RESUMO: O presente estudo objetiva analisar os aspectos históricos em que se deu o processo de ocupação territorial do Brasil, enfatizando os principais regimes de utilização da terra a fim de melhor compreender o instituto das terras devolutas, tanto em relação a sua origem quanto em relação à posição que ocupa em nosso ordenamento jurídico.
Palavras-chave: Terras devolutas. Origem histórica. Colonização. Sesmarias. Sistema sesmarial. Posse. Lei de terras de 1850.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. DESENVOLVIMENTO. 2.1. Aspectos Históricos. 2.2. Fases da evolução histórica das terras devolutas. 2.2.1. Os regimes das Ordenações do Reino e as sesmarias. 2.2.2. O regime sesmarial propriamente dito. 2.2.2.1. Conceito de sesmaria. 2.2.2.2. Origem da palavra sesmaria. 2.2.2.3. Implantação do regime em solo brasileiro. 2.2.2.4. Aspectos negativos do Regime Sesmarial. 2.2.3. O regime das posses. 2.2.4. O regime da Lei de Terras de 1850. 3. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
Para o pleno entendimento do que hoje representa o instituto das terras devolutas em nosso ordenamento jurídico, imprescindível se faz um estudo pormenorizado da evolução histórica da propriedade territorial no Brasil, considerando-se desde os primeiros regimes de incentivo à ocupação do território com a chegada dos portugueses, até o surgimento dos diplomas legais nacionais reguladores da matéria.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1.Aspectos históricos
É o contexto histórico das grandes navegações realizadas pelas nações européias que temos como referência para a análise do surgimento e evolução da propriedade de terras no Brasil.
Nesse período, a igreja estava unida oficialmente ao Estado e, por conta dessa influência, predominava a concepção de que a terra era domínio de Deus e os reis não passavam de seus administradores. Desta forma, com o respaldo da Igreja, os portugueses deram início ao empreendimento das grandes navegações.
Imbuídos na certeza de que o Cristianismo era a religião verdadeira acreditava-se, ou pelo menos se pregava, que as conquistas de terras que se fizessem seriam realizadas em favor da propagação da religião cristã visando ampliar o “domínio de Deus” sobre a terra. Foi com este objetivo que em 1319, o papa João XXII fundou a Ordem de Cristo, uma espécie de organização militar promotora da defesa e expansão do cristianismo. Ressalte-se a dissimulação desse discurso, visto que, por detrás desse sentimento proselitista, estavam verdadeiras motivações deliberadamente mercantilistas, pois objetivavam abrir novos horizontes e angariar riquezas que pensavam encontrar nas terras até então desconhecidas.
Dessa maneira, chegaram os portugueses no ano de 1500 ao território brasileiro, dele se apossando em nome da Coroa portuguesa, por direito de conquista, que alegavam ter.
Interessante observar o que muitos autores destacam que, antes mesmo de serem achadas, as terras que hoje compreendem o Brasil já haviam sido objeto de partilha entre Portugal e Espanha em face dos efeitos jurídicos obtidos pelos diversos tratados internacionais de partilha arbitrados pela Igreja Católica no que diz respeito ao território americano. Como exemplo, podemos citar o Tratado de Alcaçovas, de 1479; a Bula Papal “Inter Coetera”, de 1492 e o Tratado de Tordesilhas, de 1494. Em 21 de abril de 1500, com a chegada da esquadra lusitana comandada por Pedro Álvares Cabral, podemos dizer que apenas oficializou-se a ocupação portuguesa, fenômeno que passou a se denominar “descobrimento do Brasil”. Toda a terra, antes ocupada pelos nativos, a partir de então, por direito de ocupação (descobrimento), passou a pertencer a Portugal.
