RESUMO: O presente artigo analisa, com base no conceito de justa indenização, a inaplicabilidade da chamada vantagem da coisa feita quando da apuração do valor indenizatório em processo judicial de desapropriação.
Palavras-chave: Desapropriação; justa indenização; vantagem da coisa feita.
1 INTRODUÇÃO
No ordenamento jurídico pátrio, a desapropriação se destaca como uma das mais importantes formas de intervenção do Estado na propriedade.
Ensina MEIRELLES que a desapropriação “é a mais drástica das formas de manifestação do poder de império, ou seja, da soberania interna do Estado no exercício de seu domínio eminente sobre todos os bens existentes no território nacional” (2010, p.632).
A Administração Pública, à luz do que preceitua o art. 37, caput, da Constituição Federal, deve respeitar em sua atuação, dentre outros, o princípio da legalidade.
Se, de um lado, a Constituição assegura o direito fundamental à propriedade (art. 5º, inciso XXII: “é assegurado o direito de propriedade”), por outro lado afasta o dogma de sua intangibilidade, ao condicioná-lo ao atendimento de função social (art. 5º, inciso XXIII: “a propriedade atenderá a sua função social”).
Dessa forma, premida pelo interesse público instrumentalizado na declaração de utilidade pública ou interesse social, a Administração pode proceder à desapropriação, transferindo para si a propriedade de terceiro.
Com efeito, MELLO aduz que “o fundamento político da desapropriação é a supremacia do interesse coletivo sobre o individual, quando incompatíveis” (2008, p. 857).
Não obstante o direito de desapropriar seja conferido ao ente público, referido direito só pode ser exercido com a observância do devido processo legal, seja na esfera administrativa, na hipótese de acordo administrativo, seja na esfera judicial.
Há que ser mencionada, neste ponto, a garantia insculpida no art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, cuja redação é a de que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
2 DA INAPLICABILIDADE DA VANTAGEM DA COISA FEITA
Em que pese a previsão do art. 15 do Decreto-lei nº 3.365/1941 no sentido de que, alegada urgência e depositado o preço arbitrado, seja o ente público imitido liminarmente na posse do bem a ser desapropriado, a praxe indica que, ao receber a petição inicial de ação de desapropriação, o magistrado determine a citação da parte contrária para contestar.
Comumente, após a resposta, ou sem ela, quando infrutífera a citação, há a nomeação de perito para a realização de avaliação judicial do imóvel.
Verifica-se que, ao seguir referido procedimento, busca o juízo garantir que os trabalhos técnicos de avaliação sejam realizados sob o contraditório das partes, que poderão formular quesitos, solicitar esclarecimentos e oferecer impugnação ao laudo do expert.
No que tange aos trabalhos de avaliação, esses são realizados pelo profissional nomeado pelo juízo tendo por base norma técnica da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, especificamente a NBR 14.653-1, que disciplina os procedimentos gerais de avaliação de bens.
À luz do art. 5º, inciso XXIV, da Constituição Federal, “a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição”.
Acerca do conceito de indenização justa, ensina José Carlos Moraes Salles (2006, p. 511):
[...] para que haja justeza e justiça na indenização, é preciso que se recomponha o patrimônio do expropriado com quantia que corresponda, exatamente, ao desfalque por ele sofrido em decorrência da expropriação.
Não deverá atribuir ao desapropriado nem mais nem menos do que se lhe subtraiu, porque a expropriação não deve ser instrumento de enriquecimento nem de empobrecimento do expropriante ou do expropriado.
Entretanto, em que pese o objeto da avaliação ser o de apurar o valor do imóvel desapropriado para recomposição do patrimônio do expropriado, atendendo ao preceito constitucional de justa indenização, a norma técnica prevê o acréscimo de um terceiro elemento, qual seja, o fator de comercialização, estranho ao objetivo mencionado.
Nesse sentido, prevê a NBR 14.653-1:
3.20 fator de comercialização: razão entre o valor de mercado[1] de um bem e o seu custo de reedição[2] ou de substituição[3], que pode ser maior ou menor do que 1 (um).
Verifica-se, assim, que o fator de comercialização é obtido pela operação matemática de divisão do valor de mercado do bem pelo custo de reedição do mesmo.
Pode o resultado desta ser menor ou igual a 1 (um), ou, então, maior que 1 (um), quando se tem a denominada vantagem da coisa feita, assim definida pela norma técnica: “3.48 vantagem da coisa feita: diferença entre o valor de mercado e o custo de reedição de um bem, quando positiva”.
Dessa forma, o resultado maior do que 1 (um) representa que o valor de mercado do bem expropriado é superior ao seu custo de reedição calculado. Por outro lado, quando menor do que 1 (um), significa que o valor de mercado do bem foi inferior ao seu custo de reedição.
