Resumo: Trata-se o presente artigo da análise da finalidade do direito penal como a proteção de bens jurídicos. Procura-se estabelecer o seu conceito e suas espécies, como de natureza individual e supraindividual, bem como a necessidade de aproximação com valores constitucionais quando da eleição de bens jurídicos dignos de tutela penal. Analisam-se os crimes de perigo abstrato, como forma de proteção da sociedade em bens de natureza supraindividual.
PALAVRAS-CHAVE: Bem jurídico; bem jurídico supraindividual; crimes de perigo concreto; aproximação constitucional.
O Direito Penal tendo como norte a teoria do contrato social, desenvolvida por Jean Jacques Rousseau em sua obra o “O contrato social”, tem como finalidade precípua proteger os cidadãos que dele fazem parte, contra atos nocivos e que perturbem a paz social.
Vale dizer, as pessoas que fazem parte e aderiram a este contrato, são coniventes e permitem que o Estado atue, seja de forma repressiva ou preventiva, no sentido resguardar a paz e segurança social.
Assim, o Direito Penal possui caráter intimidador e de controle social, uma vez que elege condutas que entende perniciosa ao convívio social, criminalizando-as, através do comando normativo competente, determinando sanção, por vezes, proporcional a sua gravidade, seja de natureza pecuniária, seja restritiva de liberdade.
De toda sorte, entendendo que o Direito Penal é um instrumento do Estado, no sentido de criminalizar condutas que entende nocivas à sociedade, também é correto dizer que o Direito Penal, será reflexo do regime adotado pelo mesmo.
Temos exemplos, num passado não muito distante, de regimes totalitários como na Alemanha nazista ou na Itália de Mussolini, onde o Estado, utilizando-se do instrumento a ele conferido – Direito Penal – reprimia uma série de condutas que entendia, diante do contexto social que vivenciava, nocivas e, portanto, perniciosas à sociedade, ferindo direitos e garantias outrora reconhecidas por legislações anteriores.
Portanto, o Direito Penal é um forte, senão maior instrumento, nas mãos do Estado, com vistas à manutenção do poder. Conquanto, diante deste quadro, a história nos fornece diversos exemplos de como o Direito Penal foi mal utilizado por inúmeros governantes, elegendo condutas que não demandavam resposta através do Direito Penal, haja vista que o estado utilizava de critérios não, necessariamente, jurídicos na eleição de condutas criminosas, mas sim, critérios políticos e subjetivos, visando apenas a manutenção e sustentação no poder.
Diante desta fundamentação o postulado que deve determinar e vincular o Estado, através do legislador, na eleição de condutas criminosas, é tarefa bastante árdua e difícil, mas os erros e excessos do passado, como no Absolutismo, na Idade Média e a Segunda Grande Guerra Mundial, fornecem parâmetros de como não agir e as vitórias conquistadas através da Revolução Francesa e do Iluminismo, são nortes a serem seguidos pelo legislador no sentido de ter um Direito Penal justo e condizente com os valores humanitários de uma sociedade democrática, valorizando acima de tudo a dignidade da pessoa humana.
Com a finalidade de concretizar um Direito Penal que atenda aos ideários da sociedade hodierna, duas premissas deverão sempre orientar e pautar o legislador, quais sejam: o seu caráter fragmentário e o Direito Penal como ultima ratio.
Pelo caráter fragmentário, significa dizer que o Direito Penal elege determinadas condutas, dentro de um contexto social, que deve merecer resposta penal, ou seja, reprime apenas fragmentos de condutas e não todas; por ultima ratio, entenda-se que o Direito Penal deve agir apenas e tão somente como último instrumento por parte do Estado. Ou seja, se outros instrumentos legais, como direito civil, administrativo, são suficientes para resolução do conflito, não se deve utilizar o Direito Penal, haja vista sua característica repressiva e, portanto, mais grave, suprimindo, por vezes, direitos como a liberdade, patrimônio e até a própria vida.
A respeito da ultima ratio, BERND SCHÜNEMANN[1]:
O significado da fórmula da ultima ratio tem sido discutido de maneira geral no que se atêm as relações entre direito penal e direito administrativo. Segundo TIEDMANN, em muitos casos o direito penal representa a medida menos grave, porque o controle por uma autoridade administrativa apenas é suficientemente eficiente se exercido com muito rigor, o que é um peso também para os cidadãos que se comportam conforme a lei.
Preciso o magistério de LUIS GRECO[2], a respeito da ultima ratio, os trazendo como sinônimos de acessoriedade, intervenção mínima e sua aproximação com o princípio da fragmentariedade.
O princípio da subsidiariedade, também denominado princípio da ultima ratio, da acessoriedade, da intervenção mínima, e de sentido bastante próximo ao chamado princípio da fragmentariedade, é amplamente reconhecido na moderna ciência do direito penal. A doutrina esmagadoramente majoritária o compreende da seguinte maneira: como o direito penal representa a intervenção mais gravosa na liberdade dos cidadãos, o Estado só está legitimado a recorrer ao direito penal quando não dispuser de outro meio menos grave para coibir a prática de determinado comportamento. Apesar de, na maior parte dos casos, se mencionarem entre os meios menos graves outros ramos do direito, em especial o direito administrativo ou o direito civil, alguns autores apontam, acertadamente, que também meios extra-jurídicos devem ser levados em conta.
Porquanto, a tarefa de determinar a diretriz a ser adotada pelo Estado, na eleição de condutas criminosas é deveras difícil, haja vista o vasto campo de discricionariedade por parte do detentor do poder. No entanto, a fim de frear esse poder, necessário se faz estabelecer qual o efetivo objetivo do direito penal.
Para CLAUS ROXIN[3]:
A questão a respeito de quais princípios gerais podem limitar a faculdade penal estatal de punir é bastante controvertida e objeto de extensa literatura. [...] Meu ponto de partida é o seguinte: os limites da faculdade estatal de punir só podem resultar na finalidade que tem o direito penal no âmbito do ordenamento estatal. Quero descrever esta finalidade de uma maneira que ela possa ser objeto de consenso na cultura ocidental e também em vastas partes do mundo.
