RESUMO: O presente artigo visa analisar aspectos centrais envolvendo o regime diferenciado de contratações (RDC), como o seu surgimento, âmbito de aplicação, inovações trazidas pela legislação correlata (Lei nº 12.462/2011), tudo sob o enfoque do entendimento da doutrina e da jurisprudência do Tribunal de Contas da União.
Palavras-chave: Licitações. Regime diferenciado de contratação. Lei 12.462/11. Inovações. Celeridade. Eficiência. Aplicabilidade. Tribunal de Contas da União.
1. INTRODUÇÃO
Com o advento da Lei 12.462/2011, nasceu o chamado regime diferenciado de contratações públicas, modalidade específica de licitação, que surgiu, sobretudo, em função da realização dos grandes eventos desportivos a serem realizados no Brasil, como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos.
O regime diferenciado de contratações representa um avanço no que diz respeito às regras de contratação pública, uma vez que trouxe diversas novidades normativas, com vistas ao incremento da celeridade e eficiência nos procedimentos de contratação pública, bem como ao desapego excessivo a certos formalismos, como ocorre com a Lei 8666/93, normal geral de licitações e contratos.
Nessa linha, faz-se importante analisar e compreender quais as principais novidades trazidas por esse regramento diferenciado, bem como quais os seus objetivos e em que áreas a sua utilização é recomendável, tudo com vistas a uma perfeita aplicação e ao melhor desenvolvimento do novel regime.
2. O SURGIMENTO DO REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÕES E O SEU ÂMBITO DE APLICAÇÃO
O regime diferenciado de contratações foi inserido no ordenamento jurídico em 2011, inicialmente, através da Medida Provisória n. 527/2011, regulamentada pelo Decreto n. 7581/2011, que acabou sendo convertida na Lei 12.462/2011, atual diploma normativo regulador do regime diferenciado de contratações.
O regime diferenciado de contratações (RDC) foi criado no intuito de conferir maior agilidade às contratações necessárias à ocorrência dos grandes eventos desportivos, de modo que, inicialmente, o RDC tinha sua aplicação bastante restrita, sendo utilizado exclusivamente nas contratações relacionadas aos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016 e à Copa do Mundo Fifa 2014, bem como aos aeroportos distantes até 350 km das cidades-sedes desses eventos.
Posteriormente, diante do sucesso do novo regime, a Lei 12.462/2011 foi alterada, passando a permitir que o RDC fosse utilizado também nas contratações relativas às ações integrantes do Programa de Aceleração e Crescimento – PAC (art. 1º, IV, da Lei) e às obras e serviços de engenharia no âmbito do SUS (art. 1º, V) e dos sistemas públicos de ensino (art. 1º. §3º).
Na sua redação atual, a Lei 12.462/2011, após as alterações ocorridas nos anos de 2013 a 2016, autoriza a aplicação do regime diferenciado de contratação nos mais variados setores, como obras e serviços de engenharia para construção, ampliação e reforma de estabelecimentos penais; ações no âmbito da segurança pública; obras e serviços de engenharia relacionados à mobilidade urbana; ações em órgãos e entidades dedicados à ciência, à tecnologia e à inovação, entre outros.
Como se nota, houve, ao longo dos últimos anos, considerável ampliação do âmbito de aplicação do regime diferenciado de contratações públicas, o que se deve ao sucesso desse novo regime, sendo a tendência que o seu uso seja ainda mais alargado, expandindo-se para as diversas áreas da economia.
Importante mencionar que a preferência pela utilização do RDC deve estar expressa no edital de licitação, do que se depreende que seu uso é discricionário, e resultará no afastamento das normas previstas na Lei 8.666/93, exceto nos casos em que a própria Lei 12.462/2011 (art. 1º, §2º) determina a sua aplicação. Além disso, o Decreto 7.581/2011 (art. 13) determina que o RDC seja realizado preferencialmente na forma eletrônica.
3. AS NOVIDADES TRAZIDAS PELO REGIME DIFERENCIADO E A JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO
A sistemática do novo regime difere-se muito do tradicional regime da Lei 8.666/93, tendo em vista que criado com o objetivo de simplificar o processo licitatório e conferir celeridade e eficiência às contratações administrativas, além de ampliar a competitividade entre os licitantes.