Com essa conquista lusitana fundada no que se denominava “direito d ocupação”, a estrutura agrária brasileira passou a fincar suas raízes no direito português. A partir de então seriam as leis do ordenamento jurídico lusitano que definiriam qual deveria ser a sistemática adotada para negociar as terras concedidas pelo poder público. Ao mesmo tempo, conforme assevera o professor Girolamo Treccani (2006b, p. 334) em sua tese de doutorado, “consagrou-se incontestavelmente outra realidade: não existiam mais terras sem dono, pois todas elas foram incorporadas ao patrimônio da coroa portuguesa (grifos do autor)”.
Foi baseado nesse processo de apossamento do território brasileiro que afirmou Junqueira (apud TRECCANI, 2006b, p. 334) com bastante propriedade que “A história territorial do nosso país começa com um paradoxo: antes de descoberto o Brasil, suas terras já pertenciam a Portugal”. É claro que essa afirmativa só pode ser entendida sob a ótica dos conquistadores, desprezando-se dessa maneira qualquer eventual direito de propriedade dos povos nativos habitantes do território “recém descoberto”.
Conforme já demonstrado, esse entendimento denotou uma conseqüência jurídica de extrema relevância, qual seja a de que a propriedade territorial no Brasil já surge como patrimônio público. Hely Lopes Meirelles (2013, p. 614) reitera o mesmo entendimento em influente conclusão:
No Brasil todas as terras foram, originariamente, públicas, por pertencentes à Nação portuguesa, por direito de conquista. Depois, passaram ao Império e à República, sempre como domínio do Estado. A transferência das terras públicas para os particulares deu-se paulatinamente por meio de concessões de sesmarias e de data, compra e venda, doação, permuta e legitimação de posses. Daí a regra de que toda terra sem título de propriedade particular é de domínio público.
Conforme se observará quando analisarmos os vários regimes jurídicos que predominaram nas fases da evolução histórica das terras devolutas, toda e qualquer transferência de terras para o patrimônio particular é válida desde que tenha obedecido à legislação vigente na época e suas exigências burocráticas. Assim, todo documento de propriedade imobiliária que remonte aquela época, para ser considerado idôneo e juridicamente válido, deverá comprovar essa veracidade através de ato emanado pela autoridade competente (título legítimo), garantindo-se dessa forma que aquela terra foi legalmente transferida do patrimônio publico para o particular. Essa é a interessante conclusão a que chega Treccani (2006b, p. 334).
Assim, em face das razões históricas e jurídicas anteriormente referidas, podemos chegar à mesma conclusão a que chega o professor Treccani quando assevera ser do que se diz proprietário o ônus de provar a vinculação de determinado título dominial a ato originário da autoridade administrativa. Tal prova de ato autorizativo, conforme já demonstrado, é de grande relevância jurídica, pois é a partir de tal vinculação que nasce a propriedade particular. Nesse sentido, poderíamos dizer desde já que há uma presunção, ainda que juris tantum, em favor da propriedade pública.
Ainda abordando o aspecto histórico em si, é importante ressaltar que o empreendimento colonizador português em relação ao Brasil não se seguiu imediatamente à descoberta. Um fato determinante para que a Coroa portuguesa não demonstrasse inicialmente grande interesse na exploração das terras é o de não terem sido encontrados na costa do território brasileiro os metais preciosos tão almejados pelo mercantilismo. Só posteriormente, em face da ameaça de incursões piratas, ambição revelada por outras coroas e do malogro do comércio das especiarias indianas é que Portugal começou a preocupar-se com a conquista efetiva e sistemática do nosso território.
Em 1530, Martim Afonso de Souza foi o comissário da primeira visita colonizatória às terras brasileiras através de expedição enviada pelo rei Dom João III. Tinha esse comandante poderes necessários à concessão de sesmarias das terras que aquinhoasse.
