1. Atitude dos Primeiros Povos
A questão da vida intra-uterina como valor social perde-se na penumbra das eras. Evidencia-se preocupação com a preservação da integridade física do feto ou embrião nos documentos mais antigos da história humana na terra.
No decorrer da história, o aborto foi (e vem sendo) provocado por vários métodos diferentes e seus aspectos morais, éticos, legais e religiosos são objeto de intenso debate em diversas partes do mundo. É uma das práticas que mais revela diversidade em seu tratamento através do tempo. Em certas épocas e regiões não é punido. Noutras épocas e em outros povos, é duramente castigado, chegando mesmo à pena de morte.
Papiros, no Egito Antigo, revelaram práticas obstetrícias realizadas há mais de 5 mil anos. Por obstetrícia entenda-se uma série de regras a seguir durante a gravidez, visando o bem-estar físico tanto da mãe como do novo ser[1]. O Código de Hamurabi, de 1700 anos antes de Cristo, trazia em seu texto forte represália contra quem fizesse uma mulher abortar, sancionando penas que variavam desde multa em dinheiro, até mesmo à morte. O aborto neste código era um crime cometido contra a mulher e considerava-se o maior prejudicado o marido, já que a mulher não passava de uma propriedade sua.
A bíblia, em seu livro de Êxodo (1000 anos antes de Cristo), assinalava que: “Se numa rixa entre dois homens, um bater numa mulher grávida de sorte que a faça abortar, mas fique viva, o culpado compensará o dano de acordo com aquilo que o marido lhe impuser e os juízes julgarem”. A maior preocupação era com o prejuízo econômico causado ao marido da gestante, reflexo do pensamento da época sobre os direitos (em verdade, a falta deles) das mulheres.
Destarte a existência de leis que salvaguardavam a integridade física da gestante na antiguidade, havia apenas, como preservação da integridade física da gestante e da vida intra-uterina, um mero reflexo, um direito condicionado a outro direito que se julgava mais relevante; no caso, o direito econômico do marido da vítima. Como consequência do pensamento reinante na época, não se encontrava neste período qualquer menção à respeito do aborto praticado pela própria gestante. Não havia previsão legislativa para o aborto auto-induzido. A proteção oferecida à vida intra-uterina contra um agente estranho, de um terceiro que queria lhe provocar qualquer dano, é bastante diferente daquela apresentada para protegê-lo da própria pessoa que o está gerindo. Esta última prática tornou-se alvo de debates somente séculos mais tarde, apesar da antropologia afirmar com convicção que o aborto é presente desde à Antiguidade.
Foi com renomados estudiosos Antigos, como Sócrates e Aristóteles, ao pregarem a utilidade do aborto como meio de contenção do aumento populacional, que este passou a ser visto sob outra ótica. Surpreendentemente, Aristóteles sugeria que fosse praticado o aborto antes que o feto tivesse recebido sentidos e vida, sem especificar, contudo, quando se daria este momento. É elementar que não o soubesse, pois com a tecnologia disponível na época se tornava impossível precisar tal momento[2]. Sócrates também admitia o aborto, sem outra justificativa que não a própria liberdade de opção pela interrupção da gravidez. Nelson Hungria considera Aristóteles como antecessor das ideias defendidas por Malthus muitos séculos após a existência do sábio grego.
No período da República Romana, a prática abortiva foi considerada um ato imoral, todavia tendo larga utilização entre as mulheres, principalmente entre aquelas que se preocupavam com a aparência física, o que neste período histórico possuía uma grande importância no meio social (herança do tempo do Império). Assim sendo, cresceu monstruosamente o número de abortos a ponto dos legisladores passarem a considerá-lo um ato criminoso. Como consequência criou-se a Lei Cornélia, onde passava-se a punir a mulher casada com pena de morte caso esta consentisse com a prática abortiva. Em relação a quem praticasse o ato aplicava-se a mesma sanção, com a possibilidade de abrandamento caso a gestante não falecesse em decorrência das manobras abortivas nela praticadas[3]. Passou-se a criminalizar tal conduta apenas porque entendia-se que esta prática era uma ofensa ao direito do marido à prole esperada, não havendo intenção de resguardar a vida intra-uterina. O aborto não levantava problemas éticos e o direito era influenciado pela tese estóica do feto como pars viscerum matris (“parte das entranhas maternas”). Comprova-se tal idéia o fato da meretriz, mulher livre, poder livremente abortar – não havia o marido, sujeito do direito tutelado, para ser prejudicado. Ocorre que, segundo Maurizio Mori:
A mudança de mentalidade e costumes somente ocorreu com o cristianismo, que vetou categoricamente o aborto por considerá-lo contrário à soberania de Deus sobre a vida humana e sobre o processo generativo[4].
