RESUMO: Em linhas gerais, recorre-se às seguintes análises pertinentes: A pena que decorre do poder soberano e do monopólio do Estado em usar a força, serve para fins diversos. No decorrer da História, as penas passaram a de caráter meramente aflitivo para uma forma mais “humanizada”. De acordo com certas teorias, o objetivo pode ser: prevenção, reprovação ou a ressocialização. A pena de prisão, mesmo a temporária que é usada e abusada pelas autoridades, em flagrante desrespeito à presunção de inocência; causa superlotação nos presídios. O sistema prisional brasileiro é negligenciado pelo Estado, de modo que até mesmo as penitenciárias funcionam superlotadas. A vida em relações intersubjetivas, “criminoso de alta periculosidade convivendo com os de menor”, contando com a omissão do Estado, possibilita a aquisição da cultura criminal e a socialização do crime.
PALAVRAS-CHAVE: pena, sistema prisional, cultura criminal .
1. INTRODUÇÃO
Este pequeno artigo é fruto de uma ideia surgida a partir do momento em que comecei cursar a disciplina Criminologia no curriculum da minha faculdade de Direito. Me despertou interesse o estudo e o aprofundamento nesta disciplina, pelo fato de ela utilizar conceitos e métodos de diversas disciplinas, enriquecendo nossa visão de mundo e de ver as coisas, sobretudo ao se apropriar dos conceitos da ciências humanas. Os conteúdos ministrados na sala de aula me ofereceu um embasamento teórico e filosófico, bem como a possibilidade de reflexão sobre o fenômeno jurídico e as teorias sobre os sistemas de justiça, que certamente subsidiou a demarcação teórica para a elaboração deste trabalho de conclusão de curso. Embora não explicitado, neste artigo adota-se o conceito de Direito como fruto das relações sociais, costume, cultura e das lutas sociais e democráticas (REALE 2011, p.571).
Já que o projeto pedagógico do nosso curso de direito adota a interdisciplinariedade como princípio epistemológico máximo, procurarei estabelecer um diálogo com o tema nos diversos ramos do conhecimento humano: Filosofia, Sociologia, Psicologia, Criminologia, Antropologia e Direito.
O título do presente trabalho sugere uma constatação óbvia, devido a exploração do assunto pela mídia e pelas discussões entre os políticos, especialistas e os cidadãos.
Uma reflexão acerca do tema sugere a seguinte situação-problema e os questionamentos a seguir: O discurso da ressocialização é legítimo ou falacioso? Como ressocializar se afastamos o indivíduo da sociedade, só devolvendo-o algum tempo depois? (GRECO 2011, p.382). Como é possível a reintegração social, se a prisão lhe causa um forte estigma e um inconfundível etiquetamento social? (WACQUANT 1999, p.94). Por fim, diante deste quadro de desprezo e desrespeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, o Estado tem legitimidade para agir coercitivamente ou interferir no sistema normativo da sociedade carcerária? (GRECO 2010, p.492).
2. DESENVOLVIMENTO
2.1 O MODELO DE SISTEMA PRISIONAL ADOTADO NO BRASIL
Os sistemas prisionais ou penitenciários na forma que conhecemos hoje, surgiram no século XVIII, na Europa e nos Estados Unidos. Entre os que mais se destacaram, segundo o Prof. Rogério Greco (2010, p.470), estão os modelos pensilvânico, auburniano e o progressivo. Para o Prof. Damásio de Jesus (JESUS 2011, p.565), o Código penal brasileiro não adotou o sistema progressivo, que se caracteriza por um período de isolamento seguido por uma fase de trabalho com outros condenados, mas sim um sistema progressivo, como está registrado na Lei de Execução Penal art. 112 “as penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado”.
Assim, um condenado ao cumprimento de pena em regime fechado, de acordo com o seu comportamento, seria transferido para os regimes semi-aberto e aberto, progressivamente. A meta dessa progressividade seria adaptar o condenado ao convívio social, ao passo que fosse diminuindo o rigor da pena. Desta forma, ao aplicar a pena de restrição de liberdade, o Estado se encarregaria de prestar ao apenado assistência material e à saúde, além de possibilitar o exercício do trabalho, o convívio social com a família e a assistência religiosa. Todo este conjunto de medidas, teria em vista, alcançar a ressocialização.
