RESUMO: A pesquisa tem por objetivo analisar a tutela dos Direitos Fundamentais, notadamente o Direito à Saúde, a fim de subsidiar a guarida dos direitos dos transexuais, vez que tais são diagnósticos como possuidores de enfermidades. Deixando de lado o preconceito, a Constituição Federal reconhece a saúde a qualquer cidadão, então, possibilitar o tratamento de saúde adequado aos transexuais é concretizar valores constitucionais. Utilizamos como estratégia metodológica a pesquisa bibliográfica, associada a processos hermenêuticos de análise e compreensão dos fenômenos sociais relacionados aos direitos fundamentais e a transexualidade expressos, adversamente.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Dignidade da Pessoa Humana. Princípio da Proibição de Proteção Insuficiente e a Teoria do Mínimo Existencial. Transexualismo. Direito à Saúde.
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal possui em um de seus principais pilares a luta pelos Direitos Humanos, consagrados no plano internacional, frente a isso dispõe em seu § 1º, art. 5º, que os direitos fundamentais são de aplicação imediata, regra que, apesar de contida no Título II, aplica-se a todos os direitos que carregam aquela característica. Correntes doutrinárias divergem acerca do alcance de tal dispositivo, sendo possível destacar a interpretação dada por: Dirley da Cunha, realizando interpretação literal ao defender que todos os direitos fundamentais devem ser aplicados de forma imediata, ou seja, são direitos subjetivos que podem ser desfrutados; e Marcelo Novelino, afirmando que os direitos fundamentais têm aplicação imediata, ao passo que as exceções são aqueles casos em que o próprio legislador constituinte exigiu expressamente lei reguladora ou complementar.
Vale lembrar que a consagração sistemática dos direitos fundamentais do Título II (art. 5º ao art. 17) não significa a exclusão dos outros, previstos ao longo do texto constitucional e em legislações diversas, incluindo os advindos de tratados internacionais. Bobbio afirma que os direitos fundamentais não são dados pelos estados, mas representam conquistas sociais.
Os direitos fundamentais possuem como característica a universalidade - devendo ser respeitado por toda sociedade -, historicidade - surgiram em épocas diferentes e foram se moldando ao longo do tempo –, irrenunciabilidade, imprescritibilidade, inalienabilidade - não se admite renúncia, prescrição e negociação da titularidade (total e perpétua), mas sim do seu exercício (parcial e temporária) -, limitabilidade/relatividade – encontram limitações em outros dispositivos constitucionais. Todavia, maioria doutrinária considera a dignidade da pessoa humana como princípio absoluto.
A dignidade da pessoa humana é retratada na Carta Magna tanto como fundamento inerente à própria estrutura do Estado, formando seu alicerce (art. 1º, III), quanto como objetivo fundamental, consistindo em meta a ser alcançada e possuindo natureza de princípio de otimização.
Embora as sociedades humanas já tenham evoluído na luta para garantir direitos fundamentais às pessoas, vários grupos ainda sofrem na busca de serem reconhecidos e não discriminados por constituírem grupos “fora das convenções socioculturais” instituídas.
O presente texto busca a articulação dos fundamentos legais dos Direitos Fundamentais aos processos de atendimento ao ser humano, no que se refere ao tema “transexualidade”, enquanto tema polêmico, emergente e desafiador na sociedade contemporânea.
DESENVOLVIMENTO
Dignidade da Pessoa Humana
Hodiernamente, a dignidade da pessoa humana não é vista somente como fundamento, mas como valor constitucional supremo. Por isso, o fato de estar fora do art. 5º não impede de caracterizá-la como direito fundamental, apesar de a maioria doutrinária não o fazê-lo, preferindo entendê-la como qualidade intrínseca ao ser humano, uma vez que a pessoa possui dignidade independentemente de qualquer condição (origem, raça, nacionalidade, sexo).
O respeito à dignidade se impõe igualmente ao particular e ao Estado, porém, a promoção e a proteção são mais voltados ao segundo, apesar de, em alguns casos, também se aplicarem ao primeiro. A proteção se dá através da consagração e efetivação dos direitos individuais, que são mais intimamente ligados à dignidade, quais sejam: liberdade e igualdade.
