RESUMO: O objeto desse artigo foca em uma análise crítica acerca da natureza absoluta/relativa da presunção de violência no crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP). Antes da reforma operada pela Lei 12.015/09 já eram frequentes as divergências doutrinárias e mesmo jurisprudenciais a respeito do tema. Com a reforma, não obstante alguns autores afirmem que o legislador pôs fim à discussão, há fortes posições doutrinárias em sentido oposto, alegando que a presunção de violência será averiguada a partir do caso concreto. É nesse contexto, e trazendo à tona um caso concreto, alvo de processo criminal, que se dará a análise do tema, com abordagem jurisprudencial e doutrinária.
PALAVRAS-CHAVE: Estupro de Vulnerável. Presunção de violência. Proteção à infância.
INTRODUÇÃO
O presente artigo traz à discussão a temática da presunção de violência nos crimes de estupro de vulnerável. Antes da reforma operada pela Lei 12.015/09 a conduta de manter relações sexuais com menor de 14 anos ou pessoa vulnerável era típica por incidência dos artigos 213 e 224 do Código Penal. O art. 213 previa o crime de estupro, praticado sempre contra vítima mulher, e o art. 224 previa as hipóteses em que a violência era presumida, ou seja, quando não era necessário que o agressor utilizasse da violência propriamente dita, aquela em que há o constrangimento da vítima. Desde então já imperava a discussão sobre a natureza absoluta/relativa dessa presunção de violência, ou seja, já se questionava se essa violência poderia ser afastada no caso de consentimento da vítima, afastando-se, por conseguinte, o fato criminoso.
Ocorre que a Lei 12.015/09 reformou o Título IV do Código Penal e criou o tipo penal do art. 217-A, qual seja, o estupro de vulnerável. Nesses termos, vulnerável seria entre outros, o menor de 14 anos. Com essa reforma, boa parte da doutrina advoga no sentido de que o legislador acabou por consagrar o caráter absoluto da presunção da violência, ou seja, ainda que haja o consentimento da vítima, não resta afastada a conduta delitiva.
O cerne do debate reside justamente nesse ponto, do consentimento da vítima, que será debatido nesse artigo com base em um caso concreto e na recente decisão do STJ, que desconsiderou o consentimento da vítima, ou suas pretéritas relações sexuais, como fato a afastar o crime.
Em uma análise estritamente prática, trazendo relevantes posicionamentos doutrinários, este trabalho terá maior enfoque na corrente que defende o caráter relativo da presunção de violência, considerando, sobretudo, as peculiaridades do caso concreto apresentado, sem que os argumentos correspondam ao posicionamento da autora, ou seja, a análise busca demonstrar ao leitor as correntes divergentes, bem como a relevância dos seus argumentos.
1. O CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL – ART. 217-A DO CÓDIGO PENAL
O crime de estupro de vulnerável, previsto no artigo 217-A do Código Penal Brasileiro, já era previsto antes da reforma promovida pela Lei 12.015/09, no art. 224, o qual presumia a violência quando o ato sexual era praticado contra menores de 14 anos ou pessoa vulnerável.
Hoje, após a reforma realizada pela referida lei, o crime de estupro de vulnerável encontra-se tipificado no art. 217-A com a seguinte redação:
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 2o (VETADO) (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 3o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 4o Se da conduta resulta morte: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.(Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009);
Portanto, note-se a gravidade do delito em questão, com pena mínima de 8 anos e máxima de 15 anos. O estupro de vulnerável é também crime hediondo, em conformidade com o art. 1º, IV da Lei 8.072/90, incidindo, desta forma, os preceitos da referida da lei, que impõe, entre outros rigores, o cumprimento da pena em regime inicialmente fechado (art. 2º, §1º).