O marco inicial da ocupação deu-se com a divisão do solo tupiniquim em quinze capitanias hereditárias, concedidas a doze donatários. Martim Afonso recebeu duas capitanias e a seu irmão, Pero Lopes de Sousa foram concedidas três. Dois documentos jurídicos regulavam o sistema das capitanias: a Carta de Doação, pela qual o governo oficializava a concessão e atribuía poderes ao donatário; e o Foral, que fixava os direitos, foros, tributos e coisas que deveriam ser pagos ao rei e ao capitão donatário. Com relação a esse último documento jurídico, destaca-se a Carta Foral de 06 de outubro de 1531, na qual Dom João III outorgou a Martim Afonso de Souza o direito de conceder sesmarias, introduzindo, dessa forma, oficialmente, o sistema sesmarial no Brasil. Assevere-se que somente em 1534 é que essas primeiras concessões de terras continentais ocorreram efetivamente.
Diziam-se particulares e hereditárias essas capitanias pelo fato de pertencerem aos donatários e serem transmissíveis aos seus herdeiros causa mortis. Constituíam-se em terras alodiais, livres de encargos. Não foi este, porém, o sistema que aqui se consolidou.
O sistema sesmarial de concessões de terras no Brasil estabeleceu-se sob regime enfitêutico conforme conclui Treccani (2006a, p. 06). A concessão, conforme já demonstrado, acontecia, preliminarmente, por ato dos donatários das Capitanias Hereditárias, devendo ter, depois, confirmação régia. Posteriormente, devido o insucesso de quase todas as capitanias, as concessões de sesmarias passaram a ser feitas também pelo Governo Geral (estabelecido em 1548), sem conceder, no entanto o domínio total, que continuava a pertencer ao governo português.
Com relação ao regime de capitanias hereditárias e as sesmarias, destaca o mestre em Direito, Professor Roberto Moreira de Almeida (2003, p. 311) o seguinte:
Nesse regime das capitanias hereditárias, os capitães-mores eram os verdadeiros plenipotenciários, eis que incumbidos estavam de exercer a quase totalidade das funções, entre as quais a de conceder cartas de sesmaria, que foi o primeiro instrumento de divisão e legitimação da ocupação da propriedade territorial no Brasil.
Aos sesmeiros eram cometidos vários encargos, dentre os quais o de assumir a efetiva posse das terras, dando a elas os devidos tratos culturais; de extremar suas divisas; e, mais adiante, o de pagar o foro a Coroa, conforme será visto mais detalhadamente quando abordarmos as características do regime sesmarialista.
2.2. Fases da evolução histórica das terras devolutas
Apesar de inquestionável o fato de que as sesmarias constituem o regime jurídico básico acerca da origem da propriedade territorial no Brasil, vale ressaltar que outros regimes legais também devem ser considerados quando se tem por escopo entender os contornos assumidos pelo instituto das terras devolutas no cenário jurídico atual. É baseado nesse entendimento que o mestre José Edgard Penna (2003, p. 14), em relevante análise, divide em quatro as fases da evolução histórica das terras devolutas no período anterior a proclamação da República, quais sejam: 1) Vigência das Ordenações do Reino; 2) Colonização, a partir da conquista, em que se concederam as capitanias hereditárias e sesmarias; 3) Posse; e 4) Lei de Terras de 1850.
2.2.1. Os regimes das Ordenações do Reino e as sesmarias.
Quando Pedro Álvares Cabral aqui chegou, a legislação que vigorava em Portugal eram as Ordenações Afonsinas, de 1446. Estas foram sucedidas pelas Ordenações Manuelinas, de 1514 que, por sua vez, foram substituídas pelas Ordenações Filipinas, de 1603.
Essas Ordenações do Reino não denotavam uma legislação nova, consubstanciavam-se em verdadeiras compilações ou consolidações das normas de direito material e processual, outorgadas pelos Reis de Portugal que, por conta do “descobrimento” passaram a ter vigência em nosso país até a edição das primeiras normas posteriores à Independência do Brasil.
