Resumo: Com a publicação do acórdão da ADPF 153, o STF decidiu, por maioria dos votos, pela validade da lei 6.683/79. Mesmo com o extenso voto do Ministro Eros Grau, inúmeras dúvidas surgiram acerca da extensão da sua aplicabilidade. A mais polêmica delas é se os crimes de sequestro e de ocultação de cadáver, por possuírem natureza de crime permanente e só admitirem a contagem do prazo prescricional ao final da sua consumação, estariam ou não anistiados por esta lei. Tal discussão surge, tendo em vista que não há o conhecimento da data em que a vítima foi morta nem as circunstâncias do seu desaparecimento, motivo pelo qual, tais crimes, em tese, estariam ainda se consumando. Provocado mais uma vez, o STF julgará se a lei da anistia é aplicável aos crimes permanentes nos quais as vítimas até hoje não foram localizadas. Assim, até a manifestação da Corte Constitucional, este artigo se propõe a discutir este assunto. Através do método indutivo de pesquisa e fundamentado nos entendimentos jurisprudenciais e doutrinários, far-se-á uma análise do surgimento da referida lei passando por um breve estudo acerca dos crimes permanentes e, ao final, analisar a aplicabilidade ou não da lei da anistia nos crimes permanentes, iniciados no regime de exceção e até hoje não elucidados.
Palavras-chave: Lei da anistia. Crimes permanentes. Direito penal. Direitos humanos.
Sumário: Introdução. 1. A lei da anistia. 2. Crimes Permanentes. 3. A inaplicabilidade da lei da anistia nos crimes permanentes iniciados antes de 15 de agosto de 1979 e não solucionados até hoje. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
A lei 6.683/1979 foi um marco na transição da política brasileira de um regime ditatorial para um democrático.
Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil protocolou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF/153) no Supremo Tribunal Federal, questionando a eficácia desta lei sob a égide deste novo ordenamento jurídico.
O órgão máximo do judiciário, por maioria dos votos, rejeitou o pedido inicial, declarando válida a lei 6.683/1979.
Após tal decisão, o Conselho Federal da OAB interpôs embargos de declaração pleiteando esclarecimentos sobre a extensão da aplicação deste referido diploma legal nos crimes de “desaparecimento forçado[1]” (tipo penal ainda não existente no ordenamento jurídico brasileiro[2], mas próximo aos crimes de sequestro e ocultação de cadáver) que, por possuírem natureza permanente, só admitiriam a contagem prescricional após o encerramento de sua consumação, de modo que, desconhecido os paradeiros das vítimas, não haveria a incidência prescricional. Logo, de acordo com a tese do Conselho Federal da OAB, eles não estariam amparados pela lei anistiadora que impõe claramente no caput do seu primeiro artigo um requisito temporal, qual seja, que os crimes beneficiados por esta lei deveriam ter sido praticados entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
Em termos parecidos, o Partido Socialista (PSOL), por meio da ADPF 320, solicita a exclusão dos efeitos desta lei nos crimes permanentes não consumados até 15 de agosto de 1979.
Ambos aguardam o julgamento pelo plenário do Supremo Tribunal Federal.
Portanto, cabe a este artigo, enquanto o Supremo Tribunal não se manifestar, fazer uma análise crítica desta problemática.
Em relação à metodologia, foi utilizado o método indutivo, operacionalizado pelas técnicas da pesquisa bibliográfica e do fichamento.
1 A LEI DE ANISTIA
Para a correta análise do tema, faz-se necessário mencionar que a anistia é uma causa extintiva de punibilidade (art. 107, II, do Código Penal) o que, nas palavras de Damásio e Jesus: “é o esquecimento jurídico de uma ou mais infrações penais (Aurelino Leal). Deve ser concedida em casos excepcionais, para apaziguar os ânimos, acalmar as paixões sociais etc” (.
Ou seja, pode-se entender por anistia uma lei em que o Estado demonstra não possuir mais interesse de punir (jus puniendi) os responsáveis por praticar crimes em um determinado período pretérito de tempo (possui efeito retroativo). Neste sentido, adverte NUCCI[3] que ““Anistia é a declaração pelo Poder Público de que determinados fatos se tornem impuníveis por motivo de utilidade social. O instituto da anistia volta-se a fatos e não a pessoas”.
