RESUMO: O presente trabalho visa a analisar as consequências decorrentes da desobediência às requisições efetuadas pelo Ministério Público por agentes públicos. Perquire-se sobre a tipificação penal da conduta, levando-se em conta tanto o disposto no Código Penal, bem como na Lei da Ação Civil Pública – Lei nº 7.347/84. Além disso investiga-se o enquadramento da conduta como ato de improbidade administrativa.
PALAVRAS – CHAVES: Requisição Ministerial. Descumprimento. Crime. Improbidade Administrativa.
1 INTRODUÇÃO
O legislador constituinte de 1988, ao delinear o papel do Ministério Público no texto da Constituição cidadã, imbuiu-o do relevante papel de defensor da sociedade e ordem constitucional democrática, incumbindo-o da defesa dos interesses transindividuais da maior relevância tais como o patrimônio público e social, meio ambiente e outros interesses difusos e coletivos.
De igual modo, para o cumprimento de tão relevante e complexa missão, o constituinte conferiu ao parquet diversos instrumentos de atuação, tanto de natureza judicial como extrajudicial, destacando-se nesse último contexto o inquérito civil, o qual possui papel crucial na atuação ministerial à medida em que propicia ao membro colher informações e elementos probatórios adequados à formação da sua convicção sobre existência de ílicito de caráter coletivo e a consequente viabilidade do ingresso de ação judicial para combatê-lo.
Entretanto, o que se vê rotineiramente na prática cotidiana é que o desenvolvimento das investigações conduzidas pelo inquérito civil são obstadas pelo descumprimento das requisições ministeriais pelos agentes públicos a quem são dirigidas, podendo ser citado como exemplo mais comum de tal prática a atuação ministerial em defesa do Patrimônio Público, na qual muitas vezes há o interesse direto de embaraçar as investigações Ministeriais por parte do gestor investigado.
Diante de tal quadro, o presente trabalho visa a contribuir com a comunidade jurídica mediante a apresentação das repercussões da desobediência às requisições do Ministério Público no âmbito do Direito Penal, bem como no campo da improbidade administrativa, a fim de demonstrar que tais nichos do direito repreendem de forma indubitável tal prática, vislumbrando-se a possibilidade da utilização de tais instrumentos normativos como ferramentas para propiciar o pleno desenvolvimento das investigações conduzidas no âmbito do inquérito civil.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 O PODER REQUISITÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO COMO UM INSTRUMENTO DE CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS TRANSINDIVIDUAIS E SUA NORMATIZAÇÃO.
A Constituição Federal de 1988 inaugurou uma nova era na história do Ministério Público, na qual o seu papel de defensor dos interesses da sociedade ficou teve bem delimitadas as suas funções, tendo-lhe sido conferida a função de persecutor dos interesses difusos e coletivos como bem se pode notar da redação do seu art.129, inciso III:
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;
Como bem se pode ver, como instrumentos para que o Ministério Público possa tutelar os interesses difusos e coletivos, a Constituição previu o instrumento da ação civil pública como meio judicial para a persecução de tais interesses, prevendo também, no âmbito extrajudicial, o inquérito civil como instrumento posto à disposição para a investigação de ilícitos que venham a lesar interesses transindividuais.
O instituto do inquérito civil é bem definido pelos célebres Fredie Didier Jr. E Hermes Zanetti Jr. (DIDIER JR; ZANETTI JR, p.226):
O inquérito civil é um instrumento de ação exclusiva do Ministério Público. Trata-se de um procedimento administrativo investigatório, de caráter inquisitivo, instaurado e presidido pelo Ministério Público, sem maiores formalidades. Como simples procedimento, não é imperativo o respeito contraditório (sic), embora em muitos casos possa ser aconselhável. Seu objeto é, basicamente, a coleta de elementos de prova e convicção para as atuações processuais ou extraprocessuais a cargo do parquet. Daí que: 'O inquérito Civil também serve para que o Ministério Público colha elementos de convicção que lhe permitam desempenhar algumas atuações subsidiárias, como a tomada de compromissos de ajustamento, a realização de audiências públicas, a emissão de relatórios e recomendações.
Como se vê, o inquérito civil é um instrumento de fundamental importância para a defesa dos interesses difusos e coletivos pelo Ministério Público, uma vez que em razão de sua própria natureza de procedimento administrativo inquisitivo, presta-se à coleta de elementos de convicção para o membro pautar a sua atuação funcional, inclusive tendo a relevante função de meio de coleta de provas para carrear eventuais ações coletivas.