Devido sua natureza de compilação, as ordenações acabaram por incorporar em seu conteúdo, através de editos reais especiais, a normatização do regime sesmarial que já estava presente no ordenamento jurídico português desde 1375, ano em que D. Fernando promulgou a primeira Lei das sesmarias (lei agrária de fomento da produção agrícola e do cultivo das terras ermas). Dentre as diretrizes dessa primeira lei estavam as que obrigavam a todos os proprietários a lavrarem suas terras e, caso eles não o fizessem, que se dessem tais terras aos que quisessem lavrar. Dessa maneira, as Ordenações Afonsinas de 1446 e posteriormente as ordenações que se seguiram também revelaram a preocupação com o povoamento dos campos e com a produção agrícola, prevendo a concessão de terras, em sesmarias, a quem estivesse disposto a extrair o devido proveito.
O disposto nas ordenações do reino referente ao regime sesmarial não teve aplicação plena em nosso território dada à especificidade da realidade fundiária no Brasil colônia que em muito diferia da realidade da propriedade territorial de Portugal. Por conta disso, vários outros editos foram baixados objetivando uma adequação a realidade brasileira da legislação vigente no Reino lusitano.
Importante ressaltar que essa transferência da legislação sobre sesmarias para o nosso território acabou por gerar conseqüências negativas em nossa realidade fundiária, dentre as quais se destaca a concentração latifundiária, conforme se observará posteriormente.
2.2.2. O regime sesmarial propriamente dito
Conforme dito anteriormente, no que diz respeito a atual estrutura agrária brasileira, inquestionável é o fato de que o instituto agrário das sesmarias constituiu o regime jurídico básico acerca da terra. Alguns doutrinadores vislumbram desde o antigo Império Romano a presença sesmarial quando, com o objetivo de estimular o melhor aproveitamento do uso do solo, os reis promoviam sua divisão em pequenos lotes que eram distribuídos, de forma gratuita ou mediante o pagamento de simbólica importância, aos guerreiros ou a quem estivesse disposto a cultivá-los. Apesar desse fato histórico, a doutrina dominante entende ser esse instituto criação original do ordenamento jurídico lusitano com o advento da primeira Lei de Sesmarias de 26 de junho de 1375, sendo, portanto instituído bem antes do que se denominou “descobrimento” do Brasil, passando a ter vigência em nosso território a partir da conquista portuguesa.
2.2.2.1. Conceito de sesmarias
Pinto Ferreira (apud ALMEIDA, 2003, p. 310) dá um conceito simples, porém bastante completo do que seriam sesmarias ao dizer que:
Sesmarias, sinteticamente, consistem nos lotes de terras abandonadas ou incultas cedidos pelos reis lusitanos a determinadas pessoas que resolvessem cultiva-las. Esses cultivadores passaram a ser conhecidos e tratados por sesmeiros, ou seja, os beneficiários das sesmarias (grifos nossos).
Esse parece ser o melhor conceito por ser o mais pertinente à realidade fundiária brasileira, visto que inclui na definição de sesmarias não apenas os lotes de terras abandonadas, mas também lotes de terras incultas. No Brasil pós-descobrimento não há que se falar em terras abandonadas, pelo menos de imediato, pois na verdade, ao menos do ponto de vista do conquistador, as terras brasileiras nunca haviam sido ocupadas, daí porque nesse caso específico o mais adequado conceito de sesmarias seria o correspondente a lotes de terras não cultivadas. Enquanto no Brasil o regime sesmarial implantado serviu como incentivo para a ocupação inicial do nosso território, em Portugal esse regime objetivava promover uma verdadeira reforma agrária e distribuir aos súditos portugueses pequenas glebas de terra que, tanto poderiam ser abandonadas como incultas.
