1. Etimologia e Conceito de Aborto
Etimologicamente, a palavra aborto deriva do latim “abortus”. “Ab” significa privação e “ortus” significa nascimento. Portanto, quanto ao étimo, aborto significa privação do nascimento[1].
De acordo com a Medicina Legal, o termo “aborto” como utilizado largamente no âmbito jurídico está incorreto. Aborto, segundo esta ciência, significa o resultado da ação e não a própria ação. Abortamento seria mais adequado porque trata da ação em si, que é o objeto jurídico que pretende ser tutelado pelo direito, apesar da imprecisão terminológica. Entretanto, como já consolidada no âmbito jurídico, se utilizará da palavra aborto para se referir tanto ao produto do abortamento, quanto à ação propriamente dita.
Pela definição médico-legal o delito de aborto é a interrupção da gravidez feita dolosamente em qualquer momento do ciclo gravídico, haja ou não a expulsão do feto. Classifica-se em espontâneo, o qual não causa repercussão jurídica criminal por se tratar de um fato natural; acidental, que da mesma forma não repercute juridicamente por não apresentar um de seus requisitos essenciais, qual seja, o dolo, a vontade de abortar; eugênico, o que evita o nascimento de pessoas deficientes, visando o aperfeiçoamento da reprodução humana - quando o feto tem alguma anomalia séria (principalmente cerebral), não sendo previsto em nossas leis, e; violento, que são as espécies previstas e punidas legalmente.
Tradicionalmente, a palavra aborto é empregada no sentido da interrupção da gestação com a morte do feto acompanhada ou não da expulsão do produto da concepção do útero materno. A gravidez pode ser interrompida e o feto permanecer no claustro materno. De acordo com Noronha[2], “aborto é a interrupção da gravidez com a destruição do produto da concepção (ovo, embrião ou feto).
A distinção entre as fases existentes desde a concepção ao nascimento são de ordem temporal e biológica: ovo é o produto da concepção até a segunda semana desde a fecundação – começa a se dividir por mitose e dá origem ao embrião; posteriormente passa-se ao período embrionário, que vai da segunda à oitava semana depois da fecundação – neste ocorre sua fase de diferenciação orgânica; a partir deste o concepto é denominado feto (é só neste que começa a se desenvolver o cérebro)[3].
2. O Aborto na Prática
A cada dia que passa, mais e mais países modificam suas legislações no sentido da legalização da prática abortiva. É pertinente neste sentido a observação de Danda Prado:
Também é preciso lembar que a legislação se põe, com frequência, a serviço de razões político-demográficas do Estado, e situa-se aí a causa da separação que sempre existiu entre a legislação sobre o aborto e o aborto de fato. A esse respeito, o fenômeno observado através dos tempos é que as mulheres abortam dentro ou fora da lei, mas o que se modifica consideravelmente é o índice de abortos mortais ou prejudiciais à saúde da mãe (…), pois este se reduz quando o aborto sai da clandestinidade.[4]
Como prova de que a legislação à respeito do aborto flutua muito mais ao sabor das mudanças político-demográficas do que pelo sentimento moral que rege tal questão, temos o curioso caso da Ilha de Formosa (atual Taiwan), ocorrido até fins do século XIX. Neste local, o aborto era obrigatório para mulheres com menos de 36 anos de idade, ou seja, toda e qualquer mulher menor de 36 anos que engravidasse seria obrigada a abortar. A medida era praticada pelo Estado com o único fundamento de que era necessária para garantir a subsistência e condições de vida decentes na ilha através do controle populacional. Atualmente, aquela ilha faz parte da China e tem-se a prática do aborto, em qualquer estágio da gestação, como um crime, sancionando quem a realize com pena de reclusão.
Com base nos dados expostos acima, percebe-se que o fato de um país criminalizar ou não o aborto não se dá por questões de cunho moral, muito menos constitui óbice ou incentivo à sua prática. É um fato presente em todas as civilizações, desde a mais conservadora à mais liberal. O grande diferencial que se encontra é no que diz respeito ao índice de mortalidade das gestantes que praticam aborto, revelando-se extremamente alto nos países em que sua prática é ilegal, e por sua vez praticamente nulo onde aquele é permitido por lei. Por se tratar de crime, o aborto nos países que o proíbem, necessariamente tem que passar pelo tortuoso caminho da clandestinidade.
