RESUMO: O modelo de repartição de receitas tributárias foi pensado no intuito de mitigar a desproporção de recursos atribuídos aos entes políticos, possibilitando aos Estados e aos Municípios ter acesso a maiores fontes de recursos financeiros para a concretização de suas finalidades institucionais. De fato, tal sistemática possui uma finalidade nobre. No tocante ao ICMS, tributo de competências dos Estados-membros, há repartição do produto de sua arrecadação com os Municípios. Tão importante é o sistema de repartição de receitas sob a ótica da própria Constituição, que a mesma previu a possibilidade de intervenção federal nos estados que não cumprem com a obrigação de repassar os recursos referentes ao ICMS.
Palavras-chave: Repartição de receitas. Competência tributária. ICMS. Municípios.
1 INTRODUÇÃO
O Estado federal baseia-se no princípio constitucional da pluralidade de centros de poder autônomos coordenados entre eles, de modo que ao Governo federal e aos Estados federais são atribuídas competências próprias, com âmbito de abrangência próprio (BOBBIO, p. 481).
Consequentemente, cada parte do território e cada indivíduo estão submetidos a dois centros de poder, ao Governo federal e ao Estado federal respectivo, sem qualquer prejuízo ao princípio da unicidade de decisão sobre cada problema (BOBBIO, p. 481).
Tal modelo de Estado contrapõe ao Estado centralizado[1], no qual não existe nenhum centro autônomo de poder fora do Governo central, pelo contrário, este figura como o único centro de poder (BOBBIO, p. 482).
Foi por meio do Decreto nº 01, em novembro de 1889, que se proclamou entre nós a República Federativa, transformando as províncias em Estados Federados. Logo em seguida, o modelo federal foi consagrado como princípio fundamental na Constituição de 1981, o que foi reproduzido em todas as Constituições seguintes (JÚNIOR, 2009, p. 504).
A federação brasileira foi inspirada no modelo norte-americano, servindo de seu paradigma, embora aquela tenha se formado de modo contrário a este (JÚNIOR, 2009, p. 504).
Todas as Constituições que sucederam a de 1981, sem exceção, adotaram o modelo de Estado federado (JÚNIOR, 2009, p. 504).
Assim, não diferindo das anteriores, a Constituição Federal de 1988 adotou o sistema federativo como Forma de Estado, de modo que estabeleceu a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios como entes políticos autônomos entre si e todos integrantes da República Federativa do Brasil, a qual detém a soberania.
Então, em razão do Brasil ser um Estado Federal, a União, os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios estão, juridicamente, no mesmo plano hierárquico, inexistindo subordinação entre eles (JÚNIOR, 2009, p. 505).
Nessa perspectiva, em razão da autonomia política, permitiu-se a cada ente político uma esfera de liberdade para definição de seu perfil político e de governabilidade, traduzida nas capacidades de auto-organização, autogoverno, autoadministração e auto-legislação (JÚNIOR, 2009, p. 505).
É óbvio que a autonomia política não se sustenta sem uma independência financeira mínima, que permitirá ao respectivo ente político uma liberdade de atuação e instrumentalização dos seus objetivos.
Com efeito, deve haver a devida correspondência entre a distribuição de competências e as receitas públicas, sob pena de ineficiência ou ineficácia da autonomia política, ou mesmo da dependência financeira de entre os entes (DALLARI, 1986, p. 20 apud CORRALO, 2015, p. 263).
Por isso, pode-se afirmar que o federalismo fiscal corresponde à manifestação financeira do federalismo político, possuindo a finalidade de ordenar as finanças públicas, com o fito de concretizar o próprio federalismo político (VIEIRA, p. 7539).
Para que seja garantida essa independência e a real garantia da autonomia dos entes, não restam dúvidas o quão fundamental é a repartição de receitas tributárias, visto que a Constituição Federal estipulou uma maior centralização das exações no âmbito do controle da União.