Ainda com relação ao conceito de sesmaria, Di Pietro (2014, p. 794) traz importante contribuição ao dizer que:
[...] distribuir sesmarias, assim consideradas as glebas de terras públicas que eram concedidas aos particulares interessados em cultivá-las, mediante o pagamento de uma renda calculada sobre os frutos (grifos nossos)
2.2.2.2. Origem da palavra sesmaria
A verdade é que não se tem certeza sobre a origem do vocábulo “sesmaria”, em muito divergindo os doutrinadores nesse sentido. Lobão (apud ALMEIDA, 2003, p. 310) afirma que o termo sesmaria deriva de caesimare que significa cortar ou arar a terra abandonada. Pinto Ferreira (apud ALMEIDA, 2003, p. 310), por sua vez, diz ser o termo derivado da palavra sesma, que significaria a sexta parte de alguma coisa, tal como o foro das terras férteis dadas a requerente por ficarem elas em abandono, representando em geral a sexta parte dos frutos.
Complementando a discussão, Manuel Madruga (apud ALMEIDA, 2003, p. 310) afirma que em Portugal ocorreu a “concessão de terras sob o pagamento de uma renda barata, fixada na sexta parte dos frutos – a sesma – de onde se originou a denominação sesmaria”.
Dada a forma como se vislumbra nos ordenamentos jurídicos português e brasileiro o regime sesmarial, os conceitos que afirmam derivar a palavra sesmaria de sesma com o sentido de “sexta parte” de alguma coisa, parecem ser os mais corretos, visto que, conforme analisado anteriormente quando tratou-se sobre o conceito deste instituto agrário, sesmarias consistem em lotes de terras abandonados ou não cultivados que eram concedidos ao sesmeiro, o qual tinha por obrigação a efetiva ocupação e a produção naquela gleba.
2.2.2.3. Implantação do regime em solo brasileiro
Diferentemente dos fins almejados pelo regime sesmarial implantado em Portugal que, ao denotarem verdadeira intervenção pública na posse das terras, incentivaram a produção agrícola e o melhor aproveitamento do solo, consagrando dessa forma um princípio presente nas atuais constituições, qual seja, a função social da propriedade, no Brasil o mesmo sistema adquiriu outra conotação. Em nosso território o regime de sesmarias serviu como instrumento incentivador da ocupação inicial do solo.
A doutrina vislumbra basicamente três fases na implantação do regime sesmarialista no Brasil, quais sejam: Num primeiro momento, as cartas ou dadas de sesmarias podiam ser outorgadas pelos capitães-mores. Além dessa função, tinham esses capitães a função de ocupar, povoar e explorar a capitania; posteriormente, a outorga dessas cartas passou para a incumbência dos governadores gerais; e por fim, devido à ineficiência das sistemáticas anteriormente citadas, a Coroa Portuguesa passou a escolher os sesmeiros e outorgar as respectivas cartas.
Ao sesmeiro, personagem fundamental nessa sistemática de administração das terras, eram conferidos encargos gerais que, caso não fossem observados, o faziam cair em comisso, que era uma forma de sanção imposta a quem não cumprisse determinadas exigências impostas em lei ou contrato. Por conta dessa penalidade, retornavam (frise-se: “eram devolvidas”) essas terras concedidas para o domínio da Coroa portuguesa.
Como não havia um controle efetivo com relação ao cumprimento desses encargos atribuídos ao sesmeiro, vários excessos foram cometidos. Por conta desses abusos, algumas limitações foram estabelecidas no que diz respeito à forma de aproveitamento do solo pelo sesmeiro. Através da Carta Régia de 1640, foi imposto ao concessionário, além dos encargos costumeiros, o pagamento de foro. Em 1697, outra Carta Régia restringiu a extensão dos lotes de terras concedidos em três léguas. Outras exigências também estavam presentes, como a obrigação do pagamento do dízimo relativo aos frutos a Ordem de Cristo e o dever de medição e demarcação de terras, em três anos. Nesse sentido, Girolamo Treccani (2006a, p. 03-06) identifica as cláusulas essenciais para garantir a validade das cartas de sesmaria, malgrado o “caos legislativo” gerado pelo grande número de normas editadas no Brasil objetivando aqui regulamentar o sistema sesmarialista. O professor destaca as seguintes exigências: Aproveitamento da terra concedida; Medição e demarcação; Registro da carta; Pagamento de foro; e, por fim, Confirmação real das cartas.