Por sua vez, a promoção diz respeito aos direitos sociais, como a saúde. Aqui se insere o conceito intimamente ligado ao de mínimo existencial, explicitado mais a frente. Já o respeito estaria consagrado no art. 5º, III da Constituição Federal. A dignidade da pessoa humana seria um princípio concretizado pelos direitos fundamentais. A dignidade da pessoa humana é o núcleo em torno do qual gravitam os direitos fundamentais. É ela que confere a esses direitos um caráter sistêmico e unitário.
A fórmula do objeto, relacionada à filosofia kantiana, afirma que a dignidade é violada quando o ser humano é tratado como um meio e não como um fim em si, coisificação do indivíduo. Os alemães acrescentam a este conceito a expressão de desprezo. Assim, a dignidade será violada quando o indivíduo for tratado como objeto, como meio, e este tratamento for fruto de uma expressão de desprezo por aquele ser humano.
Direitos Fundamentais em Espécie
Direito à vida
Segundo a doutrina majoritária, o direito à vida deve ser compreendido em uma dupla acepção: tanto como o direito de permanecer vivo quanto como o direito a uma existência digna. Consoante entendimento dos Tribunais de São Paulo e do Rio Grande do Sul, o direito à vida é pressuposto para o exercício de todos os demais direitos, razão pela qual deve ter uma precedência. A inviolabilidade, por sua vez, protege o direito à vida contra terceiro, tanto em ralação à violação do Estado quanto a dos particulares.
Direito à igualdade
A igualdade formal (civil, jurídica ou perante a lei), prevista no caput do art. 5º da Constituição Federal consiste no tratamento isonômico conferido a todos os seres de uma mesma categoria essencial. Já a igualdade material (real ou fática) tem por finalidade a igualização de desiguais por meio da concessão de certos direitos substanciais.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]
Esses dois tipos de igualdade se diferenciam pelo fim a que se destinam: enquanto a igualdade formal visa a impedir distinções arbitrárias, preconceituosas e desproporcionais, a material tem por fim a redução de desigualdades fáticas.
Para Dworkin, a democracia constitucional exige um tratamento de todos com igual respeito e consideração e que somente é possível quando reconhecido o direito de ser diferente e de viver de acordo com esta diferença.
O Estado não pode fornecer o conceito do que é uma vida boa. Deve ser permitida que a pessoa viva de forma diferente e não cabe à maioria impor sua concepção moral à minoria.
Nesse sentido, Boaventura de Sousa Santos escreveu que “temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”.
Direito à liberdade
A liberdade negativa, liberdade civil ou liberdade de agir, é a situação na qual o sujeito tem a possibilidade de agir sem ser impedido e a liberdade de não agir sem ser obrigado por outros, isto é, ausência de constrangimento a agir e a não agir.
Já a liberdade positiva ou política é aquela em que um sujeito tem a possibilidade de orientar seu próprio querer no sentido de uma finalidade sem ser determinado pelo querer dos outros, estando ligada a autoderminação do indivíduo/autonomia da vontade, isto é, capacidade de o individuo tomar suas próprias decisões.
Princípio da Proibição de Proteção Insuficiente e a Teoria do Mínimo Existencial
O Brasil, na aplicação dos direitos fundamentais, adotou a teoria da eficácia vertical nas relações entre o Estado e o indivíduo, e horizontal direta entre particulares, na qual os direitos fundamentais podem ser aplicados diretamente às relações entre particulares, independentemente de artimanhas interpretativas.
Desta forma, os destinatários dos deveres são aqueles que devem respeitar os direitos consagrados no art. 5º da CF, mormente os poderes públicos, uma vez que os direitos individuais foram criados para proteger as pessoas contra o arbítrio do Estado, mas em algumas situações servem também para proteger dos particulares.
Infelizmente, por possuir uma posição de supremacia frente ao particular, muitas vezes o Estado comete ofensas as garantias individuais, para tanto, princípios protetores destas foram se firmando para fazer um sistema de contrapeso ao poderio estatal. Exemplo dessa guarida é o princípio da proibição de proteção insuficiente, também chamado de princípio da proibição por defeito que tem por finalidade impedir que a adoção de medidas por parte dos órgãos estatais que sejam insuficientes ou inadequadas para proteger os direitos fundamentais de forma satisfatória.
Parra corroborar tal princípio há ainda a exigência de tutela dos direitos sociais que são, em sua maioria, direitos prestacionais, ou seja, exige-se uma atitude positiva do Estado, sejam materiais ou jurídicas essas prestações. As prestações materiais pressupõem custo, assim como qualquer outro direito, porém, nesse caso, há importância maior de estudo do custo porque vai interferir no orçamento do Estado.