Aliás, dentro da própria noção de federalismo cooperativo está inserido a repartição de arrecadação tributária (VIEIRA, p. 7527).
Nessa perspectiva, aduz-se que (CORRALO, 2015, p. 268):
O federalismo fiscal brasileiro, amparado na adequada repartição de receitas a fim de possibilitar a execução de competências, encontra-se altamente comprometido em razão da elevada concentração de recursos nos cofres da União, a restar parcos recursos aos Estados e, mais enfaticamente, às municipalidades.
Atento a essa premissa, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu um modelo de Estado que mitigasse as diferenças arrecadatórias dos entes políticos, com o fito de pô-los no mesmo patamar, seja distribuindo a competência tributária entre eles seja prevendo o partilhamento do produto das receitas.
Nesse jaez, Machado (2012, p. 275) assevera que “Com a Constituição Federal de 1988 a situação dos Estados-membros e Municípios restou um pouco melhorada, sobretudo no que diz respeito à distribuição do produto da arrecadação de impostos federais”.
No mesmo sentido, podemos citar, especialmente quanto aos municípios, (CORRALO, 2015, p. 267):
Assim, a autonomia financeira dos municípios repousa fortemente nas receitas oriundas do seu poder tributário, como também nas transferências constitucionais obrigatórias, já que estas traduzem uma ampla discricionariedade para a sua utilização, o que é definido nas leis orçamentárias. As transferências voluntárias, por sua vez, ou estão vinculadas a programas e projetos predefinidos pela União ou Estado, o que obriga os municípios a seguirem estas definições, ou são o resultado de articulações políticas, a remeter à famigerada dependência política.
Portanto, não basta somente reconhecer formalmente a existência de autonomia entre os entes políticos, é de suma importância garantir que os mesmos terão os meios adequados, notadamente os financeiros, para o desempenho livre e independente de suas atividades.
2 REPARTIÇÃO OBRIGATÓRIA DE RECEITAS TRIBUTÁRIAS NA ORDEM CONSTITUCIONAL DE 1988
Sabe-se que a Constituição de 1988 desenhou o conjunto de competências tributárias, estruturando a repartição dessas competências em relação a cada membro da federação.
Nesse sentido, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir impostos; taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição; e contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas[2].
A União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios: a) para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência[3]; ou b) no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional, observado nesse último caso o princípio da anterioridade[4];
A União também possui competência exclusiva para instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas[5] e contribuições sociais específicas para a seguridade social[6].
Já os Municípios e o Distrito federal poderão instituir contribuição, na forma de suas respectivas leis, para custeio do serviço de iluminação pública[7].
No mais, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios coube a instituição de contribuição, cobrada de seus servidores públicos, para o custeio do regime próprio de previdência respectivo, em benefício de tais agentes públicos[8].
Esse é um panorama geral.
No tocante aos impostos, à União coube instituir tais exações sobre a importação de produtos estrangeiros; a exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados; a renda e proventos de qualquer natureza; os produtos industrializados; as operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários; a propriedade territorial rural; e as grandes fortunas[9].
Ainda, podemos citar a competência residual da União para a instituição de impostos que não tenham sido estipulados na própria Constituição, desde que observado os parâmetros nela fixados, e a competência do mesmo ente para instituição do imposto extraordinário de guerra[10].
Aos Estados e ao Distrito Federal coube a instituição de impostos sobre a transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos; as operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e prestação de serviços de comunicação, objeto de estudo do presente trabalho; e a propriedade de veículos automotores[11].
E, por fim, aos Municípios coube a instituição de impostos sobre a propriedade predial e territorial urbana; a transmissão entre vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre bens imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição; e serviços de qualquer natureza[12].
Nesse sentido, a Constituição de 1988 atribuiu à União a competência tributária sobre oito impostos, além da competência para instiuir os impostos residuais, os empréstimos compulsórios e as contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais e econômicas.