Por meio de uma mera interpretação gramatical, o tipo deixa claro que a simples prática da conjunção carnal ou de outro ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos, ou vulnerável, já configura o crime de estupro de vulnerável. Perceba-se que a descrição penal não faz referência a qualquer ato de violência, seja ela própria ou imprópria. Nesse sentido, ensina Rogério Greco: “o núcleo ter, previsto pelo mencionado tipo penal, ao contrário do verbo constranger, não exige que a conduta seja cometida mediante violência ou grave ameaça. Basta, portanto, que o agente tenha, efetivamente, conjunção carnal, que poderá até mesmo ser consentida pela vítima, ou que com ela pratique outro ato libidinoso. Na verdade, esses comportamentos previstos pelo tipo penal podem ou não ter sido levados a efeito mediante o emprego de violência ou grave ameaça, característicos do constrangimento ilegal, ou praticados com o consentimento de alguém menor de 14 (quatorze anos), devendo o agente, que conhece a idade da vítima, responder pelo delito de estupro de vulnerável”(GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. Ed. Impetus. Rio de Janeiro, 2013, página 703).
Sendo assim, é certo concluir que, se o agente pratica, por exemplo, conjunção carnal com pessoa menor 14, ainda que não haja constrangimento advindo de violência ou grave ameaça, o crime se perfaz.
2. CARÁTER ABSOLUTO/RELATIVO DA PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA
É certo que o texto seco da lei revela uma clareza em se considerar que a violência advinda da prática de conjunção carnal/ato libidinoso com menor de 14 anos (ou outra pessoa vulnerável) é presumidamente de natureza absoluta. No entanto, ainda há fortes posições em sentido contrário, asseverando que a depender das circunstâncias do caso concreto a presunção de violência, seria de natureza relativa.
Convém relembrar ao leitor que antes da reforma operada pela Lei 12.015/09 o crime de estupro de vulnerável se perfazia após a conjunção dos artigos 213 e 224 do CP, sendo que este último, entre outras disposições, presumia a violência no caso de vítima menor de 14 anos. Nesse ponto, vale a pena reforçar que já existiam, desde então, divergências sobre se a presunção de violência era de natureza absoluta ou relativa. Inicialmente, entendia-se como absoluta essa presunção de violência, sendo, portanto, considerada iuris et de iure, não se admitindo prova em contrário. Durante algum tempo, nossos Tribunais mudaram sua posição e passaram a entendê-la como relativa. Mais recentemente, o entendimento mais uma vez modificou, entendendo-se pela presunção absoluta.
Com a reforma de 2009 autores como Rogério Greco asseveram que o legislador colocou um ponto final acerca da discussão: “Hoje. Com louvor, visando acabar, de vez por todas, com essa discussão, surge em nosso ordenamento jurídico penal, fruto da Lei. nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, o delito que se convencionou denominar de estupro de vulnerável, justamente para identificar a situação de vulnerabilidade em que se encontra a vítima. Agora, não poderão os Tribunais entender de outra forma quando a vítima do ato sexual for alguém menor de 14 (quatorze) anos (pelo menos é o que se espera.” (GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. Ed. Impetus. Rio de Janeiro, 2013, página 704).
Em que pese a convicção do referido autor, ainda há fortes posições em sentido contrário. Nesse sentido, ensina Nucci: “Pode-se considerar o menor, com 13 anos, absolutamente vulnerável, a ponto de seu consentimento para prática do ato sexual ser completamente inoperante, ainda que tenha experiência sexual comprovada? Ou será possível considerar relativa a vulnerabilidade em alguns casos especiais, avaliando-se o grau de conscientização do menor para a prática sexual? Essa é a posição que nos parece acertada. A lei não poderá, jamais, modificar a realidade e muito menos afastar a aplicação do princípio da intervenção mínima e seu correlato princípio da ofensividade. Se durante anos debateu-se, no Brasil, o caráter da presunção de violência – se relativo ou absoluto -, sem consenso, a bem da verdade, não será a criação de novo tipo legal o elemento extraordinário a fechar as portas para a vida real. (NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a Dignidade Sexual. Editora GrupoGen. 2015, página 37-38).
De fato, conforme narrado e alertado por Nucci, não se pode fechar os olhos para a realidade social, em que os jovens iniciam cada vez mais cedo as experiências sexuais e, por conseguinte a vida sexual, evidenciando que, na prática, a situação não será tão simples de ser resolvida.