No fim de evitar que o Estado burle o princípio da proibição de proteção insuficiente, estabeleceu-se a teoria do mínimo existencial que é um subgrupo menor de direitos sociais ligados de forma mais íntima à dignidade da pessoa humana, uma vez que a Constituição Brasileira é extremamente rica em direitos sociais, que foram consagrados em extenso rol. A finalidade do mínimo existencial é conferir maior efetividade a determinados direitos mais essenciais à existência humana.
Não há um consenso sobre quais são os direitos que compõem o mínimo existencial e em que medida. Para Ana Paula de Barcellos, um dos direitos que compõem o mínimo existencial é direito à saúde.
Daniel Sarmento adota o seguinte posicionamento: os direitos que compõem o mínimo existencial devem ter um peso maior que aquele conferido aos demais, ou seja, o ônus argumentativo do Estado para não implementar aquela prestação será ainda maior.
Ingo Sarlet, por sua vez, entende que o mínimo existencial não se sujeita à reserva do possível. Segue esse raciocínio o Ministro Celso de Mello, que no RE 482611, proferiu o seguinte voto: “impossibilidade de invocação, pelo Poder Público, da cláusula da reserva do possível sempre que puder resultar de sua aplicação comprometimento do núcleo básico que qualifica o mínimo existencial”.
A reserva do possível seria as limitações orçamentárias em determinadas circunstâncias fáticas que acabam sendo um obstáculo à plena realização de determinados direitos, em decorrência da possibilidade fática, possibilidade jurídica e razoabilidade da exigência e proporcionalidade da prestação.
A possibilidade fática é a disponibilização dos recursos necessários à satisfação do direito prestacional, não se atendo apenas na demanda individual, mas representando uma universalização da prestação, questão de justiça distributiva. A possibilidade jurídica, por sua vez, é a existência de autorização orçamentária para cobrir as despesas, assim como na análise das competências federativas. Para o Ministro Celso de Mello, a razoabilidade da exigência e proporcionalidade da prestação é a realização prática dos direitos prestacionais dependendo da razoabilidade da pretensão individual ou social exigida em face do Estado, a quem cabe o ônus da prova.
Todavia, conforme já explicitado acima, o STF entende que a fim de alcançar o mínimo existencial, tal como o direito à saúde, não pode ser suscitado pelo Estado à reserva do possível.
Transexualismo e a Portaria nº 1707/2008
A sociedade mundial e consequentemente a brasileira vem evoluindo consideravelmente no que tange a tutela aos direitos individuais de diversos grupos antes excluídos ou esquecidos, tais como, a criação de lei específica, Lei Maria da Penha, a tratar da violência doméstica, reconhecimento da união estável de casais homoafetivos, projetos de lei dispondo da proteção aos homossexuais e combate à homofobia, entre outros tantos sinais que mostram a evolução social em direção a uma sociedade livre de preconceitos e concretizando em sua totalidade o disposto no texto Constitucional.
Porém, é insuficiente apenas a confecção de dispositivos legais sem a devida absorção destes pela sociedade como um todo. Para tanto, é necessário que tais assuntos sejam levados a discussões, por meio de campanhas governamentais por exemplo, em todas as camadas sociais, com seriedade, a fim de que tais regramentos sejam efetivados.
Uma amostra preocupante dessa situação é a falta de programas na saúde pública ao público de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais (LGBT), ou seja, o Estado não dá a tutela necessária a esse grupo de pessoas, existindo muita exclusão e preconceito em relação ao atendimento aos homossexuais no Sistema Único de Saúde (SUS).
É gritante a necessidade de política pública para esta população, questão do envelhecimento, do atendimento psicossocial ao homossexual, pois até este conseguir se inserir na sociedade passa por muito sofrimento psicológico.
Um dos exemplos do preconceito institucionalizado, da discriminação da rede pública de saúde, é com relação aos transexuais que podem ser conceituados como o indivíduo que possui a convicção inalterável de pertencer ao sexo oposto ao constante em seu Registro de Nascimento, reprovando veementemente seus órgãos sexuais externos, dos quais deseja se livrar por meio de cirurgia. Segundo uma concepção moderna, o transexual masculino é uma mulher com corpo de homem. Um transexual feminino é , evidentemente, o contrário. São, portanto, portadores de neurodiscordância de gênero. Suas reações são, em geral, aquelas próprias do sexo com o qual se identifica psíquica e socialmente.