Foi com a adoção do cristianismo e com a agregação de seus valores pelas sociedades que o adotaram (a Romana inclusa), que inseriu-se a concepção que trazemos até hoje, de que o embrião/feto é uma vida e tem seu direito resguardado desde o momento de sua concepção. Como bem coloca Matielo, "Além do mais, sendo o homem criado à imagem e semelhança de Deus, não deveria então, ter o poder de vida e morte sobre os demais, atributo este exclusivamente do Criador".
2. Da Primeira Represália ao Aborto Até a Primeira Tentativa Bem Sucedida de Legalizá-lo
Ao contrário do Velho e do Novo Testamento, os escritos dos cristãos são repletos de passagens que condenam o aborto. A primeira clara condenação do aborto na literatura cristã se encontra em um livro do século I, chamado Didaché, também conhecido como O Ensinamento dos Doze Apóstolos. O texto diz claramente: "Não matarás a criança por aborto. Não matarás aquilo que foi gerado". Foi a religião cristã que sedimentou a ideia de que a destruição da vida intra-uterina equivale a destruição de uma vida humana em formação.
Curiosamente, havia uma distinção no direito canônico entre feto animado e inanimado, como nos revela Fragoso:
Admitia-se que o feto passava a ter alma 40 a 80 dias após a concepção, conforme fosse do sexo masculino ou feminino. A distinção foi repudiada por S. Basílio (374 d. C) (...). Somente com a Constituição Apostólica Sedes, de Pio IX, em 1869, aboliu-se a distinção entre o feto animado e o inanimado, impondo-se as mesmas penas em qualquer caso[5]
À luz do pensamento acima exposto, conforme a idade do feto, passar-se-ia a tipificar a destruição de sua vida como aborto, caso já fosse “animado”. Se este fato ainda não tivesse ocorrido, não configuraria crime. Interessante notar que além de existir uma diferença temporal de 40 dias entre a “animação” do feto masculino e do feminino, era impossível com a tecnologia da época revelar o sexo do feto antes de seu nascimento. De acordo com este pensamento, Santo Agostinho não considerava o aborto um assassinato, mas uma perversão[6].
Após a queda do Império Romano é fácil reconhecer a imediata influência do pensamento cristão nas leis sobre o aborto. No século sexto os visigodos adotaram a pena de morte para quem quer que fornecesse drogas para provocar aborto. A mulher, se fosse escrava, seria punida por meio de castigos físicos; se fosse livre, seria degradada. No século seguinte a pena de morte passou a valer tanto para o vendedor da droga como para o marido da gestante, caso este ordenasse ou consentisse no crime.
A condenação à prática abortiva durante a Idade Média variava muito de um lugar a outro. Às vezes aplicavam-se sanções penais muito severas, outras vezes, muito brandas; em certos locais não havia sequer regulamentação, sendo a questão valorada de acordo com os costumes sociais; já em outros era prática corrente e aceita, pois se pensava que o feto se tornava humano somente após o nascimento. Em face do poder exercido pela Igreja, que trazia consigo um direito canônico extremamente repressivo e punitivo ao aborto, as nações que eram mais submissas às suas ideias - o que envolvia aspectos não apenas ideológicos, mas econômicos e militares - puniam tal prática mais severamente, enquanto as que não eram tão influenciadas tendiam de uma forma geral a serem mais brandas no tratamento a esta questão.
A situação relativa ao aborto tendeu para a homogeneidade apenas após a revolução francesa. A situação jurídica mudou radicalmente com a lei inglesa de 1803 que começou a punir severamente o aborto. Interdição análoga aconteceu com o Code Napoleón (1804), que foi de imediato adotado como modelo por outras legislações européias. Um processo similar se deu nos Estados Unidos, onde praticava-se o aborto em todos os estágios da gravidez, passando em 1828, no estado de Nova York, a regulamentação e criminalização. Ocorre que, segundo Maurizio Mori:
Nas primeiras décadas do século XIX, notou-se que qualquer intervenção cirúrgica (inclusive o aborto) era muito arriscada e frequentemente fatal para as pacientes. Graças a essa observação clínica proibiu-se, portanto, o aborto, assim como todas as outras intervenções cirúrgicas, a fim de proteger a vida das mulheres[7].