Importante anotar o fato de que, apesar de numerosas e extensas glebas de terras terem sido concedidas em sesmarias, essas concessões não chegaram nem perto de abranger todo o território nacional, ocupando-se dessa forma menos de 20% de nosso território, conforme bem destaca o economista Nelson Nozoe (2006, p. 18) no detalhado artigo intitulado “Sesmarias e apossamento de terras no Brasil Colônia”. Outro ponto relevante é que os beneficiários das concessões de sesmarias foram os nobres amigos do Rei e a classe rica emergente de Portugal, dessa forma, o regime sesmarial acabou por ser um dos principais, senão o principal, instrumento que deu origem a uma estrutura agrária marcada pela grande propriedade, visto que somente os mais ricos tinham acesso as terras concedidas.
Em 17 de julho de 1822, portanto as vésperas da Independência do Brasil, o Príncipe Regente D. Pedro, através da Resolução nº. 76 extinguiu o sistema das sesmarias, pondo fim a um sistema que há muito demonstrava abusos e escândalos. José Edgard Penna (2003, p. 25) destaca ainda como causas da suspensão desse sistema o fato de que as sesmarias não mais atendiam as demandas sociais da Colônia na iminência da emancipação e o caráter anti-lusitano presente no Brasil.
2.2.2.4. Aspectos negativos do regime Sesmarial
Inegável é o fato de que o regime sesmarialista foi o principal instrumento para a formação da atual estrutura agrária brasileira. Todavia, tal regime trouxe conseqüências sócio-econômicas insanáveis até hoje, pois, conforme assevera a doutrina jus-agrarista em sua maioria, a implantação desse sistema em solo pátrio foi o principal responsável pela formação da concentração latifundiária e todas as desigualdades sociais dela decorrentes. Dentre as causas geradoras dessas conseqüências negativas, destacam-se:
a) A extensão geográfica do Brasil: enquanto em Portugal e nas colônias lusitanas de Açores e Cabo-Verde o sistema sesmarialista foi um sucesso devido as suas reduzidas dimensões continentais, o que logicamente facilitava a melhor administração do território, no Brasil não se obteve o mesmo êxito devido ser um país de dimensão continental;
b) Realidades fundiárias diferentes: em Portugal a implantação do regime sesmarial objetivava extinguir a inércia dos campos marcada pela concentração de terras nas mãos de poucos, realizando dessa forma uma espécie de reforma agrária, já observando nessa época um relevante principio, qual seja o Princípio da Função Social da propriedade. Já no Brasil, uma outra realidade era visualizada: o regime objetivava ocupar o imenso território ocioso a fim de consolidar o domínio lusitano;
c) Critérios utilizados para a concessão de sesmarias: a concessão de sesmarias foi baseada em critérios puramente sociais e econômicos, onde apenas os “amigos do rei” e pessoas da classe emergente lusitana foram beneficiadas. A população rural mais humilde foi totalmente alijada desse sistema de concessões.
2.2.3 O regime das posses
Com a extinção do regime de concessão de sesmarias e a ausência imediata de uma norma regulamentadora que o substituísse, observou-se no Brasil, durante quase 30 anos, um regime caracterizado pela posse, ou ocupação, como sendo o principal modo de aquisição do domínio privado sobre as terras. Assim, na ausência de um poder concedente de terras (como era no antigo sistema), estas eram apropriadas, através da ocupação real e direta (moradia habitual e cultivo da terra) e sem nenhuma solicitação as autoridades administrativas, por quem demonstrasse interesse. Treccani (2006a, p. 09) observa que foi nesse regime que tiveram origem dois institutos jurídicos existentes ainda hoje: legitimação de posse e usucapião.
Devido à ausência de grandes obstáculos para o acesso a terra, o regime das posses parece ter beneficiado o pequeno colono, totalmente excluído do sistema anterior dada a burocracia dispendiosa e complexa exigida para que o interessado viesse a ser contemplado com a concessão de uma sesmaria. Nessa fase, também conhecida como de ocupação, ao pequeno lavrador só era exigido que ele fizesse da terra sua morada habitual e a cultivasse com o próprio trabalho e o de sua família.
