RESUMO: O presente artigo analisa, a partir da evolução da legislação e do entendimento do Superior Tribunal de Justiça, o prazo prescricional para a pretensão de desapropriação indireta no ordenamento jurídico pátrio, valendo-se também das lições da doutrina no tocante à temática.
Palavras-chave: Desapropriação indireta; prescrição; Superior Tribunal de Justiça.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objeto de análise o prazo prescricional da pretensão de desapropriação indireta, tendo em vista as mudanças da legislação civil (Código Civil de 1916 e Código Civil de 2002), as quais irradiaram seus efeitos na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
A desapropriação indireta pode ser definida como o apossamento pelo Poder Público de um bem particular sem a observância do devido processo de desapropriação, qual seja, aquele preceituado no art. 5º, inciso XXIV, da Constituição Federal, que, no caso de imóvel urbano, dá-se com a justa e prévia indenização em dinheiro.
Conforme sintetiza OLIVEIRA, “a desapropriação indireta é a desapropriação que não observa o devido processo legal” (2014, p. 577).
Não há na legislação que rege o instituto da desapropriação disciplina específica em vigor acerca do prazo prescricional para a pretensão de desapropriação indireta.
O Superior Tribunal de Justiça adotou por algum tempo, baseado na natureza real da ação de desapropriação indireta, o entendimento de que tal prazo seja de 20 anos, em analogia ao prazo para a usucapião extraordinária previsto no Código Civil de 1916.
Contudo, sob a égide do Código Civil de 2002, há recente entendimento da Corte da Cidadania no sentido de que o prazo para essas pretensões seja agora de 10 anos.
Assim, analisar-se-á, à luz da legislação e da doutrina, os fundamentos do novo precedente do Superior Tribunal de Justiça.
PRAZO PRESCRICIONAL DA PRETENSÃO DE DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA
Em nosso ordenamento jurídico, a desapropriação se destaca como uma das mais importantes formas de intervenção do Estado na propriedade.
Conforme lição doutrinária, a desapropriação “é o procedimento de direito público pelo qual o Poder Público transfere para si a propriedade de terceiro, por razões de utilidade ou de interesse social, normalmente mediante o pagamento de indenização” (CARVALHO FILHO, 2014, p. 830).
A Administração Pública, à luz do que preceitua o art. 37, caput, da Constituição Federal, deve respeitar em sua atuação, dentre outros, o princípio da legalidade.
Se, de um lado, a Constituição assegura o direito fundamental à propriedade (art. 5º, inciso XXII: “é assegurado o direito de propriedade”), por outro lado afasta o dogma de sua intangibilidade, ao condicioná-lo ao atendimento da função social (art. 5º, inciso XXIII: “a propriedade atenderá a sua função social”).
Dessa forma, premida pelo interesse público instrumentalizado na declaração de utilidade pública ou interesse social, a Administração pode proceder à desapropriação da propriedade.
Com efeito, MELLO aduz que “o fundamento político da desapropriação é a supremacia do interesse coletivo sobre o individual, quando incompatíveis” (2008, p. 857).
Não obstante o direito de desapropriar seja conferido ao ente público, referido direito só pode ser exercido com a observância do devido processo legal, seja na esfera administrativa, na hipótese de acordo administrativo, seja na esfera judicial.
Há que ser mencionada, neste ponto, a garantia insculpida no art. 5º, inciso LIV, no qual está expresso que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Assim, “a autoexecutoriedade fica, aqui, mitigada, e cede espaço ao devido processo legal prévio, necessário para resguardar a garantia de estabilidade do patrimônio particular, representada pela regra geral da indenizabilidade justa e prévia” (MOREIRA e GUIMARÃES, 2008, p. 597).
Entretanto, no plano fático se verifica que, não raras vezes, o Poder Público se apossa de imóvel particular sem a observância do devido processo de desapropriação, o que se denomina, em doutrina e jurisprudência, de desapropriação indireta.