O principal efeito da concessão da anistia é a extinção da punibilidade, ou seja, mesmo que alguém pratique um crime (fato típico, antijurídico e culpável) não será punido pelo Estado, pelo menos na esfera penal.
Nas palavras de Rogério Greco:
“Pela anistia, o Estado renuncia ao seu jus puniendi, perdoando a prática de infrações penais que, normalmente, têm cunho político. A regra, portanto, é de que a anistia se dirija aos chamados crimes políticos (anistia especial). Contudo, nada impede que a anistia também seja concedida a crimes comuns (anistia comum). A concessão da anistia é de competência da União, conforme preceitua o art.21, XVII, da Constituição Federal, e se encontra no rol das atribuições do Congresso Nacional, sendo prevista pelo art.48, VIII, de nossa Lei Maior. Pode ser concedida antes ou depois da sentença penal condenatória, sempre retroagindo a fim de beneficiar os agentes.” (JESUS, 2011, p. 735)
Assim, com base neste contexto jurídico, em 28 de agosto de 1979, o então Presidente da República, General João Figueiredo, promulga a lei 6.683 que traz em seu primeiro artigo:
“Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.
1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.
§ 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal.
§ 3º - Terá direito à reversão ao Serviço Público a esposa do militar demitido por Ato Institucional, que foi obrigada a pedir exoneração do respectivo cargo, para poder habilitar-se ao montepio militar, obedecidas as exigências do art. 3º”
Naquele período histórico, a promulgação desta norma inseriu um novo espírito democrático que, nas palavras de Benito Bisso Schmidt, pode ser descrito:
“La loi cherchait à instaurer par décret une réconciliation nationale, basée sur l'oubli du passé. Ainsi, on amnistiait aussi bien les prisonniers politiques, les exilés et les clandestins, que les mandataires et les responsables de tortures et d'assassinats”.[4] (SCHMIDT, 2006)
Nove anos depois, o Brasil promulga sua Constituição da República de 1988, fundamentada em princípios fundamentais como o da dignidade da pessoa humana.
Entendendo que tal lei afrontava os novos princípios da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ingressou com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF/153) no Supremo Tribunal Federal, conforme já explicado anteriormente. Os principais fundamentos desta ação eram:
“A Ordem contesta o artigo primeiro da Lei 6.683/79. A entidade quer uma interpretação mais clara naquilo que se considerou como perdão aos crimes conexos de qualquer natureza quando relacionados aos crimes políticos ou praticados por motivação política. A avaliação da OAB é a de que a norma estende o perdão aos torturadores. Na ADPF, a entidade pede que não seja estendida a anistia aos autores de crimes comuns praticados por agentes da ditadura, entre os quais homicídio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor contra opositores ao regime político da época. Para a Ordem, há clara diferença entre os crimes políticos cometidos pelos opositores do regime militar e os crimes comuns contra eles praticados pelos agentes da repressão e seus mandantes no governo” [5].
