RESUMO: O Código Penal brasileiro, por seu art. 44, autoriza a substituição das penas privativas de liberdade por restritivas de direitos quando preenchidas determinadas condições pelo réu. O mesmo dispositivo, entretanto, prevê, em seu § 2º, a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por multa, seja isolada ou cumulativamente com sanções restritivas de direitos, de onde exsurge dúvida a respeito da natureza jurídica dessa sanção, se de multa propriamente dita ou de pena restritiva de direitos. A discussão, muito além de meramente acadêmica, apresenta relevância pragmática, sobretudo em casos de descumprimento da pena de multa, circunstância que apresentará implicações distintas, a depender justamente da natureza jurídica que lhe seja emprestada. No presente estudo buscamos enfrentar a questão de modo crítico, assumindo posição quanto ao debate e expondo o entendimento jurisprudencial das cortes superiores.
Palavras-chave: Multa substitutiva. Natureza jurídica. Implicações materiais.
É cediço que o Direito Penal pátrio, mormente por possibilitar a restrição do direito constitucional à liberdade, enquanto sanção mais grave e ofensiva dentre todas as formas de controle social admitidas pelo ordenamento jurídico brasileiro, orienta-se, dentre outros, pelos princípios da subsidiariedade, da humanidade, da adequação social e da proporcionalidade, dos quais resulta a necessidade, ainda mais latente do que em outros ramos da ciência jurídica, de se garantir uma mínima segurança na interpretação e aplicação de institutos jurídicos, dentre os quais se insere a possibilidade de substituição das penas privativas de liberdade por sanções alternativas, insculpida no art. 44 do Código Penal.
Nesse cenário, se tem percebido certa instabilidade, sobretudo no âmbito do Poder Judiciário, quanto à aplicação da regra prevista no art. 44, § 2º, do estatuto repressor, que consagra a possibilidade de substituição das penas privativas de liberdade pela pena de multa, quer isolada, quer cumulativamente com outras sanções alternativas. As diferentes interpretações dadas à previsão normativa decorrem de leituras antagônicas quanto à natureza jurídica da multa substitutiva, ou, em termos mais precisos, se se trata de multa propriamente dita ou de mais uma espécie de pena restritiva de direitos, o que finda por trazer implicações diretas sobre a execução dessa sanção.
Com efeito, não raras vezes nos deparamos na prática forense com decisões judiciais que, diante do descumprimento da pena de multa fixada com fundamento no art. 44, §2º, do Código Penal, determinam a reconversão em pena privativa de liberdade, de tal sorte que, ainda que não o façam expressamente, estarão tais decisões atribuindo à referida sanção a natureza jurídica de pena restritiva de direitos.
Por outro lado, diversas são as hipóteses em que o Poder Judiciário estabelece, após o trânsito em julgado da sentença condenatória à pena de multa substitutiva, a inscrição do valor correspondente em dívida ativa, seguindo à risca a previsão do art. 51 do Código Penal, casos em que se reconhece à multa do art. 44, §2º, a natureza de multa propriamente dita (posição com a qual concordamos, conforme se evidenciará nos tópicos seguintes).
Não restam dúvidas, portanto, de que a questão reclama maior reflexão dos aplicadores do direito de um modo geral e, em especial, do Poder Judiciário, como forma de garantir um mínimo de segurança jurídica na aplicação do instituto, lacuna interpretativa que buscamos reduzir através deste estudo, obviamente sem a pretensão de exaurir o debate sobre o tema.
2. Penas de multa e restritivas de direitos: considerações gerais.
O Direito Penal, enquanto mecanismo de controle social, faz valer o poder de império estatal por meio da imposição de penas, caracterizadas estas pela restrição ou privação de bens jurídicos determinados do indivíduo que viola normas de convívio social especialmente tuteladas pelo Estado.
Segundo o brilhante escólio de Cleber Masson[1], “pena é a espécie de sanção penal consistente na privação ou restrição de determinados bens jurídicos do condenado, aplicada pelo Estado em decorrência do cometimento de uma infração penal, com as finalidades de castigar seu responsável, readaptá-lo ao convívio em comunidade e, mediante a intimidação endereçada à sociedade, evitar a prática de novos crimes ou contravenções penais”.