Por se tratar, na verdade, de típico esbulho praticado pelo Poder Público, tal matéria não fora abordada pelas legislações, em especial o Código Civil de 1916, e o que se encontra em vigor, de 2002, além do próprio Decreto-lei nº 3.365/1941, regramento geral sobre desapropriações, que disciplina, em específico, a desapropriação por utilidade pública.
Dessa forma, a chamada “ação de desapropriação indireta” surge como instrumento jurídico adequado para que, mediante decisão judicial, aquele que teve seu bem esbulhado pela Administração seja indenizado pela perda da propriedade.
Em que pese a limitação do objeto da ação, visto que nela só se pode reclamar indenização, a ação de desapropriação indireta é classificada pela doutrina como de natureza real. Isso se deve ao fato de que tal demanda tem como causa de pedir remota a perda de propriedade, bem como de que a sentença que venha a ser proferida produzirá todos os efeitos relativos à transmissão da propriedade.
Como se disse, ante a ausência em vigor de tratamento legislativo da matéria[1], há muito se questiona acerca do prazo prescricional para ação de desapropriação indireta. A solução aplicada pela doutrina[2] e pela jurisprudência foi, em um primeiro momento, a aplicação analógica do prazo previsto para a usucapião extraordinária no Código Civil de 1916.
O art. 698 do revogado diploma civilista, na redação dada pela Lei nº 2.437/1955, assim previa:
Art. 698. A posse incontestada e contínua de uma servidão por dez ou quinze anos, nos têrmos do artigo 551, autoriza o possuidor a transcrevê-la em seu nome no registro de imóveis, servindo-lhe de título a sentença que julgar consumado o usucapião.
Parágrafo único. Se o possuidor não tiver título, o prazo do usucapião será de vinte anos.
Pode-se observar a lógica da aplicação analógica desta disposição. A usucapião ordinária, como se sabe, é aquele em que há a aquisição do domínio em razão da posse mansa, pacífica e com ânimo de dono, com base em justo título, por determinado período. Lado outro, a denominada usucapião extraordinária se verifica quando a posse, igualmente mansa e pacífica, não decorre de justo título, sendo, em razão disso, maior o prazo previsto pela legislação para que ocorra a usucapião, também denominada de prescrição aquisitiva.
Nesta esteira, o Superior Tribunal de Justiça editou, na década de 1990, o enunciado sumular 119, com a seguinte redação: “A ação de desapropriação indireta prescreve em vinte anos”.
Posteriormente, entrou em vigor o Código Civil de 2002, que, entre diversas outras modificações, alterou o prazo prescricional da ação de usucapião, que como referido, servia como parâmetro para definição do prazo para a ação de desapropriação indireta.
Assim, cumpre transcrever o art. 1.238 deste diploma:
Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.
Entretanto, em que pese ter havido a redução do prazo para a declaração da prescrição aquisitiva por usucapião, não houve a imediata alteração pelo Superior Tribunal de Justiça de sua jurisprudência.
Com efeito, mesmo sendo o prazo da usucapião extraordinária o paradigma para o estabelecimento de prazo para se pleitear indenização por desapropriação indireta, continuou a ser observado no âmbito da Corte, e de diversos outros tribunais do país, o prazo de 20 anos para a propositura de referida demanda.
Contudo, buscando adequar sua jurisprudência à luz da nova legislação civil, em 2013, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça proferiu emblemático julgado, ementado nos seguintes termos:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. PRAZO PRESCRICIONAL. AÇÃO DE NATUREZA REAL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO. SÚMULA 119/STJ. PRESCRIÇÃO VINTENÁRIA. CÓDIGO CIVIL DE 2002. ART. 1.238, PARÁGRAFO ÚNICO. PRESCRIÇÃO DECENAL. REDUÇÃO DO PRAZO. ART. 2.028 DO CC/02. REGRA DE TRANSIÇÃO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. ART. 27, §§ 1º E 3º, DO DL 3.365/1941.