Para tanto, o regime diferenciado de contratação inovou em diversos aspectos, absorvendo diversas críticas tradicionalmente feitas à Lei Geral de Licitações e inspirando-se em orientações consagradas pelo Tribunal de Contas da União e nas inovações legislativas previstas em diplomas específicos que lhe antecederam, como a lei do pregão (OLIVEIRA, 2014, p. 420).
Entre as principais novidades trazidas pelo RDC, podemos destacar a inversão das fases da licitação, possibilidade de lances intermediários, adoção do orçamento oculto, contratação integrada, remuneração variável ao contratado, pré-qualificação permanente, entre outras.
A inversão de fases, procedimento pioneiramente consagrado pelo pregão e também previsto na lei de parcerias público-privadas, consiste na apresentação e julgamento das propostas antes da fase de habilitação. Esta última só ocorrerá em relação ao licitante vencedor, o que gera economia de tempo e de recursos.
O RDC, contudo, diferentemente do pregão, previu a possibilidade se de utilizar o procedimento tradicional da Lei 8.666/93 (primeiro a habilitação e depois o julgamento das propostas). Mas, nesse caso, deve haver previsão expressa no instrumento convocatório, bem como justificativa, tendo em vista que a presunção é de que o uso da inversão de fases é sempre mais benéfico à Administração Pública.
Conforme ressaltou o TCU, no Acórdão nº 1.953/2007 (DOU de 21.9.2007), os contratos originados de licitações promovidas nas modalidades tradicionais, nas quais não há inversão de fases, têm apresentado um elevado número de irregularidades, dentre as quais superfaturamento e sobrepreço.
A lei do RDC trouxe também a chamada pré-qualificação permanente (art. 29, I), que se traduz em mecanismo auxiliar de licitação consistente na manutenção de um cadastro permanente de licitantes “qualificados” pela Administração, com validade de até um ano e sem qualquer vinculação a uma licitação específica, podendo ser aproveitado nos diversos certamos futuros que vierem a ocorrer.
Marçal Justen Filho (2011, p. 633), ao discorrer sobre os benefícios da pré-qualificação, ressalta a ausência de constrangimentos temporais, o que permite uma análise mais cautelosa dos requisitos de habilitação, redução dos esforços e da complexidade da atividade administrativa, que não precisará fazer análise da habilitação em cada licitação, além de oferecer mais segurança jurídica aos licitantes, que não serão surpreendidos com eventual decisão de inabilitação[[1]].
A pré-qualificação permanente, além de possibilitar a habilitação prévia e automática de potenciais fornecedores, destina-se a identificar bens que atendam aos requisitos técnicos e de qualidade exigidos pela Administração Pública, elaborando-se uma espécie de cadastro permanente dos bens considerados como satisfatórios pela Administração Pública.
Relativamente às propostas de preço, o RDC prevê a possibilidade de lances intermediários, isto é, permite que os licitantes que não apresentaram a melhor proposta reduzam seus preços com novos lances, objetivando uma melhor colocação no certame. Isso pode ser relevante, por exemplo, no caso de inabilitação do licitante vencedor (ou mesmo no caso de inexecução contratual), caso em que o segundo colocado terá oportunidade de ser convocado para eventualmente celebrar o contrato com o Poder Público.
Novidade muito relevante diz respeito ao chamado “orçamento oculto” previsto na Lei 12.462/2011 (art. 6º). A previsão permite que haja sigilo quanto ao orçamento estimado pela Administração Pública para execução do objeto contratual, o que impede a usual prática de elevação dos preços, sempre muito próximos ao orçamento divulgado, e evita a formação de cartéis com intuito de fraudar a licitação nesse sentido (ARAGÃO, 2013, p. 341).
O orçamento, embora inicialmente ocultado, deve se tornar público logo após a adjudicação do objeto da licitação ao vencedor. Assim, o sigilo do orçamento somente perdura durante o procedimento da licitação, devendo posteriormente tornar-se acessível aos interessados, sob pena de infringência ao princípio da publicidade. De todo modo, o orçamento deve estar permanentemente à disposição dos órgãos de controle (art., 6º, §3º).