A sexualidade é descoberta cada vez mais cedo. Crianças de 12, 13 anos, que deveriam estar desfrutando da inocência da tenra idade, muitas vezes já estão ingressando na vida sexual ativa.
Encontrar o culpado (a) para esse fato é tarefa bastante difícil, porque a situação irá variar de acordo com o caso concreto. Em muitas situações a causa reside no próprio seio familiar, que não buscou orientar aquela criança, que permitia o contato com programas televisivos que exploram a sexualidade, ou que nunca conversou nem orientou sobre os riscos e cuidados que devem ser tomados para o ato sexual. A culpa poderia, ainda, ser colocada na própria sociedade, que cada vez mais expõe a sexualidade, seja nos meios de comunicação, seja no próprio dia-a-dia, com a exposição exacerbada de práticas sexuais, como por exemplo, o beijo lascivo em público, tão comum nos meios jovens.
Sem o intuito de limitar as possíveis causas, é comum também que crianças que foram vítimas de crimes sexuais passem a despertar a sexualidade de forma muito precoce. Esse fato costuma ocorrer quando crianças de pouca idade (3-6) anos são vítimas de abuso sexual, e em razão da pouca compreensão acerca do ato, muitas vezes por até entender que se trata se um ato de carinho realizado pelo familiar. Isso mesmo, infelizmente, estudos comprovam que na grande maioria dos casos, os crimes sexuais contra vulneráveis são praticados por familiares ou pessoas próximas (como vizinhos, amigos dos familiares, etc) da vítima.
Portanto, seja qual for a razão, nos dias atuais, a sexualidade é despertada de forma muito precoce. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) cerca de 40% dos meninos entre 13 e 15 anos já tiveram relação sexual, enquanto entre as meninas da mesma idade a taxa é de 18,3% (Disponível em:http://noticias.r7.com/saude/pesquisa-aponta-que-28-dos-adolescentes-entre-13-e-15-anos-ja-tiveram-relacao-sexualnbsp-19062013).
É exatamente nesse contexto, do despertar precoce da vida sexual, que surge o problema da criminalização do estupro de vulnerável.
Perceba-se que o tipo penal é taxativo: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos. Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. Ora, como conciliar esse mandamento penal com as situações em que a suposta vítima consente com o ato sexual, ou mesmo o estimula e ainda mantém relação estável e duradoura com o suposto agressor?
3. ANÁLISE DO CASO CONCRETO
Embora possa se gerar perplexidade na maioria das pessoas, a verdade é que não são raros os casos em que menores de 14 anos mantêm relações amorosas de caráter estável. Há, por exemplo, um processo em trâmite na 2º Vara Criminal dos Crimes Contra a Criança e o Adolescente da Cidade de Recife-PE (os nomes das partes e o número do processo serão preservados por respeito à intimidade), em que se apura a prática do crime de estupro de vulnerável (art. 217-A) do CP e de lesão corporal leve, praticados por L.S.A em face da menor de 13 anos, B.R.S.A.
Em breve resumo, L.S.A manteve relação estável, por 2 anos, com a menor B.R.S.A, tendo a relação se iniciado quando esta tinha 12 anos (frise-se que a vida sexual da menor se iniciou aos 11 anos de idade, mas com outro parceiro, ou seja, L.S.A já foi o seu segundo parceiro sexual). Ambos residiam em um “puxadinho” construído no quintal da residência da genitora da menor. O casal teve ainda uma filha, atualmente com 1 ano de idade.
Importa atentar para o fato de que a relação amorosa entre ambos foi duradoura, consentida pela própria genitora (e, portanto, responsável) da menor e da relação adveio uma filha.
Ocorre que, após o término do relacionamento, após uma discussão, L.S.A supostamente agrediu a vítima, a qual procurou a Autoridade Policial para prestar a notitia criminis. Após ouvir o relato de B.R.S.A, a autoridade visualizou no caso a prática também do crime de estupro de vulnerável, já que L.S.A manteve relação sexual com menor de 14 anos.