Por outro lado, aos Estados foram atribuídos a competência de instituir somente três impostos, além da competência para instituir a contribuição para o custeio do regime próprio de previdência dos seus servidores públicos.
Já aos Municípios, da mesma forma, coube tão somente a competência de instituir três impostos, assim como a competência para instituir a contribuição de custeio do serviço de iluminação pública e de custeio do regime próprio de previdência dos seus servidores públicos.
Vale lembrar que o Distrito Federal acumula as competências tributárias cabíveis aos Estados e ao Município, de modo que cabe ao mesmo instituir seis espécies de impostos, bem como a contribuição para custeio da iluminação pública e para o custeio do regime próprio de previdência dos seus servidores públicos[13].
Assim, é perceptível a desproporção de competências tributárias pertencentes aos membros da federação, posto que a União possui a maioria delas. Tal situação confere ao citado ente federado, por óbvio, uma larga vantagem financeira em relação aos demais.
A exposição supra vem ao encontro do que se aduziu na seção antecedente, posto que, de fato, a Constituição de 1988 concentrou a competência tributária no âmbito da União, de modo que uma maior autonomia financeira foi dada a tal ente, em detrimento da autonomia conferida aos demais entes da federação.
Como forma de atenuar esse quadro de assimetria, a mesma Constituição de 1988 estabeleceu o sistema de repartição obrigatória de receitas tributárias, estipulando que a receita proveniente de determinados tributos fossem repartidos entre o ente federado arrecadador e os demais entes.
Entretanto, vale apontar que a repartição obrigatória de receitas tributárias não foi inaugurado na Constituição de 1988, pois já na Constitiuição de 1934 começou-se a desenvolver-se tal sistemática (ANDRADE, 2010, p. 4).
Embora a Constituição de 1937 tenha representado um retrocesso no plano da discriminação do produto da arrecadação, posto que houve supressão da destinação de parte da receita tributária federal ao Nordeste, a Constituição de 1946 ampliou a técnica de cooperação financeira que aquela procurou racionar (ANDRADE, 2010, p. 5).
A Constituição de 1967, assim como a emenca constitucional nº 01 de 1969, estabeleceu uma concentração de tributos na competência da União, porém, também traziam previsão de um repartição de receitas, embora o sistema de transferências intergovernamentais garantisse somente o mínimo de receita para unidades cuja capacidade fosse precária (ANDRADE, 2010, p. 6).
No tocante à atual ordem constitucional, dura crítica a sistemática de repartição de receitas é realizada por Harada (2011, p. 48), aduzindo que, embora possa parecer que o citado mecanismo de participação no produto da arrecadação de imposto alheio favoreça as entidades políticas, na medida em que as livra dos custos de implantação de fiscalização e de arrecadação, na verdade, fica tolhida a autonomia financeira dessas entidades, tendo em vista as inúmeras de entraves burocráticos impostos ao funcionamento de tal sistema.
Assevera Harada (2011, p. 48) que a melhor forma de garantir a independência político-administrativa às entidades componentes da Federação é conferir-lhes a autonomia financeira, por meio de tributos próprios.
Harada (2011, p. 51-52), ainda, afirma que, na Constituição de 1988, há três modalidades diferentes de repartição de receitas tributárias, nos seguintes moldes: a) participação direta dos Estados, Distrito Federal e Municípios no produto da arrecadação de imposto de competência impositiva da União, prevista no art. 157, I e no art. 158, I, ambos da Constituição de 1988; b) participação no produto de impostos de receita partilhada, prevista nos arts. 157, II, 158, II, III, IV e 159, III, da Constituição de 1988; e c) participação em fundos, prevista no art. 159, I, da Constituição.
A repartição de receitas do ICMS entre Estado e Municípios nele localizados está inserido na segunda modalidade, sendo somente essa a modalidade a ser explorada pelo presente trabalho, tendo em vista o corte metodológico realizado.