2.2 DAS PENAS E DOS SEUS OBJETIVOS
A imputação e aplicação da pena decorre do ius puniendi do Estado, ou seja, do direito deste ente de aplicar uma sanção ao indivíduo que pratica ato típico, ilícito e culpável.
As penas no decorrer dos períodos históricos e de acordo com as ideologias e valores de cada sociedade, tem assumido significados diversos. Neste sentido, assevera o Prof. Rogério Greco (GRECO 2010, p.463), em seu Curso de Direito Penal, parte geral:
Verifica-se que desde a antigüidade até, basicamente, o século XVIII, as penas tinham um característica extremamente aflitiva, uma vez que o corpo do agente é que pagava pelo mal por ele praticado. O período iluminista, que teve início no século XVIII, foi um marco inicial para uma mudança de mentalidade no que dizia respeito à cominação das penas.
A essa mudança de mentalidade, atribui-se como precursor teórico, em prol de penas mais justas e humanizantes, o pensador Cesare Beccaria (BECCARIA 1999) com seu livro Dos Delitos e Das Penas. A questão proposta por Cesare Beccaria (BECCARIA 1999, p.139) no final da sua obra Dos Delitos e Das Penas é a seguinte:
Que o grau das penas deva ser relativo ao estado da própria nação. Mais fortes e sensíveis devem ser as impressões sobres os ânimos endurecidos de um povo recém-saído do estado selvagem. À medida que os espíritos se abrandam no estado de sociedade, cresce a sensibilidade e, crescendo esta, deverá diminuir a intensidade da pena, se se desejar manter constante a relação entre o objeto e a sensação.
É inigualável a contribuição teórica de Beccaria às ciências criminais, seu senso de justiça e sua preocupação com o viver com segurança em sociedade. Apesar destas pontuações acerca do assunto abordado por Cesare Beccaria no final de sua obra (BECCARIA 1999, p.139), ele brilhantemente extrai de seu livro um teorema:
Para que a pena não seja a violência de um ou de muitos contra o cidadão particular, deverá ser essencialmente pública, rápida, necessária, a mínima dentre as possíveis, nas dadas circunstâncias ocorridas, proporcional ao delito e ditada pela lei.
Este teorema visa a aplicação da norma com vistas ao alcance da justiça. É uma questão atual que deve ser levada em conta pelos atuais operadores do direito, já que o positivismo jurídico, tendo como principal expoente Hans Kelsen (1976); na tentativa de dar ao Direito status de ciência, separou o Direito do ideal de justiça, no intuito de purificá-lo de qualquer valoração.
No Brasil, de acordo com o art.32 do Código Penal brasileiro, as penas podem ser classificadas em: Privativas de liberdade, restritivas de direitos e multa. As penas privativas de liberdade se dividem em: prisão simples (Lei de Contravenções Penais), reclusão e detenção (Código Penal). As penas restritivas de direitos são: Prestação pecuniária, perda de bens e valores, prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, interdição temporária de direitos e limitação de fim de semana. A pena de multa possui natureza pecuniária e o seu cálculo é feito com base no sistema de dias-multa.
No que se refere aos objetivos da pena, três teorias disputam espaço na doutrina: A teoria absoluta, a relativa e a mista ou unificadora da pena. A primeira prega a função retributiva da pena, a segunda defende o seu caráter preventivo; e a terceira, por fim, conjuga o aspecto da prevenção e da reprovação da pena (GRECO 2010, p.465). Esta última teoria é a que foi abraçada por nosso Código conforme se depreende do Art.59 do Código Penal, que reza :
O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.