Observe-se a sutileza do caso. Durante 2 (dois) anos o casal manteve relação estável, sendo o fato conhecido pelos familiares, por toda a vizinhança e o fato jamais chegou ao conhecimento das autoridades locais. Somente após o término do relacionamento, e em decorrência de uma suposta agressão, é que o fato foi averiguado. Aqui, um questionamento se faz necessário: se não houvesse ocorrido a agressão, a autoridade tomaria conhecimento desse fato? Cremos que não.
Ressalte-se que a menor B.R.S.A. se dirigiu à delegacia com o único intuito de comunicar a lesão corporal, não fazendo qualquer referência ao crime de estupro de vulnerável, o qual restou constatado de ofício pelo delegado de polícia, já que se trata de crime de ação penal pública incondicionada, conforme o art. 225, § único do CP.
Conforma alhures demonstrado, a divergência doutrinaria reside exatamente sobre esse contexto, qual seja, de relação sexual consentida com menor de 14 anos. Em que pese o antagonismo doutrinário, o STJ sedimentou seu entendimento:
RECURSO ESPECIAL. PROCESSAMENTO SOB O RITO DO ART. 543-C DO CPC. RECURSO REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS. FATO POSTERIOR À VIGÊNCIA DA LEI 12.015/09. CONSENTIMENTO DA VÍTIMA. IRRELEVÂNCIA. ADEQUAÇÃO SOCIAL. REJEIÇÃO. PROTEÇÃO LEGAL E CONSTITUCIONAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça assentou o entendimento de que, sob a normativa anterior à Lei nº 12.015/09, era absoluta a presunção de violência no estupro e no atentado violento ao pudor (referida na antiga redação do art. 224, "a", do CPB), quando a vítima não fosse maior de 14 anos de idade, ainda que esta anuísse voluntariamente ao ato sexual (EREsp 762.044/SP, Rel. Min. Nilson Naves, Rel. para o acórdão Ministro Felix Fischer, 3ª Seção, DJe 14/4/2010). 2. No caso sob exame, já sob a vigência da mencionada lei, o recorrido manteve inúmeras relações sexuais com a ofendida, quando esta ainda era uma criança com 11 anos de idade, sendo certo, ainda, que mantinham um namoro, com troca de beijos e abraços, desde quando a ofendida contava 8 anos. 3. Os fundamentos empregados no acórdão impugnado para absolver o recorrido seguiram um padrão de comportamento tipicamente patriarcal e sexista, amiúde observado em processos por crimes dessa natureza, nos quais o julgamento recai inicialmente sobre a vítima da ação delitiva, para, somente a partir daí, julgar-se o réu. 4. A vítima foi etiquetada pelo "seu grau de discernimento", como segura e informada sobre os assuntos da sexualidade, que "nunca manteve relação sexual com o acusado sem a sua vontade". Justificou-se, enfim, a conduta do réu pelo "discernimento da vítima acerca dos fatos e o seu consentimento", não se atribuindo qualquer relevo, no acórdão vergastado, sobre o comportamento do réu, um homem de idade, então, superior a 25 anos e que iniciou o namoro - "beijos e abraços" - com a ofendida quando esta ainda era uma criança de 8 anos. 5. O exame da história das ideias penais - e, em particular, das opções de política criminal que deram ensejo às sucessivas normatizações do Direito Penal brasileiro - demonstra que não mais se tolera a provocada e precoce iniciação sexual de crianças e adolescentes por adultos que se valem da imaturidade da pessoa ainda em formação física e psíquica para satisfazer seus desejos sexuais. 6. De um Estado ausente e de um Direito Penal indiferente à proteção da dignidade sexual de crianças e adolescentes, evoluímos, paulatinamente, para uma Política Social e Criminal de redobrada preocupação com o saudável crescimento, físico, mental e emocional do componente infanto-juvenil de nossa população, preocupação que passou a ser, por comando do constituinte (art. 226 da C.R.), compartilhada entre o Estado, a sociedade e a família, com inúmeros reflexos na dogmática penal. 7. A modernidade, a evolução moral dos costumes sociais e o acesso à informação não podem ser vistos como fatores que se contrapõem à natural tendência civilizatória de proteger certos segmentos da população física, biológica, social ou psiquicamente fragilizados. No caso de crianças e adolescentes com idade inferior a 14 anos, o reconhecimento de que são pessoas ainda imaturas - em menor ou maior grau - legitima a proteção penal contra todo e qualquer tipo de iniciação sexual precoce a que sejam submetidas por um adulto, dados os riscos imprevisíveis sobre o desenvolvimento futuro de sua personalidade e a impossibilidade de dimensionar as cicatrizes físicas e psíquicas decorrentes de uma decisão que um adolescente ou uma criança de tenra idade ainda não é capaz de livremente tomar. 