1. Objetivos do Direito Penal;
A terminologia a respeito do tema é diferente consoante a doutrina a ser utilizada, fala-se em missão ou função do Direito Penal, mas o que se necessita saber é qual sua efetiva finalidade e objetivo, na medida em que, definidos estes parâmetros – missão, objetivo ou função – é possível fornecer subsídios que limitem a atuação legislativa, por vezes, repressora, através do Direito Penal.
Para FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO[4] a missão do Direito Penal é a proteção de bens jurídicos, conforme segue:
A tarefa imediata do direito penal é, portanto, de natureza eminentemente jurídica e, como tal, resume-se à proteção de bens jurídicos. Nisso, aliás, está empenhado todo o ordenamento jurídico.
Para CLAUS ROXIN[5] a finalidade do direito penal é “[...] garantir a convivência pacífica na sociedade [...]”, através da proteção de bens jurídicos.
GUNTER STRATENWERTH e HIRSH são contrários à tese de que o Direito Penal tem como objetivo a proteção a bens jurídicos, conforme preleciona CLAUS ROXIN[6]:
HIRSCH entende que o conceito de bem jurídico como entidade pré-existente ao critério do legislador não existe. O conceito de bem jurídico oferece um enfoque apto para a limitação imanente do Direito Penal. STRATENWERTH remete as múltiplas e diversas definições de bem jurídico existentes na literatura e assim conclui que “conseguir uma completa definição material de bem jurídico”, é impossível. Indo mais adiante, defende a opinião de que a razão pela qual se cria um tipo penal não é a proteção de bens jurídicos, senão a conduta indesejável.
Para GUNTHER JAKOBS[7] a função do Direito Penal consiste na manutenção da vigência da norma, não descartando a proteção jurídica do bem, mas centrando-se na proteção da norma, como meta fundamental do Direito Penal. Para o penalista alemão, uma vez garantida a vigência da norma, por corolário, o bem jurídico estará protegido.
O direito penal garante a vigência da norma, não a proteção de bens jurídicos. Neste ponto, os representantes da tese da proteção dos bens jurídicos argumentarão que isso não deve, de forma alguma, ser uma contraposição; pelo contrário, dirão que o decisivo é limitar o direito penal à proteção da vigência daquelas normas que proíbem afetar um bem, e deslegitimar as outras normas, especialmente, aquelas que se caracterizam por proteger determinadas convicções morais.
Desta forma temos posicionamentos que se confrontam a respeito da missão do Direito Penal, de um lado, defendendo que sua missão seria a proteção dos bens jurídicos, de outro a proteção da vigência da norma, para os adeptos do funcionalismo sistêmico, tendo como precursor GUNTHER JAKOBS, nada obstante as posições contrárias GUNTER STRATENWERTH e HIRSH.
Dando enfoque às razões que fundamentam a não aceitação da teoria do bem jurídico penal, FÁBIO ROBERTO D´AVILA[8] assim se manifesta:
Entre velhos e novos argumentos alega-se, principalmente, (a) sua incapacidade em contribuir para a definição da tutela obrigatória, estaria restrita à tutela possível, nada dizendo sobre a obrigatória; (b) insuficiência enquanto argumento crítico, mesmo que restrito a definição de tutela possível; (c) a impossibilidade de obter-se uma definição material de bem jurídico ou mesmo a sua não preexistência ao legislador; (d) a sua inadequação a técnicas de tutela em expansão, nomeadamente no direito penal secundário, (e) a falácia do seu contributo na superação de delitos de cunho meramente moral, uma vez que, para a proibição de uma conduta, bastaria ser ela indesejada e, em razão disso, objeto de um acordo de base social e legislativamente reconhecido.
Contudo, pesem as argumentações em sentido contrário e o calibre de seus autores, a doutrina majoritariamente inclina-se no sentido de que a finalidade principal do Direito Penal consiste justamente na proteção de bens jurídicos, finalidade esta que vai ao encontro do conceito material do crime, no qual o delito consiste em lesão ou ameaça de lesão a bens juridicamente tutelados.
Segundo PAULO CÉSAR BUSATO e SANDRO MONTES HUAPAYA[9], a missão do Direito Penal consiste:
Deste modo, para que tenhamos um Direito Penal que expresse verdadeiramente os propósitos dos iluministas de igualdade e liberdade, somente é possível conceber como missão do Direito Penal a garantia igualitária de proteção aos bens jurídicos indispensáveis para o desenvolvimento social do homem, através da sanção aos ataques mais graves dirigidos contra tais bens jurídicos.
Ainda nessa posição, MARCIA DOMETILA LIMA DE CARVALHO[10] assim se manifesta a respeito da função do Direito Penal: "A doutrina moderna tem entendido, como função primordial do Direito Penal, a proteção dos denominados bens jurídicos".
Ainda trazendo à baila as lições CLAUS ROXIN[11] a respeito dos defensores de que o objetivo do Direito Penal consiste na proteção de bens jurídicos:
Sem embargo, a idéia de proteção de bens jurídicos como instrumento de limitação da intervenção jurídico penal também tem encontrado comprometidos defensores. HASSEMER, protagonista há mais de 30 anos do chamado conceito “crítico” de bem jurídico e na atualidade Vice-Presidente do Tribunal Constitucional Alemão, tem afirmado, recentemente, que “a proibição sob ameaça de pena de uma conduta que não possa vincular-se com um bem jurídico, constituiria terror estatal [...] a limitação de uma esfera de liberdade não teria nenhum elemento legitimador do que possa extrair-se seu sentido. SCHUNEMANN vincula a renúncia ao potencial crítico do princípio de proteção de bens jurídicos como o regresso do Direito Penal “a um nível pré-ilustrado”.
Portanto, forte na premissa maior de que a missão do Direito Penal consiste na proteção a bens jurídicos, ainda resta a difícil tarefa de conceituar o que seria bem jurídico.
Outrossim, destaque-se que o simples o fato de um bem ser juridicamente tutelado, não significa dizer que tenha o respaldo da legislação penal, face às características inerentes ao Direito Penal, isto é, a fragmentariedade e da ultima ratio.