A reprovação se traduz na capacidade retributiva da pena,ou seja, seria uma espécie de “compensação” ou “pagamento” que o condenado faria à sociedade por ter violado seus bens jurídicos mais relevantes. Preleciona Claus Roxin (2006) apud Rogério Greco (GRECO 2010, p.465):
a teoria da retribuição não encontra o sentido da pena na perspectiva de algum fim socialmente útil, senão em que mediante a imposição de um mal merecidamente se retribui, equilibra e espia a culpabilidade o autor pelo fato cometido.
SCURO NETO (2000, p.95) compartilha com a mesma ideia quando ensina a respeito do aspecto retributivo da pena:
a função de tratamento não consegue estabelecer um vínculo claro com a infração; concentra-se, da mesma forma que a função punitiva, unicamente nos motivos e nas necessidades do infrator, do qual, todavia, nada exige, a não ser que se submeta a um regime tutelado de benefícios, custeados pelo contribuinte.
A prevenção se revelaria pela capacidade da pena aplicada ao agente, de intimidar aqueles que tem inclinação para a prática de crimes a não cometê-los; além de infundir na consciência das pessoas a necessidade de respeitar determinados bens jurídicos e certos valores sociais (GRECO 2010, p.466).
Já a Criminologia radical, variante do paradigma da reação social tem uma outra visão a respeito da pena e dos seus objetivos:
Esta caracteriza-se, genericamente, por entender a punição como um meio de defesa social. Esta teoria acolhe os princípios da recuperação e da prevenção mas enfatiza o caráter social do segundo. De acordo com esta teoria, a punição precisa ser usada para defender a sociedade da perpetração de crimes e, consequentemente, não pode ser somente sanção. Deve ser acompanhada por outras medidas, por exemplo, intervenção educacional, assistência econômica e terapia de saúde. (Maia, Rodolfo Tigre. O Estado desorganizado contra o Crime Organizado, p. 03, Ed. Lumen Juris, RJ, 1997).
2.3 A SELETIVIDADE DO SISTEMA PENAL
Estudos realizados por doutrinadores seguidores do paradigma da reação social ou Criminologia crítica demonstraram que o sistema penal é seletivo e discriminatório, atuando de acordo com o critério de status social do infrator. O desvio de conduta e a criminalidade não são uma qualidade intrínseca da conduta, mas uma qualidade atribuída a determinados sujeitos através de complexos processos de interação social formais e informais de definição e seleção (ANDRADE 1997), como leciona Camila Prando (PRANDO 2006, p.04):
Aqueles alcançados pelo sistema penal são “selecionados”, isto é, verdadeiramente escolhidos: não pela sua conduta delitiva, mas pelo seu status social, além de não se constituírem pela sua totalidade dos que efetivamente cometem delitos. Alguns teriam, assim, mais “chances” de criminalização do que outros. Esse poder de definição acaba selecionando estratos sociais específicos sob os quais deve recair geral e necessariamente a atividade repressiva e punitiva do Estado, independemente dos atos concretos que estes indivíduos tenham (ou não) realizado... a uniformidade e igualdade proporcionadas pela programação normativa do Direito Penal não passam de falácias, principalmente quando se sabe que a maioria dos clientes do sistema penal (delegacias, processos judiciais, penitenciárias, etc) são estritamente definíveis como pobres e/ou apartados do processo produtivo e da cultura dominante. (PRANDO. Porque estudar Criminologia hoje: apontamentos sobre um discurso conta-hegemônico à dogmática penal tradicional. 2006, p.04)
A seletividade do sistema penal fica mais evidente no contexto da transição do modelo de Estado ocorrida no século vinte, e, que Loic Wacquant (WACQUANT 1999, p.94) denomina de “Estado –Providência para o Estado-Penitência”:
“o superdesenvolvimento das instituições que atenuam as carências da proteção social (safety net) implantando nas regiões inferiores do espaço social uma rede policial e penal (dragnet) de malha cada vez mais cerrada e resistente. Pois à atrofia deliberada do Estado social corresponde a hipertrofia distópica do Estado penal: a miséria e a extinção de um têm como contrapartida direta e necessária a grandeza e a prosperidade insolente do outro.(Loic Wacquant, As Prisões da Miséria, 1999, p.51)