8. Não afasta a responsabilização penal de autores de crimes a aclamada aceitação social da conduta imputada ao réu por moradores de sua pequena cidade natal, ou mesmo pelos familiares da ofendida, sob pena de permitir-se a sujeição do poder punitivo estatal às regionalidades e diferenças socioculturais existentes em um país com dimensões continentais e de tornar írrita a proteção legal e constitucional outorgada a específicos segmentos da população. 9. Recurso especial provido, para restabelecer a sentença proferida nos autos da Ação Penal n. 0001476-20.2010.8.0043, em tramitação na Comarca de Buriti dos Lopes/PI, por considerar que o acórdão recorrido contrariou o art. 217-A do Código Penal, assentando-se, sob o rito do Recurso Especial Repetitivo (art. 543-C do CPC), a seguinte tese: Para a caracterização do crime de estupro de vulnerável previsto no art. 217-A, caput, do Código Penal, basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos. O consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime.
Como se percebe da leitura desse julgado, o STJ, em sede de recurso repetitivo, fixou o entendimento de que não importa se autor e vítima mantinham relacionamento amoroso, ou se esta consentiu com o ato, bem como se já tinha experiência sexual anterior. Tais fatos não afastam a caracterização do crime do art. 217-A do CP.
Ora, o caso acima narrado se encaixa com maestria à tese fixada pelo STJ, pois a vítima era menor com 12 anos de idade, já tinha experiência sexual prévia, e manteve relação duradoura e consentida com o suposto agressor. Portanto, como que numa operação matemática, fácil seria condenar L.S.A pela prática do crime de estupro de vulnerável.
O questionamento que impera é se faz sentido, sob o aspecto de justiça social, condenar uma pessoa nessas condições. No caso apresentado, da relação adveio uma filha, ou seja, formou-se um núcleo familiar com vínculo intangível (relação de paternidade/maternidade). Será que para fins de política criminal interessa mesmo ao Direito Penal punir o genitor dessa infante?
Observe-se a gravidade da questão. A criança terá um pai condenado pela prática de estupro de vulnerável cuja vítima foi sua própria mãe, sendo que a vida desta criança foi fruto desses supostos atos criminosos.
Nesse ponto, interessante trazer à tona o princípio do Direito de Família Mínimo oriundo do Direito de Família, que preceitua que toda e qualquer ingerência estatal somente será legítima e justificável quando se fundamentar na proteção das pessoas integrantes daquele núcleo familiar, notadamente daqueles vulneráveis, como a criança e o adolescente, bem como o idoso. Trata-se da projeção da autonomia privada como pedra de toque das relações regidas pelo Direito Civil. Nesse sentido, como regra, não cabe ao Estado imiscuir-se nas relações familiares, cabendo sua atuação, tão-somente, para proteção de garantias mínimas, indispensáveis ao seu titular (FARIAS, Cristiano Chaves de Farias. ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil – Direito de Família. ED. JusPodivm. 2013, página 157-158).
O limítrofe desse questionamento reside em averiguar se, o menor de 14 anos está em situação de vulnerabilidade. Se se concordar com a presunção de violência, o referido princípio do Direito de Família Mínimo seria afastado, vez que a intenção do Direito Penal neste caso é justamente proteger garantias mínimas da vítima, qual seja sua dignidade sexual. De outro modo, concluindo-se que, a depender da situação, o menor de 14 anos pode já dispor de plena capacidade para escolher se lhe convém ou não manter relações sexuais, bem como construir uma família, não caberia ao Direito Penal interferir. Aplicando-se essa ideia ao caso apresentado, por essa última visão seria imperiosa a aplicação do Direito de Família Mínimo, considerando-se que muito mais importante nesse caso seria a proteção do núcleo familiar, garantindo-se à filha do casal o contato permanente com seu genitor.