Não obstante sua previsão na norma técnica, a adoção do fator de comercialização, em especial da vantagem da coisa feita (resultado maior que 1), acarreta interferência indevida na mensuração do valor do bem expropriado.
Em tais casos, em verdade, ocorre o acréscimo de um lucro ao seu proprietário, que já usufruiu do bem, não sendo justo e razoável incluir tal verba no quantum indenizatório.
Além disso, a prática indica que a declaração de utilidade pública de imóveis para fins de desapropriação resulta, normalmente, em um aumento da procura por imóveis na região em que se realizará a obra pública, e consequentemente, no aumento dos valores pelos quais esses são ofertados ou transacionados.
Com efeito, a vantagem da coisa feita, também chamada de going concern value, não encontra amparo no ordenamento jurídico, vale dizer, em norma editada pelo Estado no exercício da função legislativa, pelo que se mostra ilegal sua inserção nos trabalhos pericias de avaliação de imóveis em desapropriação.
Precisa a lição de HARADA (2014, p 138-139) sobre o tema:
[...] advirta-se que o laudo não deve conter, também a inclusão de valores aleatoriamente apurados como a chamada vantagem da coisa feita, prevista no item 3.2. das Normas Gerais de Avaliação, consistente no acréscimo de uma verba a título de vantagem que todo proprietário de imóvel edificado teria. Essa verba parte da premissa de que o valor do imóvel expropriado, por si só, não satisfaria a justa indenização, porque o proprietário de prédio expropriado teria que sofrer toda sorte de vicissitudes na procura de outro ou na construção de prédio semelhante.
Admitir a vantagem da coisa feita nos laudos de avaliação em desapropriação, resultaria, ademais, na incorporação de uma mais valia, que ao cabo fará com que o poder público sofra prejuízos financeiros em razão do investimento realizado.
Ou seja, a realização de uma obra pública que demande desapropriações traria custos não só com o valor da recomposição do prejuízo causado por esta forma de intervenção na propriedade, mas também do próprio movimento especulativo por ela causado no mercado.
Na jurisprudência, é possível encontrar julgados que confirmam a aplicação da vantagem da coisa feita (fator de comercialização maior que 1), por estar prevista na NBR 14.653-1. Entretanto, tal entendimento não merece prosperar, tendo em vista que aludida norma técnica não pode inovar originariamente no ordenamento jurídico, o que é dado, tão somente às leis formalmente editadas pelo Estado.
Nessa esteira, por se entender consentâneo ao princípio da justa indenização, colaciona-se os seguintes precedentes, que afastam a aplicação do fator de comercialização em razão da ausência de sua previsão em lei.
Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, tem-se:
DESAPROPRIAÇÃO. Verba para reposição de despesas com aquisição de outro imóvel ('frais de remploi'). A desapropriação corresponde a indenização justa pela perda do imóvel, não pela aquisição de outro. Danos causados ao imóvel pelo expropriante, na qualidade de locatário. Ação própria. Vantagem da coisa feita ('goingvalue'). Parcela indevida, se o laudo já adotara o valor atual do imóvel. II - Recurso extraordinário conhecido parcialmente, apenas quanto a parcela 'frais de remploi', mas não provido."
(STF; RE 88767; RJ; Primeira Turma; Rel. Min. Thompson Flores; DJU 08/06/1979).
Decidiu o Tribunal Regional Federal da 1ª Região:
ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO. REFORMA AGRÁRIA. JUSTO PREÇO. AVALIAÇÃO EM SEPARADO DA COBERTURA FLORÍSTICA. VANTAGEM DA COISA FEITA. JUROS COMPENSATÓRIOS. JUROS MORATÓRIOS. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. I - Integram o preço da terra nua as florestas naturais, matas nativas e qualquer outro tipo de vegetação natural, não podendo o montante apurado superar, em qualquer hipótese, o valor de mercado do imóvel. II - Em face da solidez dos fundamentos da avaliação do Incra, acolhe-se, como justa, a oferta inicial. III - A cobertura florística somente pode ser indenizada em separado quando houver prova de sua exploração econômica, o que não é o caso. IV - A vantagem da coisa feita, que equivale ao lucro do incorporador, é descabida. V - Juros compensatórios devidos sobre a parcela que ficara indisponível, muito embora o art. 6º, § 2º, da Lei Complementar 76/93, permitisse o seu levantamento initio litis. V - Juros moratórios incidentes em função do atraso no pagamento da indenização, no percentual de 6% ao ano, a partir de 1º de janeiro do exercício seguinte ao que o pagamento deveria ser feito. VI - Verba honorária mantida. VII - Apelação parcialmente provida.