“Máquina varredora da precariedade, a instituição carcerária não se contenta em recolher e armazenar os (sub)proletários tidos como inúteis, indesejáveis ou perigosos, e, assim, ocultar a miséria e neutralizar seus efeitos mais disruptivos: esquece-se frequentemente que ela própria contribui ativamente para estender e perenizar a insegurança e o desamparo sociais que a alimentam e lhe servem de caução. Instituição total concebida para os pobres, meio criminógeno e desculturalizante moldado pelo imperativo (e o fantasma) da segurança, a prisão não pode senão empobrecer aqueles que lhe são confiados e seus próximos, despojando-os um pouco mais dos magros recursos de que dispõem quando nela ingressam, obliterando sob a etiqueta infamante de "penitenciário" todos os atributos suscetíveis de lhes conferir uma identidade social reconhecida. (Loic Wacquant, As Prisões da Miséria, 1999, p.94)
Considerando a seletividade do sistema penal, demonstrada pelo marco teórico da Criminologia crítica, confrontando-o a partir do princípio da igualdade e dos fundamentos da ordem democrática, constata-se que há uma grave lesão dos fundamentos do regime democrático brasileiro e da Constituição Federal deste país (MAIA NETO 2006, p.85).
Diante deste arcabolso teórico, pergunta-se: Existe um compromisso ético do sistema penal com a ordem democrática e o princípio constitucional da igualdade? É legítimo a adoção de critérios distintivos no contexto do Estado Democrático de Direito e de um regime democrático? Qual terá maior efetividade – o princípio da igualdade ou um sistema penal seletivo? Como e por que persiste um sistema penal nestes moldes diante de um regime democrático? (MAIA NETO 2006, p.77, 78).
2.4 RESSOCIALIZAÇÃO OU SOCIALIZAÇÃO DO CRIME? DA INEFICÁCIA DA PRISÃO – A AQUISIÇÃO DA CULTURA CRIMINAL
O processo de ressocialização ou de reintegração social seria:
um conjunto de intervenções técnicas, políticas e gerenciais levadas a efeito durante e após o cumprimento de penas ou medidas de segurança, no intuito de criar interfaces de aproximação entre Estado, Comunidade e as Pessoas Beneficiárias, como forma de lhes ampliar a resiliência e reduzir a vulnerabilidade frente ao sistema penal.<http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJDA8C1EA2ITEMID0A92E04549BC444EBF4358C793E9539APTBRNN.htm> Acesso em 16/11/2011.
A aplicação da pena privativa de liberdade, que teria o objetivo primordial de ressocializar o condenado, na verdade não tem alcançado este objetivo. Isto fica evidente quando verificamos os altos índices de reincidência dos egressos do sistema prisional brasileiro . Ao invés de ressocializar a sua clientela, o sistema prisional brasileiro, que é objeto de descaso das autoridades públicas e funciona à base da superlotação, constitui-se em espaço para a socialização do crime (MAIA NETO 2006, p.85).
Este descaso do Estado e da sociedade brasileira em relação às prisões ilustra bem o que foi constatado por FOUCAULT (2011, p.186), quando faz a seguinte afirmação a respeito de certa classe social:
a burguesia não se importa absolutamente com os delinquentes nem com sua punição ou reinserção social, que não têm muita importância do ponto de vista econômico, mas se interessa pelo conjunto de mecanismos que controlam, seguem, punem e reformam o delinquente. (Michel Foucault, Microfísica do Poder, p.186).
O conceito de socialização foi desenvolvido pela Sociologia. No magistério de SCURO NETO (2000, p.135):
Socialização é a maneira pela qual os membros de uma sociedade aprendem modelos sociais de conduta, os assimilam e os transformam em regras, incorporando-os às suas próprias vidas. Isso constitui um processo de aprendizado, não hereditário, que depende da conveniência, das necessidades dos atores.
A socialização do crime nas unidades prisionais se dá desta forma: O convívio na prisão de tais presos, que outrora cometera crimes considerados leves, com outros de maior periculosidade, viabilizando o processo de “socialização” ou “endoculturação” (LARAIA 2003, p.48,49). É a aquisição da cultura criminal nas cadeias e presídios do país. Como ela se desenvolve?