1. A ação de desapropriação indireta possui natureza real e, enquanto não transcorrido o prazo para aquisição da propriedade por usucapião, ante a impossibilidade de reivindicar a coisa, subsiste a pretensão indenizatória em relação ao preço correspondente ao bem objeto do apossamento administrativo.
2. Com fundamento no art. 550 do Código Civil de 1916, o STJ firmou a orientação de que “a ação de desapropriação indireta prescreve em 20 anos” (Súmula 119/STJ).
3. O Código Civil de 2002 reduziu o prazo do usucapião extraordinário para 10 anos (art. 1.238, parágrafo único), na hipótese de realização de obras ou serviços de caráter produtivo no imóvel, devendo-se, a partir de então, observadas as regras de transição previstas no Codex (art. 2.028), adotá-lo nas expropriatórias indiretas.
4. Especificamente no caso dos autos, considerando que o lustro prescricional foi interrompido em 13.5.1994, com a publicação do Decreto expropriatório, e que não decorreu mais da metade do prazo vintenário previsto no código revogado, consoante a disposição do art. 2.028 do CC/02, incide o prazo decenal a partir da entrada em vigor do novel Código Civil (11.1.2003).
5. Assim, levando-se em conta que a ação foi proposta em dezembro de 2008, antes do transcurso dos 10 (dez) anos da vigência do atual Código, não se configurou a prescrição.
6. Os limites percentuais estabelecidos no art. 27, §§ 1º e 3º, do DL 3.365/1941, relativos aos honorários advocatícios, aplicam-se às desapropriações indiretas. Precedentes do STJ.
7. Verba honorária minorada para 5% do valor da condenação.
8. Recurso Especial parcialmente provido, apenas para redução dos honorários advocatícios.
(REsp 1300442/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/06/2013, DJe 26/06/2013)
E, mais recentemente, em 2015, o mesmo entendimento foi corroborado pela aludida turma da Corte da Cidadania, conforme ementa abaixo:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. PRESCRIÇÃO. DIREITO REAL. PRESCRIÇÃO VINTENÁRIA. SÚMULA 119/STJ. CÓDIGO CIVIL DE 2002. REDUÇÃO DO PRAZO. ART. 1238. PRECEDENTES.
1. Com fundamento no art. 550 do Código Civil de 1916, o STJ firmou a orientação de que “a ação de desapropriação indireta prescreve em 20 anos” (Súmula 119/STJ).
2. O Código Civil de 2002 reduziu o prazo do usucapião extraordinário (art. 1.238), devendo-se, a partir de então, observadas as regras de transição previstas no Codex (art. 2.028), adotá-lo nas expropriatórias indiretas. Precedentes.
3. Agravo Regimental não provido.
(AgRg no AREsp 650.160/ES, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/05/2015, DJe 21/05/2015)
Constata-se, assim, que a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça entende que, sobrevindo o Código Civil de 2002, o prazo prescricional para as ações de desapropriação indireta passou a ser de 10 anos.
Mesmo sendo de 15 anos o prazo geral da usucapião extraordinária, o parágrafo único do dispositivo o reduz para 10 anos, quando no imóvel tenham sido realizadas obras ou serviços de caráter produtivo.
Dessa forma, o novo entendimento do Superior Tribunal de Justiça leva em consideração que o bem desapropriado indiretamente pela Administração tenha servido à consecução de obras ou serviços públicos, enquadrando-se, por analogia, ao preceito acima referido.
Ainda que se repute adequado e coerente, do ponto de vista técnico-jurídico, o raciocínio trilhado pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, há que dizer, todavia, que a jurisprudência não se encontra pacificada no âmbito da Corte.