Percebe-se que o combate à prática abortiva tinha como tutela apenas a saúde da gestante, numa tentativa de limitá-la e conter o alto índice de mortalidade que a acometia. Não se tinha como finalidade última a preservação da integridade física intra-uterina, mas apenas a da gestante. Pelo princípio da precaução, como não se possuía recursos tecnológicos para se fazer uma intervenção cirúrgica com baixo risco, optou-se por proibi-la para evitar danos maiores a quem recorresse a tal prática – princípio atualmente largamente utilizado no direito ambiental para tutelar o meio ambiente em situações que não tenham contornos científicos ainda claramente delimitados. A sustentabilidade desta argumentação se dava exclusivamente no sentido da incapacidade tecnológica presente na época não prover um aborto seguro. Em decorrência lógica, caso ocorresse um avanço tecnológico que permitisse uma prática segura, passar-se-ia a admiti-lo. Este foi um dos fatos serviu de justificativa à primeira lei permissiva do aborto, influenciada também pelas teorias Malthusianas e Neomalthusianas, como se verá adiante.
Mesmo tendo-se saído da idade média e mergulhado na era Iluminista, com o renascimento científico, a igreja católica ainda era um óbice à progressão das ideias à respeito do aborto e da reprodução, pois ainda lhe restava muito poder. Pela forte repressão exercida por esta nas liberdades de pensamento, muito tempo se passou até que algo de novo surgisse à respeito não só do tema aborto, mas de qualquer teoria que visasse interferência de qualquer grandeza no que diz respeito à reprodução humana, assunto até então repleto de tabus e superstições, “sagrado”, portanto inatingível pela lógica humana.
Foi somente com a teoria de Thomas Malthus, em 1798, que se iniciou o campo de discussões dentro da área de interferência até então completamente protegida e dominada pela igreja e tutelada pelas legislações da maioria dos países (proibindo qualquer intervenção cirúrgica). A idade média tinha ficado para trás e o pensamento dos iluministas traziam novamente o resgate dos ideais filosóficos há muito esquecidos. Preocupado com o crescimento populacional acelerado, Malthus publicou uma série de ideias alertando sobre a importância do controle de natalidade, afirmando que o bem-estar populacional estaria intimamente relacionado com crescimento demográfico do planeta. Era alertado que o crescimento desordenado acarretaria a falta de recursos alimentícios para a população, gerando como consequência a fome. Malthus trouxe a questão do problema do aumento populacional e dos meios para conter ou estagnar este aumento. Como solução para este impasse propunha: a sujeição moral de retardar o casamento; a castidade antes do casamento, e ter somente o número de filhos que se pudesse sustentar.
Já os neomalthusianos, ao atualizarem a teoria proposta por Malthus, propunham a difusão de todos os processos de limitação dos nascimentos, ou seja, que os meios contraceptivos fossem utilizados largamente como forma de evitar a gravidez, tendo por finalidade última conter o crescimento populacional. Esta consciência foi desencadeada pela escassez de alimentos que o mundo passava no início do século XIX, aliada a teorias que previam o esgotamento dos recursos naturais do planeta, caso a taxa de natalidade não fosse controlada. O primeiro livro escrito sobre meios contraceptivos foi feito por Robert Dade, na América do Norte, e chamava-se “Moral Physiology”.
Percebe-se que apesar das teorias Malthusiana e Neomalthusiana não mencionarem a palavra aborto, apenas meios contraceptivos - meios que não possibilitariam o início da gravidez, ou seja, o surgimento de um novo ser - há profunda ligação de ambos os estudos com o aborto. Este já era largamente conhecido e praticado no país de origem de ambos estudos, a Inglaterra. A aplicação das teorias de controle populacional implicava inevitavelmente em aumento da prática abortiva, revelando-se como grandezas diretamente proporcionais. A consolidação das teorias de controle populacional causariam, fatalmente, o aumento do número de interrupções voluntárias da gravidez.
A primeira crítica violenta de que se tem notícia às leis vigentes no mundo (que eram não permissivas, como visto acima) sobre o aborto apareceu em 1910 no sexto volume dos "Estudos sobre a Psicologia do Sexo" do britânico Havelock Ellis, um dos pioneiros da sexologia.