Cada sociedade isolada possui a sua cultura, suas realizações distintivas, mostrando que os comportamentos característicos dos membros de uma sociedade são diferentes dos comportamentos dos integrantes de outras sociedades, de modo que cada sociedade possui sua cultura. Isto se aplica à sociedade carcerária. SHECAIRA (2008, p. 250) nos ensina:
Cada sociedade é internamente diferenciada em inúmeros subgrupos, cada um deles com distintos modos de pensar e agir, com suas próprias peculiaridades e que podem fazer com que cada indivíduo, ao participar destes grupos menores, adquira culturas dentro da cultura, isto é, subculturas. - (Sérgio Salomão Shecaira, Criminologia, pág.250)
De modo similar, a sociedade carcerária também desenvolveu ao longo do tempo sua cultura como forma de sobrevivência ao novo ambiente, qual seja, a prisão. Esta cultura se revela desde a engenhosidade útil a adaptação a um estilo de vida restrito de recursos materiais e tecnológicos, como são, de modo geral, as prisões; ao aprendizado de estilos de vida criminosos. Este último aspecto da sociedade carcerária, eu achei apropriado chamá-lo de fenômeno da “socialização do crime” (LARAIA, 2003, p.48,49). SHECAIRA (2008, p.250) ensina nesta mesma linha:
A subcultura delinquente, por sua vez, pode ser resumida como um comportamento de transgressão que é determinado por um subsistema de conhecimento, crenças e atitudes que possibilitam, permitem ou determinam formas particulares de comportamento transgressor em situações específicas. Esse conhecimento, essas crenças e atitudes precisam existir, primeiramente, no ambiente cultural dos agentes dos delitos e são incorporados à personalidade, mais ou menos como quaisquer outros elementos da cultura ambiente.(Sérgio Salomão Shecaira, Criminologia, pág.250)
Desta forma, aqueles que abarrotam as detenções com presos provisórios pensando que está cumprindo com o seu dever funcional e defendendo a sociedade dos “maus elementos”, na verdade estará fazendo um desserviço, por encaminhá-los à “universidade do crime”, como nossas prisões são conhecidas (CARVALHO 2011, p.80, apud, CASTRO 1991). Possibilitando assim, a ocorrência do fenômeno do “contágio criminal” (MAIA NETO 2006, p.72).
Quando retornam ao convívio social, estes egressos já estão com as suas cabeças totalmente voltada para a criminalidade, e dispostos a agora praticar crimes de maior ofensa à sociedade, uma vez que eles estão revoltados com as “injustiças” e o descaso do Estado, além de ter absorvido todo aquele modo de vida criminoso. D. D. Winnicott (1987), em Criminologia Clínica e Psicologia Criminal, afirma com propriedade:
a pena privativa de liberdade, não só em nada contribui para a resolução do conflito (entre o condenado e a vítima), como, pelo contrário, dado seu caráter repressivo, de exercício legitimado do domínio e do poder, dado seu caráter de degradação, deterioração e de despersonalização do condenado, fatalmente contribui para a atualização do conflito fundamental e agravamento dos conflitos atuais.