A importância do inquérito civil para a propositura a ação civil pública pelo Ministério Público é tamanha que o mesmo está previsto pela Lei da Ação Civil Pública – Lei nº 7.347/85 – como meio probatório colocado à disposição do Ministério Público:
§ 1º O Ministério Público poderá instaurar, sob sua presidência, inquérito civil, ou requisitar, de qualquer organismo público ou particular, certidões, informações, exames ou perícias, no prazo que assinalar, o qual não poderá ser inferior a 10 (dez) dias úteis.
Como se pode observar, ao lado do inquérito civil, a Lei de Ação Civil Pública conferiu ao Ministério Público o poder de requisição aqui conceituado por Hugo Nigro Mazzilli (MAZZILLI, p.479):
Nos procedimentos a seu cargo, o membro do Ministério Público pode também expedir requisições. Entre outras finalidades, a requisição pode consistir em ordem legal de realização de diligências ou apresentação de documentos ou informações por parte do destinatário à autoridade competente. Algumas notificações só podem ser encaminhadas pelo próprio procurador-geral, quando tiverem como destinatário o governador do Estado, os membros do Poder Legislativo estadual e os desembargadores. As requisições ministeriais serão cumpridas gratuitamente e também supõem prazo mínimo razoável para atendimento, que dependerá de circunstâncias concretas
Com efeito, o poder requisitório do Ministério Público também está previsto no art.8º, inciso II, da Lei Complementar nº 75 – Lei Orgânica do Ministério Público da União – , bem como no art.26, inciso I , “b”, da Lei nº 8.625/93:
Art. 8º Para o exercício de suas atribuições, o Ministério Público da União poderá, nos procedimentos de sua competência:
II - requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades da Administração Pública direta ou indireta;
Art. 26. No exercício de suas funções, o Ministério Público poderá:
I - instaurar inquéritos civis e outras medidas e procedimentos administrativos pertinentes e, para instruí-los:
b) requisitar informações, exames periciais e documentos de autoridades federais, estaduais e municipais, bem como dos órgãos e entidades da administração direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
Como se pode ver, o poder de requisição é um dos principais instrumentos postos à disposição do Ministério Público para a condução do inquérito civil, uma vez que possibilita ao Ministério Público identificar o particular ou a autoridade pública (foco deste trabalho) que tem melhores condições de elucidar o fato investigado e assim ordenar que pratique a diligência necessária ao seu esclarecimento.
Dessa maneira, o poder requisitório em questão se coloca como uma relevante prerrogativa do Ministério Público para o exercício das suas atribuições institucionais do Ministério Público, prestando-se assim como um objeto essencial na concretização dos direitos difusos e coletivos titularizados pela sociedade.
2.2 DAS REPERCUSSÕES DO DESCUMPRIMENTO DA REQUISIÇÃO MINISTERIAL PELO AGENTE PÚBLICO NO ÂMBITO DO DIREITO PENAL
Conforme já destacado anteriormente, a natureza da requisição ministerial é de uma autêntica ordem legal à autoridade requisitada, a qual tem o dever de ofício de cumpri-la. Desse modo, o descumprimento da ordem ministerial poderá, em tese, ensejar, a responsabilização penal da autoridade pública que a descumprir.
Dentre as possíveis tipificações para tal conduta, podem ser destacados os crimes de prevaricação e desobediência tipificados nos arts.319 e 330 do Código Penal brasileiro:
Prevaricação
Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
Desobediência
Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público:
Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.
No mesmo sentido doutrinam Nelson Nery Jr. E Rosa Maria Andrade Nery (NERY JR, NERY, p.842):
Em nenhuma hipótese a requisição pode ser negada, sendo que o desatendimento pode caracterizar crime de prevaricação ou desobediência (RT 499/304), conforme o caso (CP 319 e 330), ou ainda, para as requisições na área da infância e da juventude, o crime estatuído no ECA 336.
Ressalte-se, inclusive, que no caso de omissão ou retardamento no atendimento de requisições nas quais solicitem dados técnicos indispensáveis à propositura da ação civil pública, a própria Lei nº 7.347/85 estabeleceu como crime o seu retardamento ou omissão em seu art.10:
Art. 10. Constitui crime, punido com pena de reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, mais multa de 10 (dez) a 1.000 (mil) Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional - ORTN, a recusa, o retardamento ou a omissão de dados técnicos indispensáveis à propositura da ação civil, quando requisitados pelo Ministério Público.