De logo se percebe que a ideia de pena está inevitavelmente atrelada às finalidades buscadas pelo jus puniendi estatal. Sem a pretensão de nos estender sobre o tema em face da proposta deste artigo, é possível afirmar que ao longo da história se conceberam diferentes teorias sobre as finalidades da pena. Dentre elas, apresentaram maior relevância: (i) a teoria absoluta (ou da finalidade retributiva), difundida através dos estudos de Wilhelm Friedrich Hegel e Emmanuel Kant, segundo a qual a pena consistiria na justa repressão estatal de um mal causado pelo agente delitivo, sem se preocupar com a função de readaptação social; (ii) a teoria relativa (ou da finalidade preventiva), com respaldo em Hans Welzel, Gunther Jakobs e Anselm von Feuerbach, que defendia uma finalidade preventiva para a pena, preocupando-se mais em evitar a prática de novas infrações pelo condenado (prevenção especial) e pela sociedade (prevenção geral); e (iii) teoria unitária (unificadora ou mista), de acordo com a qual a reprimenda penal se presta, concomitantemente, a castigar o criminoso pela sua conduta e a evitar a prática de novos crimes.
Por força do vigente art. 59 do Código Penal[2], há certo consenso doutrinário no sentido de que a sanção penal no ordenamento jurídico brasileiro orienta-se pela teoria unitária, ou seja, a pena, entre nós, ostenta as finalidades retributiva e preventiva.
É certo, entretanto, que o atingimento de tais finalidades nem sempre se obtém por meio da privação de liberdade do agente. A adequação dessa via para o fim de ressocialização dos condenados, aliás, há muito vem sendo questionada pela doutrina criminalista, sobretudo porque as precárias condições carcerárias existentes em nosso país, ao revés, se prestam muito mais à formação e profissionalização da delinquência do que à prevenção de novos delitos. Segundo a lição de Manoel Pedro Pimentel[3],
“O fracasso da prisão como agência terapêutica foi constatado, relativamente às penas de curta duração, logo depois de iniciada a prática do encarceramento como pena. É antiga, portanto, a ideia de que o ambiente do cárcere deve ser evitado, sempre que possível, nos casos em que a breve passagem do condenado pela prisão não enseje qualquer trabalho de ressocialização. Por outro lado, essas pequenas condenações não se prestam a servir como prevenção geral, acrescentando-se o inconveniente de afastar o sentenciado do convívio familiar e do trabalho, desorganizando, sem nenhuma vantagem, a sua vida.”
Diante desse panorama e a despeito da existência de posicionamento que vislumbra nas penas privativas de liberdade a única alternativa viável à garantia das finalidades preventiva e retributiva da sanção penal[4], o ordenamento jurídico brasileiro passou a admitir a instituição de penas alternativas à prisão como meio hábil a combater, ainda que de forma paliativa, a deficiência estatal no oferecimento de condições adequadas à ressocialização e punição dos condenados.
Grandes inovações a esse respeito foram introduzidas na Parte Geral do Código Penal pela Lei nº 7.219/1984, que disciplinou a imposição de penas restritivas de direitos em substituição às penas privativas de liberdade, dando efetividade ao instituto até então carente de regulamentação legal. Posteriormente, a Lei nº 9.714/1998, atendendo aos anseios da comunidade jurídica e buscando emprestar ainda mais efetividade ao instituto, trouxe novas regras pertinentes às sanções restritivas de direitos, alterando profundamente os pressupostos para concessão da benesse e ampliando o rol de condições de cumprimento.
Partindo dessas premissas, é possível conceituar as penas restritivas de direitos como sanções alternativas ao encarceramento, instituídas em lei, a partir de uma decisão de política criminal, aplicáveis aos condenados pela prática de crimes de menor grau de ofensividade, com o objetivo de promover a punição e ressocialização do agente através da restrição de bens jurídicos distintos da liberdade de locomoção.