2.1 Competência tributária sobre o ICMS
Como é sabido, o imposto sobre circulação de mercadorias e prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicações (ICMS) é tributo de competência dos Estados-membros e do Distrito Federal, conforme dispõe o art. 155, II, da Constituição Federal.
Isso quer dizer que os Estados-membros e o Distrito Federal detêm a competência tributária do citado imposto.
A competência tributária, nas palavras de Machado (2012, p. 276), consiste no poder atribuído ao ente político para instituir e majorar tributos, compreendendo a competência legislativa plena para dispor acerca do mesmo, desde que observadas as limitações contidas na Constituição Federal.
Com efeito, não obstante seja de competência dos referidos entes da federação, a própria Constituição, com o fim de promover o equilíbrio entre os entes federados, estabeleceu um sistema de repartição de receitas, de modo a distribuir os recursos arrecadados via impostos.
Contudo, cumpre asseverar que a distribuição de receitas não afeta a competência tributária, de modo que o teor dos arts. 157, 158 e 159 da Constituição Federal não têm o condão de delegar a competência originariamente concedida a um ente federado a outro.
Isso porque alguns atributos são ínsitos aos instituto da competência tributária, tal como a característica da indelegabilidade. Segundo esta, a pessoa jurídica à qual tenha a Constituição atribuído competência para instituir certo tributo não pode transferir essa competência (MACHADO, 2012, p. 276).
A modificação de competência tributária por meio de norma infraconstitucional implicaria em alteração constitucional por via inidônea para tanto, pois somente emenda constitucional poderia realizá-la.
Aduz Carrazza (2008, p. 668) que o direito à participação no produto da arrecadação de outro ente somente surge a partir da instituição do tributo partilhado, de modo que, antes da instituição, somente subsiste a expectativa de direito à participação. Então, somente após a criação do tributo partilhável e da ocorrência do fato imponível que tal expectativa de direito se transforma em efetivo direito.
Nessa toada, caminham as lições de Hugo de Brito Machado, citando, inclusive, como exemplo o imposto em debate (MACHADO, 2012, pág. 277):
A distribuição da receita não afeta a competência. Os tributos cuja receita seja distribuída, no todo ou em parte, a outras pessoas jurídicas de direito público não deixam, por isto, de pertencer à competência legislativa daquela que a tenham sido atribuídos (CTN, art. 6º, parágrafo único). O imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação/ICMS, por exemplo, é da competência dos Estados (CF de 1988, art. 155, II, redação da Emenda Constitucional 3/1993), sendo destes, portanto, a competência para legislar a respeito, embora 25% do produto da arrecadação desse tributo sejam destinados aos Municípios (CF de 1988, art. 158, IV).
Embora não seja possível a delegação da competência tributária, é razoável a admitir a delegação a outra pessoa jurídica de direito público das funções de arrecadar ou fiscalizar tributos, ou de executar leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária.
Aliás, essa possibilidade é expressamente autorizada pelo art. 7º do Código Tributário Nacional[14].
As funções de arrecadação e fiscalização de tributos e de execução de leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária integram o instituto da capacidade tributária, sendo esta, portanto, delegável (MACHADO, 2012, p. 276).
Por outro lado, também podemos mencionar o atributo da incaducabilidade da competência tributária, segundo a qual o seu não exercício, ainda que prolongado no tempo, não tem o condão de impedir que o ente federado venha a criar os tributos que lhe foram constitucionalmente deferidos (CARRAZZA, 2008, p. 651).
Em outra palavras, o não exercício da competência tributária, mesmo que durante longo período de tempo, não acarreta a sua perda.