Interessante notar que este crime específico previsto no art.10 da Lei da Ação Civil Pública somente restará configurado se os dados técnicos omitidos ou retardados pelo autoridade requisitada foram considerados indispensáveis para a propositura da ação civil pública, pois trata-se de verdadeira elementar deste tipo penal conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça[1] em caso no qual não houve a propositura da ação civil pública em razão de arquivamento do inquérito civil pelo membro do Ministério Público :
PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. RECUSA, RETARDAMENTO OU OMISSÃO DE DADOS TÉCNICOS INDISPENSÁVEIS À PROPOSITURA DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TRANCAMENTO. POSSIBILIDADE. ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO CIVIL PÚBLICO. PRECEDENTE DO STJ. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.
I - A Primeira Turma do col. Pretório Excelso firmou orientação no sentido de não admitir a impetração de habeas corpus substitutivo ante a previsão legal de cabimento de recurso ordinário (v.g.: HC 109.956/PR, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 11/9/2012; RHC 121.399/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe de 1º/8/2014 e RHC 117.268/SP, Rel. Min. Rosa Weber, DJe de 13/5/2014). As Turmas que integram a Terceira Seção desta Corte alinharam-se a esta dicção, e, desse modo, também passaram a repudiar a utilização desmedida do writ substitutivo em detrimento do recurso adequado (v.g.: HC 284.176/RJ, Quinta Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 2/9/2014; HC 297.931/MG, Quinta Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe de 28/8/2014; HC 293.528/SP, Sexta Turma, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe de 4/9/2014 e HC 253.802/MG, Sexta Turma, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 4/6/2014).
II - Portanto, não se admite mais, perfilhando esse entendimento, a utilização de habeas corpus substitutivo quando cabível o recurso próprio, situação que implica o não conhecimento da impetração.
Contudo, no caso de se verificar configurada flagrante ilegalidade apta a gerar constrangimento ilegal, recomenda a jurisprudência a concessão da ordem de ofício.
III - Destaco inicialmente que a jurisprudência do excelso Supremo Tribunal Federal, bem como desta eg. Corte, há muito já se firmaram no sentido de que o trancamento da ação penal por meio do habeas corpus é medida excepcional, que somente deve ser adotada quando houver inequívoca comprovação da atipicidade da conduta, da incidência de causa de extinção da punibilidade ou da ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito.
IV - O paciente foi denunciado pela suposta prática do crime previsto no art. 10, da Lei n. 7.347/85, por não ter cumprido requisição ministerial de fornecer cópias dos documentos alusivos às aquisições de medicamentos e materiais médicos ao longo do ano de 2009, bem como da movimentação de estoque destes, na condição de titular da Secretaria de Saúde do Município de Campos dos Goytacazes/RJ.
V - Com efeito, verifico do caso que, não obstante tenha ocorrido o retardamento na remessa dos dados requeridos, observa-se que, após envio, o parquet concluiu pela licitude das aquisições feitas pela Secretaria Municipal de Saúde e arquivou o inquérito civil, caracterizando, assim, a prescindibilidade das informações.
VI - Nesse sentido, forçoso reconhecer a ausência da elementar dados técnicos indispensáveis à propositura da ação civil, face à verificação da legalidade dos atos praticados pelo recorrente (Precedente).
Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para trancar a ação penal n. 0034869-93.2010.8.19.0014, em trâmite perante o eg.
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, pela atipicidade da conduta.(grifos nossos).
Como se percebe, o legislador penal, norteado pelos princípios da fragmentariedade e da lesividade, alçou a coercitividade das requisições do Ministério Público a categoria de bem jurídico valioso, passível de ser protegido pela lei penal, já que isto representa, em última análise, a proteção do próprio acesso da sociedade à justiça para a proteção dos interesses difusos e coletivos resguardados pela presente ordem constitucional.
2.3 O DESCUMPRIMENTO DA REQUISIÇÃO MINISTERIAL PELO AGENTE PÚBLICO COMO ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
Conforme já explicitado, ficou claro que até mesmo o direito penal, ramo do direito ao qual cabe tutelar os bens jurídicos mais caros de nossa sociedade, sanciona de forma dura o descumprimento das requisições do Ministério Público pelos agentes públicos, sendo certo concluir, por meio de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico, de que há uma inquestionável proteção legal à atividade investigativa do Ministério Público para a defesa dos interesses difusos e coletivos e, consequentemente, ao poder requisitório que dela decorre.