Eleito um bem jurídico, passadas as barreiras da fragmentariedade e da ultima ratio, ter-se-á o que se convém denominar de bem jurídico penal
2. Conceito;
É certo que o direito é dinâmico, evoluindo paralelamente com a sociedade, de igual sorte o conceito de bem jurídico evolui à sua maneira.
Estabelecer um conceito fechado sobre bem jurídico é tarefa quase impossível, mas podem-se estabelecer critérios e parâmetros seguros para sua conceituação, com a meta sempre de limitar o poder repressor do Estado, frente ao arbítrio na utilização do Direito Penal.
A respeito da dificuldade em se conceituar bem jurídico penal, JUAREZ TAVARES[12] assim preleciona: “Dada as variedades com que se apresenta, é praticamente impossível conceituar exaustivamente o bem jurídico. Todas as conceituações geralmente procuram aclarar de forma sintética as diretrizes do pensamento jurídico [...]”.
Frente essa tormentosa tarefa, CLAUS ROXIN[13] conceituou bem jurídico penal da seguinte maneira:
Com apoio nestas reflexões se pode definir o bens jurídicos como realidades ou fins, que são necessários para uma vida social livre e segura, que garanta os direitos humanos e fundamentais do indivíduo, ou para o funcionamento do sistema estatal erigido para a consecução de tal fim.
JORGE FIGUEIREDO DIAS[14] também apresenta a dificuldade em se obter um conceito fechado a respeito do bem jurídico penal, assim o conceituando:
[...] a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso.
O Direito Penal é resultado de escolhas políticas influenciadas pelo tipo de Estado em que a sociedade está organizada. O direito de punir é uma manifestação do poder de supremacia do Estado nas relações com os cidadãos, principalmente na relação indivíduo-autoridade. A situação histórica, portanto, condiciona o conceito de crime e, conseqüentemente, o conceito de bem jurídico e a sua importância para o Direito Penal.
Ainda procurando um conceito de bem jurídico penal, JUAREZ TAVARES[15] se manifesta da seguinte maneira:
A noção de bem jurídico como interesse juridicamente protegido é produto da idéia privatística, dominante no século passado, que se intrometeu na formulação da teoria do injusto desde VON JHERING. Aqui o marco penal encontra suas delimitações no momento subjetivo, quer dizer, na materialização do exercício da capacidade de contratar por parte do sujeito, de modo que, protegendo-se o interesse, se concebe a vida social como uma resultante de pretensões individuais, as quais dependendo de sua importância se vêem amparadas pela norma de direito público. Há aqui, se bem que ingênua, uma idéia utilitarista da normal penal sobre a base de uma realidade.
Outrossim, deve-se ressaltar ainda que a proteção aos bens jurídicos, transcende à norma penal, esta na verdade, apenas materializa mediante o comando normativo competente sua proteção. Bens como a vida, patrimônio, saúde, liberdade dentre outros, são protegidos pelo Estado através da norma penal, a norma, por sua vez, materializa sua proteção, sendo correto, portanto, afirmar que o bem é anterior à norma, que a precede, pois são garantias inerentes ao ser humano.
Entrementes, não se deve confundir bem jurídico com objeto material do delito, que são conceitos, absolutamente, distintos e independentes. Bem jurídico é o valor, está no campo da abstração, objeto material é o bem sobre qual recai a conduta do agente, de característica concreta.
PAULO CÉSAR BUSATO e SANDRO MONTES HUAPAYA[16] descrevem a diferença entre bem jurídico penal e objeto material do crime, conforme descrevemos acima:
O objeto material é concreto e representa a configuração material do interesse jurídico. Assim, por exemplo, enquanto o bem jurídico protegido do delito de furto é o patrimônio e no delito de lesões é a integridade física, o objeto material do furto é o carro, a carteira ou o televisor, e o objeto material das lesões é corpo humano. O bem jurídico é interesse jurídico protegido; o objeto material é o objeto sobre o qual incide a ação do sujeito.
Assim, pelos conceitos de bem jurídico trazidos à análise neste artigo, aliado ainda na crença de que o objetivo do Direito Penal consiste na proteção de bens jurídicos e que somente a lesão a bens jurídicos fundamenta um Direito Penal calcado em valores da dignidade da pessoa humana, percebe-se que todos os conceitos convergem numa via única, qual seja, de que bem jurídico são valores, interesses ou, como diz CLAUS ROXIN, garantias para o livre desenvolvimento da pessoa humana. Desta maneira, se o ponto em comum do conceito de bem jurídico centraliza-se na pessoa humana, em valores ou garantias para seu livre desenvolvimento, qual e como seria a justificação para criminalizar condutas que não afetem o livre desenvolvimento da pessoa humana. Dito de outro modo, é possível fundamentar a eleição de uma conduta criminosa, através do Direito Penal, que não necessariamente proteja um bem jurídico? É dizer, toda a legislação penal está, necessariamente, vinculada e calcada à teoria do bem jurídico?
Nesse sentido, LUIS GRECO[17], adotando o mesmo posicionamento de CLAUS ROXIN e ROLAND HEFENDEHL, defende uma via não muito convencional, no sentido de que somente o bem jurídico delimita o direito penal, no entanto, abre exceções: “O bem jurídico seria, portanto, quase sempre condição necessária para legitimar uma proibição, salvo face a poucas exceções, como a proteção de animais, da flora e (talvez) dos interesses de gerações futuras”. Ainda nesta exceção, CLAUS ROXIN acrescenta a necessidade de proteção do embrião.
Portanto, finalizando, retroagindo ao conceito de material de crime, no qual consiste o delito em lesão a bem juridicamente tutelado, deve-se estabelecer, após a conceituação de bem jurídico penal, quando e quais são os parâmetros que estabelecem a efetiva lesão a um bem juridicamente tutelado, mas antes, a fim de se estabelecer com segurança os critérios de lesão, necessário se faz analisar as espécies de bens jurídicos penais.
3. Espécies;
O foco central do presente artigo consiste em analisar o Direito Penal, enquanto elemento de controle social, face às atuais necessidades da sociedade, notadamente, no que se referem aos aspectos da crescente criminalidade organizada.