Em 2010, o plenário da Corte Constitucional se manifestou nos seguintes termos:
“EMENTA: LEI N. 6.683/79, A CHAMADA "LEI DE ANISTIA". ARTIGO 5º, CAPUT, III E XXXIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL; PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E PRINCÍPIO REPUBLICANO: NÃO VIOLAÇÃO. CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICAS. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E TIRANIA DOS VALORES. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E DISTINÇÃO ENTRE TEXTO NORMATIVO E NORMA JURÍDICA. CRIMES CONEXOS DEFINIDOS PELA LEI N. 6.683/79. CARÁTER BILATERAL DA ANISTIA, AMPLA E GERAL. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA SUCESSÃO DAS FREQUENTES ANISTIAS CONCEDIDAS, NO BRASIL, DESDE A REPÚBLICA. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E LEIS-MEDIDA. CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A TORTURA E OUTROS TRATAMENTOS OU PENAS CRUÉIS, DESUMANOS OU DEGRADANTES E LEI N. 9.455, DE 7 DE ABRIL DE 1997, QUE DEFINE O CRIME DE TORTURA. ARTIGO 5º, XLIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. INTERPRETAÇÃO E REVISÃO DA LEI DA ANISTIA. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 26, DE 27 DE NOVEMBRO DE 1985, PODER CONSTITUINTE E "AUTO-ANISTIA". INTEGRAÇÃO DA ANISTIA DA LEI DE 1979 NA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. ACESSO A DOCUMENTOS HISTÓRICOS COMO FORMA DE EXERCÍCIO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VERDADE”[6]
O Ministro Eros Grau, então relator do processo, fez uma análise histórica e política profundas, passando desde o contexto em que a lei foi editada, destacando a incompetência do Poder Judiciário em reavaliar acordos que ensejaram a edição deste ato normativo, destacando, ao final, que esta norma foi fundamental para a transição democrática:
“Só o homem perdoa, só uma sociedade superior qualificada pela consciência dos mais elevados sentimentos de humanidade é capaz de perdoar. Porque só uma sociedade que, por ter grandeza, é maior do que os seus inimigos é capaz de sobreviver”[7].
A maioria dos Ministros seguiram os votos do relator e o caso foi julgado improcedente por 7 votos a 2.
2 CRIMES PERMANENTES
O direito penal brasileiro, quanto ao momento consumativo dos crimes, classifica-os em três espécies: os crimes instantâneos, os crimes permanentes e os crimes instantâneos com efeitos permanentes (este último considerado por muitos autores como uma espécie de crime instantâneo).
Os crimes instantâneos se consumam em apenas um momento, um instante, diferentemente dos crimes permanentes, nos quais os atos criminosos se prolongam através do tempo. Por fim, os crimes instantâneos com efeitos permanentes são aqueles que, embora se consumam em um único instante, provocam efeitos irreversíveis, como por exemplo, em um homicídio.
Quanto a espécie de crimes permanentes, foco deste artigo, Damásio de Jesus as subdivide em:
“a) crime necessariamente permanente; b) crime eventualmente permanente. No primeiro, a continuidade do estado danoso ou perigoso e? essencial a? sua configuração. Ex.: sequestro. No segundo, a persistência da situação antijurídica não e? indispensável, e se ela se verifica, não da? lugar a vários crimes, mas a uma só? conduta punível. Ex.: usurpação de função pública (CP, art. 328)” [8]
São exemplos de crimes permanentes o sequestro e a ocultação de cadáver.
Quanto ao crime de sequestro, este se encontra positivado no art.159 do Código Penal: “Sequestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate”.[9]
Por ser um crime permanente, o autor poderá ser preso em flagrante enquanto mantiver a vítima restringida de sua liberdade, pois durante este período o crime estará se consumando, conforme leciona César Roberto Bittencourt:
“Consuma-se com a efetiva restrição ou privação da liberdade de locomoção por tempo juridicamente relevante. Afirma-se que, se a privação da liberdade for rápida, instantânea ou momentânea, não configurará o crime, admitindo-se, no máximo, sua figura tentada ou, quem sabe, constrangimento ilegal. Essa fase do iter criminis alonga-se no tempo, perdurando enquanto a vítima permanecer privada de sua liberdade. Enquanto a vítima não for restituída à liberdade, não se encerrará a consumação, podendo, inclusive, o sujeito ativo ser preso em flagrante. Convém destacar que, nesse crime, ao contrário do que acontece no crime de extorsão mediante sequestro (art. 159), o exaurimento não ocorre em momento distinto da consumação; há entre ambos uma identificação temporal, coincidindo consumação e exaurimento.”[10]
Não diferente, o crime de ocultação de cadáver está positivado no art. 211 do Código Penal: “Destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele”.[11]
Este também possui a natureza permanente, como elucida CAPEZ[12]: “Na modalidade ocultar, o crime se consuma com o desaparecimento do cadáver ou de parte dele”.
Estes dois crimes são fundamentais para a análise em questão neste artigo pois além de demasiadamente praticados durante o período ditatorial, são os mais lembrados nas recentes impugnações apresentadas ao Supremo Tribunal Federal.