Havelock afirmava naquela obra que: "não se pode mais permitir a discussão da validade do controle (de natalidade), porque ele é um fato consumado e tornou-se parte de nossa moderna moralidade". Depois de apresentar evidências de que o aborto ilegal estava amplamente disseminado na Inglaterra, na América, na França e na Alemanha, diz o estudioso que "sua condenação somente é encontrada no Cristianismo, e é devido a conceitos teóricos". Na obra ainda se ridicularizava um escritor francês que se referia ao direito da criança não nascida como "um direito sagrado e imprescritível, direito que nenhum poder poderá revogar". Os não nascidos, argumentava Havelock, ainda não são parte da sociedade humana e por consequência não só temos o direito de matá-los, como ainda a posição contrária seria "um vestígio de antigos dogmas teológicos". Dizia o autor que “o que há de 'direito irrevogável' no embrião é o mesmo que há de direito irrevogável no espermatozoide”.
Mesmo com o amadurecimento das ideias à respeito do aborto, muito se demorou para colocá-las abertamente em pauta devido a costumes e represálias morais e sociais. Nos Estados Unidos, a escritora Margareth Sanger, num livro sobre controle da natalidade, em 1921, intitulado Motherhood in Bondage, expressou algumas opiniões sobre o aborto. Até aquela época o movimento americano, para não atrair animosidades, tinha sido muito mais ferreamente oposto a tratar deste assunto do que o movimento inglês e europeu, não obstante ter sido o primeiro país a sancionar lei permissiva da prática em questão.
Foi somente em 1967, no estado do Colorado, nos Estados Unidos da América, que foi aprovada a primeira lei permissiva do aborto. Entre 1967 e 1970 cerca de metade dos estados americanos legalizaram o aborto. Nenhum deles, porém, a pedido (voluntário). O aborto somente seria legalmente concedido até um determinado estágio da gestação, geralmente em torno do primeiro trimestre da gravidez, e se preenchidas uma série de restrições legais, variáveis de estado para estado. Entretanto, chegou-se a um máximo em 1973 por ocasião da decisão do caso Roe versus Wade[8] pelo qual a Suprema Corte de Justiça obrigou todos os estados americanos a adotarem a prática do aborto a pedido durante todos os nove meses da gravidez. Naquele país, a aborto se tornou um direito constitucional da mulher, posição que perdura até os dias atuais, apesar de estar em pauta projeto de lei que proíbe tal prática em períodos avançados da gravidez[9]
3. Situação Atual do Aborto Perante a Comunidade Internacional
Em todo o mundo, segundo dados da OMS, das 210 milhões de gestações que ocorrem todo ano, entre 46 a 55 milhões, ou seja 22%, culminam em abortos. Destes, cerca de 30 milhões de procedimentos são obtidos legalmente e 20 milhões ilegalmente. Por dia são aproximadamente 126 mil. 78% dos abortos são realizados em países em desenvolvimento e os restantes 22% em países desenvolvidos[10].
Aproximadamente 97 países, com cerca de 70% das mulheres do mundo, tem leis que permitem a estas o aborto clinicamente assistido. Noventa e três países, com cerca de 30% da população feminina, proíbem o aborto ou permitem o aborto apenas em situações especiais como deformações do feto, violações (estupro dentre elas) ou risco de vida para a mãe – nosso país se inclui neste último grupo. Conforme exposto, todos os anos cerca de 20 milhões de abortos são realizados em países onde esta prática é restringida ou proibida por lei – portanto, praticados ilegalmente, na clandestinidade. Segundo a OMS, temos que:
One of the main limitations in getting accurate estimates of unsafe abortion is not only the lack of data in countries where abortion is illegal, but also the under-reporting and miscoding of cases, even in countries with liberal abortion policies. Nineteen million unsafe abortions are estimated to have taken place worldwide in the year 2000, 98% of which are estimated to occur in countries in development.[11].
Analisando-se os dados, percebe-se que 30 milhões de abortos anuais são realizados nos 70% dos países que permitem sua prática, e cerca de 20 milhões são praticados nos 30% restantes que não o permitem, trazendo a conclusão que o número de abortos praticados é proporcionalmente maior nos países em que é proibido por lei, do que naqueles que é legalizado. Desta informação percebe-se que de forma alguma a legalização do aborto se mostrou como um estímulo a sua prática desenfreada nos países que a adotaram, da mesma forma que sua criminalização não funcionou sob hipótese alguma como forma de coibição da prática abortiva.