Neste sentido, são complementares as idéias de Wacquant (1999, p.94) ao analisar os efeitos do cárcere sobre os egressos do sistema prisional norte-americano:
Os efeitos do encarceramento sobre as populações e os lugares mais diretamente colocados sob tutela penal: estigmatização, interrupção das estratégias escolares, matrimoniais e profissionais, desestabilização das famílias, supressão das redes sociais, enraizamento, nos bairros deserdados onde a prisão se banaliza, de uma" cultura de resistência", até mesmo de desafio, à autoridade, e todo o cortejo das patologias, dos sofrimentos e das violências (inter)pessoais comumente associadas à passagem pela instituição carcerária. (Loic Wacquant, As Prisões da Miséria, 1999, p.94)
No que tange ao alcance e a eficácia da chamada ressocialização como intervenção clínica na pessoa do condenado ou delinquente, como prefere chamar, proposta pelo Estado mediante os órgãos de administração penitenciária, Antônio García-Pablos de Molina (MOLINA 2002, p.160) em , Criminologia: Introdução a seus Fundamentos Teóricos, afirma categoricamente:
Pedir uma modificação qualitativa da pessoa do delinquente – um homem novo – é, sem dúvida, pedir demasiado. Esperar tal milagre da intervenção penal é desconhecer as atuais condições de cumprimento da pena privativa de liberdade e o efeito que esta produz no homem real do nosso tempo, segundo a própria experiência científica. Não parece fácil que o Estado garanta a ressocialização do condenado, quando não é capaz sequer de assegurar sua vida, sua integridade física, sua saúde.
A lição do Prof. Rogério Greco (GRECO 2010, p.492) resume este ciclo de forma contundente:
O erro cometido pelo cidadão ao praticar um delito não permite que o Estado cometa outro, muito mais grave, em tratá-lo como animal. Se uma das funções da pena é a ressocialização do condenado, certamente num regime cruel e desumano isso não acontecerá. As leis surgem e desaparecem com a mesma facilidade. Direitos são outorgados, mas não são cumpridos. O Estado faz de conta que cumpre a lei, mas o preso, que sofre as conseqüências pela má administração, pela corrupção dos poderes públicos, pela ignorância da sociedade, sente-se cada vez mais revoltado, e a única coisa que pode pensar dentro daquele ambiente imundo, fétido, promíscuo, enfim, desumano, é em fugir e voltar a delinqüir, já que a sociedade jamais o receberá com o fim de ajudá-lo.
Repete-se, o uso abusivo da prática do encarceramento como resposta penal à violação da lei tem causado um fenômeno inverso, denunciando a falácia da racionalização da prisão pelos teóricos do sistema penal, levando a cabo a socialização do crime (PRANDO 2006, p.04).
O interno convivendo no cárcere constrói sua subjetividade, reforçando seus “valores e condutas desviadas”, como bem explica a Doutora em psicologia social Ana M. Bahia Bock (BOCK 2008, p.23), em Psicologias:
O mundo social e cultural, conforme vai sendo experenciado por nós, possibilita-nos a construção de um mundo interior. São diversos fatores que se combinam e nos levam a uma vivência muito particular. A subjetividade é a maneira de sentir, pensar, fantasiar, sonhar, amar e fazer de cada um. Entretanto, a síntese que a subjetividade representa não é inata ao indivíduo. Ele a constrói aos poucos, apropriando-se do material do mundo social e cultural.
Poderíamos então afirmar que de fato há uma socialização que se opera em sentido contrário aos objetivos propostos pelo sistema penal, ao invés de socializar para a vida em sociedade, a socialização se dá para o mundo do crime. A própria Psicologia explica como desencadeia este fenômeno, o processo de socialização (BOCK 2008, p.182):
A formação do conjunto de nossas crenças, valores e significações dá-se no processo que a Psicologia social denominou socialização. Nesse processo, o indivíduo torna-se membro de um determinado conjunto social, aprendendo seus códigos, suas normas e regras básicas de relacionamento, apropriando-se do conjunto de conhecimentos já sistematizados e acumulados por esse conjunto.- Psicologias, pág. 182, Ana M. Bahia Bock (2008).
Realmente, se o Estado brasileiro deseja, de fato, ressocializar aqueles que porventura falham por cometer crimes, ele deve criar e manter estruturas que ofereçam atividades que são úteis na formação do indivíduo e que possibilite a vida em sociedade sem precisar recorrer a práticas de condutas típicas, neste sentido pode-se citar: o respeito aos direitos básicos da pessoa humana, o trabalho, a educação e a gestão do sistema prisional com vistas não na opressão e na coação, mas gerindo o sistema com foco na formação do cidadão, que no futuro retornará à vida em meio aberto (BARROSO 2009, p.105,106).