Primou-se por entender que a finalidade do Direito Penal consiste na proteção a bens jurídicos, isso porque tal fundamentação vai ao encontro dos valores da dignidade da pessoa humana, em cotejo com os primados de um Estado Democrático de Direito.
A dogmática penal e a eleição de condutas criminosas, no que se refere à teoria do bem jurídico, num primeiro momento da evolução do Direito Penal, centravam sua fundamentação, única e exclusivamente, na proteção a valores individuais, tal como a vida, patrimônio, liberdade, honra dentre outros.
Por conta desta valoração, temos o que se convencionou denominar bem jurídico individual, porque o objeto de sua proteção é individualizado, centralizado e facilmente identificado. A lesão a um bem jurídico individual é constatada sem maiores problemas.
Entretanto, os avanços da sociedade pós-industrial, envolvendo nesse sentido, os conceitos de saúde pública, segurança econômica, meio ambiente (incluindo o conceito a flora, fauna e a biodiversidade), ambiência tecnológica, os efeitos da transnacionalidade, o mercado de capitais dentre outros, fez com que a antiga teoria do bem jurídico penal fosse remodelada.
Essa remodelação na verdade partiu-se de uma constatação. Tal constatação consiste em que, a evolução da sociedade fez surgir valores que o Direito Penal de outrora, mesmo fincado na teoria do bem jurídico, possuía suas limitações.
O avanço da sociedade, com novos valores agregados, fez surgir o que se convencionou denominar de Teoria da Sociedade do Risco, desenvolvida por Ulrich Beck, o qual consiste, segundo RENATO DE MELLO JORGE SILVEIRA[18]:
Na modernidade avançada, a produção social de riqueza vem acompanhada, sistematicamente, por uma correspondente produção social de riscos. Diante disso, os problemas e os conflitos da sociedade são substituídos por problemas e conflitos que surgem da produção, definição e divisão dos riscos produzidos de maneira técnico científica. De fato, essas mudanças conceituais hão de ser percebidas, primeiramente, à medida que se confirma o nível atingido pelas forças humanas produtivas e tecnológicas e, também, pela segurança e pelos regulamentos estabelecidos pelo Estado Social, ambos visando, objetivamente, reduzir e excluir socialmente a miséria social.
Ainda no que se refere à Teoria da Sociedade do Risco, PIERPAOLO CRUZ BOTTINI[19] analisa a evolução desenfreada da sociedade, em descompasso com outros ramos do conhecimento, não somente com o Direito Penal:
A obstinação na inovação importa na velocidade da descoberta de novas tecnologias que, por sua vez, decorre do financiamento de pesquisas científicas destinadas a tais finalidades. Este fenômeno cria uma dinâmica peculiar, pois a intensidade do progresso da ciência não é acompanhada pela análise, por parte desta mesma ciência, dos efeitos decorrentes da utilização destas novas tecnologias. A criação de novas técnicas de produção não é seguida pelo desenvolvimento de instrumentos de avaliação e medição dos potenciais resultados de sua aplicação. Do descompasso entre surgimento de inovações científicas e o conhecimento das conseqüências de seu uso surge a incerteza, insegurança, que obrigam o ser humano a lidar com o risco sob uma nova perspectiva.
O avanço da sociedade, agregando novas condutas e valores, fez também com que surgissem novas modalidades de condutas que lesavam interesses que demandavam proteção jurídica penal. Contudo, esta nova faceta da criminalidade lesava bens jurídicos não necessariamente identificados, mas pertencentes a uma coletividade, surgindo então o que se convencionou denominar de bens jurídicos supraindividuais ou universais.
Para MIR PUIG[20] os bens jurídicos supraindividuais ou universais merecem proteção, através do direito penal, porque:
As mudanças que tem sido usufruídas pelo capitalismo e o modelo de estado em nosso âmbito cultural vêm determinando ou exigindo certas mudanças nos bens jurídicos do Direito Penal. Na atualidade vão abrindo-se passo a opinião de que o Direito Penal deve estender sua proteção a interesse menos individuais [...].
A grande problemática da teoria do bem jurídico supra-individual consiste, justamente, na dificuldade ou mesmo na impossibilidade de se identificar a efetiva lesão ao bem jurídico e também ao sujeito passivo de tal ação, supostamente, delituosa.
Nada obstante às dificuldades acima esposadas, temos também que o conceito de bem jurídico supra-individual possui conceituação vaga, consoante lição de WINFRIED HASSEMER[21]:
Já numa primeira aproximação vemos que as novas leis no âmbito de nosso Direito Penal material (Parte Especial e leis penais especiais) não têm como objeto de proteção apenas bens jurídicos universais, apenas que estes bens jurídicos universais estão formulados de forma especialmente vaga.
Contrário à tese do bem jurídico supra-individual para quem sua definição é prescindível, temos GUNTER STRATENWERTH[22]:
Neste modelo social não pode servir como base na qual tenha que se verificar sua legitimidade na legislação penal de uma época totalmente distinta. Com isto, quero dizer que o conceito de bem jurídico coletivo é prescindível. Por um lado, se a lei protege os interesses individuais mais ou menos consolidados de uma pluralidade de sujeitos, talvez um número indeterminado ou de que todos, então não temos que criar nenhum bem jurídico universal a justificar a norma penal (que naturalmente sempre pode ter mais ou menos sentido).
A respeito da problemática envolvendo a adoção da tutela a bens jurídicos universais, interessante a posição de RAUL CERVINI[23], para quem reconhece a necessidade de proteção penal a bens universais, não deixando de lado que a proteção jurídico penal de tal bem, pode, mas não necessariamente, proteger um bem jurídico individual “[...] A respeito da fórmula dois esclarecimentos: a) da afirmação de que o delito econômico ampara básica e prioritariamente bens supraindividuais, não se deve concluir que possa, ademais, restar protegido o interesse jurídico particular [...]”.