Por óbvio, em se tratando de medida de natureza alternativa e, por conseguinte, excepcional, a aplicação e interpretação dos dispositivos legais pertinentes deve ser estrita, de onde sobressai que o rol de penas restritivas de direitos estatuído no art. 43 do Código Penal é taxativo (exaustivo), não se admitindo a criação de outras penas restritivas para o caso concreto. Assim, somente podem ser admitidas atualmente como sanções alternativas as penas de (i) prestação pecuniária, (ii) perda de bens e valores, (iii) limitação de fim de semana, (iv) prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas, e (v) interdição temporária de direitos, subdividindo-se esta última, conforme disposição do art. 47, em (v.1) proibição do exercício de cargo, função ou atividade pública, bem como de mandato eletivo, (v.2) proibição do exercício de profissão, atividade ou ofício que dependam de habilitação especial, de licença ou autorização do poder público, (v.3) suspensão de autorização ou de habilitação para dirigir veículo, (v.4) proibição de frequentar determinados lugares e (v.5) proibição de inscrever-se em concurso, avaliação ou exame públicos.
Ademais, as penas restritivas de direito possuem, como último fator característico digno de nota neste momento, a possibilidade de (re)conversão em pena privativa de liberdade em caso de descumprimento injustificado ou de condenação superveniente a pena privativa de liberdade em razão da prática de outro crime, a teor do que prescrevem os §§ 4º e 5º, do art. 44, do Código Penal.
Pois bem. Explicitadas, em linhas gerais, as características das sanções restritivas de direitos, convém traçar igual caminho em relação à pena de multa.
Em princípio, é de relevo destacar que, constituindo-se como verdadeira sanção penal, a multa se destina às mesmas finalidades inerentes às penas em geral, quais sejam, a retribuição e a prevenção de novos delitos. Igualmente, se submete aos princípios gerais da legalidade e da anterioridade, reclamando previsão por lei (em sentido formal e material) vigente à data do fato criminoso.
A primeira (e principal) distinção em relação às penas de prisão, por demais óbvia, reside no bem jurídico atingido: enquanto estas últimas se voltam à restrição da liberdade de locomoção do indivíduo, as penas de multa atacam diretamente o patrimônio do agente delitivo, possuem, pois, natureza eminentemente pecuniária.
Segundo leciona o insigne penalista Rogério Greco[5], à semelhança do que já foi dito em relação às penas restritivas de direitos, “nos dias de hoje, a pena de multa atende às necessidades atuais de descarcerização, punindo o autor da infração penal com o pagamento de importância determinada pelo juiz, cujo valor deverá obedecer aos limites mínimo e máximo ditados pelo Código Penal”.
Sob esse aspecto, não se duvida que as sanções pecuniárias, dentre as quais se inclui a pena de multa, assumem inegável feição intimidatória, não raras vezes revelando maior eficácia preventiva do que as penas privativas de liberdade de menor vulto. Por outro lado, não se descura da possibilidade de que as penas de multa se afigurem iníquas no caso concreto, ante a sua impessoalidade e o risco, sempre presente, de que a sanção não seja suportada efetivamente pelo causador do ato criminoso.
Luigi Ferrajoli, citado por Rogério Greco, chama atenção para esse aspecto negativo da pena de multa, sustentando que “a pena pecuniária é uma pena aberrante sob vários pontos de vista. Sobretudo porque é uma pena impessoal, que qualquer um pode saldar, de forma que resulta duplamente injusta: em relação ao réu, que não a quita e se subtrai, assim, à pena; em relação ao terceiro, parente ou amigo, que paga e fica, assim, submetido a uma pena por um fato alheio. Ademais, a pena pecuniária é uma pena desigual, ao ser sua formal igualdade bem mais abstrata do que a pena privativa de liberdade. Recai de maneira diversamente aflitiva segundo o patrimônio e, por conseguinte, é fonte de intoleráveis discriminações no plano substancial”.[6]
Críticas e elogios à parte, é certo que a pena de multa, em que pese os pontos de contato já mencionados, não se confunde com as penas restritivas de direito, nem mesmo com a de prestação pecuniária. Como bem salienta Fernando Capez[7], “a multa não pode ser convertida em pena privativa de liberdade, sendo considerada, para fins de execução, dívida de valor (CP, art. 51). As penas alternativas pecuniárias, ao contrário, admitem conversão (CP, art. 44, 4º). Por essa razão, não há como confundir as novas espécies de penas restritivas de direitos constantes no art. 43 do Código Penal com a pena de multa, pese embora todas terem caráter pecuniário”.