Carraza (2008, p. 652) expõe os seguintes motivos que conferem fundamento ao citado atributo:
Assim, é por duas razões que supomos inafastáveis. A primeira: a Constituição, ao conferir ao Poder Legislativo a competência para legislar, não fez qualquer menção no sentido de que esta faculdade deveria ser utilizada até um dado marco temporal, sob pena de caducidade. A segunda: o ato de legislar envolve, sempre e necessariamente, uma alteração da ordem jurídica em vigor, ou seja, uma inovação normativa. É próprio da lei prever ou disciplinar situações que ainda não foram alvo de leis anteriores. Afinal, a lei sempre inova inauguralmente a ordem jurídica, construindo o direito positivo. O Poder Legislativo, enquanto expede leis, exercita uma competência que a Constituição lhe outorgou, e que, até aquele momento, não havia exercitado. Se legislar é inovar, é exercitar competência ainda não exercitada, jamais se poderá, diante do que reza nossa Constituição, falar em prazo para que as leis sejam dadas à publicidade. Do contrário, em 5, 10 ou 20 anos o Poder Legislativo ver-se-ia impedido de fazer uso de uma competência que a Constituição, com tanta liberalidade, lhe concedeu.
Adicione-se aos argumentos acima aludidos o fato da competência tributária ter sido atribuído aos entes políticos pela Constituição, de modo que somente pela vontade do constituinte seria possível subtraí-la (CARRAZZA, 2008, p. 653).
Por isso, em razão da incadubilidade, não é deferido a um membro da federação instituir tributo no lugar de outro membro, este sim o competente para tanto, nem mesmo sendo tal exação sujeita à repartição constitucional obrigatória (CARRAZZA, 2008, p. 668).
Nesse jaez, também pode-se citar (BALEEIRO, 1970, p. 76):
Dentro do ponto de vista da técnica jurídico-constitucional, parece supérfluo estatuir-se que o não exercício de competência tributária pela pessoa que é dela titular não o defere a pessoa de direito público interno diversa. A competência fiscal não é res nullius de que outra pessoa de direito público se poderá aproveitar pela inércia do titular dela.
Acrescente-se que a inalterabilidade consiste também em característica típica da competência tributária. Tal atributo preconiza a impossibilidade do ente federado competente ampliar a sua competência, redefinindo as suas dimensões (CARRAZZA, 2008, p. 654).
“A competência (tributária) é, por isso, matéria de direito escrito e, como tal, inalterável. É ainda Forsthoff quem o afirma, ao asseverar que o titular de uma competência não pode transferir ou alterar poderes ou faculdades que se integram dentro da competência” (FALCÃO, 1965, p. 126-127, apud, CARRAZZA, 2008, p. 655).
Eventual ampliação ou restrição da competência tributária somente seria possível somente via emenda constitucional, posto que é na Constituição que ela encontra o seu nascedouro.
Ainda, a competência tributária é irrenunciável, de forma que o ente federado que a possui não pode renunciá-la, ainda que o faça por meio de lei, tendo em vista que trata de matéria de direito público constitucional, e, portanto, indisponível (CARRAZZA, 2008, p. 656).
Por último, a competência tributária é marcada pela facultatividade, segundo a qual as pessoas políticas são livres para dela se utilizarem ou não, não obstante não possam delegá-la ou renunciá-la (CARRAZZA, 2008, p. 657).
Inclusive, o próprio fato da competência tributária não estar submetida a prazo evidencia a facultatividade que lhe é inerente, sendo possível seu exercício no momento que aprouver (CARRAZZA, 2008, p. 657).
Nesse sentido (CARRAZZA, 2008, p. 658):
Em termos mais técnicos, inspiram a chamada decisão política a conveniência, a vantagem e a utilidade, aferíveis pelo Poder Legislativo e pelo Chefe do Executivo, enquanto participam da elaboração da lei. Eles é que têm a faculdade discricionária de agir, não estando sujeitos a limitações acerca do mérito da orientação que irão seguir. (…) Para tomar uma decisão estritamente política (inclusive a de criar, a de não criar ou a de criar só parcialmente o tributo), a pessoa jurídica de direito público interno não está sujeita a nenhum controle externo.