Daí que é inadmissível aos olhos do legislador que tal prerrogativa constitucionalmente conferida ao “parquet” seja obstada pela má-vontade, pela leniência ou simplesmente pela desídia do agente público em cumprir as requisições que lhe são feitas.
Partindo de tal premissa, passa-se a investigar as repercussões de tal conduta no âmbito da improbidade administrativa.
Pois bem, diante desta ampla tutela com que o legislador quis amparar as prerrogativas do Ministério Público, as quais são relativas não somente à condução do inquérito civil, como também ao ajuizamento da ação civil pública, se chega à conclusão que a infração a tais cânones legais traduz-se em ato ímprobo violador do “princípio da legalidade” da Administração Pública.
Note-se que nesse caso a violação ao princípio da legalidade se dá de duas formas simultaneamente.
Em primeiro lugar, a violação à legalidade se dá de maneira direta ou frontal, quando agente público, ao ignorar as requisições ministeriais que lhes são feitas, descumpre todas as normas em nosso ordenamento jurídico que o comandam a agir de forma diametralmente oposta.E de maneira reflexa, o agente público que age de tal forma também infringe um dos corolários do princípio da legalidade que é o “princípio da boa-fé” da Administração Pública”.
É que, nas palavras de Nelson Nery Jr. E Rosa Maria Andrade Nery (NERY JR, NERY, p. 355)
Os poderes públicos têm de agir com boa-fé, subjetiva e objetiva. É direito fundamental do cidadão exigir que o Poder Público aja com boa-fé e não cometa arbitrariedade. A exigência de o poder-público dever proceder com boa-fé decorre do Estado Democrático (CF 1º), da segurança jurídica (CF 1º, 5º, caput e XXXVI), da solidariedade (CF 3º.I), da legalidade e da moralidade administrativa (CF 37 caput)
A violação ao “princípio da boa-fé” no caso em exame se consubstancia à medida em que a Administração age de forma a gerar a obstar o controle externo da legalidade de seus atos por parte do Ministério Público, representante, se imitindo em uma postura arbitrária, na qual se esquiva do controle da legalidade dos seus atos imposto pela Ordem Constitucional vigente.
Consequentemente, da violação ao cânone da “boa-fé” acaba por surgir também a violação ao “princípio da moralidade”, uma vez que o administrador público que não cumpre as requisições feitas pelo parquet mancha o nome da instituição pública que representa ao fazer pouco caso da atuação ministerial.
Dessa maneira, acaba por depreciar a imagem da Administração, não somente em relação ao órgão ministerial que investiga o seu atuar, mas também perante toda a sociedade, que assiste inconformada à prática degradante de tentar obstar o trabalho do representante dos interesses da coletividade.
Nessa linha de pensamento cabe a transcrição das palavras do célebre Hely Lopes Meirelles, citando Antônio José Brandão (MEIRELLES, p.91):
O certo é que a moralidade do ato administrativo juntamente com a sua legalidade e finalidade, além da sua adequação aos demais princípios, constituem pressupostos de validade sem os quais toda atividade pública será ilegítima. Já disse notável Jurista luso – Antônio José Brandão – que 'a atividade dos administradores, além de traduzir a vontade de obter o máximo de eficiência administrativa, terá ainda de corresponder à vontade constante de viver honestamente, de não prejudicar outrem e dar a cada um o que lhe pertence – princípios de Direito Natural já lapidarmente formulados pelos jurisconsultos romanos. À luz dessas ideias, tanto infringe a moralidade administrativa o administrador que, para atuar, foi determinado por fins imorais ou desonestos como aquele que desprezou a ordem institucional e, embora movido por zelo profissional, invade a esfera reservada a outras funções, ou procura obter mera vantagem para o patrimônio confiado à sua guarda. Em ambos os casos, os seus atos são infiéis à ideia que tinha de servir, pois violam o equilíbrio que deve existir entre todas as funções, ou, embora mantendo ou aumentando o patrimônio gerido.
Viola-se também o também o “princípio da eficiência” segundo os termos da definição dada pelo mesmo Hely Lopes Meirelles (MEIRELLES, p.98): “O princípio da eficiência exige que a atividade administrativa seja presteza, perfeição e rendimento funcional ”.