3 A INAPLICABILIDADE DA LEI DA ANISTIA NOS CRIMES PERMANENTES INICIADOS ANTES DE 15 DE AGOSTO DE 1979 E NÃO SOLUCIONADOS ATÉ HOJE.
O Supremo Tribunal Federal possui uma jurisprudência pacífica no sentido de se aplicar a um crime permanente uma lei nova quando a cessação da consumação ocorrer após a entrada em vigor desta nova lei.
Também está sedimentado que não interessa se o novo ato legal se tratar de novatio legis in pejus, isto é, mesmo se a nova lei prejudicar o réu ela deverá ser aplicada imediatamente ao crime que, embora iniciada sua consumação anteriormente, se prolongou durante o tempo (crimes permanentes) e continua se consumando com o início da vigência desta nova norma.
Tal entendimento é tão firme que o Supremo Tribunal Federal editou o verbete número 711 que dispõe: "A lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência".
Não diferente deste entendimento, a doutrina pátria se manifestou nos mesmos termos, como explica Capez:
“caso a execução tenha início sob o império de uma lei, prosseguindo sob o de outra, aplica-se a mais nova, ainda que menos benigna, pois, como a conduta se protrai no tempo, a todo momento renovam-se a ação e a incidência da nova lei”[13]
A título de curiosidade, cito a notícia de uma manifestação do Superior Tribunal de Justiça que afastou a inimputabilidade do réu que iniciou a prática delitiva de um sequestro antes de completar 18 anos, todavia foi preso em flagrante após já ter alcançado a maioridade penal:
“A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou pedido de habeas corpus a preso acusado por sequestro em 2004. O réu iniciou a participação no crime quando ainda tinha 17 anos e, durante sua execução, atingiu a maioridade. A defesa alegou que, por ter realizado o crime na condição de menor, o jovem seria inimputável pelos atos. Contudo, o relator do caso, ministro Março Aurélio Bellizze, considerou o argumento da defesa inválido. Segundo ele, o réu atingiu a idade de 18 anos durante a consumação do crime, não havendo de se cogitar de inimputabilidade. O crime foi cometido em Taboão da Serra (SP). O acusado foi denunciado por, em quadrilha armada, sequestrar uma pessoa e exigir o valor de R$ 1 milhão pelo resgate. A vítima ficou em cárcere privado por 47 dias e foi liberada apenas após o pagamento parcelado de R$ 29 mil, valor negociado pela família. O réu foi condenado a 26 anos de prisão em 2007. Inconformada, a defesa impetrou habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), onde o pedido foi negado. No STJ, a defesa impetrou outro habeas corpus, em que pediu a anulação do processo e o alvará de soltura do condenado, sustentando a tese de que, por ser menor quando cometeu o crime, o preso deveria ter sido julgado como tal, amparado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).O que vale é o momento do crime, que no caso ocorreu aos 22 de setembro de 2004, tendo o paciente atingido a maioridade aos 3 de outubro, ou seja, posterior à data em que o crime de fato ocorreu, mesmo tendo sido concluído aos 9 de novembro de 2004, sustentou a defesa. Em seu voto, o ministro Bellizze afirmou que a defesa utiliza a teoria da atividade, presente no artigo 4º do Código Penal, segundo o qual o importante é o momento da conduta, mesmo que não tenha consequências imediatas. Contudo, o crime descrito no artigo 159 do CP é permanente, sendo que sua consumação se prolonga no tempo, enquanto houver a privação da liberdade da vítima. Diante disso, a Quinta Turma, seguindo o voto do relator, denegou a ordem, tendo em vista que, embora o paciente fosse menor de 18 anos na data do fato, atingiu a maioridade durante a consumação do crime, não havendo que se cogitar de inimputabilidade.” [14]
Conforme mencionado na reportagem, o art. 4º do Código Penal adotou a teoria da atividade, ou seja, aplicam-se as leis penais aos crimes no momento em que eles se consumam, logo, considerando que o sequestro, como já mencionado no tópico anterior, é um crime permanente, a imputabilidade do réu foi reconhecida neste caso concreto. O que interessa para a aplicação do direito penal, principalmente nestas espécies de crimes, é o momento em que ele é cessado, não interessando se a prática ocorreu antes da nova lei vigente.