De outra monta observe-se que a responsabilidade pelo crime de estupro de vulnerável não deveria recair tão-somente sobre L.S.A, vez que a genitora da vítima, na condição de garantidora (conforme art. 13 , §2º, “a” do CP) não praticou qualquer ato para impedir a união entre o casal, consentindo, inclusive, que fosse construindo um “puxadinho” para residência do autor e vítima.
Sobre outra vertente vale ressaltar que em momento algum houve o interesse da vítima em provocar a atuação da máquina estatal a fim de perseguir o crime praticado. Restou claro nos autos do inquérito policial, bem como dos depoimentos em sede de instrução penal, que o intuito da vítima era de processar o réu apenas pelo crime de lesão corporal. Do mesmo modo, em momento algum o acusado tentou justificar-se da relação mantida com a menor, ao contrário, afirmou categoricamente que manteve esse envolvimento amoroso, demonstrando a naturalidade com que tudo aconteceu, sendo certa a sua íntima convicção de que não estava fazendo nada de errado.
Nessa temática convém ainda citar os casos nos quais, em que pese o consentimento do menor de 14 anos com o ato sexual, é comum que essa mesma vítima, que antes consentiu, após o término do relacionamento venha a buscar a responsabilização criminal do seu antigo parceiro, movida por razões de diversas ordens, como, por exemplo, vingança pelo fim do relacionamento.
É certo que a intenção do legislador foi a de proteger a dignidade sexual daquela pessoa que ainda não tem plena formação psicológica, sendo vulnerável às interferências sociais, às más companhias, influenciáveis por pessoas que, estupidamente, deixam aflorar sua libido com crianças e adolescente que não têm pleno desenvolvimento. Nesse sentido, criminalizar o ato sexual com o menor de 14 anos seria também um instrumento social de proteção da infância, da adolescência, pois que pretende criar um bloqueio no subconsciente do indivíduo e o medo da reprimenda penal, o que de forma direta, protegerá a infância dessas crianças/adolescentes.
Perceba-se, se o legislador reduz a idade e opta por criminalizar o ato sexual com menores de 12, com o passar do tempo, a própria sociedade entenderá que se a lei não criminaliza o ato sexual com pessoas de 12-13 anos, não há razões para que esse tipo de relação seja recriminada ou proibida. É como se a lei fosse aos poucos criando um costume social, ou uma aceitabilidade social.
No entanto, o questionamento de doutrinadores como Nucci, que defendem a relatividade da presunção da violência, merece reflexão diante de casos como o supra mencionado, em que há um relação estável entre o casal, com consentimento da família, advindo filhos da relação. Perceba-se que há significativa distinção entre um agente que abusa sexualmente de uma menor, por exemplo, com 7 anos de idade, para satisfazer unicamente sua própria lascívia, muitas vezes ameaçando a vítima para que esta não conte o fato a ninguém, a qual acaba por consentir por medo/vergonha ou por não compreender a natureza do ato. Infelizmente este tipo de prática ocorre em muitos seios familiares, em que pais, tios, primos, abusam de seus filhos (as), sobrinhos (as), primos (as), causando traumas profundos nas vítimas. Portanto, nesses casos não há que se questionar acerca na presunção absoluta de violência, vez que a conduta foi praticada sem que houvesse qualquer disposição voluntária ou consciente da vítima em praticar o ato sexual.
Situação diversa ocorre quando a vítima consente com o ato, muitas vezes o desejando por já dispor de plena consciência acerca do que é manter uma vida sexual ativa. Como no exemplo mencionado, em que a vítima já mantinha relações sexuais pretéritas com outro parceiro, vindo posteriormente a construir uma nova relação amorosa com o acusado, com a formação de um núcleo familiar.