(TRF1, AC 0000044-21.2000.4.01.3600 / MT, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL CÂNDIDO RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, DJ p.13 de 21/10/2005)
Igualmente, na jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
EMENTA: DESAPROPRIAÇÃO - JUSTO PREÇO - LAUDO DO PERITO OFICIAL - CORREÇÃO MONETÁRIA DA DATA DO LAUDO - FATOR COMERCIALIZAÇÃO - NÃO INCIDENCIA - CUMULATIVIDADE DOS JUROS MORATÓRIO E COMPENSATÓRIOS - HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS - CRITÉRIOS DO DECRETO. 1- O justo preço da indenização (CR, art. 5º, XXIV, e art. 182, § 3º) é aquele que recompõe integralmente o patrimônio do expropriado, habilitando-o a adquirir outro bem equivalente ao que possuía, considerando-se o valor na data da avaliação (art. 26, Decreto-Lei nº 3.365/41); 2- Para fins de obtenção do justo preço, deve-se levar em conta a avaliação do perito oficial, todavia, deve ser excluído o "fator de comercialização", custo adicional para a procura e reconstrução de imóvel nas mesmas condições do expropriado, por ausência de previsão legal; 3- Os juros compensatórios incidirão a razão de 12% ao ano, a partir da imissão provisória na posse até o efetivo levantamento, sobre os 20% do valor depositado que somente podem ser levantados depois do trânsito em julgado; 4- A correção monetária incidirá a partir da data laudo quando a avaliação considerou esta do valor de mercado, incidindo até a data do depósito; 5- Os honorários advocatícios serão fixados entre 0,5% e 5% do valor da diferença entre o valor arbitrado na indenização e o valor da oferta administrativa e em observância ao §3º do art. 20 do CPC (art. 27, §1º, DL nº 3.365/41).
(TJMG – Apelação Cível 1.0024.11.278058-0/002, Relator(a): Des.(a) Renato Dresch , 4ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 03/03/2016, publicação da súmula em 10/03/2016)
3 CONCLUSÃO
Verifica-se do exposto que a norma técnica NBR 14.653-1, da ABNT, que objetiva disciplinar procedimentos gerais de avaliação, prevê o acréscimo nos laudos de avaliação do denominado fator de comercialização, que se traduz na operação matemática de divisão do valor de mercado do bem pelo custo de reedição do mesmo.
Quando o resultado dessa operação for maior que 1 (um), o fator de comercialização ganha o nome específico de vantagem da coisa feita.
Entretanto, a vantagem da coisa feita representa a incorporação de um lucro, na medida em que a pessoa desapropriada receberá pelo valor de mercado do bem, enquanto a reedição do mesmo possui custo menor.
Ainda, deve ser afastada a adoção da vantagem da coisa feita em desapropriação, pois despida de previsão legal. A norma técnica da ABNT não pode inovar originariamente no ordenamento jurídico, estabelecendo a indenização com o acréscimo de elemento estranho ao necessário à recomposição do patrimônio, violando o preceito da justa indenização.
Por fim, há que se considerar que o fato de o valor de mercado ser superior ao custo de sua reedição em geral decorre da própria influência, direta ou indireta, da intervenção do poder público na localidade para a execução da obra pública.
REFERÊNCIAS
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 27ª ed. São Paulo: Atlas, 2014.
HARADA, Kiyoshi. Desapropriação: doutrina e prática. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2014.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 36ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
MOREIRA, Egon Bockmann; GUIMARÃES, Bernardo Strobel. A desapropriação no Estado Democrático de Direito. Em: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (coord.). Direito administrativo e seus novos paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 2ª ed. São Paulo: Método, 2014.
SALLES, José Carlos de Moraes. A desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. 5ª ed. São Paulo: RT, 2006.
NOTAS
[1] A NBR 14.653-1 define o valor de mercado como a “quantia mais provável pela qual se negociaria voluntariamente e conscientemente um bem, numa data de referência, dentro das condições do mercado vigente”.
[2] A NBR 14.653-1 define o custo de reedição como o “custo de reprodução, descontada a depreciação do bem, tendo em vista o estado em que se encontra”.
[3] A NBR 14.653-1 define o custo de substituição como o “custo de reedição de um bem, com a mesma função e características assemelhadas ao avaliando”.
Procurador Autárquico do Município de Belo Horizonte/MG. Especialista em Direito Processual pela PUC/MG. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Viçosa.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CIRQUEIRA, Filipe de Oliveira. Da inaplicabilidade da vantagem da coisa feita na apuração da justa indenização em desapropriação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 ago 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47336/da-inaplicabilidade-da-vantagem-da-coisa-feita-na-apuracao-da-justa-indenizacao-em-desapropriacao. Acesso em: 26 dez 2024.
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