2.5 POSSIBILIDADE DE INTERVENÇÃO DO ESTADO A PARTIR DOS PRINCÍPIOS, NORMAS E VALORES DA SOCIEDADE CARCERÁRIA
De acordo com os cientistas sociais, psicólogos e os estudiosos da sociedade carcerária e do sistema prisional, assim como todo grupo social e ou sociedade, os que se encontram encarcerados, no âmbito das prisões onde passam a conviver com novas demandas e dificuldades, em relações intersubjetivas, desenvolvem mecanismos de sobrevivência, defesa e de convívio social. Neste sentido, são os ensinamentos de LARAIA (2003, p.45) que dá o seguinte esclarecimento:
O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridas pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções. Estas não são, pois, o produto da ação isolada de um gênio, mas o resultado do esforço de toda uma comunidade. – Roque de Barros LARAIA, Cultura: Um conceito antropológico, 2003, pág. 45.
São desenvolvidos a partir das necessidades práticas do grupo uma estrutura de poder e um sistema normativo específico, com suas normas, princípios e valores morais a serem observados por aqueles que ali se encontram cumprindo pena ou detido temporariamente. Segundo CARVALHO (2011, p.81):
Nesse contexto, são criadas as regras, muitas vezes acordos silenciosos, do “proceder” e do “atuar”. A compreensão de tais aspectos é fundamental para orientar a conduta dos presos, uma vez que aumenta as chances de serem relativamente “bem-sucedidos” em sua experiência ao longo do tempo de pena.
No mesmo sentido, é a afirmação da Dra. Ana M. Bahia Bock (BOCK 2001, p.446), em Psicologias:
O homem vive em grupos sociais. Em todos os grupos existem normas e regras que regulam a relação das pessoas no seu interior e, ... É sempre mais fácil o conformismo às normas quando se conhece seu significado, sua utilidade e concorda-se com elas.
Apropriando-se do conceito de norma jurídica da ciência do direito, segunda a qual, na lição do Prof. Miguel Reale (REALE 2011, p. 571):
uma norma jurídica é a integração de algo da realidade social numa estrutura regulativa obrigatória... Quando o homem, segundo prismas valorativos, aprecia uma por- ção da realidade humana, e essa estimativa é comum a outros homens, abre-se a possibilidade de uma exigência social consubstanciada no que chamamos norma, que pode ter a força específica de uma norma jurídica quan-, do pela intersubjetividade dos fins visados, o processo normativo é garantido pelo Poder.
Seria lícito afirmarmos, já que para outros constitui em verdadeira heresia, que o sistema normativo que rege os indivíduos que se encontram encarcerados, é composto por normas que possuem todos os atributos de uma norma jurídica, e portanto, pela sua juridicidade poder-se-ia considerá-las como tal.
Como intervir através das normas, princípios e valores da sociedade carcerária? Quem seria responsável pelo zelo no fiel cumprimento de tais normas? Cabe ao Estado gerir este sistema normativo, como órgão jurisdicional? Existiria um “direito achado nas prisões”? Em caso afirmativo, como os seus institutos poderiam contribuir na eficácia da ressocialização e no aperfeiçoamento do direito penitenciário? O Estado poderia agir comunicativamente com estes fatores reais de poder? (CARVALHO 2011, p.81).
2.6 POSSIBILADEDES E ALTERNATIVAS À PENA DE PRISÃO
Diante da ineficácia da pena de prisão como medida ressocializadora, conforme evidenciado neste artigo, pergunta-se: Quais as alternativas à pena privativa de liberdade?
SCURO NETO (2000, p.96) lança luz sobre os efeitos que a medida ideal deve surtir sobre o condenado, quando ensina:
A questão, pois, não é judiar do infrator, ameaça-lo ou aterrorizá-lo, mas reafirmar uma obrigação no momento em que foi infringida, para fortalecer o sentido do dever, tanto do infrator quanto daqueles que testemunham o ato infracional, as pessoas que a infração tende a desmoralizar.
MAIA NETO (2006, p.71, 72) sugere as seguintes medidas alternativas:
“1. Sanções administrativas e civis.