Tratando sobre tal regime, Ruy Cirne Lima (apud PEREIRA, 2003, p. 25) comenta:
A sesmaria é o latifúndio, inacessível ao lavrador sem recursos. A posse é, pelo contrário – ao menos nos seus primórdios, - a pequena propriedade agrícola, criada pela necessidade, na ausência de providência administrativa sobre a sorte do colono livre, e vitoriosamente firmada pela ocupação (grifos nossos).
Com relação aos relevantes comentários destacados pelo eminente jus-agrarista, parece-nos haver uma impropriedade na seguinte afirmação “A posse é [...] a pequena propriedade agrícola”, visto que, no regime das posses, apesar da oportunidade dada ao pequeno colono em ter acesso a terra, não se pode desprezar o fato de que os sesmeiros, já estabelecidos e organizados desde o regime anterior, tinham melhores condições e chances para ampliar ainda mais suas possessões de terra. Tal afirmação se ratifica no fato de que, nessa fase de ocupação, as terras continuaram a ser apropriadas em grandes extensões, continuando presente, portanto, a concentração latifundiária, conforme assevera o mestre José Edgard Pereira (2003, p. 26).
Essa fase, devido à forma desregrada como se deu o acesso do particular a terra, acabou por gerar o que muitos doutrinadores denominam de “um regime quase caótico”, onde o princípio adotado era a valorização da posse, ou ocupação, o qual só foi substituído quando do advento da Lei de Terras de 1850.
2.2.4 O regime da Lei de Terras de 1850
Conforme demonstrado, o regime de posses acabou por gerar um verdadeiro caos na ocupação das terras públicas, visto que esse sistema era baseado na posse efetiva, sem qualquer consulta a autoridade administrativa por parte do posseiro. Assim, objetivando regularizar essa situação das terras públicas, legitimar as ocupações e evitar abusos no apossamento, foi promulgada, em 18 de setembro de 1850, a Lei nº. 601 que ficou conhecida como a primeira Lei de Terras no Brasil. Importante ressaltar que o Estatuto das Terras Devolutas, como foi chamada também a Lei nº. 601/1850 foi a primeira lei brasileira que tratou do assunto de terras dentro de um plano sistemático, considerando as peculiaridades de nossa realidade fundiária. Conforme destaca Pereira (2003, p. 28), essa lei foi resultante da necessidade de adequação do Brasil ao fim do tráfico legal de escravos o que, por razões obvias, denotou o declínio da oferta da mão-de-obra escrava. Essa escassez forçada de mão-de-obra acabou por gerar a necessidade de trabalhadores livres, a qual viria a ser suprida principalmente por imigrantes que, devido a interesses dos latifundiários locais, deveriam ter o acesso a terra negado. Assim nasce a Lei de Terras, concebida como instrumento legal de imposição de obstáculos a evitar o acesso a terra, principalmente por parte de futuros imigrantes.
Dentre as principais medidas adotadas pela Lei nº. 601/1850 podemos destacar:
a) Proibição da concessão gratuita de terras, exceto as situadas nos limites com países estrangeiros, em uma faixa de 10 léguas. Dessa forma, a regra para aquisição de terras públicas passou a ser por meio da compra (art. 1º);
b) Por conseqüência direta do disposto no art. 1º da lei em análise, temos a proibição do apossamento de novas terras (art. 2º);
c) Definição do conceito de terras devolutas (art. 3º);
d) Possibilidade de revalidação das sesmarias concedidas irregularmente ou que, embora concedidas em atenção do disposto na lei, houvessem caído em comisso, desde que o sesmeiro ou concessionário preenchesse os requisitos da morada habitual e cultivo da terra (art. 4º);
e) Legitimação das posses mansas e pacíficas, cujos posseiros também deveriam apresentar os requisitos da morada habitual e cultivo da terra (art. 5º);
f) A usucapião nas sesmarias ou outras concessões do governo;
g) A discriminação das terras devolutas (art. 10);
h) O registro paroquial, dentre outras.