Por uma dedução lógica, se é permitido aplicar uma lei nova a um crime que está se consumando, não se pode aplicar uma lei anistiadora a um crime que ainda está se consumando, principalmente pelo fato que a norma impôs um limitador temporal (que os crimes tenham sido praticados de 02 de setembro de 1961 até 15 de agosto de 1979)
O Procurador Geral da República, em parecer nos embargos de declaração apresentados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil na Arguição de Descumprimento Fundamental nº 153, ratifica tal entendimento:
“Sequestros cujas vítimas não tenham sido localizadas, vivas ou não, consideram-se crimes de natureza permanente. Essa condição afasta a incidência das regras penais de prescrição e da Lei da Anistia, cujo âmbito temporal de validade compreendia apenas o período entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979” [15]
Tal parecer se baseia, também, na sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso que ficou popularmente conhecido como “Guerrilha do Araguaia”. Neste caso, analisava-se eventual omissão do Estado Brasileiro em não apurar os crimes praticados em desfavor da “Guerrilha do Araguaia”. Neste sentido, é oportuno citar trecho dispositivo desta decisão:
“determinar os autores materiais e intelectuais do desaparecimento forçado das vítimas e da execução extrajudicial. Ademais, por se tratar de violações graves de direitos humanos, e considerando a natureza dos fatos e o caráter continuado ou permanente do desaparecimento forçado, o Estado não poderá aplicar a Lei de Anistia em benefício dos autores, bem como nenhuma outra disposição análoga, prescrição, irretroatividade da lei penal, coisa julgada, ne bis in idem ou qualquer excludente similar de responsabilidade para eximir-se dessa obrigação, nos termos dos parágrafos 171 a 179 desta Sentencia.”[16]
Em contrapartida, entendimento divergente poderia surgir ao analisar o parágrafo primeiro do primeiro artigo da lei 6.683[17]: “Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.
De maneira geral, os crimes conexos são aqueles que possuem entre si uma relação especial. Precisamente neste caso, o legislador do ato anistiador decidiu estipular que esta relação deveria possuir dois requisitos: a motivação política na prática criminosa e que ela tenha ocorrido entre 02 de setembro de 1961 até 15 de agosto de 1979.
Quanto ao primeiro requisito da conexão, não há divergências que os crimes de sequestro e ocultação, sob o contexto de ditadura militar, foram praticados por motivação política. Entretanto, tais crimes permanentes não elucidados até hoje encontrariam barreira para o preenchimento do segundo requisito, qual seja, o temporal. Conforme já explicitado anteriormente, os crimes permanentes podem se manter consumando enquanto não devidamente elucidados.
O âmbito temporal na aplicabilidade da lei da anistia é restrito, assim, mesmo que um crime tenha iniciado entre 02 de setembro de 1961 à 15 de agosto de 1979, mas ainda esteja se consumando, não é conexo e, por conseguinte, não haverá a incidência de causa anistiadora.
Por exemplo, um autor que tenha ocultado um cadáver na época da ditadura e que, até os dias atuais, o mantem oculto, não pode ser beneficiado, mais de 40 anos após o período limítrofe estipulado pela lei.
A anistia sempre se refere a um crime passado, nunca a um que esteja sendo praticado, pois possui efeito retroativo, conforme leciona Celso Delmanto:
“o esquecimento de certas infrações penais. Exclui o crime e faz desaparecer suas consequências penais. Tem caráter retroativo e e? irrevogável, sendo da atribuição do Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República (art. 48, VIII, da CR/88)”[18].
Neste mesmo diapasão, dispõe o art.111, inciso III, do Código Penal[19]: A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr: nos crimes permanentes, do dia em que cessou a permanência.