Atualmente, o transexualismo vem sendo enquadrado no âmbito das intersexualidades, visto que o hipotálamo do transexual o leva a se comportar contrariamente ao sexo correspondente à sua genitália de nascença.
Reconhecendo a gravidade da situação que passam esses indivíduos, o Ministério da Saúde acompanhando uma tendência mundial, por meio da Portaria nº. 1707/2008, coloca o transexualismo como uma doença e inclui a mudança de sexo no rol dos procedimentos do SUS. Assim dispõe:
Considerando que a orientação sexual e a identidade de gênero são fatores reconhecidos pelo Ministério da Saúde como determinantes e condicionantes da situação de saúde, não apenas por implicarem práticas sexuais e sociais específicas, mas também por expor a população GLBTT (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais) a agravos decorrentes do estigma, dos processos discriminatórios e de exclusão que violam seus direitos humanos, dentre os quais os direitos à saúde, à dignidade, à não discriminação, à autonomia e ao livre desenvolvimento da personalidade;
Considerando que a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, instituída pela Portaria nº 675/GM, de 31 de março de 2006, menciona, explicitamente, o direito ao atendimento humanizado e livre de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero a todos os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS);
(...)
Art. 2º - Estabelecer que sejam organizadas e implantadas, de forma articulada entre o Ministério da Saúde, as Secretarias de Saúde dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, as ações para o Processo Transexualizador no âmbito do SUS, permitindo:
I - a integralidade da atenção, não restringindo nem centralizando a meta terapêutica no procedimento cirúrgico de transgenitalização e de demais intervenções somáticas aparentes ou inaparentes;
II - a humanização da atenção, promovendo um atendimento livre de discriminação, inclusive pela sensibilização dos trabalhadores e dos demais usuários do estabelecimento de saúde para o respeito às diferenças e à dignidade humana;
III - a fomentação, a coordenação a e execução de projetos estratégicos que visem ao estudo de eficácia, efetividade, custo/benefício e qualidade do processo transexualizador; e
IV - a capacitação, a manutenção e a educação permanente das equipes de saúde em todo o âmbito da atenção, enfocando a promoção da saúde, da primária à quaternária, e interessando os pólos de educação permanente em saúde.
Apesar desses esforços são poucos os locais no país onde a cirurgia é realizada, sendo o estado de Goiás um bom exemplo disso. O Estado dificilmente oferece acompanhamento ambulatorial. O indivíduo que pretende passar por esse tipo de cirurgia precisa passar um período, em torno de dois anos, sendo acompanhado por uma equipe de referência multidisciplinar composta por psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas. A cirurgia representa a última etapa no procedimento e infelizmente, somente essa é obrigatória pelo SUS, e mesmo assim, pouco realizada devido ao preconceito institucionalizado.
Exemplo da precariedade é que no estado de Mato Grosso apenas uma pessoa conseguiu a cirurgia de transgenitalização pelo SUS, desde 2008, por falta de funcionários, bem como, por ser colocada nos últimos lugares em ordem de prioridade pelos profissionais da saúde.
Quando as questões aparecem para serem enfrentadas pelo Poder Público sempre há respostas do tipo que possuem problemas mais sérios para se preocupar, como câncer, diabetes, entre tantas outras doenças graves que assolam o país. Depoimentos como estes evidenciam a homofobia institucionalizada e a desatenção para dados estatísticos de relevante importância.
No Brasil há números impressionantes de envolvimentos com drogas, suicídios nesta parcela da população, que por ter dificuldades de se aceitar da forma como nasceu, busca meios de fuga da família e da sociedade que a descrimina.
Ademais, mesmo aqueles que se aceitam e não possuem conflitos internos quanto a isso, tentam de todas as formas aproximar-se das características do sexo oposto e por não terem condições financeiras realizam procedimentos absurdos, como colocação de silicone industrial no próprio corpo e aplicação de hormônios sem qualquer prescrição médica.
