RESUMO: O presente estudo objetiva abordar aspectos conceituais do instituto das terras devolutas, considerando as construções históricas, legais e doutrinárias para obtenção de uma definição mais consolidada e alinhada ao que de fato representa para o ordenamento jurídico brasileiro atual o referido instituto de terras.
Palavras-chave: Terras devolutas. Lei de Terras. Sesmarias. Conceitos legais. Conceitos doutrinários. Titularidade dos bens devolutos.
SUMÁRIO:1. INTRODUÇÃO. 2. DESENVOLVIMENTO. 2.1.Conceitos Legais do instituto das Terras Devolutas.2.1.1.A Lei nº. 601/1850. 2.1.2. O Decreto-Lei nº. 9760/1946. 2.2. Conceitos Doutrinários. 2.3. Titularidade dos bens devolutos nas Constituições Brasileiras. 3. CONCLUSÃO. 4. REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
Em muito divergem os jus-agraristas no que diz respeito à definição de terras devolutas. Inicialmente, cabe destacar que essas terras constituem espécie do gênero terras públicas, integrando a categoria de bens dominicais ou dominiais pelo fato de não terem nenhuma destinação pública, sendo, dessa forma, bens do domínio privado do Estado e, por conta disso, bens disponíveis conforme assevera José Edgard Pereira (2003, p. 40).
Todavia, o caput do artigo 188 da nossa atual Constituição Federal parece fazer uma distinção entre terras públicas e terras devolutas ao dispor que “A destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária” (grifos nossos).
Importante se faz esclarecer que o sentido adotado para terras públicas no dispositivo constitucional em destaque é o sentido restrito (terras públicas strictosensu), conforme leciona o magistrado baiano Dirley da Cunha Junior (2006), o qual vislumbra duas espécies de terras públicas lato sensu (gênero): as terras devolutas (bens indeterminados, porém passíveis de determinação conforme se observará adiante) e as terras públicas stricto sensu (bens públicos determinados, quais sejam, os bens de uso comum do povo e os de uso especial).
Em face do caráter de disponibilidade de que se revestem as terras devolutas, vale ressaltar que o legislador constituinte de 1988 inovou ao trazer uma exceção a essa regra. Ao dispor no art. 225, § 5º da Constituição Federal que “são indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais”, o legislador, ao conferir a esses bens o caráter de indisponibilidade, colocou-os sob o mesmo regime jurídico dos bens de uso comum do povo e de uso especial.
2. DESENVOLVIMENTO
Levando-se em consideração o sentido etimológico do vocábulo “devoluto”, qual seja devolvido, vago, desocupado, abandonado, podemos chegar a clássica definição do instituto como sendo aquelas terras que, uma vez transferidas a particulares através do sistema sesmarial ou outras concessões, após caírem em comisso, foram devolvidas ao patrimônio da Coroa Portuguesa. Esse conceito, porém não é o que melhor define o instituto em análise devido sua incompatibilidade com o atual papel assumido pelas terras devolutas em nosso ordenamento jurídico. Opondo-se a essa incompleta definição baseada precipuamente na origem da palavra “devoluto”, Paulo Garcia (apud PEREIRA, 2003, p. 42) ensina que nem todas as terras do Brasil colonial foram concedidas em sesmarias aos particulares, visto que o sistema das capitanias abrangeu uma restrita e limitada porção do nosso território. Destaca ainda o especialista em direito agrário o fato de que as terras que vieram a integrar o território brasileiro após o término da vigência do sistema das capitanias hereditárias (o território do Acre, por exemplo) nunca poderiam ser consideradas terras devolutas, visto que, nesse caso não há que se falar em devolução à Coroa Portuguesa.
Adotando a didática proposta por Roberto de Moreira Almeida (2003, p. 312), passaremos à análise conceitual do instituto considerando primeiramente os conceitos legais e posteriormente os conceitos sugeridos pelos doutrinadores.
2.1. Conceitos Legais do instituto das Terras Devolutas
Dois instrumentos legais trouxeram em seu conteúdo a definição do instituto jurídico das terras devolutas: a Lei nº. 601/1850 (Lei de Terras) e o Decreto-lei nº. 9.760/1946. Vejamos cada uma em separado.
2.1.1. A Lei nº. 601/1850.
Utilizando-se do critério da exclusão, o legislador imperial enumerou como devolutas as terras que não se encontrassem nas situações previstas nos quatro parágrafos do artigo 3º conforme abaixo transcrito:
Art. 3º. São terras devolutas:
§ 1º. As que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial ou municipal;
§ 2º. As que não se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta de cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura;
§ 3º. As que não se acharem dadas por sesmarias ou outras concessões do Governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por essa lei;
§ 4º. As que não se acharem ocupadas por posses que, apesar de não se fundarem em título legal, forem legitimadas por essa lei.
Por esse critério, também denominado de “enumerativo legal” por Edgard Pereira (2003, p. 43), excluíam-se do conceito de terras devolutas todas as utilizadas pelo poder público (seja nacional, provincial ou municipal), as que fossem objetos de sesmarias legítimas ou mesmo de sesmarias ilegítimas (porém passíveis de revalidação pela própria Lei nº. 601/1850) e as que fossem objeto de posse. Todas as demais terras eram tidas como devolutas.