Na União Européia, o debate jurídico à respeito do aborto sempre procurou, em geral, evitar a questão de saber se o feto é ou não pessoa, para concentrar seus esforços sobre a necessidade de conter a praga do aborto clandestino. Por sua legislação não permissiva[12], vinha ocorrendo morte de milhares de mulheres em decorrência da prática de aborto clandestino. Dos vinte e sete países que a compõem atualmente, todos têm legislação que permitem o aborto voluntário. Alguns, como Portugal, são bastante recentes nesta questão.
Na França, o aborto (legalizado em 1975) é permitido até as doze semanas a pedido da mulher caso não tenha razões para ser mãe - razões sociais ou econômicas. Existe um período de ponderação obrigatório (mínimo de 8 dias). No caso de gestante menor de 18 anos, há de ter consentimento de um dos pais ou de um representante legal. Exige-se em qualquer circunstância o aconselhamento da mulher. Permite-se tal prática após as 12 semanas apenas em caso de risco de vida ou saúde física da mulher ou risco de malformação do feto, sendo neste caso necessária a certificação escrita de dois médicos.
Portugal, como dito, foi um dos últimos países europeus a legalizar o aborto. Em razão da proibição ocorria um verdadeiro fluxo migratório de gestantes portuguesas para países vizinhos que permitiam sua prática, percebeu-se a ineficiência da legislação que condenava o aborto (tecnicamente denominado em Portugal como interrupção voluntária da gravidez), e foi proposto um referendo em 2007 para sua legalização. A partir deste, passou-se a permiti-lo até a décima semana de gravidez a pedido da mulher, independentemente de suas razões. Pode ser realizada no sistema nacional de saúde ou, em alternativa, em estabelecimentos de saúde privados autorizados.
Em sua lei nº 16/2007 indica que é obrigatório um período mínimo de reflexão de três dias e tem de ser garantido à mulher "a disponibilidade de acompanhamento psicológico durante o período de reflexão" e "a disponibilidade de acompanhamento por técnico de serviço social, durante o período de reflexão", quer para estabelecimentos públicos, quer para clínicas particulares. A mulher deve ser informada "das condições de efetuação, no caso concreto, da eventual interrupção voluntária da gravidez e suas consequências para a saúde da mulher" e das "condições de apoio que o Estado pode dar à prossecução da gravidez e à maternidade". Também é obrigatório que seja providenciado "o encaminhamento para uma consulta de planejamento familiar."
Em caso de violação sexual o aborto é permitido até às dezesseis semanas (não sendo necessário que haja queixa policial). Permite-se até às vinte e quatro semanas em caso de malformação do feto. Em qualquer momento há permissão caso ocorra risco de vida para a gestante ("perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida") ou no caso de fetos inviáveis. As mulheres que tenham realizado uma interrupção voluntária da gravidez ou tenham tido um aborto espontâneo em Portugal têm direito a licença por um mínimo de 14 dias e um máximo de 30 dias. O aborto provocado por terceiros sem consentimento da grávida é punível com 2 (dois) anos de prisão, e com 3 (três) no caso de haver consentimento. Estas penas são majoradas em caso de "morte ou ofensa à integridade física grave da mulher grávida", ou no caso de ser prática habitual. A própria mulher grávida que faça uma interrupção voluntária da gravidez ilegal é punível com 3 (três) anos de prisão.
Na China, assim como no Brasil, o aborto é considerado um crime. Em 1979, o governo chinês instituiu a política do filho único, numa tentativa de conter o aumento populacional. De acordo com tal política, o Estado bancaria todas as despesas básicas (saúde, educação, lazer) do primeiro filho do casal, mas apenas do primeiro. Caso optassem por ter outro, teriam que arcar com todas as despesas, sem nenhuma espécie de ajuda estatal no que diz respeito aos pontos citados, objetivando atuar como uma forma de desestímulo ao segundo filho. O grande problema que maculou esta política foi o fato de naquele país, um filho homem ter possibilidades muito maiores de emprego e de, consequentemente, “lucrar” mais que uma mulher, além de não existir por lá alguns institutos da Seguridade Social, como a aposentadoria. Perante a lei nacional chinesa resta como obrigação do filho (homem, portanto) mais velho prover a subsistência dos pais na velhice destes. Ora, se só se podia ter um filho(a), sendo o do sexo masculino mais propenso a dar lucro e ainda restar a este a obrigação de cuidar dos pais na idade avançada, percebe-se o porquê deste país possuir atualmente trinta e sete milhões de homens a mais que mulheres[13]. O aborto seletivo, mesmo tipificado como crime, foi a resposta encontrada pela sociedade chinesa para adequar-se à política do filho único.