Outra inovação do RDC foi a chamada contratação integrada, que, para ser utilizada, deve ser justificada do ponto de vista técnico e econômico. Trata-se de regime de execução de obras e serviços que, diferentemente da Lei 8.666/93, dispensa a exigência de que o projeto básico conste do edital. O instrumento convocatório deve contar apenas com um “anteprojeto de engenharia” que permita a definição e caracterização do serviço ou obra licitados[[2]].
Assim, a própria empresa vencedora do certame é que irá elaborar o projeto básico, bem como o projeto executivo. O ponto positivo é que, na contratação integrada, os termos aditivos são vedados, salvo para recomposição do equilíbrio econômico-financeiro ou a pedido da Administração Pública.
Segundo o Tribunal de Contas da União, a utilização do regime de contratação integrada exige, nos termos do art. 9º da Lei 12.462/2011, que haja justificativa sob os prismas econômico e técnico. No econômico, a Administração deve demonstrar em termos monetários que os gastos totais a serem realizados com a implantação do empreendimento serão inferiores se comparados aos obtidos com os demais regimes de execução. No técnico, deve demonstrar que as características do objeto permitem que ocorra real competição entre as contratadas para a concepção de metodologias/tecnologias distintas, que levem a soluções capazes de serem aproveitadas vantajosamente pelo Poder Público (Acórdão 1850/2015-Plenário, TC 011.588/2014-4, relator Ministro Benjamin Zymler, 29.7.2015).
O regime previsto na Lei 12.462/2011 inovou também no que diz respeito à aquisição de bens pela Administração, trazendo regras peculiares, como a possibilidade de indicação de marca, exigência de amostras dos bens e de declaração do fabricante no sentido de ser solidariamente responsável pela execução do contrato, quando o licitante for revendedor ou distribuidor (art. 7º, I).
A lei trouxe expressa permissão de indicação de marca no instrumento convocatório, desde que justificadamente e nos estritos casos em que a marca seja necessária à padronização do objeto ou que a marca ou o modelo sejam os únicos capazes de atender às necessidades da entidade licitante, desde que comercializados por mais de um fornecedor, ou, ainda, quando a seleção da marca servir apenas para melhor identificação do objeto ou do padrão de qualidade requerido, permitida a oferta de produto similar ou de melhor qualidade.
A doutrina majoritária e o Tribunal de Contas da União têm entendido que a possibilidade de indicação de marcas na lei do RDC não se trata de contrariedade à Lei 8.666/93, mas de especificação da ressalva prevista no §5º do art. 7º desta lei, ainda que o art. 7º da Lei 12.462 fale que é possível a indicação de marca “no caso de licitação para aquisição de bens”, hipótese em que, a princípio, é vedada a indicação de marca, conforme dispõe a Lei 8.666/93.
No caso da exigência de amostras, o TCU (Acórdão nº 1.237/2002, DOU de 27.9.2002 e Acórdão nº 491/2005, DOU de 9.5.2005) tem entendido ser possível estabelecer tal obrigação apenas ao licitante autor da melhor proposta, tendo em vista uma exigência genérica, aplicável a todos os licitantes, seria pouco razoável, pois “imporia ônus que, a depender do objeto, seria excessivo, a todos os licitantes, encarecendo o custo de participação na licitação e desestimulando a presença de potenciais licitantes”, o que traria prejuízos à concorrência.
A lei do RDC permite à Administração “exigir amostra do bem no procedimento de pré-qualificação, na fase de julgamento das propostas ou de lances, desde que justificada a necessidade da sua apresentação” (art. 7º, II). No caso de exigência de amostra no procedimento de pré-qualificação, de fato, é da própria essência do procedimento a apresentação da amostra, de modo que a exigência, por si só, não representaria qualquer afronta à competitividade. Tal afronta decorria de eventual licitação restrita à participação de pré-qualificados.
Na hipótese em que a Administração solicita, motivadamente, carta de solidariedade emitida pelo fabricante no caso de o licitante ser revendedor ou distribuidor (art. 7º, IV, da Lei 12.462), o Tribunal de Contas da União (Acórdão nº 539/2007, Ata nº 13/2007) tem considerado tal exigência inadmissível como requisito para habilitação do licitante ou para classificação da proposta.