Nessa perspectiva, seguindo a lógica acima exposta, a competência dos Estados e do Distrito Federal de instituir e dispor sobre o ICMS não pode ser delegada aos Municípios, nem a estes deferidos em razão da inércia dos primeiros.
Além disso, os titulares da competência tributária em questão não podem a ela renunciar, sendo uma discricionariedade dos mesmos o seu exercício.
Assim, o fato de tal tributo estar sujeito a repartição constitucional não modifica as caracterísiticas inerentes à competência tributária.
2.2. Repartição obrigatória de receitas de ICMS
Conforme já sinalizado anteiormente, há três modalidades diferentes de repartição de receitas tributárias, nos seguintes moldes: a) participação direta dos Estados, Distrito Federal e Municípios no produto da arrecadação de imposto de competência impositiva da União, prevista no art. 157, I e no art. 158, I, ambos da Constituição de 1988; b) participação no produto de impostos de receita partilhada, prevista nos arts. 157, II, 158, II, III, IV e 159, III, da Constituição de 1988; e c) participação em fundos, prevista no art. 159, I, da Constituição (HARADA, 2011, p. 51-52).
Nesse sentido, os artigos 157 e 158 da Constituição de 1988 dispõem sobre esse sistema de repartição de receitas, especificando quais as receitas pertencerão aos Estados e ao Distrito Federal e aos Municípios.
Somente interessa ao presente trabalho a modalidade referente a receita de ICMS repartida entre Entre os Estados e os Municípios.
O art. 158, IV, preleciona que pertencem aos Municípios vinte e cinco por cento do produto da arrecadação do ICMS no Estado respectivo.
Ainda, o parágrafo único do aludido dispositivo prevê que as parcelas das receitas provenientes do ICMS serão creditas a favor dos Municípios seguindo os seguintes critérios: a) três quintos, no mínimo, na proporção do valor adicionado nas operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação; b) até um quarto, de acordo com o que dispuser lei estadual.
Com efeito, os Municípios possuem o direito subjetivo de exigir dos Estados as importâncias, de forma fidedigna, que lhes cabem em razão da participação no produto da arrecadação do ICMS (CARRAZZA, 2008, p. 683).
Nesse sentido, o aludido direito constitucional assegurado aos Municípios deve ser dimensionado pelo total da arrecadação efetiva, seja a que título for, dos valores que ingressam nos cofres estaduais (CARRAZZA, 2008, p. 684).
Por ser direito subjetivo dos Municípios, as parcelas referentes ao partilhamento de receitas provenientes do ICMS são obrigatórias, de modo que não podem os Estados se negar ao repasse das mesmas.
Aliás, a própria Constituição de 1988 trouxe em seu bojo dispositivo expressando a impossibilidade de retenção ou qualquer restrição à entrega e aos emprego dos recursos objetos da repartição constitucional[15].
Somente em hipóteses excepcionais, ressalvadas expressamente pela Constituição, em que seria possível o Estado condicionar a entrega de recursos aos Municípios, a saber: a) no caso de não pagamento dos seus créditos, inclusive de suas autarquias; e b) no caso em que os Municípios não estiver observando os limites mínimos de recursos que devem ser aplicados nas ações e serviços públicos de saúde, nos termos do art. 198, §2º, III, da Constituição de 1988[16].
Nessa perspectiva, Harada (2011, p. 52) defende que o imposto partilhado pertence não somente à entidade política tributante, mas também ao ente político favorecido pela repartição.
Aplicando o entendimento de Harada ao estudo em tela, teria-se que o resultado financeiro resultante da arrecadação de ICMS pelos Estados também pertenceriam aos Municípios respectivos.
Nessa toada, conforme já assinalado acima, as receitas provenientes da repartição de receitas do ICMS são fundamental para os Municípios obterem, efetivamente, a sua autonomia financeira e, consequente, a sua autonomia política, sendo capazer de exercer as atribuições que lhe foram confiadas.