Nos Estados Unidos, de forma geral, o aborto é permitido em qualquer estágio da gravidez, variando um pouco de um estado para outro, sendo entretanto, permitido em todos – como visto em tópico anterior, trata-se de um direito constitucional. Neste país são praticados por ano aproximadamente um milhão e trezentos mil abortos (dados do ano 2000), contabilizando três mil e setecentos por dia. Dentre os motivos, 1% são de violação ou incesto, 6% são de potenciais problemas de saúde (mãe ou feto); e 93% oriundos de razões sociais diversas (criança não desejada ou inconveniente, por exemplo). Interessante que nos EUA, país que tem 320 milhões de habitantes, o número anual de abortos está em 730 mil, enquanto no Brasil, com 200 milhões de habitantes, o número está em 850 mil.
O aborto na Austrália é permitido irrestritamente, funcionando nos mesmos moldes dos Estados Unidos. É um de seus procedimentos cirúrgicos mais comuns, mesmo com legislação variável por território, isto pelo fato de todos os Estados daquele país serem a favor do aborto legal e seguro. Há um alarde enorme criado pela corrente opositora à respeito do aumento de sua prática abortiva, posto que este número cresceu significativamente nas últimas décadas. Os críticos alegam que devido à legalização – ocorrida na nos anos 1970 – criou-se um estímulo ao aborto voluntário e que consequentemente está levando o país a uma crise demográfica e a um grave problema de saúde pública. Ocorre que na Austrália houve de fato um significativo aumento de sua prática desde a época em que foi legalizado (duplicou-se o número de procedimentos), mas o que revelam os dados é que mesmo com este crescimento, a média australiana de abortos por nascidos vivos ainda continua mais baixa que a média mundial. Como exposto no anexo I[14] deste trabalho, percebe-se que a taxa australiana é menor, v. g., que a americana, russa ou austríaca. Atualmente 23% das gravidezes australianas resultam em abortos[15].
Na América Latina, apenas Cuba, México, Guiana e Porto Rico permitem sem restrições o aborto, sendo esta conduta criminalizada em todos os demais. Segundo pesquisa divulgada em 2008 pela Organização Mundial de Saúde, seis milhões de mulheres praticam aborto induzido todos os anos na região. A estimativa é de um aborto de risco para cada três nascidos vivos. Deste total, cerca de 1,4 milhão são brasileiras e uma em cada 1.000 gestantes morre em decorrência do aborto, isto em face da grande maioria dos procedimentos serem ilegais, portanto feitos na clandestinidade, frequentemente em condições perigosas e insalubres. Como resultado, a região enfrenta um problema sério de saúde pública que ameaça às vidas das mulheres, põe em perigo sua saúde reprodutiva e impõe uma tensão severa aos já sobrecarregados sistemas jurídicos e de saúde. De acordo com pesquisas acadêmicas, de todos os abortos ilegais praticados anualmente no Brasil, cerca de 270 mil levam mulheres a serem internadas no Sistema Único de Saúde com complicações decorrentes daquela prática. Como bem observa Emmerick:
As estimativas do número de internações pós-abortamento, de mutilações e de mortes de mulheres, oriundas do aborto clandestino e inseguro na região são demasiadamente altas, o que faz com que o fenômeno do aborto clandestino seja considerado um paradoxo dentro do paradigma dos direitos humanos e da democracia[16].
Além de ser um paradoxo dentro de um estado democrático de direito, negligenciado pelo Estado brasileiro, a prática do aborto clandestino vai de encontro aos direitos humanos e democracia, revelando uma sociedade desigual e injusta, tanto por configurar um grave problema de saúde pública, como pelo tratamento jurídico dado à questão, que fere o princípio da dignidade da pessoa humana, valor intrínseco a qualquer ser humano.
4. O Tratamento do Aborto no Brasil
No Brasil, o crime de aborto foi tratado pela primeira vez no Código Criminal do Império de 1830, onde não se previa o delito praticado pela própria gestante, mas sim tido como criminal a conduta praticada por terceiro, com ou sem o consentimento daquela. Tal prática estava incluída nos crimes contra a segurança da pessoa e da vida, conforme previsto nos artigos 199 e 200:
“Art. 199 – Ocasionar aborto por qualquer meio empregado anterior ou exteriormente com o consentimento da mulher pejada. Pena: Prisão com trabalho de 1 a 5 anos. Se o crime for cometido sem o consentimento da mulher pejada. Penas dobradas”. “Art. 200 – Fornecer, com o consentimento de causa, drogas ou quaisquer meios para produzir o aborto, ainda que este não se verifique. Pena: Prisão com trabalho de 2 a 6 anos. Se esse crime foi cometido por médico, boticário ou cirurgião ou ainda praticante de tais artes. Penas dobradas”.