Verifica-se em recente julgado[3] da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça[4] a aplicação do entendimento primeiro, qual seja, o de ser de 20 anos o prazo prescricional para reclamar a indenização pela desapropriação indireta, pelo que se espera que o Tribunal em momento breve venha a uniformizar sua jurisprudência, especialmente devido à sua função de pacificar a aplicação do direito infraconstitucional no país, evitando-se com isso a proliferação de decisões baseadas em entendimentos divergentes.
CONCLUSÃO
Ante o exposto, conclui-se que apesar de a Constituição Federal e o Decreto-Lei 3.365/1941 estabelecerem como regra que a desapropriação se dê mediante indenização prévia e justa, por vezes se verifica faticamente o apossamento de bem particular pela Administração, o que se denomina em doutrina e jurisprudência como desapropriação indireta.
Não obstante, aquele que teve o bem esbulhado pelo Poder Público pode socorrer-se de demanda judicial para ver-se indenizado pecuniariamente pelo bem a que fora dada destinação pública sem o devido processo legal.
Verifica-se, ainda, que não há em vigor disciplina legal acerca da desapropriação indireta, pelo que, com base na natureza real da ação, conforme a doutrina, há muito aplica-se analogicamente o prazo da prescrição aquisitiva da usucapião extraordinária como prazo prescricional para a pretensão de ser o expropriado indenizado pela perda do bem.
Em um primeiro momento, com arrimo no art. 698 do Código Civil de 1916, bem como do enunciado sumular 119 do Superior Tribunal de Justiça, fixou-se em 20 anos o prazo para o ajuizamento de ação em que se discuta a desapropriação indireta.
Entretanto, com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, o prazo para a usucapião extraordinária foi reduzido para 10 anos, quando se verificarem melhoramentos decorrentes de obras ou serviços de caráter produtivo.
Mesmo com o novo regramento, não houve a imediata mudança de entendimento do Superior Tribunal de Justiça. Apenas no ano de 2013 a Segunda Turma da Corte passou a considerar que, com a vigência da nova legislação civil, o prazo para a pretensão de indenização pela desapropriação indireta tornou-se de 10 anos. Contudo, verifica-se que ainda subsiste na Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça a aplicação do prazo de 20 anos, controvérsia essa que deverá ser dirimida pelo Tribunal, em favor da segurança jurídica e de sua função precípua de uniformizar a aplicação das regras de direito infraconstitucional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 27ª ed. São Paulo: Atlas, 2014.
HARADA, Kiyoshi. Desapropriação: doutrina e prática. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2014.
MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
MOREIRA, Egon Bockmann; GUIMARÃES, Bernardo Strobel. A desapropriação no Estado Democrático de Direito. Em: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (coord.). Direito administrativo e seus novos paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 2ª ed. São Paulo: Método, 2014.
[1] Por meio da Medida Provisória 2.027-40/2000, incluiu-se o parágrafo único no art. 10, do Decreto-lei 3.365/1941, prevendo que se extinguia em cinco anos o direito de propor ação que visasse a indenização por restrições decorrentes de atos do Poder Público. Entretanto, tal dispositivo foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 2.260 MC/DF, ao argumento de que haveria ofensa à “garantia constitucional da justa e prévia indenização em dinheiro”.
[2] Vide HARADA, 2014, p. 282.
[3] REsp 930.589/GO, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 12/04/2016, DJe 19/04/2016.
[4] Conforme o Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, compete à Primeira e Segunda Turmas julgar as matérias relativas à Direito Público.
Procurador Autárquico do Município de Belo Horizonte/MG. Especialista em Direito Processual pela PUC/MG. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Viçosa.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CIRQUEIRA, Filipe de Oliveira. O prazo prescricional da pretensão de desapropriação indireta à luz da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 ago 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47251/o-prazo-prescricional-da-pretensao-de-desapropriacao-indireta-a-luz-da-jurisprudencia-do-superior-tribunal-de-justica. Acesso em: 26 dez 2024.
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
Por: BRUNO SERAFIM DE SOUZA
Por: Fábio Gouveia Carneiro
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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