Essa e outras distinções, dada a evidente relevância para o presente estudo, serão aprofundadas nos tópicos que se seguem, sobretudo quando da análise das implicações materiais decorrentes da natureza jurídica que se atribua à multa do art. 44, §2º, do Código Penal (multa propriamente dita ou pena restritiva de direitos).
Antes disso, porém, convém traçar um último aparte conceitual para registrar que a pena de multa, a depender do seu caráter de pena autônoma ou substitutiva, recebe diferentes designações terminológicas pela doutrina penal, cujo conhecimento revela-se de extrema pertinência para a perfeita intelecção do raciocínio encetado neste capítulo.
Com efeito, denomina-se principal (ou processual) a multa quando estabelecida de modo autônomo pelo tipo penal, devendo a sua fixação ser efetivada pelo Juiz no momento da sentença penal condenatória, a partir da utilização do critério bifásico consagrado no art. 49 do Código Penal (fixação do número de dias-multa e do valor de cada um deles). A identificação dessa espécie de multa é tarefa das mais simples, eis que, quando cominadas pela lei, situam-se necessariamente no preceito secundário de cada um dos tipos penais espraiados na Parte Especial do Código Penal ou na legislação criminal esparsa.
Lado outro, nomeia-se de substitutiva (ou alternativa) a pena de multa quando aplicada em substituição às penas privativas de liberdade que preencham os requisitos legais para tanto. Essa espécie tem posição fixa na Parte Geral do Código Penal, mais especificamente no art. 44, §2º, e é justamente ela o objeto do presente estudo.
As distinções, entretanto, encerram-se nesses aspectos (terminológico e geográfico), que não se prestam a fundamentar, por si sós, a atribuição de naturezas jurídicas distintas a essas espécies de multa, porquanto, em essência, ambas conservam o seu caráter de dívida de valor, passível de execução pelos mesmos mecanismos atinentes à dívida ativa da Fazenda Pública, conforme buscaremos detalhar nos tópicos seguintes.
Perquirir sobre a natureza jurídica de um instituto significa incursionar sobre os seus elementos constitutivos fundamentais, contrapondo-os aos de outras figuras jurídicas similares, com a finalidade de classificá-lo dentro de alguma categoria existente no universo do Direito. Dita atividade não tem outro sentido, que não o de garantir um mínimo de segurança jurídica na interpretação e aplicação dos institutos.
Conforme clássica lição de Tércio Sampaio Ferraz Júnior[8], “em geral, a natureza jurídica de uma situação é dada pelas normas que a disciplinam. Isso, porém, (…) nem sempre é fácil. Precisamos reconhecer, então, se o objeto normado tem uma natureza que lhe seja peculiar: é a natureza das coisas”. E prossegue o mestre, “a natureza das coisas é aceita como um lugar comum, preenchido pelos usos consagrados pela tradição”.
A natureza jurídica de um instituto, portanto, deve ser aferida não só a partir da análise do complexo normativo que o rege, mas, também, através de uma reflexão sobre sua essência enquanto fenômeno jurídico (finalidades, fundamentos, pressupostos de existência e validade, etc.), até que se atinja um lugar comum dentre as demais figuras existentes no Direito.
No caso em estudo, consoante já adiantado nas linhas introdutórias, a delimitação da natureza jurídica da multa substitutiva prevista no art. 44, §2º, do Código Penal, é questão de enorme significação prática, sobretudo em razão das diferentes consequências que poderão advir da catalogação dessa espécie de sanção em um ou outro gênero.
Partindo dessas premissas, e com o devido respeito às opiniões em sentido contrário, consignamos, desde logo, nossa filiação ao entendimento segundo o qual a multa substitutiva, apesar de posicionada geograficamente em dispositivo que versa sobre as sanções restritivas de direitos, conserva sua natureza jurídica de multa propriamente dita. Diversas são as razões a amparar esse posicionamento.