O Código Penal da República do ano de 1890, por sua vez, diferente do Código Criminal de 1830, retratou pela primeira vez o aborto provocado pela própria gestante, diferenciando o aborto em que ocorre a expulsão ou não do feto, sendo que, caso houvesse a morte da gestante, a pena seria agravada:
“Art. 300 - Provocar aborto haja ou não a expulsão do produto da concepção. No primeiro caso: pena de prisão celular por 2 a 6 anos. No segundo caso: pena de prisão celular por 6 meses a 1 ano. §1º Se em consequência do Aborto, ou dos meios empregados para provocá-lo, seguir a morte da mulher. Pena de prisão de 6 a 24 anos. §2º Se o aborto foi provocado por médico, parteira legalmente habilitada para o exercício da medicina. Pena: a mesma procedente estabelecida e a proibição do exercício da profissão por tempo igual ao da reclusão”.
“Art. 301 Provocar Aborto com anuência e acordo da gestante. Pena: prisão celular de 1 a 5 anos. Parágrafo único: Em igual pena incorrera a gestante que conseguir abortar voluntariamente, empregado para esses fim os meios; com redução da terça parte se o crime foi cometido para ocultar desonra própria”.
“Art. 302 Se o médico ou parteira, praticando o aborto legal, para salvar da morte inevitável, ocasionam-lhe a morte por imperícia ou negligencia. Penas: prisão celular de 2 meses a 2 anos e privado de exercício da profissão por igual tempo de condenação”.
Em conclusão, o Código Penal de 1940 especificou a prática abortiva em sua parte especial, Título I, que trata dos “Crimes Contra a Pessoa”, e no capítulo I do mesmo título, que trata dos “Crimes Contra a Vida”, conforme artigo 124 (a gestante assume a responsabilidade pelo abortamento), artigo 125 (o aborto é realizado por terceiro sem o consentimento da gestante) e artigo 126 (o aborto é realizado por terceiro com o consentimento da gestante), sendo que o artigo 127 se referiu a forma qualificada da prática delitiva.
Por fim, o artigo 128, em seus dois incisos, trouxe, exclusivamente, as causas exclusivas da ilicitude, ou mais conhecido como sendo o “aborto legal”.
“Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena – detenção, de um a três anos”.
“Art. 125 – Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de três a dez anos”.
“Art. 126 – Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de um a quatro anos. Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência”.
“Art. 127 – As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provoca-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte”.
“Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”.
A respeito deste último Código, BITENCOURT (2007, p. 129) cita que:
“O código Penal de 1940 foi publicado segundo a cultura, costume e hábitos na década de 30. Passaram mais de 60 anos, e, nesse lapso, não foram apenas os valores da sociedade que se modificaram, mais principalmente os avanços científicos e tecnológicos, que produziram verdadeira revolução na ciência médica. No atual estágio, a medicina tem condições de definir com absoluta certeza e precisão, eventual anomalia, do feto e, consequentemente, a viabilidade da vida extra-uterina. Nessas condições, é perfeitamente defensável a orientação do anteprojeto de reforma da parte especial do Código Penal, que autoriza o aborto quando o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais, ampliando a abrangência do aborto eugênico ou piedoso”.
Portanto, o nosso país se encontra na minoria que criminaliza o aborto, apenas admitindo a exclusão da ilicitude da conduta em casos que envolvam risco de vida da gestante, gravidez decorrente de estupro e mais recentemente, através de um julgado do STF com repercussão geral, por anencefalia do feto.
Existe um verdadeiro caos em relação ao tratamento da determinação de quando ocorre o início da vida pela legislação brasileira, pois para o Código Civil tem-se a proteção desde a concepção, para a Constituição Federal existe a proteção (não absoluta) à vida, mas sem precisar o momento. Para o Código Penal, onde ocorre a criminalização da prática do abortamento, também não há nenhuma indicação precisa de quando a vida humana passaria a ser juridicamente tutelada, mostrando o atraso da nossa legislação no tratamento desta questão importantíssima que tem se mostrado um problema de saúde pública desde que se tem registro.