Note-se que o agente público que desatende às requisições ministeriais viola o dever de presteza e perfeição do desempenho da atividade pública, uma vez que descumpre uma obrigação institucional-administrativa a ele estabelecida por lei.
Além disso, tal ato “emperra” a atuação investigativa do Ministério Público, causando maiores gastos de tempo recursos e de serviço por parte da instituição Ministerial, que, por sua vez, também compõe a Administração Pública, de modo que há aí também desperdício de recursos públicos.
Por último, malfere-se também o “princípio da publicidade” da Administração Pública, uma vez que ao negar as informações ao Ministério Público, a Administração Pública nega também informações à sociedade que o mesmo representa, rompendo com o dever de agir com transparência que possui para com os demais membros da coletividade.
Dessa forma, acaba a Administração por criar uma verdadeira “caixa de Pandora” na qual esconde dos olhos da sociedade as ilegalidades que seus agente em seu nome perpetram, evitando a fiscalização de seus atos pelo guardião constitucional dos direitos da coletividade – O Ministério Público.
Nessa linha, argumenta José dos Santos Carvalho Filho (CARVALHO FILHO, p.21):
Outro princípio mencionado na Constituição é o da publicidade. Indica que os atos da Administração devem merecer a mais ampla divulgação possível entre os administrados, e isso porque constitui fundamento do princípio propiciar-lhes a possibilidade de controlar a legitimidade da conduta dos agentes administrativos. Só com a transparência dessa conduta é que poderão os indivíduos aquilatar a legalidade ou não dos atos e o grau de eficiência de que se revestem.
Por todas essas razões nos parece que, uma vez notificado o agente público a quem as informações foram requisitadas e estando a atribuição de oferecer a correspondente resposta no âmbito da sua competência administrativa, a recalcitrância de atender as requisições ministeriais encontra ressonância na Lei de Improbidade Administrativa.
Nesse caso o ato do agente público em comento se qualifica como de improbidade administrativa violador dos princípios da Administração Pública, tipificado no art.11, inciso II, da Lei nº 8.429/92, uma vez que nessa hipótese o agente público está deixando de praticar um dever de ofício estipulado por lei.
Veja-se o que prescreve o aludido dispositivo legal:
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:
II - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;
Nesse sentido, merecem boa leitura as lições de Luiz Manoel Gomes e Rogério Favreto (GAJARDONI, p.161/162) acerca dos pressupostos fáticos necessários incidência do mesmo dispositivo:
A regra do inciso II, do art.11, da Lei de Improbidade visa punir o agente que retarda ou deixa de praticar ato sob a sua responsabilidade. Na primeira hipótese protela, atrasa, a prática de ato sob a sua responsabilidade, sendo que na segunda situação prevista na norma ele simplesmente deixa de praticar ato administrativo.
Ao contrário do crime de prevaricação (art.319, do Código Penal, não se exige que o retardar, ou não fazer, seja para satisfazer um interesse pessoal, sendo que há a punição, nos termos do art.11, da Lei de Improbidade Administrativa, mesmo nas hipóteses de atuação culposa(culpa grave).
Duas observações: o agente público deve ter ciência de que o ato deve ser praticado, ou seja, deve estar dentro da sua esfera de responsabilidade (ato administrativo) ou haver expressa determinação ou intimação (determinação judicial) e o ato administrativo deve ser de sua competência.
Também seguindo a mesma linha de pensamento, há jurisprudencia do Superior Tribunal de Justiça[2] em que se afirma que o descumprimento da requisição feita pelo Ministério Público, caracteriza ato de improbidade administrativa tipificado no já aludido art.11, inciso II, da Lei nº 8.429/92:
“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. OFENSA AO ART. 535 DO CPC. INOCORRÊNCIA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA AMBIENTAL. (OITO) OFÍCIOS ENVIADOS PELO MPF A FIM DE INSTRUIR INQUÉRITO CIVIL COM OBJETIVO DE PROPOSITURA DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA CONTENÇÃO DE DEGRADAÇÃO AMBIENTAL. SILÊNCIO INJUSTIFICADO (PELA DEMORA DE TRÊS ANOS) DA PARTE RECORRIDA. ELEMENTO SUBJETIVO DOLOSO. CARACTERIZAÇÃO. ART. 11 DA LEI N. 8.429/92. INCIDÊNCIA.