Em primeiro lugar, a só utilização do método literal de interpretação jurídica, por mais obsoleto que seja, já é contundente para revelar a tendência do legislador penal em atribuir à multa substitutiva natureza diversa das sanções restritivas de direitos.
Isso porque o dispositivo de lei que consagra a multa substitutiva é claro ao estabelecer que “Na condenação igual ou inferior a um ano, a substituição pode ser feita por multa ou por uma pena restritiva de direitos; se superior a um ano, a pena privativa de liberdade pode ser substituída por uma pena restritiva de direitos e multa ou por duas restritivas de direitos”.
Ora, tivesse o legislador a intenção de atribuir à multa substitutiva a natureza de pena restritiva de direitos, razão alguma haveria para mencionar a possibilidade de imposição de uma ou outra modalidade, nas condenações iguais ou inferiores a um ano. Muito menos razão haveria para autorizar a substituição por uma multa e uma restritiva de direitos, nas condenações superiores a um ano, eis que bastaria a menção à substituição por duas penas restritivas, como feito na parte final do dispositivo. Parece óbvio, mas há quem discorde.
O equívoco do entendimento que inclui a multa do art. 44, §2º, do Código Penal, entre as sanções restritivas de direitos, se evidencia, ainda, a partir da constatação de que essa sanção não se encontra dentre aquelas previstas no art. 43 do estatuto repressor, que se dedica a elencar, em rol exaustivo, as penas restritivas admitidas pelo Direito Penal pátrio.
Ademais, o último e, a nosso ver, mais contundente, argumento para amparar a nossa posição, reside no fato de que o estatuto repressor já previu, dentre as penas restritivas, a de prestação pecuniária. Por óbvio, se a mens legis era a de instituir uma modalidade de pena restritiva de direitos com ênfase no aspecto patrimonial, já seria bastante a previsão da pena de prestação pecuniária, como, de fato, foi feito através do art. 43, inciso I, do Código Penal.
Em termos mais claros, a existência da pena de prestação pecuniária, dentre as sanções restritivas de direitos, rechaça a necessidade/utilidade da criação de uma segunda sanção de idêntica natureza e também com apelo patrimonial. Outra não foi a intenção do legislador, pois, que não a de possibilitar a substituição da pena privativa de liberdade por sanções de naturezas distintas, com garantias e procedimentos próprios para execução.
Tanto é assim que a possibilidade de aplicação isolada da pena de multa - sanção cujo descumprimento acarreta consequências inegavelmente menos drásticas do que as restritivas de direitos - foi reservada pelo § 2º do art. 44 exatamente para as condenações mais leves (iguais ou inferiores a um ano). Com isso, autorizou-se a substituição da prisão exclusivamente pela pena de multa, exatamente por entender-se que condenações ínfimas não devem ensejar o recolhimento ao cárcere, ainda que descumprida a pena alternativa à prisão, o que não será possível no caso de imposição de penas restritivas de direitos.
A análise detida da multa substitutiva enquanto instituto jurídico, desse modo, conduz à inevitável constatação de que a sua criação constituiu verdadeira decisão de política criminal, haja vista que findou por abrir ao Juiz uma alternativa para adequação da sanção penal ao caso concreto, sobretudo naquelas hipóteses em que a imposição de pena pecuniária se revele suficiente para os fins de ressocialização e retribuição, independentemente do recolhimento do apenado ao cárcere, ainda que descumprida a sanção alternativa, por não se mostrar a privação de liberdade compatível com o delito praticado.
Com todos esses argumentos, portanto, não vemos como sustentar conclusão diversa, senão a de que a multa substitutiva ostenta natureza jurídica de pena de multa propriamente dita, sujeita, portanto, a todos as particularidades atinentes a essa espécie sancionatória, afigurando-se equivocado o entendimento que sustenta a natureza de sanção restritiva de direitos.
A solução alcançada no tópico anterior, qual seja, a de que a multa substitutiva prevista no art. 44, §2º, do Código Penal, possui natureza jurídica de multa propriamente dita e não de pena restritiva de direitos, possui relevantes implicações no campo material.