No mais, o próprio Supremo Tribunal Federal aplica a interrupção da prescrição ao crime permanente, ou seja, enquanto não cessar a sua permanência ele não prescreve, conforme constata-se no julgamento proferido no seguinte julgado:
“EXTRADIÇÃO INSTRUTÓRIA. PRISÃO PREVENTIVA DECRETADA PELA JUSTIÇA ARGENTINA. TRATADO ESPECÍFICO: REQUISITOS ATENDIDOS. EXTRADITANDO INVESTIGADO PELOS CRIMES DE HOMICÍDIO QUALIFICADO PELA TRAIÇÃO (HOMICÍDIO AGRAVADO POR ALEIVOSIA E POR EL NUMERO DE PARTICIPES) E SEQÜESTRO QUALIFICADO (DESAPARICIÓN FORZADA DE PERSONAS): DUPLA TIPICIDADE ATENDIDA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE DOS CRIMES DE HOMICÍDIO PELA PRESCRIÇÃO: PROCEDÊNCIA. CRIME PERMANENTE DE SEQÜESTRO QUALIFICADO: INEXISTÊNCIA DE PRESCRIÇÃO. ALEGAÇÕES DE AUSÊNCIA DE DOCUMENTAÇÃO, CRIME MILITAR OU POLÍTICO, TRIBUNAL DE EXCEÇÃO E EVENTUAL INDULTO: IMPROCEDÊNCIA. EXTRADIÇÃO PARCIALMENTE DEFERIDA. (...) 6. Crime de sequestro qualificado: de natureza permanente, prazo prescricional começa a fluir a partir da cessação da permanência e não da data do início do sequestro. Precedentes. (...)”[20]
Ora, se não corre a prescrição nos crimes permanentes, tendo em vista que a contagem da prescrição se inicia a partir da cessação da permanência, o mesmo pode ser estendido para a aplicação da lei anistiadora.
Por consequência, nos casos em que inexiste o conhecimento do local ou data da morte das vítimas, não se pode excluir a possibilidade que tal delito ainda permaneça se consumando, cabendo, até, a prisão em flagrante dos seus autores.
Portanto, considerando a natureza do crime permanente, bem como o limite temporal imposto pela lei da anistia, conclui-se que não é aplicável a lei 6.683 de 28 de agosto de 1979 aos crimes permanentes até hoje não elucidados, tendo em vista que muitos deles, ainda, permanecem se consumando.
Conclusão
A lei da anistia foi um marco importante para o início da transição democrática do país pois beneficiou quem combateu o regime, inclusive através da luta armada, como também os agentes públicos que cometeram ilegalidades.
Assim, eventual reconhecimento da inaplicabilidade desta lei nestes crimes permanentes, devem ser aplicados a todos que os praticaram, independentemente se militares ou civis.
Eventuais dificuldades impostas pelos autores na elucidação do paradeiro de vítimas durante o período militar, independentemente, repito, se militar em cumprimento de função governamental ou militante armado, atenta contra o novo espírito democrático que a própria lei 6.683 semeou no país.
Enterrar para sempre os momentos obscuros que todos os brasileiros viveram no período ditatorial, através da elucidação plena do alcance da aplicação da lei da anistia pelo Supremo Tribunal Federal, pode ser o início de uma verdadeira era democrática para o Brasil.
REFERÊNCIAS
BITENCOURT, César Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial 2: Dos crimes contra a pessoa. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Geral, volume 1. 15. ed. 2011: Saraiva, 2011.
DELMANTO, Celso. Código Penal: Comentado. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
GRECO, Rogério. Código Penal: Comentado. 5. ed. Niterói: Impetus, 2011.
JESUS, Damásio de. Direito Penal: Parte Geral. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: Parte Geral: Parte Especial. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
SCHMIDT, Benito Bisso. Années de plomb »: la bataille des mémoires sur la dictature civile-militaire au Brésil. 2006. Disponível em: <http://chrhc.revues.org/807>. Acesso em: 31 maio 2015
[1] Para a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, entende por “desaparecimento forçado” “a prisão, a detenção, o sequestro ou qualquer outra forma de privação de liberdade que seja perpetrada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo com a autorização, apoio ou aquiescência do Estado, e a subsequente recusa em admitir a privação de liberdade ou a ocultação do destino ou do paradeiro da pessoa desaparecida, privando-a assim da proteção da lei”.