2.1.2. O Decreto-lei nº. 9760/1946.
Quase um século depois da promulgação da primeira lei de terras, o Decreto-lei nº. 9760/1946, dispondo sobre os bens imóveis da União traz em seu artigo 5º o seguinte conceito do instituto em comento:
Art. 5º. São terras devolutas, na faixa de fronteira, nos Territórios Federais e no Distrito Federal, as terras que, não sendo próprias nem aplicadas a algum uso público federal, estadual, territorial ou municipal, não se incorporaram ao domínio privado:por força da Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, Decreto nº. 1318, de 30 de janeiro de 1854, e outras leis e decretos gerais, federais e estaduais;em virtude de alienação, concessão ou reconhecimento por parte da União ou dos Estado;em virtude de lei ou concessão emanada de governo estrangeiro e ratificada ou reconhecida, expressa ou implicitamente, pelo Brasil, em tratado ou convenção de limites;em virtude de sentença judicial com força de coisa julgada;por se acharem em posse contínua e incontestada, por justo título e boa-fé, por termo superior a 20 (vinte) anos;por se acharem em posse pacífica e ininterrupta, por 30 (trinta) anos, independentemente de justo título e boa-fé;por força de sentença declaratória proferida nos termos do art. 148 da Constituição Federal, de 10 de novembro de 1937.
Parágrafo único - A posse a que a União condiciona a sua liberalidade não pode constituir latifúndio e depende do efetivo aproveitamento e morada do possuidor ou do preposto, integralmente satisfeitas por estes, no caso de posse de terras situadas na faixa da fronteira, as condições especiais impostas na lei.
Note-se que no dispositivo acima transcrito, o legislador manteve a definição negativa adotada pela Lei nº. 601/1850 no que diz respeito às terras devolutas e que, por conta do reconhecimento de todas essas hipóteses de transferência de propriedade, aumentou-se consideravelmente o número de terras pertencentes a particulares.
Ainda com relação à definição dada pelo Decreto-lei nº. 9760/1946, Di Pietro (2014, p. 794) comenta que “O conceito de terras devolutas continua sendo residual: são assim consideradas aquelas que não estão destinadas a qualquer uso público nem incorporadas ao domínio privado”.
2.2. Conceitos Doutrinários do instituto.
Devido à complexa e peculiar história de formação do território brasileiro visto no capítulo anterior, bem como ao impreciso critério de exclusão adotado pelos comentados diplomas legais ao conceituarem as terras devolutas, a doutrina apresenta uma vasta e ao mesmo tempo divergente gama de conceitos do instituto. Desse modo, o melhor conceito do instituto deve ser o que leva em consideração todos esses aspectos particulares que contribuíram para a estrutura agrária brasileira.
Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, vale dizer que, pelo conceito legal, terras devolutas eram terras vagas, abandonadas, não utilizadas quer pelo Poder Público quer por particulares. Essa concepção corresponde ao sentido etimológico do vocábulo devoluto: devolvido, vazio, desocupado.
Clóvis Beviláqua (apud PEREIRA, 2003, p. 46), vai além do sentido lecionado pela professora Di Pietro, ao discorrer que “terras devolutas são as terras desocupadas, sem dono (grifos nossos)”.A imprecisão de tal definição se dá em desconsiderar uma característica básica das terras devolutas que é o seu caráter de bem integrante do patrimônio público, mais precisamente como bens dominicais. Daí porque não há que se falar em terras abandonadas, sem donos.
Relevante é a contribuição dada pelo especialista em direito administrativo Hely Lopes Meirelles (2013, p. 617) ao definir terras devolutas como:
[...] todas aquelas que, pertencentes ao domínio público de qualquer das entidades estatais, não se acham utilizadas pelo poder Público, nem destinadas a fins administrativos específicos. São bens públicos patrimoniais ainda não utilizados pelos respectivos proprietários.
Apesar de delimitar os proprietários das terras em análise, o eminente jurista não abrangeu em seu conceito um aspecto que consideramos de extrema relevância, qual seja, a questão histórica que influenciou diretamente na dimensão jurídica que alcançou o instituto. Nesse sentido, bem mais preciso e coerente à realidade histórico-jurídica da formação do território brasileiro é a definição de terras devolutas proposta pelo professor de Direito Administrativo Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, p. 920) ao dispor o seguinte:
Pode-se definir as terras devolutas como sendo as que, dada sua origem pública da propriedade fundiária no Brasil, pertencem ao Estado – sem estarem aplicadas a qualquer uso público – porque nem foram trespassadas do Poder Público aos particulares, ou se o foram caíram em comisso, nem se integraram no domínio privado por algum título reconhecido como legítimo.
Este último parece ser o melhor conceito, pois homenageou não apenas o sentido etimológico do termo “devoluto” (devolvido), como também considerou aspectos importantes para a delimitação do instituto em comento como a origem pública da propriedade fundiária no Brasil e as terras que nunca foram de propriedade da Coroa Portuguesa, pois adquiridas em fase posterior a independência do Brasil.