A primeira (e principal) delas, por diversas vezes mencionada neste artigo, remete às consequências que poderão advir para o apenado em caso de inadimplemento da sanção. Para os que entendem que a multa substitutiva possui natureza de pena restritiva de direitos, o seu descumprimento importará na (re)conversão em pena privativa de liberdade, a teor do que estatui o art. 44, §4º, do Código Penal. Para os que, assim como nós, reconhecem o status de multa propriamente dita, a não quitação do valor correspondente ensejará para o agente a submissão aos atos de execução típicos das dívidas ativas da Fazenda Pública, conforme disposição do art. 51 do Código Penal.
Sobre o tema, já constam na jurisprudência dos tribunais pátrios diversos julgados que se alinham ao entendimento aqui sustentado. Confiram-se, à guisa ilustrativa, os seguintes precedentes:
HABEAS CORPUS. AMEAÇA. CONDENAÇÃO. SUBSTITUIÇÃO DA PENA RECLUSIVA POR MULTA. NÃO PAGAMENTO. CONVERSÃO EM PRIVATIVA DE LIBERDADE. IMPOSSIBILIDADE. EXEGESE DO ART. 51 DO CP. COAÇÃO ILEGAL EVIDENCIADA. 1. A pena de multa não se encontra no rol do art. 43 do Código Penal, que a doutrina e a jurisprudência entendem como exaustivo, o qual aponta quais são as reprimendas restritivas de direitos. 2. Substituída a sanção reclusiva por uma de multa e, não quitada, não poderia o magistrado determinar a sua reconversão, cabendo tão-somente transformá-la em dívida de valor, nos termos do art. 51 do Código Penal, com a redação que lhe foi conferida pela Lei n. 9.268/96, pois o previsto no art. 44, § 4º, primeira parte, do CP, somente se aplica às penas restritivas de direitos. 3. Ordem concedida para cassar a decisão do Juízo singular que determinou a conversão da pena de multa substitutiva em privativa de liberdade, confirmando-se o alvará de soltura já expedido em favor do paciente. (HC 200701956637, Min. Relator: JORGE MUSSI, STJ - QUINTA TURMA, DJE DATA: 19/12/2008)
PENAL. AGRAVO DE EXECUÇÃO PENAL. RECONVERSÃO DA PENA RESTRITIVA DE DIREITOS EM PRIVATIVA DE LIBERDADE. PENA PECUNIÁRIA. INSCRIÇÃO EM DÍVIDA ATIVA. 1. A apenada vem cumprindo a prestação de serviços à comunidade na entidade beneficente Lar Recanto da Esperança, encontrando-se inadimplente, apenas, com o pagamento da pena de multa, sendo-lhe concedido o prazo de 10 (dez) dias para que comprovasse o pagamento, sob pena de serem tomadas as medidas judiciais cabíveis, não se tendo notícias se houve o referido pagamento. 2. O legislador previu, apenas, a possibilidade, concedida ao Juiz da execução, de converter a pena privativa de liberdade em restritiva de direitos, em havendo o descumprimento injustificado da medida restritiva imposta, o que não ocorreu no caso em comento. A pena de multa, nos termos do art. 51 do CP, configura dívida ativa, seguindo, portanto, o processo de execução fiscal, e o seu inadimplemento resultará na penhora de bens, não podendo ser convertida em pena privativa de liberdade, pelo menos enquanto a pena restritiva estiver sendo devidamente cumprida. 3. - A multa substitutiva da reprimenda privativa de liberdade (art. 44, § 2º, do CP) submete-se a execução e cobrança através do procedimento previsto na Seção III do Título V do Codex Criminal, não decorrendo de seu inadimplemento por parte do apenado, pois, a possibilidade de conversão em pena de reclusão. Transitada em julgado a sentença condenatória e não recolhida a multa (tanto a originária quanto a substitutiva), será ela considerada dívida de valor, a ser cobrada pela Fazenda Pública. 4. Agravo de execução improvido. (AGEPN 201051050012165, Desembargadora Federal LILIANE RORIZ, TRF2 - SEGUNDA TURMA ESPECIALIZADA, E-DJF2R - Data: 17/01/2012 - Página: 213)
PENAL. AGRAVO EM EXECUÇÃO. MULTA SUBSTITUTIVA. CP, ART. 44, § 2º. CONVERSÃO EM PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. IMPOSSIBILIDADE. - A multa substitutiva da reprimenda privativa de liberdade (art. 44, § 2º, do CP) submete-se a execução e cobrança através do procedimento previsto na Seção III do Título V do Codex Criminal, não decorrendo de seu inadimplemento por parte do apenado, pois, a possibilidade de conversão em pena de reclusão. Transitada em julgado a sentença condenatória e não recolhida a multa (tanto a originária quanto a substitutiva), será ela considerada dívida de valor, a ser cobrada pela Fazenda Pública. (AGEPN 200671030003393, JOSÉ PAULO BALTAZAR JUNIOR, TRF4 - OITAVA TURMA, DJ 19/07/2006 PÁGINA: 1222.)