3. O Grave Problema do Aborto Clandestino
Desafortunadamente, não existem dados confiáveis para se avaliar a ocorrência de aborto provocado no Brasil. Há estimativas de que são praticados cerca de 1,4 milhão de abortos anualmente, onde cerca de 270 mil levam gestantes ao pronto socorro público em função de complicações decorrentes do procedimento. A dificuldade de se avaliar o número preciso do total de abortos é decorrência do fato de todos serem praticados, salvo os poucos autorizados por lei, na clandestinidade. Se o procedimento não acarretar nenhum mal à saúde da ex-gestante, é lógico que ela não procurará atendimento hospitalar, ficando um sub-registro da frequência do aborto provocado.
Como é uma prática proibida e punida por lei, resta às gestantes que queiram praticá-la recorrer a clínicas particulares ou auto provocá-lo, via de regra em condições precárias. Aquelas que recorrem às clínicas privadas se valem de um procedimento muito mais seguro e eficiente do que aquelas que o realizam sozinhas ou com acompanhamento de pessoas leigas, despreparadas, em ambientes insalubres e com métodos inadequados. Naturalmente, quem recorre à primeira opção são pessoas de considerado poder aquisitivo, já que os médicos que realizam tal procedimento cobram um “extra” devido ao risco que estão submetidos (punição com reclusão).
Por outro lado, aquela que pratica o aborto por meios próprios é, via de regra, a gestante pobre e desinformada sobre sua situação. Não resta outra opção de socorro a esta, na intenção de realizar um aborto voluntário, senão sujeitar-se a condições precárias, charlatanismos e meios abortivos[5] que podem não só causar mutilações, mas torná-la infértil ou mesmo causar-lhe o óbito. Como consequência, temos os dados revelados pelos órgãos de saúde, trazendo o assombroso número de atendimentos hospitalares das vítimas de abortos mal sucedidos.
3.1. Principais métodos utilizados na realização do aborto e o risco que empreendem à saúde física da mulher
As técnicas mais utilizadas para prática abortiva clandestina são:
1 - Dilatação ou corte: uma faca em forma de foice dilacera o corpo do feto, que é retirado em pedaços.
2 - Drogas: muitas são as substâncias utilizadas, tais como arsênio, antimônio, chumbo, cobre, ferro, fósforo e vários ácidos e sais.
3 - Plantas: Absinto (losna, abuteia, alecrim, algodaro, arruda, cipó-mil-homens, esperradura) e várias ervas amargas. Todas estas substâncias devem ser ingeridas em grande quantidade para que ocorra o aborto.
4 - Esquartejamento: consiste em esquartejar o feto ainda no ventre da mãe.
5 - Retirada do líquido amniótico: retira-se o líquido amniótico de dentro do útero e coloca-se uma substância contendo sal. De 24 a 48 horas iniciam-se contrações e o feto é expulso como num parto normal.
6 - Sufocamento: também chamado de parto parcial, o feto é puxado para fora deixando apenas a cabeça dentro, já que ela é grande demais. É introduzido um tubo na sua nuca, que sugará sua massa cerebral, levando-o à morte e possibilitando a sua retirada.
As técnicas acima expostas além de serem apresentarem uma potencialidade danosa altíssima para as gestantes, são cruéis e ferem tanto a dignidade da gestante quanto a do feto. Não é pelo fato de se defender a legalização do aborto que se deve permitir que se utilize de meios inadequados e cruéis para acabar com a vida intra-uterina[6]. No capítulo IV se exporá que, na realidade, um dos pontos defendidos neste trabalho monográfico é no sentido de se eliminar por completo o sofrimento do feto.
Já em relação ao aborto legal, são utilizadas as seguinte técnicas
1 - Sucção, aspiração ou AMIU: o colo do útero é imobilizado e um aparelho de sucção evacua completamente o produto da concepção.