[2] PROJETO DE LEI DO SENADO nº 245, de 2011
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: Parte Geral: Parte Especial. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 598
[4] A lei procurou estabelecer por decreto uma reconciliação nacional baseado no esquecimento ao passado. Assim, foram anistiados tanto presos políticos, os exilados e os clandestinos, quanto os agentes responsáveis pela tortura e pelos assassinatos (citação nossa).
[5] OAB. IAB apoia ação da Ordem questionando amplitude da Lei de Anistia no Supremo. 2010. Disponível em: <http://www.oab.org.br/noticia/18838/iab-apoia-acao-da-ordem-questionando-amplitude-da-lei-de-anistia-no-supremo>. Acesso em: 31 maio 2015.
[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão nº ADPF 153. CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - OAB. Relator: Ministro Eros Grau. Brasília, DF, 29 de janeiro de 2010. Diário da Justiça Eletrônico. Brasília. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=(ADPF$.SCLA.+E+153.NUME.)+OU+(ADPF.ACMS.+ADJ2+153.ACMS.)&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/9whvj8n>. Acesso em: 31 maio 2015.
[7] STF, Notícias (Org.). STF é contra revisão da Lei da Anistia por sete votos a dois. 2010. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=125515>. Acesso em: 31 maio 2015
[8] Cf. JESUS, Damásio de. Ob, cit., p.235
[9] BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de janeiro de 1940. Código Penal. Rio de Janeiro, RJ, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 31 maio 2015
[10] BITENCOURT, César Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial 2: Dos crimes contra a pessoa. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.758
[11] Cf. BRASIL. Ob, cit
[12] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Geral, volume 1. 15. ed. 2011: Saraiva, 2011, p.1407
[13] Cf. CAPEZ, Fernando. Ob, cit., p. 82
[14] DEZ, Nota. STJ - Jovem que fez 18 anos durante execução do crime não consegue anular condenação. 2012. Disponível em: <http://nota-dez.jusbrasil.com.br/noticias/3037155/stj-jovem-que-fez-18-anos-durante-execucao-do-crime-nao-consegue-anular-condenacao>. Acesso em: 31 maio 2015.
[15] SOCIAL, Secretaria de Comunicação (Org.). PGR defende não aplicação de parte da Lei da Anistia. 2014. Disponível em: <http://noticias.pgr.mpf.mp.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_criminal/pgr-defende-nao-aplicacao-de-parte-da-lei-da-anistia>. Acesso em: 31 maio 2015.
[16] Sentença do “Caso Araguaia”, p. 96. Disponível em: < http://www.sdh.gov.br/assuntos/atuacao-internacional/sentencas-da-corte-interamericana/sentenca-araguaia-24.11.10-1>. Acesso em: 07 outubro 2015.
[17] BRASIL. Lei nº 6683, de 28 de janeiro de 1979. Concede Anistia e Dá Outras Providências. Brasília, DF, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/leis/L6683.htm>. Acesso em: 31 maio 2015
[18] DELMANTO, Celso. Código Penal: Comentado. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.204
[19] BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de janeiro de 1940. Código Penal. Rio de Janeiro, RJ, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 31 maio 2015
[20] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Extradição nº 1150. Requerente: Governo da Argentina. Extraditado: Norberto Raul Torzo. Relator: Ministra Cármen Lúcia. Brasília, DF, 19 de janeiro de 2011. Diário da Justiça Eletrônico. Brasília. Disponível em: <http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/19845276/extradicao-ext-1150>. Acesso em: 31 maio 2015.
Acadêmico de Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MACHADO, Renato Nóbrega Rodrigues. A (in) aplicabilidade da lei da anistia nos crimes permanentes cujo paradeiro das vítimas permanece desconhecido Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 set 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47509/a-in-aplicabilidade-da-lei-da-anistia-nos-crimes-permanentes-cujo-paradeiro-das-vitimas-permanece-desconhecido. Acesso em: 23 dez 2024.
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