A primeira das questões, portanto, tem sido resolvida com a conclusão de que a multa substitutiva tem natureza claramente distinta das penas restritivas de direitos, sendo justamente essa a razão pela qual o seu inadimplemento não enseja a (re)conversão em pena privativa de liberdade, como sucede em relação às restritivas, mas, sim, a conversão em dívida de valor, aplicando-se-lhes as normas relativas à dívida ativa da Fazenda Pública.
Outro ponto controvertido que sói despertar o interesse da comunidade jurídica pela definição da natureza jurídica das multas substitutivas, reside na possibilidade de usufruto de indulto/comutação de pena pelos réus que se beneficiaram da substituição da sanção prisional por multa e que, ainda assim, não adimpliram a sanção pecuniária em patamar suficiente à obtenção de tais benefícios.
Em termos menos congestionados, a questão que se põe é: em caso de inadimplemento da pena de multa substitutiva, será possível a concessão de indulto/comutação de pena?
A problemática existe, precisamente, porque os mais recentes Decretos Presidenciais que instituíram o chamado “indulto natalino”, contemplaram em seus textos regra segundo a qual o inadimplemento da pena de multa, seja ele total ou parcial, não impede a concessão dos benefícios, desde que preenchidos os demais requisitos estabelecidos.
Para melhor intelecção da problemática, vale conferir a redação do art. 7º, do Decreto nº 8.615/2015, que foi justamente o diploma normativo que regeu a concessão do indulto natalino no ano de 2015:
Art. 7º. O indulto ou a comutação da pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos alcança a pena de multa aplicada cumulativamente.
Parágrafo único. A inadimplência da pena de multa cumulada com pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos não impede a declaração do indulto ou da comutação de penas.
Dessa previsão exsurge, mais uma vez, de forma inconteste, a importância de definir-se a natureza jurídica da multa substitutiva, tendo em vista que, sendo multa propriamente dita, estará o réu dispensado da comprovação do pagamento de quaisquer valores a ela atinentes. Já em se reconhecendo o caráter de sanção restritiva de direitos, restará ao condenado a obrigação de comprovar o adimplemento da fração mínima exigida pelo Decreto Presidencial, sob pena de não fazer jus ao benefício.
Ainda que possa soar como garantismo exacerbado, entendemos que o só risco de que o apenado venha a se beneficiar do indulto sem que tenha cumprido uma fração mínima da multa substitutiva não é bastante para desvirtuar a essência dessa sanção, até mesmo porque seria inconcebível defender a existência de diferentes naturezas jurídicas para um mesmo instituto, a depender das consequências que tal natureza possa acarretar no caso concreto. Afinal, a natureza das coisas não é cambiante: ou estamos diante de uma multa propriamente dita, e assim lhe serão aplicadas todas as prerrogativas, pressupostos e procedimentos inerentes a essa categoria, ou estamos diante de uma sanção restritiva de direitos, e assim serão aplicáveis as regras a estas pertinentes.
A decisão sobre a extensão do indulto para a pena de multa, pois, é questão afeta unicamente à esfera discricionária da autoridade competente para a concessão do indulto, tocando somente a ela deliberar sobre a conveniência de se isentar o pagamento dessa sanção pecuniária, ciente de que a eventual concessão de tal benesse abrangerá necessariamente a pena de multa substitutiva, em face da sua natureza jurídica de multa propriamente dita.