Aos defensores do bem jurídico supra-individual ou universal, diz-se que são adeptos da teoria dualista, na medida em que aceitam e convergem no sentido de que existem bens jurídicos individuais e coletivos, ambos, legítimos e merecedores de proteção, através do Direito Penal. Nessa linha de pensamento temos JORGE FIGUEIREDO DIAS, CLAUS ROXIN, KLAUS TIEDMAN, BERND SCHUNEMANN dentre outros.
Por outro lado, os que defendem a existência somente de bens jurídicos individuais, que legitimam a atuação do direito penal, temos a teoria monista, tendo como defensores WINFRIED HASSEMER e GUNTER STRATENWERTH.
Pode-se dizer que a doutrina majoritariamente, tanto nacional como internacional, é favorável à eleição de bens jurídicos universais, como merecedores de proteção jurídica, através do Direito Penal.
A adoção da teoria monista como fundamento de eleição de condutas criminosas leva à impossibilidade de criminalizar condutas como a devastamento florestal, crimes contra a fauna, contra o sistema financeiro dentre outros, vez que nestas modalidades de crimes não há lesão a bem jurídico individual, mas universal. Ademais, por tal disciplina, um simples ato de corrupção, sem maiores proporções, também estaria deslegitimado, na medida em que não lesaria interesse individual, mas sim da coletividade, materializado na probidade da Administração Pública.
O que a doutrina pondera é a utilização de critérios sérios na eleição de bens jurídicos universais, na definição de condutas criminosas. Diferente do que se vê nos dias de hoje, na utilização, absolutamente, desarrazoada do Direito Penal, desprezando os critérios da ultima ratio e do princípio da fragmentariedade.
Atualmente há um aumento significativo de leis tipificando condutas como criminosas que poderiam ser amparadas por outros ramos do direito, sobretudo, o Direito Administrativo Sancionador defendido por HASSEMER, caracterizando desta maneira o que se chama de Direito Penal Simbólico. Utiliza-se do Direito Penal como substituto de políticas públicas e sociais, inflacionando a legislação penal, causando com isso, inevitavelmente, a sua ineficácia na proteção de bens jurídicos que, efetivamente, merecem a chancela penal.
Nesse sentido MARCELO DA SILVEIRA CAMPOS[24]:
As políticas de segurança pública e justiça criminal do Brasil pós 1988 sugerem que diferentes conflitos societais ainda são pensados prioritariamente sob a ótica da resolução penal e da criminalização. Ou seja, a instituição e seus mecanismos de legitimação fazem “...desconhecer como arbitrário e a reconhecer como legítimo e natural um limite arbitrário, ou melhor, a operar solenemente, de maneira lícita e extraordinária, uma transgressão dos limites constitutivos da ordem social e da ordem mental a serem salvaguardadas a qualquer preço”
Portanto, resumidamente, temos bens jurídicos individuais e universais ou supraindividuais, os quais, por seu turno, subdividem-se em bens jurídicos coletivos e difusos, todos consoante a adoção de critérios democráticos e com base na dogmática penal portadores de dignidade penal, respeitados os princípios basilares da ultima ratio e da fragmentariedade.
Retroagindo à problemática do bem jurídico universal, RENATO DE MELLO JORGE SILVEIRA[25] assim se posiciona: “No particular caso dos bens difusos ou supraindividuais, devido à sua própria característica impessoal, nem sempre será confirmado um dano evidente”.
Assim, por conta desta problemática, quando se elege um bem jurídico universal, digno de proteção penal, ocorre, na maioria das vezes, o que se denomina de crime de perigo abstrato, de duvidosa constitucionalidade, para parte da doutrina, objeto do tópico seguinte.
4. Crimes de perigo abstrato;
Para adentrar no questionamento atinente à constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, necessário, estabelecer o conceito de crime de perigo.
Por crime de perigo entenda-se a mera exposição do bem juridicamente tutelado a situação de possível lesão. De toda sorte, a partir desta premissa – possibilidade de lesão – decorre a subdivisão dos crimes de perigo, em concreto e abstrato.
Nos crimes de perigo concreto, para a realização do tipo incriminador, se faz necessária a efetiva exposição de perigo ao bem jurídico, fato que por si só não gera dificuldade no enfrentamento do tema.
Por outro lado, nos crimes de perigo abstrato, basta a realização da conduta prevista no tipo penal para configurar a situação de perigo, de modo que sua exposição efetiva ao perigo não é exigida pela norma penal para consumação do delito.
Assim, de um lado, o crime de perigo concreto demanda a comprovação de efetiva exposição a dano, leia-se perigo, ao tipo incriminador para sua realização, razão pela qual, pode-se dizer que possui presunção jures tantun. Em sentido, diametralmente, oposto o crime de perigo abstrato não demanda esta efetiva exposição a dano, de modo que a mera conduta já basta para configuração do delito, onde então tem-se que sua presunção é jures et jures.
A doutrina é reticente ao aceitar a criminalização de condutas que não causem lesões efetivas a interesses juridicamente tutelados, tendo como norte o princípio da lesividade e da intervenção mínima. Havendo, inclusive, quem se posicione no sentido de que seria inconstitucional tal modalidade delitiva.
Para os que se posicionam pela inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, entendem que o conceito de bem jurídico penal está totalmente atrelado aos valores estabelecidos pela constituição, não podendo dela se afastar ou mesmo encontrar exceções, conforme posição de MARCO AURÉLIO COSTA MOREIRA DE OLIVEIRA[26]:
O disposto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, indica como juridicamente relevante a causação de lesões efetivas ou ameaças a direitos, só podendo ser entendidas como verdadeiras ameaças as que sejam concretas, pois ameaças abstratas inexistem. Em conseqüência, a ordem jurídica não deve admitir crimes de perigo abstrato, por não conterem as condições concretas e diretas a afetarem bens fundamentais juridicamente protegidos.
No mesmo sentido, temos LUIZ FLÁVIO GOMES, DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS, ALICE BIANCHINI dentre outros, os quais comungam do entendimento segundo o qual os crimes de perigo abstrato atentam contra o princípio da dignidade da pessoa humana, culpabilidade, ofensividade e lesividade, na medida em que não há lesão, propriamente, dita ao bem jurídico tutelado, mas antecipação da punição estatal.
