de Responsabilidade Fiscal e o princípio da intranscendência subjetiva das sanções Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 ago 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47233/lei-de-responsabilidade-fiscal-e-o-principio-da-intranscendencia-subjetiva-das-sancoes. Acesso em: 23 dez 2024.
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