1. Os órgãos julgadores não estão obrigados a examinar todas as teses levantadas pelo jurisdicionado durante um processo judicial, bastando que as decisões proferidas estejam devida e coerentemente fundamentadas, em obediência ao que determina o art. 93, inc. IX, da Lei Maior. Isso não caracteriza ofensa ao art. 535 do CPC. Neste sentido, existem diversos precedentes desta Corte. Precedentes.
2. Tem-se, na origem, ação civil pública por improbidade administrativa ajuizada em face da parte ora recorrida em razão do não-atendimento injustificado de 8 (oito) ofícios a ela enviados pela parte recorrente, os quais objetivavam instruir demanda ambiental.
3. O acórdão recorrido, em relação a este conjunto fático-probatório, entendeu que, embora desarrazoado o tempo exigido para a confecção de uma única resposta aos referidos ofícios, as condutas impugnadas poderiam ser imputadas à parte ré no máximo a título de culpa (por desídia), mas nunca a título de má-fé ou dolo.
4. Para ratificar tal conclusão, os magistrados a quo asseveraram, ainda, que a empresa sobre a qual se pretendia obter informações e o ente responsável por fornecê-las (de que a recorrida era diretora-geral) localizavam-se a trezentos e cinqüenta quilômetros de Salvador/BA, sede da parte recorrente oficiante, o que justificaria a demora.
5. Levantou-se, por fim, que a depreciação das estruturas públicas acarreta natural demora na consecução das atividades a elas inerentes.
6. Não se aplica o Verbete n. 7 desta Corte Superior em questões de improbidade administrativa quando a origem deixa bem consignado, no acórdão recorrido, os fatos que subjazem à demanda. Isto porque a prestação jurisdicional pelo Superior Tribunal de Justiça no que tange à caracterização do elemento subjetivo não é matéria que envolva a reapreciação do conjunto probatória e muito menos incursão na seara fática, tratando-se de mera qualificação jurídica dos mesmos - o que não encontra óbice na referida súmula.
7. O que está em exame, agora, é se, os fatos, como narrados no acórdão, podem levar em tese à configuração do dolo para fins de enquadramento da conduta no art. 11, inc. II, da Lei n. 8.429/92. E, adiante-se, a resposta é positiva.
8. Sem dúvida, são relevantes os fundamentos da origem no que tange à distância existente entre o órgão oficiante e o órgão oficiado, bem como a rotineira falta de apoio estrutural e logístico dos órgãos públicos - muito embora, frise-se, o órgão oficiado, conquanto distante do órgão oficiante, estava próximo dos fatos e da empresa sobre a qual recairia o inquérito civil (perto, em resumo, dos fatos sobre os quais deveria prestar informações).
9. No entanto, em razão das peculiaridades do caso concreto, nenhum deles é suficiente para afastar o elemento subjetivo doloso presente nas condutas externadas.
10. Na esteira do que foi asseverado antes, na espécie, a parte recorrida deixou de responder a diversos ofícios enviados pelo Ministério Público Federal com o objetivo de instruir demanda cujo objetivo era combater danos ambientais. Foram necessários oito ofícios solicitando informações para, somente três anos, depois, a recorrida prestar resposta.
11. É evidente que o prazo de cinco dias usualmente constante dos pedidos remetidos pela parte recorrente poderia ser insuficiente para uma resposta adequada. Tanto que a autoridade recorrida solicitou prorrogação, tendo sido esta deferida pelo próprio órgão oficiante.
12. Nada obstante, a inércia da Diretora-Geral do Conselho de Recursos Ambientais do Estado da Bahia (CRA/BA) por longos três anos manifesta uma falta de razoabilidade sem tamanho, mesmo levando em consideração a distância e o eventual mal-aparelhamento das unidades administrativas.
13. O dolo é abstratamente caracterizável, uma vez que, pelo menos a partir do primeiro ofício de reiteração, a parte recorrida já sabia estar em mora, e, além disto, já sabia que sua conduta omissiva estava impedindo a instrução de inquérito civil e a posterior propositura da ação civil pública de contenção de lesão ambiental.
14. Inclusive, da inicial dos autos, consta que, no último ofício enviado por membro do Ministério Público Federal constavam advertências explícitas e pontuais dirigidas à recorrida a respeito da possível caracterização de crime e improbidade administrativa.
15. Não custa pontuar que, na seara ambiental, o aspecto temporal ganha contornos de maior importância, pois, como se sabe, a potencialidade das condutas lesivas aumenta com a submissão do meio ambiente aos agentes degradadores.