5. Conclusão
Por todo o exposto, firmamos convicção no sentido de que a multa substitutiva, ainda que posicionada geograficamente em dispositivo que trata das penas restritivas de direitos, conserva a sua natureza jurídica de multa propriamente dita, devendo a ela ser emprestadas todas as regras pertinentes à execução das sanções dessa natureza, sobretudo no que diz respeito à convolação em dívida de valor a partir do trânsito em julgado da condenação, nos moldes do art. 51 do Código Penal.
Consoante restou assentado no desenvolvimento deste artigo, a criação da multa substitutiva constituiu verdadeira decisão de política criminal do legislador pátrio, no intuito de abrir aos juízes uma alternativa para adequação da sanção penal ao caso concreto, outorgando-lhes a possibilidade de eleger sanções de naturezas diversas (e com consequências distintas), sempre com fincas nas finalidades retributiva e preventiva inerentes à pena.
Não entendemos correto, dessa forma, o entendimento segundo o qual um eventual descumprimento da pena de multa substitutiva ensejará a (re)conversão em pena privativa de liberdade, incumbindo ao Juiz sentenciante atentar para essa especificidade no momento da substituição, elegendo dentre as penas alternativas previstas pela legislação a que se revele mais adequada ao caso concreto, em juízo de proporcionalidade, inclusive atentando para a impossibilidade de conversão em prisão inerente à multa do art. 44, §2º, do Código Penal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado – Vol. 1, Parte Geral. 9ª Edição. São Paulo: Método, 2015.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: parte geral e parte especial. 7ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2011.
PIMENTEL, Manoel Pedro. O crime e a pena na atualidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.
[1] MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado – Vol. 1, Parte Geral. 9ª Edição. São Paulo: Método, 2015.
[2] De acordo com o art. 59 do Código Penal “O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime (…) as penas aplicáveis dentre as cominadas”.
[3] PIMENTEL, Manoel Pedro. O crime e a pena na atualidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.
[4] Nesse sentido, confira-se a lição de Ralf Dahrendorf, citado por Rogério Grecco: “Uma teoria penal que abomina a detenção a ponto de substituí-la totalmente por multas e trabalho útil, por ‘restrições ao padrão de vida’, não só contém um erro intelectual, pois confunde lei e economia, como também está socialmente errada. Ela sacrifica a sociedade pelo indivíduo. Isso pode soar a alguns como incapaz de sofrer objeções, até mesmo desejável. Mas também significa que uma tal abordagem sacrifica certas oportunidades de liberdade em nome de ganhos pessoais incertos. Ser gentil com infratores poderá trazer à tona a sociabilidade escondida em alguns deles. Mas será um desestímulo para muitos, que estão longe do palco criminoso, de contribuir para o processo perene da liberdade, que consiste n a sustentação e na modelagem das instituições criadas pelos homens”. (GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Vol. 1. 17ª Edição. Rio de Janeiro: Impetus, 2015. Pág. 601)
[5] GRECO, Rogério. Op. cit, pág. 619.
[6] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão – Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. Pág. 334.
[7] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, Vol. 1. Parte Geral. 16ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2012.
[8] FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito – Técnica, Decisão, Dominação. 4ª Edição. São Paulo: ATLAS, 2003.
Promotor de Justiça, no Ministério Público do Estado de Rondônia. Ex-servidor público federal da Justiça Federal, Subseção Judiciária de Campina Grande/PB. Ex-Coordenador de Ações Judiciais da Procuradoria Federal (AGU) na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Graduado em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Pós-graduado lato sensu em Direito Público pela Universidade Anhanguera (UNIDERP/LFG) e em Gestão Pública pela UEPB. Pós-graduando em Direito Ambiental pela Escola Superior da Magistratura de Rondônia (EMERON).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FONSECA, Felipe Magno Silva. Multa do art. 44, §2º, do Código Penal: natureza jurídica e implicações Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 set 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47550/multa-do-art-44-2o-do-codigo-penal-natureza-juridica-e-implicacoes. Acesso em: 23 dez 2024.
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