Entretanto, em virtude do processo de evolução da sociedade pós-industrial, conforme já explanado em linhas pretéritas, agregando novos valores, a adoção de condutas criminosas, com base no conceito perigo abstrato é algo inevitável, sob pena da sociedade perecer no que se refere à proteção dos bens jurídicos universais.
Neste sentido RENATO DE MELLO JORGE SILVEIRA[27] assim se posiciona:
Verdadeiro fenômeno das sociedades de risco, o enfoque supra-individual do Direito Penal, tem, em grande monta, se utilizado do referencial dos crimes de perigo abstrato. Nesse contexto, aqui tratado quanto ao Direito Penal Econômico, funda-se uma das maiores críticas às novas fronteiras criminais.
[...]
Sem dúvida, enorme quantidade de doutrinadores sustenta que, dada a ampliação ou expansão do Direito Penal, torna imprescindível tal técnica.
Favorável à tese do crime de perigo abstrato, GUNTHER JAKOBS[28] fundamenta que se houve a eleição de um bem jurídico penal, nada mais coerente o legislado punir eventual perigo de lesão a este bem, já previamente tutelado pela norma penal.
De fato, o costume da antecipação do delito é, no direito penal moderno, um problema, cuja gênese, porém, não alheia à tese do direito penal como proteção de bens jurídicos: se do que se trata é da proteção de bens jurídicos, então, essa proteção deve ser efetiva, e dessa perspectiva, não se aceitaria a renúncia à penalidade das condutas geradoras de perigo abstrato. Se no contexto da lesão de um bem, fica aberta a seguinte questão: por que razão há de se esperar até que se produza a lesão?
Na linha de GUNTHER JAKOBS temos CLAUS ROXIN, BERND SCHUNEMANN citados por GRECO[29]:
Ou seja, é preciso formular critérios de distinção um pouco mais complexos do que um mero tudo ou nada, numa postura que não pode ser, nem de aceitação global, nem de obstinada recusa, mas de busca de um sadio meio termo, ciente da heterogeneidade dos problemas com que se está lidando [...]
Portanto, amparado na melhor doutrina, temos que é perfeitamente plausível e necessário diante do atual contexto da sociedade, a criminalização de condutas, através de crimes cuja exposição ao perigo seja abstrata. Nesse sentido, temos que a utilização encontra-se com maior incidência quando tutela bens jurídicos universais, tanto na modalidade difusa como coletiva.
Ainda quanto à suposta inconstitucionalidade por ofensa ao princípio da lesividade, preciso o posicionamento de PIERPAOLO CRUZ BOTTINI[30], no sentido da constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato:
A nosso ver, o respeito ao princípio da lesividade não implica a rejeição de plano, dos delitos de perigo abstrato (infra IV, 4.1.3). A lesividade não é verificada apenas nos comportamentos que danificam bens jurídicos, mas abarca também a ameaça real ou potencial dos objetos de tutela, que revela condutas penalmente relevantes. O abalo social que legitima a repressão é revelado inicialmente pela conduta, e não pelo resultado ex post.
Exemplos dessa tutela encontram-se dispostos no Estatuto Repressivo, nos crimes contra incolumidade pública, como também na legislação esparsa, notadamente, no que se convenciona chamar de Direito Penal Econômico, onde temos a Lei 7492/86 que dispõe sobre os crimes contra o sistema financeiro dentre outros.
O que se deve pugnar é a banalização de crimes de perigo abstrato, procurando sua utilização na proteção de bens jurídicos universais, efetivamente, dignos de tutela pelo Direito Penal, forte nos preceitos da ultima ratio e do princípio da framentariedade, sob pena de perda, por parte do Direito Penal, de sua eficiência e legitimidade.
5. Moral e Bem Jurídico;
Outro tema bastante importante diz respeito à moral e bem jurídico, na medida em que ambos não podem ser tidos como sinônimos, haja vista que a conceituação do que significa a moral é demasiadamente subjetiva, possuindo diversas variantes.
Essas variantes, que podem ser a própria educação, origem, religião, condição social, dentre outros, fornecem critérios, extremamente, inseguros como parâmetro de eleição de condutas perniciosas e que sejam nocivas ao convívio social.
No entanto, não se pode desvincular em absoluto o bem jurídico da moral, na medida em que na maioria das vezes um bem juridicamente tutelado possui como matiz a identificação com a moral. Assim, é correto dizer que existe um mínimo ético de moral aplicado ao direito, mas não é correto padronizar a eleição do bem jurídico com fulcro, única e exclusivamente, na moral, frente à insegurança em utilizar critérios, demasiadamente, subjetivos.
Na Alemanha nazista era comum ter-se como critério definidor da existência de delito a ofensa aos costumes alemães, dando azo a inúmeras injustiças cometidas e ao arbítrio do detentor do poder.
Conforme a lição de KNUT AMELUG[31], a respeito da teoria do bem jurídico, como freio limitador da utilização da moral, como critério de eleição de bem jurídico:
Esta teoria impede que legisladores e intérpretes protejam a vigência das normas de conduta em si mesma considerada. O perigo de que isto ocorra espreita tanto o Direito penal do despotismo como do moralismo. O déspota pode abusar do Direito penal para forçar atos simbólicos de submissão, isto é, para exigir a obediência pela obediência. O moralista pode impor a moral em interesse da própria moral para assegurar sua fixação na estrutura psíquica. Segundo a teoria do bem jurídico, ambas são ilegítimas.
A doutrina é unânime nesse sentido, ou seja, de que a moral não deve ser utilizada como orientadora e norte na definição de bens juridicamente tutelados e, por via de conseqüência, merecedores de chancela legal através do Direito Penal.
Tão unânime que é a questão atinente à diferenciação entre bem jurídico e moral, aliado ainda a não vinculação de seus princípios na eleição de condutas, cujo resultado seja a criminalização, que os penalistas alemães CLAUS ROXIN e GUNTHER JAKOBS, que defendem posições absolutamente díspares e antagônicas, sobre a função do direito penal, ambos, acabam por convergirem em suas posições a respeito do tema em comento.