Argumento também favorável a compreensão de que a violência seria de natureza relativa reside na atual valorização da figura da vítima no âmbito criminal, a qual após anos relegada ao segundo plano vem adquirindo papel relevante e crescente quando da persecução penal, preponderando seu interesse sobre o punitivo do Estado. “Está se criando campo fértil no cenário jurídico-penal para a Justiça Restaurativa, caracterizada como uma nova perspectiva na solução do conflito instaurado pela violação da norma penal. Trata-se de uma forma diferente de encarar o crime e os personagens nele envolvidos, sobressaindo a reassunção, pelas partes, do poder sobre as decisões a serem tomadas após a prática do delito – poder este tradicionalmente ‘usurpado’ pelo Estado, que historicamente alijou a vítima, valorizando um sistema punitivo imparcial” (SANCHES. Rogério. Manual de Direito Penal – Parte Geral. Ed. Jus Podivm, 2014, página 42).
Evidente que a questão é muito mais complexa do que parece, posto que condicionar o crime de estupro de vulnerável à vontade da vítima não seria a conduta adequada, em razão da relevância do bem jurídico a ser protegido, qual seja a dignidade sexual do vulnerável, o qual merece toda a proteção estatal, considerando, inclusive, que em grande parte dos casos o crime se dá sem o consentimento da vítima, sendo está vitimada não apenas no momento do ato sexual, mas, sobretudo pelas consequências traumáticas advindas desse fato.
A ressalva que fazem os defensores da relatividade da presunção de violência se dá nos casos em que há o consentimento da vítima, que afirmam que deve o juiz, com fundamento na valorização do papel da vítima para a persecução penal, considerar o seu comportamento, bem como sua vontade e analisar o caso concreto com todas as suas circunstâncias e peculiaridades, conforme já consta no art. 59, quando da aplicação da pena.
Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.
Portanto, longe de se esgotar os diversos argumentos que permeiam o caráter absoluto/relativo da presunção de violência no crime de estupro de vulnerável, o principal intuito deste artigo residiu em trazer para debate o referido caso concreto objeto de processo em trâmite, para que fossem analisadas as diversas peculiaridades que podem advir de um determinado tipo penal, sendo de extrema relevância que o operador do direito tenha sempre a sensibilidade de identificar que cada situação traz suas nuances merecedoras de um olhar mais aguçado para que, de fato, se possa fazer a mais estrita e concreta justiça.
4. CONCLUSÃO
Pelo exposto, restou claro que não obstante existam fortes divergências doutrinárias, o STJ pacificou seu entendimento ao estabelecer que para caracterização do crime de estupro de vulnerável basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa maior de 14 anos. O consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime.
Em pese o posicionamento pacificado do STJ, cremos que tal decisão não será apta a por fim às divergências doutrinárias, considerando-se, sobretudo, a gravidade do delito em questão. Ou seja, sendo o crime de estupro de vulnerável taxado como hediondo, com pena mínima de 8 anos, sempre haverá posições no sentido de que é muito desproporcional uma penalidade tão grave para os casos em que a própria vítima, bem como sua família, consentiu com a relação.
Portanto, como já alertado na introdução, o presente artigo não pretende esgotar o tema, nem tampouco abraçar uma corrente doutrinária. Ao contrário, a intenção foi a de demonstrar ao leitor que o tema está longe de encontrar uma solução que agrade a todos ou que promova, de fato, a justiça. O operador do direito, a depender do caso concreto, terá grandes questionamentos sobre qual a melhor e mais justa solução ao fato. Na hipótese o tema não abrange apenas aspectos do Direito, mas necessita de um intercâmbio com diversas outras áreas, como a psicologia, a antropologia, sociologia, entre outras.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. Ed. Impetus. Rio de Janeiro, 2013;
NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a Dignidade Sexual. Editora GrupoGen. 2015;
FARIAS, Cristiano Chaves de Farias. ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil – Direito de Família. ED. JusPodivm. 2013;
SANCHES. Rogério. Manual de Direito Penal – Parte Geral. Ed. Jus Podivm, 2014.
bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Advogada em Recife.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AZEDO, Larissa Souza de Melo. Presunção de violência no estupro de vulnerável e análise de caso concreto Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 out 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47632/presuncao-de-violencia-no-estupro-de-vulneravel-e-analise-de-caso-concreto. Acesso em: 23 dez 2024.
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