2.3. Titularidade dos bens devolutos nas Constituições Brasileiras
Concernente à titularidade das terras devolutas, tem-se basicamente três fases distintas: a fase do período colonial em que as terras pertenciam a Portugal; com a independência passaram a ser propriedade da Coroa Imperial e, após a proclamação da República, a Constituição de 1891 transferiu-lhes o domínio para os Estados-membros, mantendo somente alguns trechos como propriedade da União, conforme se depreende do art. 64, caput da citada carta constitucional, in verbis:
Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais.
Assim, nos termos do dispositivo constitucional citado, podemos inferir que a Constituição Republicana de 1891 classificou as terras devolutas em federais e estaduais na medida em que nomeou como propriedade dos Estados membros todas as terras devolutas situadas em seu respectivo território, ressalvando-se apenas aquelas consideradas indispensáveis à defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais, as quais pertenceriam a União. Com relação à titularidade das terras devolutas dada pela Constituição de 1891, bem assevera o magistrado mineiro José Pereira (2003, p. 54) que:
[...] de uma forma geral, passaram os Estados-membros a ter a propriedade das terras devolutas situadas em seu território, ressalvada a daquelas que, à época da promulgação da primeira Carta Republicana, já tivessem um caráter de indispensabilidade para o interesse público nacional, bem como as que o viessem a adquirir por força de fato ou ato declaratório emanado da União.
Importante se faz ressaltar o fato de que todas as demais constituições republicanas reproduziram, com pequenas modificações, essa sistemática baseada na “indispensabilidade para o interesse nacional” como critério determinante para atribuir à União a propriedade de determinada terra devoluta.
Com efeito, tem-se que a Constituição de 1934 reiterou o fixado na primeira constituição republicana ao dispor em seu art. 21 que “são do domínio dos Estados os bens de propriedade destes pela legislação atualmente em vigor” e em seu art. 20, I que “são bens do domínio da União os bens que a esta pertencerem, nos termos das leis atualmente em vigor”. A Constituição de 1946 estatuiu que “incluem-se entre os bens da União: a porção de terras devolutas indispensável à defesa das fronteiras, as fortificações, construções militares e estradas de ferro” (art. 34, II). Por sua vez, a Carta de 1967, com a Emenda Constitucional de 1969, atribuiu a União “a porção de terras devolutas indispensável à segurança e ao desenvolvimento nacionais” (art. 4º, I). Por fim, a vigente Constituição Federal de 1988 estabelece o seguinte:
Art. 20. São bens da União:
..........................
II – as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei;
Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados:
...........................
IV – as terras devolutas não compreendidas entre as da União.
Percebe-se de forma clara que a grande inovação do texto constitucional de 1988 foi o acréscimo da expressão “preservação ambiental”, atribuindo à União a titularidade das terras devolutas destinadas a esse fim.
3. CONCLUSÃO
Ante todo o exposto, pode-se concluir que o melhor conceito adotado para terras devolutas deve ser aquele orientado pelo parâmetro da residualidade, o qual nos conduz a afirmativa de que referidos bens públicos seriam aqueles que, dada a origem pública da propriedade fundiária no Brasil, pertencem ao Estado, sem estarem necessariamente aplicados a qualquer uso público, porque nem chegaram a ser transferidos do Poder Público aos particulares ou, se o foram, caíram em comisso (quando o sesmeiro não cumpria determinadas obrigações o que ocasionava o retorno do imóvel ao patrimônio da Coroa portuguesa). Da mesma forma, também não chegaram a se integrarem no domínio privado por algum título reconhecido como legítimo.
As terras devolutas, nos termos do que dispõe a Constituição Federal em seus arts. 20, II e 26, IV, pertencem a União e aos Estados-membros, respectivamente.
4. REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Roberto Moreira de. Sesmarias e terras devolutas. In Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 40, n. 158, p. 309-317, abr./jun. 2003.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil:promulgada em 5 de outubro de 1988.
BRASIL. Lei 601, de 18 de setembro de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas do Império. Secretaria de Estado dos Negocios do Imperio, Rio de Janeiro, 20 set. 1850.
BRASIL.Decreto-Lei 9.760, de 5 de setembro de 1946. Dispõe sôbre os bens imóveis da União e dá outras providências.Rio de Janeiro, 5 set. 1946.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Terras Devolutas nas Constituições Republicanas. Disponível em <http://www.juridicohightech.com.br/2011/11/terras-devolutas-nas-constituicoes.html>. Acesso em 15 set. 2016.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 39. ed. São Paulo: Malheiros, 2013.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
PEREIRA, José Edgar Penna Amorim. Terra Devolutas, In BARROSO, Lucas Abreu (org), O Direito Agrário na Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.45-72.
______. Perfis Constitucionais das Terras Devolutas. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
Analista Judiciário - Especialidade: Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Pará.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Isaias de Almeida Pinheiro. Aspectos conceituais das terras devolutas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 set 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47555/aspectos-conceituais-das-terras-devolutas. Acesso em: 23 dez 2024.
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