Para CLAUS ROXIN[32]:
Outra conseqüência da concepção delineada é que a imoralidade ou a reprovabilidade ética de um comportamento não podem legitimar uma proibição penal, se os pressupostos de uma convivência pacífica não forem lesionados. Não se pode fundamentar a punibilidade do homossexualismo, alegando tratar-se de uma ação imoral [...].
No mesmo sentido GUNTHER JAKOBS[33]:
A afirmação positiva de que o direito penal serve à proteção de bens jurídicos, costuma-se vincular uma afirmação negativa: as meras infrações morais, por assim dizer, não lesam bem algum e, por isso, não devem ser punidas. Por essa razão, afirma-se que a moral em si mesma – já que uma vulneração desta não afeta a ninguém – deve ficar excluída como bem.
Por fim, segundo EUGENIO RAÚL ZAFFARONI e JOSÉ HENRIQUE PIERANGELI[34]:
Sob nenhum ponto de vista a moral em sentido estrito pode ser considerada um bem jurídico. A ‘moral pública’, é um sentimento de pudor, que se supõe ter o direito de tê-la, e que é bom que a população a tenha, mas se alguém carece de tal sentimento [...].
Desta forma, em virtude dos argumentos acima esposados, de longe está a hipótese de vinculação entre bem jurídico e moral. Hipótese que se aproximaria a essa fundamentação, de enorme insegurança jurídica, diga-se de passagem, seria a tese defendida por HANS WELZEL a respeito da função do Direito Penal para o qual seria a proteção de valores ético-sociais, leia-se, moral.
Portanto, a moral como norte na eleição de bens jurídicos dignos de tutela penal é medida que muito se aproxima a regimes totalitários e se distancia de critérios da dignidade da pessoa humana e de um regime baseado no Estado Democrático de Direito.
6.Teoria do bem jurídico e aproximação constitucional;
A doutrina e os próprios tribunais vêm sendo mais sensíveis à aproximação do conceito de bem jurídico penal, em consonância com os valores constitucionais.
Por conseguinte, esta valoração ocorre em vias, absolutamente, distintas: de um lado, a adoção do princípio da lesividade, intervenção mínima e insignificância, os quais refletem uma possível interpretação constitucional que levam à despenalização de condutas que não afetem, sobremaneira, bens juridicamente, tutelados ou mesmo que seja reconhecida sua atipicidade. Em sentido oposto, a existência de mandados de criminalização expressos ou implícitos que norteiam o legislador na eleição de condutas que entendem, já no contexto da carta constitucional seja lesiva e, portanto, perniciosa à sociedade.
Partindo desta premissa, tendo o texto constitucional como norte na eleição de bens juridicamente tutelados pelo Direito Penal, toda a legislação penal feita à luz de ordem constitucional diversa deve ser relida, sob o prisma da recepção do novo texto constitucional.
Nesse sentido, MARCIA DOMETILA LIMA DE CARVALHO[35]:
Sendo a constituição a expressão dos princípios fundamentais que inspiram o ordenamento jurídico, nela se encontra inserida a concepção do direito que deverá informar toda a legislação subjacente. O conteúdo da Constituição, expressão centrada do direito existente em uma determinada ordem social, deve ser levado em conta pelas demais normas do sistema jurídico.
No mesmo sentido, FRANCESCO PALAZZO[36]:
Já havíamos acenado, desde as páginas iniciais, para a possibilidade de adequação constitucional de disposições incriminadoras isoladas, no âmbito interpretativo, por parte da jurisprudência constitucional ou ordinária, independentemente de incidência sobre a estrutura externo-linguistica do tipo, mas atuando, tão só, sobre o conteúdo normativo interno, no sentido de melhor adaptá-lo ao cambiante quadro dos valores constitucionais.
Há posição em sentido contrário, entendendo que o critério constitucional não é tão seguro quanto parece, posição esta defendida por PAULO CÉSAR BUSATO e SANDRO MONTES HUAPAYA[37], citando como exemplo constituições outorgadas, como a do Brasil, na revolução de 1964, as quais não necessariamente expressavam valores democráticos. Para os penalistas citados “[...] o bem jurídico cuja defesa incumbe ao Direito Penal é aquela cuja proteção implica a manifestação de garantias de igualdade e liberdade cidadãs.”
Assim, em virtude das proposições acima esposadas, é correto dizer que todo o processo de eleição de bens juridicamente tutelados deve ter como espelho a constituição? Em caso afirmativo, não seria despropositada toda a discussão a respeito do bem jurídico, na medida em que bastaria utilizar como parâmetros os valores estabelecidos pela Carta Política?
Na verdade, o legislador deve ter como norte a Carta Política, mas sempre, tendo o freio limitador fornecido pela ultima ratio e fragmentariedade, haja vista que nem todos os valores protegidos pela Constituição, necessariamente, possuem dignidade penal.
Neste sentido a posição de LUIS GRECO[38]:
Creio que a resposta deve recair em sentido negativo, porque o bem jurídico penal, apesar de ter de ser arrimado na constituição – afinal, doutro modo, não poderia limitar o poder do legislador -, deve ser necessariamente mais restrito do que o conjunto dos valores constitucionais. Nem tudo o que a constituição acolhe em seu bojo pode ser objeto de tutela pelo direito penal. A palavra-chave aqui é o princípio da subsidiariedade e ultima ratio, ou da intervenção mínima
[...]
A nossa constituição protege até mesmo os interesses do Colégio Pedro II, ao qual dedica dispositivo próprio, em que declara: “O Colégio Pedro II, localizado na Cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal (art.242 §2°)
Portanto, diante do que acima foi exposto, o legislador ordinário utilizará como critério norteador para eleição de bens jurídicos dignos de tutela penal, aqueles cuja diretriz tenha como referência os valores constitucionais, conforme preleciona RENATO DE MELLO JORGE SILVEIRA[39]: “[...] os valores essenciais devem ter referência constitucional, estando o legislador ordinário obrigatoriamente vinculado a uma proteção de bens jurídicos, prévia ao ordenamento penal”.