Durante os últimos seis meses, a cada três dias, uma pessoa deu entrada no único ambulatório do País especializado no atendimento deste público, exibindo as cruéis marcas causadas pela aplicação do silicone industrial. O procedimento vem vitimando pacientes por todo Brasil com reações alérgicas, deformações severas no corpo, dificuldades para andar, culminando na morte instantânea de pacientes, já que o silicone também pode entrar na corrente sanguínea e provocar septicemia, a infecção generalizada.
O Poder Público precisa atentar que mais do que um preconceito que precisa ser superado, a questão é de saúde pública, direito e dever tutelado na nossa Carta Magna.
Força social e jurídica para criação da Portaria nº. 1707/2008
A representação que desencadeou na Ação Civil Pública do Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul contra a União foi formulada por um grupo de transexuais, em abril de 2007. Eles buscavam garantias do direito de ter custeadas pelo Estado as despesas médicas necessárias para a adequação sexual.
Na representação, o grupo fez referência à criação do Programa de Transtorno de Identidade de Gênero, em 1997, pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Integrado por profissionais de diversas áreas – como urologia, psiquiatria, psicologia, ginecologia, mastologia, otorrinolaringologia, fonoaudiologia e endocrinologia –, o programa tinha o objetivo de diagnosticar e auxiliar na readequação física e psíquica dos pacientes portadores de transtorno de identidade de gênero.
Na representação, o grupo informou que, embora já tivesse sido realizado um procedimento cirúrgico pelo programa, o Ministério da Saúde não ressarcira as despesas. Na ocasião, o MPF expediu recomendação para que o Ministério da Saúde regularizasse a situação. Não tendo havido resposta, o MPF ingressou com a ação civil pública.
De acordo com o procurador da República Luiz Carlos Weber, um dos autores da ação, "a sociedade precisa entender e respeitar os transexuais diante do grave problema de saúde que enfrentam, pois transexualismo não é um capricho, mas uma doença internacionalmente reconhecida pela Organização Mundial da Saúde. Como já existe no Brasil e no exterior o desenvolvimento da técnica cirúrgica, que é a única forma de solucionar ou minimizar o problema, cabe ao SUS, em respeito à dignidade da pessoa humana, tornar acessível o tratamento a essas pessoas".
A União posicionou-se contrária ao pedido, argumentando que a cirurgia tem caráter experimental e é realizada apenas em hospitais universitários ou públicos adequados à pesquisa. Alegou também que a questão é polêmica pelo questionamento da legalidade de tal procedimento e que não existe discriminação sexual, mas impossibilidade de recursos orçamentários a demandas individualizadas. Em primeira instância, a ação foi extinta sem o julgamento do mérito sob argumento de impossibilidade jurídica do pedido. O MPF apelou então ao TRF.
O relator do caso no tribunal, juiz federal Roger Raupp Rios, convocado para atuar como desembargador, analisou a questão de forma detalhada. Segundo o magistrado,
(...) A partir de uma perspectiva biomédica, a transexualidade pode ser descrita como um distúrbio de identidade sexual, no qual o indivíduo necessita alterar a designação sexual, sob pena de graves consequências para sua vida, dentre as quais se destacam o intenso sofrimento, a possibilidade de auto-mutilação e de suicídio (...).
Sendo assim, cumpre concretizar o direito à inclusão dos procedimentos a partir de uma compreensão da Constituição e dos direitos fundamentais que tenha seu ponto de partida nos direitos de liberdade e de igualdade, cuja relação com o direito fundamental à saúde reforça e fortalece”.
Para o magistrado, “a prestação de saúde requerida é de vital importância para a garantia da sobrevivência e de padrões mínimos de bem-estar dos indivíduos que dela necessitam e se relaciona diretamente ao respeito da dignidade humana”.
Quanto à possibilidade de criminalização do médico —que poderia decorrer do efeito mutilador da cirurgia, conforme alegou a União—, Raupp Rios citou doutrina segundo a qual, em procedimentos cirúrgicos realizados com o consentimento expresso ou tácito do paciente, em caso de interesse médico, não há crime.
Sete anos depois, a Portaria do Ministério da Saúde nº 1.707, de 19 agosto de 2008, dispôs que a cirurgia para mudança de sexo (transgenitalização) faria parte da lista de procedimentos do Sistema Único de Saúde (SUS).
Desta forma, a força social aglutinada com a boa vontade de órgãos judiciários pode e deve ser instrumento de mudanças e tutela dos mais diversos interesses de grupos da sociedade. Não podendo, mais uma vez, o Estado alegar reserva do possível em questões de saúde pública.