2 - Curetagem: o colo do útero é dilatado e com uma cureta (instrumento de aço semelhante a uma colher) e é feita uma raspagem suave do revestimento uterino, do embrião, da placenta e das membranas que o envolvem.
3 - Mini-aborto: acontece com menos de 7 semanas de gravidez, sem menstruar. O médico examina o tamanho do feto e sua posição no útero. A vagina é lavada com uma solução anti-séptica e anestesiada em três pontos. O órgão é preso por um tipo de fórceps e é introduzida uma sonda ligada a um aparelho de sucção que removerá o endométrio e o embrião/feto.
As técnicas utilizadas no abortamento legal são indiscutivelmente mais seguras para a gestante e possuem a qualidade de, pelo fato de serem praticadas em um ambiente adequado e trazerem comprovadamente um maior índice de sucesso, causarem um enorme benefício à saúde pública, privando-a das internações que viriam dos abortos praticados na clandestinidade.
3.2. Uma questão de saúde pública
É um fato inegável que existe em nossa sociedade um grande número de abortos praticados anualmente, fato ocorrido dentre todas as classes sociais, independentemente de cor, raça, credo ou partido político.
Ocorre que a vulnerabilidade às complicações do aborto são maiores para as gestantes economicamente frágeis, via de regra mulheres com pouco acesso à informação e serviços de saúde reprodutiva, tendo que recorrer a métodos inseguros para consumar o ato. Segundo dados da OMS, 13% dos casos de morte materna são decorrentes do aborto praticado sob situação de risco – sessenta e sete mil mortes maternas por ano[7].
O nosso país encontra-se com um Sistema Único de Saúde precário, que mal atende as necessidades básicas de nossa população. Não é raro ver em notícias jornalísticas casos de pessoas que vêm à óbito nos corredores hospitalares, sem receber qualquer tipo de atendimento. A prática clandestina do aborto só vem para lotar ainda mais este já tão abalado órgão, sendo o número total de internações quase que exclusivamente de pacientes pobres, vez que não tiveram condições de abortar em clínicas particulares.
Há a possibilidade de prevenção das consequências negativas do aborto através da disponibilização de procedimentos para interrupção da gravidez realizados por profissionais de saúde treinados, com equipamentos adequados e padrões de higiene. Atualmente no nosso país, se apresenta como único entrave do emplacamento desta política de saúde pública o fato do aborto voluntário ser criminalizado pelo nosso ordenamento jurídico.
3.3. O aborto no Estado da Paraíba
No Estado da Paraíba, pesquisadoras da Cunhã – Coletivo Feminista, Grupo Curumim (Pernambuco), CFEMEA (Brasília), IPAS (Rio de Janeiro) e representantes do movimento de mulheres investigaram no ano de 2009, os números e o impacto da ilegalidade do aborto para as mulheres e o sistema público de saúde do Estado. Os resultados integram o Dossiê sobre a Realidade do Aborto Inseguro na Paraíba: O Impacto da Ilegalidade do Abortamento na Saúde das Mulheres e nos Serviços de Saúde de João Pessoa e Campina Grande. De acordo com as pesquisadoras:
Um exemplo de desperdício de dinheiro público é a baixa utilização da AMIU (Aspiração Manual Intra-Uterina) no estado, que tem inúmeras vantagens – inclusive de menor custo para o SUS - em relação ao procedimento de curetagem pós-abortamento, que é a raspagem do útero. A curetagem prolonga o tempo de internação da paciente, oferece riscos de infecção para as mulheres, e é mais cara do que a AMIU. Enquanto João Pessoa realizou apenas 29 AMIU entre janeiro de 2008 e junho de 2009, foram realizadas na capital 2.803 curetagens e, em Campina Grande (onde ainda não é realizado o procedimento de AMIU), foram feitas 2.319 curetagens no mesmo período.[8]
Os gastos públicos em João Pessoa com curetagens pós-abortamento foram de aproximadamente R$ 532 mil e, em Campina Grande, o custo com o procedimento foi de R$ 414 mil. Somando os custos das duas maiores cidades do Estado em questão, foram gastos R$ 946 (novecentos e quarenta e seis mil reais) no tratamento de recuperação de pacientes que realizaram aborto clandestino e sofreram complicações. Ao mesmo tempo, foram gastos com AMIU apenas R$ 3.746, em João Pessoa, no mesmo período.