Em relação às medidas propostas pela lei em comento, importante destacar que, com a legitimação das posses e a revalidação das sesmarias irregulares, ratificou-se de forma definitiva a privatização desses lotes de terras no espaço territorial brasileiro (desde que comprovado com o respectivo e idôneo título da propriedade), remanescendo como públicas todas aquelas que não fossem incluídas entre as privatizadas, em homenagem ao entendimento de que as terras no Brasil são públicas na sua origem, conforme demonstrado quando se abordou os aspectos históricos da ocupação do território brasileiro.
Apesar das criticas aos reais interesses que motivaram a promulgação da Lei de Terras, quais sejam, os interesses dos fazendeiros latifundiários preocupados em garantir a sua mão-de-obra, há de se reconhecer que essa lei promoveu uma relevante mudança na concepção da propriedade da terra, pois deixou de beneficiar com a concessão de terras os socialmente mais prestigiados ao dispor que a aquisição de terras só se daria mediante a compra, adquirida assim, não mais pelo critério de afinidade com as autoridades e sim pelo poder econômico do comprador. Referindo-se a Lei nº. 601/1850, bem assevera José Edgard Pereira (2005, p. 50) que:
A sua grande importância estaria, destarte, na ruptura do sistema de colonização por intermédio das sesmarias e capitanias hereditárias, pois, a partir dela, as terras devolutas não podiam ser adquiridas senão por compra. Para uns, tal medida impedia as camadas populares de terem acesso à terra; para outro, foi mesmo pródigo o legislador para os que a ocupavam mansa e pacificamente.
Por conta dessa nova concepção dada à forma de apropriação da terra é que muitos autores vêem a lei de terras como um verdadeiro marco em nossa legislação agrária, uma vez que este instrumento legal deixou de considerar a terra apenas como um privilégio e deu a ela o status de mercadoria capaz de gerar lucros.
3. CONCLUSÃO
O presente trabalho se propôs a realizar um estudo sobre os principais aspectos histórico-jurídicos que contribuíram para a formação do instituto das terras devolutas. Conclui-se que a utilização do regime sesmarialista influenciou fortemente o destino das terras no Brasil visto que, através deste instituto, grandes porções de terras foram sendo adquiridas por particulares, com o objetivo de torná-la produtivas, o que acabou por trazer conseqüências sócio-econômicas insanáveis até hoje, pois, conforme assevera a doutrina jus-agrarista em sua maioria, pois a implantação de tal sistema em solo pátrio acabou por ser o principal responsável pela formação da concentração latifundiária e todas as desigualdades sociais dela decorrentes, visto que, nesse sistema somente poucos privilegiados eram aquinhoados, ficando a classe mais pobre alijada do acesso a terra.
O acesso a propriedade, conforme visto, deixou de ser um privilégio com a edição da Lei de Terras de 1850.
Considerando-se que um dos conceitos de Sesmarias consiste nos lotes de terras abandonadas ou incultas, tem-se que as terras que não foram trespassadas particulares, assim como as que foram revertidas à Coroa, constituem as terras devolutas. Com a independência do Brasil, passaram a ser propriedade do Estado brasileiro, englobando todas essas terras que não ingressaram no domínio particular por título legítimo ou que, apesar de transferidas, por algum motivo foram devolvidas a coroa portuguesa.
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Analista Judiciário - Especialidade: Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Pará.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Isaias de Almeida Pinheiro. O processo de ocupação do território brasileiro e sua influência na construção do instituto das terras devolutas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 set 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47548/o-processo-de-ocupacao-do-territorio-brasileiro-e-sua-influencia-na-construcao-do-instituto-das-terras-devolutas. Acesso em: 23 dez 2024.
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