16. Tanto é assim que os princípios basilares da Administração Pública são o da prevenção e da precaução, cuja base empírica é justamente a constatação de que o tempo não é um aliado, e sim um inimigo da restauração e da recuperação ambiental.
17. Note-se, vez mais, que ambos foram amplamente incorporados pelo ordenamento jurídico vigente, ainda que de modo implícito, como deixam crer os arts. 225 da Constituição da República e 4º e 9º (notadamente o inc. III) da Lei n. 6.938/85, entre outros, passando a incorporar o princípio da legalidade ambiental.
18. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, provido, a fim de remeter os autos à origem para seqüência da ação de improbidade administrativa.
Entretanto, é necessário alertar que para que a conduta em questão se enquadre como ato ímprobo nos termos da tipologia do art.11, da Lei nº 8.429/92, é necessária a presença do elemento volitivo doloso, ainda que genérico, na conduta do agente, assim consubstanciado na vontade livre e consciente de transgredir o ordenamento jurídico, conforme entende a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça[3].
Por outro lado, também não se pode deixar de frisar que caso a conduta em questão esteja acompanhada de enriquecimento ilícito do agente público (desde que dolosa) ou de prejuízo ao Erário (desde que haja dolo ou culpa grave) a mesma poderá ser enquadrada nos arts. 9º e 10, respectivamente, da Lei de Improbidade Administrava:
Art. 9° Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei, e notadamente:
Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:
De qualquer forma, indubitável que o descumprimento consciente da requisição ministerial por parte do agente público viola todos os bens jurídicos resguardados pela Lei nº 8.429/92, não restando dúvidas de que se trata de ato de improbidade administrativa e devendo ser reprimido como tal.
3 CONCLUSÃO
Conforme demonstrado, o descumprimento da requisição ministerial por parte do agente público é conduta que viola frontalmente o regular desempenho das atribuições investigativas do Ministério Público no âmbito da tutela dos direitos difusos e coletivos, sendo escopo de reprimenda do ordenamento jurídico pátrio tanto no âmbito do direito penal, bem como constitui infração administrativa.
Na seara penal, a conduta enfocada pode, em tese, consubstanciar os crimes de prevaricação e desobediência, previstos, respectivamente, nos arts. 319 e 330 do Código Penal Brasileiro, bem como, em se tratando de retardamento ou omissão de dados técnicos essenciais a propositura da ação civil pública, no tipo penal específico contido no art.10 da Lei da Ação Civil Pública.
Finalmente, no âmbito da Lei nº 8.429/92, a conduta em questão, desde que dolosa, pode ser enquadrada como ato violador dos princípios administrativos (art.11), e, em acarretando enriquecimento ilícito do agente ou prejuízo ao Erário, no tipos de improbidade contidos nos arts.9º( desde que dolosa) e 10 (havendo dolo ou culpa grave do agente).
BIBLIOGRAFIA:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 16 ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2010.
DIDIER JR., Fredie; ZANETTI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil. 3 ed. Salvador: JusPODIUM, 2008, v.4.
GAJARDONI, Fernando da Fonseca et al. Comentários à Lei de Improbidade Administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 26. ed São Paulo: Saraiva, 2013.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 36 ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
NERY JR., Nelson. NERY, Rosa Maria Andrade. Constituição Federal Interpretada e Legislação Constitucional. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
[1] STJ- HC 303.856/RJ, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 07/04/2015, DJe 22/04/2015.
[2] STJ. REsp 1116964/PI - Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES - SEGUNDA TURMA - julgado em 15/03/2011 - DJe 02/05/2011
[3] Nesse sentido conferir STJ -AgRg no AREsp 712.341/MS, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 02/06/2016, DJe 29/06/2016 e AgRg no REsp 1200575/DF, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/05/2016, DJe 16/05/2016
Bacharel em Direito pela UFRN, Advogado licenciado, domiciliado em Natal/RN.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Antônio Marinho da Rocha. O descumprimento das requisições do ministério público pelos agentes públicos e sua repercussão no âmbito do direito penal e da improbidade administrativa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 ago 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47287/o-descumprimento-das-requisicoes-do-ministerio-publico-pelos-agentes-publicos-e-sua-repercussao-no-ambito-do-direito-penal-e-da-improbidade-administrativa. Acesso em: 23 dez 2024.
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