Entretanto, com o ímpeto de trazer à baila os principais posicionamentos doutrinários, importante mencionar o posicionamento de ÉDSON LUIS BALDAN[40], no que se refere à necessidade aproximação dos bens jurídicos aos valores expressos em tratados internacionais, valores estes que teriam maior segurança jurídica, na medida em que não se estaria à mercê da legislação do país, o qual por conjunturas governamentais pode adotar uma Constituição não necessariamente garantidora:
A relevância hodierna da ordem jurídica supranacional avulta, em especial, na proteção dos direitos fundamentais do indivíduo, sendo o instrumento mais atual e relevante do ponto de vista penal, o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, recentemente incorporado ao ordenamento brasileiro. Os indivíduos, antes submissos em absoluto às leis de seu país, tornaram-se hoje sujeitos de direito internacional e, nessa condição, a essa normativa podem recorrer para defesa de seus direitos subjetivos.
CONCLUSÃO
De tudo o que foi exposto, comungamos do entendimento no sentido de que a objetivo principal do Direito Penal consiste na proteção de bens jurídicos, amparados, obviamente, em sólida doutrina nacional e internacional, mormente, pelos postulados de CLAUS ROXIN e BERND SCHUNEMAN.
O critério orientador de eleição dos bens jurídicos por parte do legislador deve consistir na aproximação com os valores constitucionais, no entanto, pensamos também que os valores previstos em Convenções e Tratados Universais relativos a direitos humanos devem nortear a escolha de bens com dignidade penal.
Bens jurídicos supraindividuais são uma realidade da sociedade moderna, especialmente, em virtude da globalização e da sociedade de risco, de modo que o Direito Penal deve-se adequar aos novos valores agregados, sob pena da sociedade perecer em virtude de lesão a bens essenciais para convivência.
Nesse aspecto, os crimes de perigo abstrato, a despeito de respeitosa posição em sentido contrário, são fundamentais para a que haja proteção efetiva a bens com dignidade penal, como os de origem supraindividual, no entanto, referida modalidade penal deve ser usada sob estrita observância dos princípios norteadores do Direito Penal, ou seja, a fragmentariedade e a ultima ratio.
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[1]¡El derecho penal es la ultima ratio para la protección de bienes jurídicos! Sobre los limites inviolables del derecho penal en un Estado liberal de derecho. Traducción de Ángela de la Torre Benítez, p.52 (tradução livre do autor).
[2]Breves reflexões sobre os princípios da proteção de bens jurídicos e da subsidiariedade no Direito Penal, p.266.
[3] Estudos de Direito Penal: Tradução Luis Greco, p.32.
[4] Princípios Gerais do Direito Penal, p.13-14.
[5] Ibid., p.33.
[6]¿Es la protección de bienes jurídicos uma findalidad del Derecho penal?, p.445 (tradução livre do autor).
[7] Direito Penal e Funcionalismo: Tradução André Luiz Callegari, Nereu José Giacomolli e Lúcia Cali, p.34.
[8]Aproximações à teoria da exclusiva proteção de bens jurídicos no direito penal contemporâneo, p.10-11.
[9] Introdução ao Direito Penal, Fundamentos para um Sistema Penal Democrático, p.35.
[10] Fundamentação Constitucional do Direito Penal, p.33.
[11]¿Es la protección de bienes jurídicos uma findalidad del Derecho penal?, p.446. (tradução livre do autor).
[12] Bien Jurídico Y Función en Derecho Penal, p.11(tradução livre do autor).
[13] Ibid., p.448 (tradução livre do autor).
[14] Direito Penal: parte geral, t.I, p.114.
[15] Teoria do Injusto Penal, p.177.
[16] Ibid. p.52-53.
[17]Breves reflexões sobre os princípios da proteção de bens jurídicos e da subsidiariedade no Direito Penal, p.259.
[18] Direito Penal Supra Individual: Interesses Difusos, p.28.
[19] Crimes de Perigo Abstrato, p.35-36.
[20] Derecho Penal: Parte General, p. 135 (tradução livre do autor).
[21] Pena y Estado: Función simbólica de la pena, p.32 (tradução livre do autor).
[22] La criminalización em los delitos contra biens jurídicos colectivos, p.371-372 (tradução livre do autor).
[23] Derecho Penal Económico: concepto y bien jurídico, p.88. (tradução livre do autor).
[24] Crime e Congresso Nacional, uma análise da Política Criminal aprovada de 1989 a 2006, p.212.
[25] Direito Penal Supra Individual, Interesses Difusos, p.89.
[26] Crimes de perigo abstrato, Disponível em: <www.ibccrim.org.br>, consulta em 01/11/2010.
[27] Direito Penal Econômico como Direito Penal de Perigo, p.154-155.
[28] Direito Penal e Funcionalismo, tradutores André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli, Lúcia Kalil, p.42.
[29] Princípio da Ofensividade e crimes de perigo abstrato: Uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito, p.126.
[30] Ibid., p.172.
[31] El concepto “Bien Jurídico”, em la teoria de la protección penal de bienes jurídicos, p.246-247 (tradução livre do autor).
[32] Estudos de Direito Penal: Tradução Luis Greco, p.37-38.
[33]Ibid., p.32.
[34] Manual de Direito Penal Brasileiro, v.1, Parte Geral., p.399.
[35] Ibid., p.36-37.
[36] Valores Constitucionais e Direito Penal: Um estudo comparado, Tradução Gérson Pereira dos Santos, p.96-97.
[37] Ibid., p.52.
[38]Princípio da Ofensividade e crimes de perigo abstrato – Uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito, p.100-101.
[39] Direito Penal Supra-Individual, p.51.
[40] Intertipicidade Penal, f.45.
Delegado de Polícia Federal, especialista, mestre e doutorando em Direito Processual Penal pela PUC-SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Rodrigo de Campos. Bem Jurídico Penal, breves comentários Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 out 2016, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47655/bem-juridico-penal-breves-comentarios. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
Por: Thiago Filipe Consolação
Por: Michel Lima Sleiman Amud
Por: Helena Vaz de Figueiredo
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