Então, a repartição obrigatória de receitas do ICMS consiste em regra fundamental para a preservação do princípio do pacto federativo, este um princípio fundamental, garantindo aos entes municipais os meios financeiros necessários para desempenhar suas funções institucionais.
2.3 Possibilidade de intervenção federal
É sabido impera em nossa ordem constitucional o princípio do pacto federativo, primando pela autonomia dos entes políticos, de modo que não cabe a ingerência recíproca nos assuntos que são próprios de cada um.
Por isso, a própria Constituição de 1988 consagrou como regra a impossibilidade de intervenção de um membro da federação em outro. Porém, o próprio texto constitucional traz ressalvas a tal regra.
A intervenção consiste em um instituto que importa suspensão temporária das normas constitucionais asseguradoras da autonomia da unidade federada atingida pela medida, com a finalidade de forçá-la a cumprir os deveres federais (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 851).
Em outras palavras, trata-se de mecanismo drástico e excepcional destinado a manter a integridade dos princípios basilares da Constituição, cuja previsão descansa nos seus arts. 34 e 36 (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 853).
Com efeito, percebe-se que a intervenção é medida última a ser adotada, devendo observar o procedimento constitucionalmente fixado.
A Constituição de 1988 permite a ocorrência de intervenção da União nos Estados, Distrito Federal ou Municípios integrantes de território federal, chamada intervenção federal, e a internvenção dos Estados nos Municípios, intitulada intervenção estadual.
Em hipótese alguma será permitida a intervenção dos Municípios em outros Municípios ou nos Estados, Distrito Federal e na União, por absoluta ausência de previsão constitucional.
Pois bem, uma das hipóteses em que se autoriza a intervenção federal nos Estados é a ausência de repasse das receitas tributárias determinado pela Constituição, no prazo estabelecido em lei, aos Municípios, conforme o dispõe o art. 34, V, b[17].
Nessa perspectiva, somente o Presidente da República é competente para decretar a intervenção federal no caso em tela, podendo ele atuar sem a provocação de ninguém, agindo de ofício. A decisão de intervir remanesce no âmbito do seu juízo discricionário, devendo ouvir previamente o Conselho da República o Conselho de Defesa Nacional, conforme os arts. 90, I, e 91, §1º, II, da Constituição (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 857).
Para proceder a intervenção, ele editará um decreto definindo a amplitude da medida, o prazo de sua duração, as condições de execução e, se for o caso, o interventor, nos termos do art. 36, §1º, da Constituição[18].
O referido decreto, conforme dispõe o aludido dispositivo, estará sujeito ao controle político do Congresso Nacional, submetendo-se a apreciação no prazo de vinte e quatro horas, podendo ser aprovado ou rejeitado.
Procedida a intervenção, a União terá a função de reorganizar as finanças do Estado-membro, garantindo a ocorrência dos repasses aos Municípios.
Depois de cessados os motivos que ensejaram a intervenção – a ausência de repasse de receitas tributárias aos Municípios – a autonomia política da unidade submetida a tal medida deve ser restaurada, retornando aos seus cargos as autoridades eventualmente afastadas[19].
Então, depois da União reorganizar as finanças do Estado-membro intervido, possibilitando a ocorrência do repasse de receitas aos Municípios, cessará a intervenção, retornando a normalidade.
Nessa perspectiva, percebe-se que o constituinte, de fato, reconheceu a suma importância que o repasse de receitas tributárias possui para garantir o equilíbrio federativo, de modo a permitir que uma unidade federada tenha suprimida, parcial e temporariamente, a sua autonomia política com o fito de garantir a observância a tal norma.
Dessa forma, caso um Estado-membro assuma a conduta de inviabilizar o repasse de receitas tributárias previsto no bojo dos arts. 157 a 159 da Constituição, tal ente político poderá ser penalizado com a intervenção federal, amargando o dessabor de ver sua autonomia temporariamente restringida.