A exigência de carta de solidariedade, segundo a Corte de Contas, será possível apenas como critério de pontuação extra. O mesmo ocorre com a possibilidade de a Administração exigir do licitante certificado da qualidade do produto ou do processo de fabricação por instituição oficial ou entidade credenciada, o qual será admissível apenas para fins de pontuação, pena de restringir indevida e desproporcionalmente o caráter competitivo do certame.
Por fim, o regime diferenciado de contratações consagrou, ainda, a possibilidade de se adotar a remuneração variável, vinculada ao desempenho do contratado, de modo semelhante ao que prevê a Lei 11.079/2004, o que gera ganhos muitos positivos em termos de eficiência na execução do objeto contratual.
4. CONCLUSÃO
Diante do exposto, inegável que o regime diferenciado de contratações públicas, previsto na Lei 12.462/2011 representou um grande avanço no tema licitações e contratos, uma vez que consagrou valores absolutamente consentâneos àqueles sobrelevados pela Administração Pública nos dias de hoje.
A Lei 8.666/93, embora ainda seja o principal diploma normativo, vez que consagra normas gerais de licitação, peca ao prever excessos de formalismos e burocracias que tornam moroso e menos eficiente as contratações públicas realizadas sob esse regime.
Nesse sentido, tendo em vista as relevantes novidades trazidas pela Lei 12.462/2011, que veio a alterar pontos críticos da Lei 8.666/93 e absorver as benesses dos diplomas anteriores, bem como entendimentos jurisprudenciais consagrados pelo Tribunal de Contas da União, o regime diferenciado de contratação tem sido bastante enaltecido, sendo certo que a tendência é que ele seja estendido a outros âmbitos além daqueles atualmente previstos na Lei 12.462/2011.
REFERÊNCIAS:
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2013.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 25 ed., São Paulo: Atlas, 2012.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 7. ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. rev., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014.
CHARLES, Ronny e MARRY, Michelle, Regime Diferenciado de Contratações. Salvador: JusPodiVm, 2014.
[1] Embora Marçal Justen Filho reconheça os benefícios da pré-qualificação permanente, defende que ela deve ser admissível apenas em concorrências em que se exija uma qualificação técnica especial e superior àquela qualificação usualmente exigida em atividades normais, devendo a sua adoção justificar-se em face das peculiaridades do objeto licitado. Isso porque, embora consideravelmente benéfica em boa parte, a pré-qualificação permanente pode acabar por facilitar a prática de atos ilícitos, visto que a Administração pode promover certames restritos aos licitantes pré-qualificados e que o cadastro de pré-qualificação dos licitantes, por ser público e acessível a todos, permitiria aos licitantes de má-fé conhecer de antemão todos os possíveis concorrentes na disputa, o que tornaria mais fácil a formação de conluios e cartéis, frustrando-se o caráter competitivo do certame.
[2] Segundo o Tribunal de Contas da União, o anteprojeto deve conter elementos que confiram à licitação lastro mínimo comparativo para a definição da proposta mais vantajosa e que ofereçam informações suficientes aos licitantes para o dimensionamento de suas soluções e o cálculo de suas propostas, sob pena de caracterizar descumprimento do art. 9º, § 2º, inciso I, da Lei 12.462/13 (acórdão 2980/2015-Plenário, TC 034.015/2012-4, relatora Ministra Ana Arraes, 18.11.2015).
Advogada. Pós-graduada em Direito Administrativo, pela Universidade Cândido Mendes (2014 - 2015). Pós-graduada em Direito Constitucional, pela Universidade Cândido Mendes (2013 - 2014). Aprovada no concurso de Advogado-Geral da União (2015).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SACRAMENTO, Júlia Thiebaut. O regime diferenciado de contratações públicas à luz da doutrina e da jurisprudência do Tribunal de Contas da União Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 ago 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47248/o-regime-diferenciado-de-contratacoes-publicas-a-luz-da-doutrina-e-da-jurisprudencia-do-tribunal-de-contas-da-uniao. Acesso em: 23 dez 2024.
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