4. Conclusões
Percebe-se que houve um prejuízo de quase um milhão de reais à saúde pública paraibana em 2009 devido a práticas abortivas clandestinas, enquanto menos de 0,4% deste valor foi gasto com os métodos legais. As despesas foram elevadas devido a criminalização da prática abortiva, o que levou as gestantes a praticarem-no clandestinamente. Caso fosse legalizado, utilizar-se-ia a técnica do AMIU, como exposto acima muito mais barata, preservar-se-ia a dignidade da gestante ao oferecê-la tratamento adequado às suas necessidades e ainda sanaria um grave problema de saúde pública, contribuindo para desobstruir o já tão saturado Sistema Único de Saúde.
Como visto, esta questão da legalização do aborto deve ser prioridade dos legisladores pátrios, pois está se ferindo gravemente dois bens jurídicos fundamentais do Estado Brasileiro, que é a saúde pública e a dignidade da pessoa humana, em específico da gestante carente e hipossuficiente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Código penal. Decreto-Lei Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. In: VADE Mecum. 3. ed. São Paulo: Editora Rideel, 2006.
BULOS, Uadi Lamêgo. Comentários à constituição federal. 5. ed. São Paulo: RT, 2008.
DINIZ, Débora. Aborto seletivo no Brasil e os alvarás judiciais. Disponível em <http://www.portalmedico.org.br/revista/bio1v5/abortsele.html> Acesso em 20 de out. de 2009.
EMMERICK, Rulian. Aborto, (Des)criminalização, direitos humanos e democracia. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2008.
ENCICLOPÉDIA Brasileira Mérito, 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, v.14
JOHNSTON, Robert. Global Abortion Summary. 2000-2007, 2008. Disponível em <http:/www.oms.org>. Acesso em 14/09/2009.
KALSING, Vera Simone. O movimento em defesa da vida na votação do aborto legal no Rio Grande do Sul Disponível em <http://www.sociologos.org.br/textos/outros/aborto.htm.> Acesso em 10 de out. de 2009.
LIMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e anencefalia: direitos fundamentais em colisão. Curitiba: Juruá, 2009.
LOREA, Roberto Arriada. Acesso ao aborto e liberdades laicas. Rio de Janeiro: Horizontes Antropológicos vol.12. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-1832006000200008&script=sci_arttext.> Acesso em 02 de set. de 2009.
PACHECO, Eliana Descovi. O aborto e sua evolução histórica. Disponível em <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/3764/O-aborto-e-sua-evolucao-historica>. Acesso em 05 de agost. de 2009.
[1] ALVES, Ivanildo Ferreira. Crimes contra a vida. Belém: UNAMA, 1999.
[2] NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 49.
[3] MOORE, K. L.; Persaud, T.V.N. Embriologia Clínica. 7 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
[4] PRADO, Danda. Que é o aborto? São Paulo: Brasiliense, 2007, pg 34.
[5] Cf: os principais métodos utilizados no aborto clandestino estão expostos no próximo tópico.
[6] Cf: Fazendo-se uma comparação, não é pelo fato de um país aceitar a pena de morte que se irá apedrejar os condenados em praça pública.
[7] ORGANIZATION, World Health. Abortion and death. Disponível em <www.who.int/> Acesso em 14/10/2009.
[8] CORREIO, da Paraíba. Dossiê revela o estado do aborto na Paraíba. Disponível em <http://jornalcorreio.com.br>. Acesso em 15/10/2009
advogado criminalista, especialista em Direito Penal, Processual Penal e Segurança Pública pela FESP/PB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRé BELTRãO GADELHA DE Sá, . Considerações gerais sobre o aborto Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 set 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47436/consideracoes-gerais-sobre-o-aborto. Acesso em: 23 dez 2024.
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