3 CONCLUSÃO
Resta perceptível a importância da sistemática da repartição de receitas tributárias para a manutenção do equilíbrio financeiro entre os entes políticos.
Contudo, cumpre lembrar que a citada sistemática não possui o condão de transferir a competência tributária sobre o ICMS aos Municípios, de modo que ela permanece sendo dos Estados-membros. Isso porque o produto recai sobre a arrecadação do citado tributo, além da competência tributária ser indelegável.
A Constituição de 1988 preza tanto pela higidez e observância do sistema de repartição de receitas tributárias que possibilita a intervenção federal nos Estados-membros que a desobedeçam. Tal previsão merece aplausos, pois a finalidade de tal sistemática é nobre, por ser pedra pilar da autonomia financeira dos Municípios.
REFERÊNCIAS
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[1] Sinônimo de “Estado Unitário”.
[2] Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: I – impostos; II – taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição; III – contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas;
[3] Art. 148. A União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios: I - para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência;
[4] Art. 148. A União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios: II - no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional, observado o disposto no art. 150, III, "b".
[5] Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo.
[6] Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
[7] Art. 149-A Os Municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição, na forma das respectivas leis, para o custeio do serviço de iluminação pública, observado o disposto no art. 150, I e III.
[8] Art. 149. (…) §1º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão contribuição, cobrada de seus servidores, para o custeio, em benefício destes, do regime previdenciário de que trata o art. 40, cuja alíquota não será inferior à da contribuição dos servidores titulares de cargos efetivos da União.
[9] Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: I – importação de produtos estrangeiros; II – exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados; III – renda e proventos de qualquer natureza; IV – produtos industrializados; V – operações de crédito, câmbio e seguro ou relativas a títulos ou valores mobiliários; VI – propriedade territorial rural; VII – grandes fortunas, nos termos de lei complementar.
[10] Art. 154. A União poderá instituir: I – mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição; II – na iminência ou no caso de guerra externa, impostos extraordinários, compreendidos ou não em sua competência tributária, os quais serão suprimidos, gradativamente, cessadas as causas de sua criação.
[11] Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: I – transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos; II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; III – propriedade de veículos automotores;
[12] Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: I – propriedade predial e territorial urbana; II – transmissão “inter vivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição; III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.
[13] Art. 32. (…) §1º Ao Distrito Federal são atribuídas as competências legislativas reservadas aos Estados e Municípios.
[14] Art. 7º A competência tributária é indelegável, salvo atribuição das funções de arrecadar ou fiscalizar tributos, ou de executar leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária, conferida por uma pessoa jurídica de direito público a outra, nos termos do § 3º do artigo 18 da Constituição.
[15] Art. 160. É vedada a retenção ou qualquer restrição à entrega e ao emprego dos recursos atribuídos, nesta seção, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, neles compreendidos adicionais e acréscimos relativos a impostos.
[16] Art. 160. (…) Parágrafo único. A vedação prevista neste artigo não impede a União e os Estados de condicionarem a entrega de recursos: I – ao pagamento de seus créditos, inclusive de suas autarquias; II – ao cumprimento do disposto no art. 198, §2º, incisos II e III;
[17] Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: V – reorganizar as finanças da unidade da Federação que: b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei.
[18] Art. 36. (…) § 1º O decreto de intervenção, que especificará a amplitude, o prazo e as condições de execução e que, se couber, nomeará o interventor, será submetido à apreciação do Congresso Nacional ou da Assembléia Legislativa do Estado, no prazo de vinte e quatro horas.
[19] Art. 36. (…) § 4º Cessados os motivos da intervenção, as autoridades afastadas de seus cargos a estes voltarão, salvo impedimento legal.
Bacharelando em direito pela Universidade Federal do Ceará.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Ricardo Facundo Ferreira. Repartição de receitas de ICMS com os municípios Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 ago 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47262/reparticao-de-receitas-de-icms-com-os-municipios. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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