2. Binding over: Sanção consistente no depósito, pelo réu, de quantia em dinheiro, que perderá se não se comportar do modo devido.
3. Admoestação com reserva de pena.
4. Utilização de penas tradicionalmente acessórias como principal.
5. Multa ou “dias-multas”.
6. Perdão judicial e outros mecanismos de renúncia à pena.
7. A diversión, que permite ao Ministério Público o sobrestamento do processo se o réu toma a seu cargo certas obrigações de caráter ressocializador, de acordo com o princípio da oportunidade.
8. Trabalho de utilidade social, considerando-se sua eficácia ressocializadora, às vezes como pena autônoma; outras, combinado com a reclusão parcial.
9. A semidetenção ou semiliberdade ou, ainda, arresto (prisão) de fim de semana.”
2.7 INOVAÇÕES SOBRE A PRISÃO CAUTELAR TRAZIDAS PELA LEI Nº 12.403/11
Atribuímos como causa do fenômeno da superlotação das prisões, o uso exagerado da prisão preventiva para os que cometem crimes que caberia responder o processo em liberdade e que muitas vezes o Estado antecipa o cumprimento da pena em presídios, sem sequer ter havido o devido processo legal e a possibilidade de defesa. Como diz CAPEZ (2011, p.324), com propriedade:
Sem preencher os requisitos gerais da tutela cautelar ( fumus boni iuris e periculum in mora), sem necessidade para o processo, sem caráter instrumental, a prisão provisória, da qual a prisão preventiva é espécie, não seria nada mais do que uma execução da pena privativa de liberdade antes da condenação transitada em julgado e, isto sim, violaria o principio da presunção da inocência. (CAPEZ, Curso de processo penal, 2011, p.324, 18ª Edição).
O legislador pátrio trouxe uma inovação que diz respeito à medida de prisão cautelar.
Como medida de política criminal, por iniciativa do Congresso Nacional, foi criada a Lei nº 12.403/11. Esta norma modifica os critérios de aplicação da medida da prisão cautelar, gerando modificação no Decreto – Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1974 - Código de Processo Penal.
O Prof. Nestor Távora (2011, p.352) leciona o seguinte a respeito do novo dispositivo legal:
A recente reforma do CPP, consagrada pela Lei nº 12.403/11, inova de forma bastante positiva a nossa legislação, estipulando, expressamente, a possibilidade de cominação de medidas cautelares não restritiva da liberdade, como forma de se evitar a prisão preventiva, que se torna residual.
Embora não se possa negar os benefícios decorrentes da recente reforma ocorrida no Código de Processo Penal Brasileiro, esta continua sendo uma medida ineficaz e incapaz de acabar com a seletividade do sistema penal (PRANDO 2006, p.04).
3. CONCLUSÃO
Neste pequeno artigo, fruto de pesquisa bibliográfica, fez-se um esforço no sentido de dotá-lo de caráter interdisciplinar. Para isso, houve apropriação dos conceitos e ensinamentos das principais disciplinas zetéticas, que fazem parte do currículo dos cursos de direito. Desta forma, pesquisamos nos principais manuais das ciências humanas, tais como: Sociologia, Antropologia, Filosofia, Criminologia, Ciências penais; os fundamentos que deram embasamento a este trabalho.
No desenvolvimento deste artigo, adota-se como marco teórico o paradigma da criminologia crítica ou da reação social.
Constata-se e expõe as falácias do discurso legitimador do Direito Penal que encobre a seletividade do sistema penal operados por suas agências (PRANDO, 2006, p.04).
4. REFERÊNCIAS
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica - do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.
________.Cidadania: do direito aos direitos humanos. São Paulo: Acadêmica, 1993.
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Advogado e Servidor do Sistema Socioeducativo do DF.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: QUEIROZ, Sidney Pinheiro de. O sistema prisional brasileiro: da ineficácia da prisão como medida ressocializadora Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 ago 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47388/o-sistema-prisional-brasileiro-da-ineficacia-da-prisao-como-medida-ressocializadora. Acesso em: 23 dez 2024.
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