O legislador brasileiro tem que criar conceitos bem definidos para o tratamento da questão, pois a nossa legislação arcaica não tem sido efetiva para a repressão à prática do abortamento, tanto que estamos com índices mais elevados do que países em que sua prática é permitida. Tal posicionamento tem repercussão direta em bens jurídicos extremamente relevantes, como a saúde pública e a dignidade da gestante.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Código penal. Decreto-Lei Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. In: VADE Mecum. 3. ed. São Paulo: Editora Rideel, 2006.
BULOS, Uadi Lamêgo. Comentários à constituição federal. 5. ed. São Paulo: RT, 2008.
DINIZ, Débora. Aborto seletivo no Brasil e os alvarás judiciais. Disponível em <http://www.portalmedico.org.br/revista/bio1v5/abortsele.html> Acesso em 20 de out. de 2009.
EMMERICK, Rulian. Aborto, (Des)criminalização, direitos humanos e democracia. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2008.
ENCICLOPÉDIA Brasileira Mérito, 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, v.14
JOHNSTON, Robert. Global Abortion Summary. 2000-2007, 2008. Disponível em <http:/www.oms.org>. Acesso em 14/09/2009.
KALSING, Vera Simone. O movimento em defesa da vida na votação do aborto legal no Rio Grande do Sul Disponível em <http://www.sociologos.org.br/textos/outros/aborto.htm.> Acesso em 10 de out. de 2009.
LIMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e anencefalia: direitos fundamentais em colisão. Curitiba: Juruá, 2009.
LOREA, Roberto Arriada. Acesso ao aborto e liberdades laicas. Rio de Janeiro: Horizontes Antropológicos vol.12. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-1832006000200008&script=sci_arttext.> Acesso em 02 de set. de 2009.
PACHECO, Eliana Descovi. O aborto e sua evolução histórica. Disponível em <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/3764/O-aborto-e-sua-evolucao-historica>. Acesso em 05 de agost. de 2009.
[1] ENCICLOPÉDIA Brasileira Mérito, 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, v.14
[2] Cf: Veremos que a teoria de Aristóteles tem muito a ver com a teoria proposta nesta monografia, mais adiante, no capítulo IV.
[3] MATIELO, Fabrício Zamprogna. Aborto e o direito penal. 3 ed. Porto Alegre: Sagra-DC Luzzatto, 1996.
[4] MORI, Maurizio. A moralidade do aborto. Brasília: Unb. p. 19, 1997.
[5] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais. v.2. p. 132.
[6] HISTÓRIA, Aventuras na. O aborto na história v.7. São Paulo, Abril, 2008.
[7] Op. cit. Nota 4.
[8] Cf: Intensa batalha jurídica ocorrida no Texas em 1973, que culminou na descriminalização do aborto em todo o país.
[9] Fabrício Brito. Aborto nos EUA Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u106563.shtml> Acesso em 10/10/2009.
[10] JOHNSTON, Robert. Global Abortion Summary. 2000-2007, 2008. Disponível em <http:/www.oms.org> Acesso em 14/09/2009.
[11] HEALTH, Mundial Organization of. Cf: Trad. feita pelo pesquisador: uma das principais limitações em se obter estimativas precisas sobre o aborto inseguro (ilegal) é não apenas a falta de dados em países onde o aborto é ilegal, mas também os casos omissos e não catalogados, até em países com política de legalização do aborto. Dezenove milhões de abortos ilegais foram estimados mundialmente no ano 2000, 98% dos quais estima-se que aconteceram em países em desenvolvimento.
[12] Cf: Resquícios do Código Napoleônico.
[13] Cf: este número representa 25% da população brasileira.
[14] Cf: ver anexo I na última página desta monografia.
[15] TOMKINS, James. Abortion an health. Disponível em <http://www.betterhealth.vic.gov.au> Acesso em 20/10/2009.
[16] EMMERICK, Rulian. Aborto, (Des)criminalização, direitos humanos e democracia. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2008, p. 37.
advogado criminalista, especialista em Direito Penal, Processual Penal e Segurança Pública pela FESP/PB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRé BELTRãO GADELHA DE Sá, . Evolução histórica do aborto Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 ago 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47418/evolucao-historica-do-aborto. Acesso em: 24 nov 2024.
Por: LEONARDO DE SOUZA MARTINS
Por: Willian Douglas de Faria
Por: BRUNA RAPOSO JORGE
Por: IGOR DANIEL BORDINI MARTINENA
Por: PAULO BARBOSA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO
Precisa estar logado para fazer comentários.