Proibição de retrocesso social ou proibição de contrarrevolução social ou proibição da evolução reacionária)
Apesar de não haver previsão expressa na CF brasileira, essa proibição é abstraída da segurança jurídica, da dignidade da pessoa humana, do princípio da máxima efetividade (art. 5º, § 1º, CF) e princípio do Estado democrático e social do direito.
Os direitos sociais, em grande parte, para que possam ser usufruídos no caso concreto, necessitam de uma intermediação, de acordo com José Afonso da Silva, seriam normas constitucionais de eficácia limitada.
Assim, a proibição de retrocesso social refere-se às medidas concretizadoras dos direitos sociais, não sendo em relação a qualquer aspecto dos direitos sociais, mas sim a aspectos em relação aos quais exista consenso profundo na sociedade.
As normas que tratam de saúde pública são de consenso social e como já demonstrado ao longo deste trabalho incluem por força principiológica e até mesmo por força normativa, o direito aos transexuais de possuírem acompanhamento médico e psicológico que culminem na cirurgia de mudança de sexo, não sendo esta apenas o foco mas produto de todo um trabalho médico no indivíduo em questão.
Portanto, pela proibição do retrocesso social, deve sempre buscar um avanço social, que no presente estudo, revela-se a busca pela criação em todos os Estados brasileiros de equipes multidisciplinares a fim de efetivar e dar tutela jurídica necessária aos transexuais para ter condições de possuir uma existência digna, respeitando seu direito a vida e a liberdade.
CONCLUSÃO
O direito à saúde, tutelado constitucionalmente por diversos países, é elemento incentivador primordial dos interesses do transexual em ver reconhecido o seu direito à adequação de sexo, bem como o princípio da dignidade da pessoa humana. O direito à busca do equilíbrio corpo-mente do transexual está ancorado, portanto, no direito ao próprio corpo, no direito à saúde e no direito à identidade sexual, a qual integra um poderoso aspecto da identidade pessoal.
A liberdade do indivíduo não deve necessariamente suprimir ou eliminar a ordem, mas entendemos que a sociedade não é um quartel, onde quem não obedece às suas normas será expulso da corporação.
O transexualismo é uma anomalia da identidade sexual. O transexual é um indivíduo que se identifica psíquica e socialmente com o sexo oposto ao que lhe fora imputado no Registro Civil. Existe uma reprovação veemente de seus órgãos sexuais externos, dos quais deseja se livrar. A convicção de pertencer ao sexo oposto é uma idéia fixa que preenche sua consciência, impulsionando-o a tentar por todos os meios conciliar seu corpo à sua mente.
A transexualidade pode ser determinada por uma alteração no componente cerebral combinada com alteração hormonal e o fator social. Quando a transexualidade já está percucientemente arraigada após a puberdade do indivíduo, a aceitação do sexo anatômico é praticamente impossível. Assim, devem os especialistas, custeados pelo próprio Estado, por ser questão de ordem pública, intentar uma ajuda efetiva ao indivíduo para que este venha a obter a tão sonhada harmonia, facilitando sua aparência morfológica-externa e as devidas conseqüências.
Não é um favor do Poder Público aos transexuais custear as despesas para o procedimento de mudança de sexo, mas é apenas dar igualdade de oportunidades e viver com dignidade e respeito a esses indivíduos. Afinal, de que adianta a vida sem poder sentir-se vivo?
REFERÊNCIAS
MINAYO, Maria Cecília de Souza. O Desafio do Conhecimento. Pesquisa Qualitativa em Saúde. 5a ed. HUCITEC – ABRASCO. São Paulo – Rio de Janeiro, 1998.
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 6ª edição, revista, ampliada e atualizada. Editora Método. 2012
OLIVEIRA, Marly M. de. Como fazer projetos, relatórios, monografias, dissertações e teses. Recife: Bagaço, 2003.
Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB, ano de 2013, Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Superior da Advocacia - ESA/PB e Assessora Jurídica de Promotor de Justiça do Ministério Público da Paraíba.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FEITOSA, Erica Fonseca Matias Aguiar. A dignidade da pessoa humana e o transexualismo na rede pública de saúde Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 set 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47551/a-dignidade-da-pessoa-humana-e-o-transexualismo-na-rede-publica-de-saude. Acesso em: 23 dez 2024.
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