RESUMO: Este trabalho possuiu a finalidade precípua de realizar um minucioso estudo acerca da matéria relativa a recente obrigação tributária acessória denominada de e-Financeira - elaborada pela Receita Federal do Brasil mediante a edição da Instrução Normativa nº 1.571 de 02 de julho de 2015 - frente aos direitos e garantias fundamentais dos contribuintes (sigilo de dados bancários, de manutenção da vida privada, da segurança jurídica, do devido processo legal, da reserva de jurisdição e do contraditório e ampla defesa), a partir do que se apurou a constitucionalidade ou não da referida medida fiscal.
Palavras-chave: Obrigação Tributária Acessória. e-Financeira. Vida Privada. Sigilo Bancário.
ABSTRACT: This work had the preciput purpose of carrying out a thorough study on the matter concerning the recent accessory tax obligation called e-Financial - elaborated by the Brazil’s Federal Revenue through the edition of Normative Instruction No. 1.571 of 2 July 2015 - ahead of the rights and guarantees of taxpayers (confidentiality of bank data, maintenance of privacy, legal certainty, due process, the jurisdiction reservation and the contradictory and full defense), from which it was investigated the constitutionality or not of such tax measure.
Keywords: Accessory Tax Obligation. e-Financial. Private Life. Bank Secrecy.
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Obrigação tributária acessória. 2.1 Conceito. 2.2 Natureza jurídica ex lege da obrigação tributária acessória. 2.3 Fato gerador da obrigação acessória. 2.4 A nova obrigação acessória instituída pela Receita Federal do Brasil denominada de e-financeira. 3 Principiologia constitucional que afasta a efetivação da e-financeira no ordenamento jurídico brasileiro. 3.1 A vida privada como preceito basilar. 3.1.1 Noção conceitual de vida privada. 3.1.2 Intangibilidade da vida privada. 3.2 Direito fundamental de resguardo ao sigilo bancário. 3.2.1 Importância e noção conceitual do sigilo bancário. 3.2.2 A eventualidade da quebra do sigilo bancário no direito pátrio. 3.3 Princípio da segurança jurídica. 3.4 Princípio do devido processo legal. 3.5 Garantia do contraditório e ampla defesa. 4 Entendimento jurisprudencial que não admite a ruptura automática do sigilo bancário pela Receita Federal do Brasil. 5. Conclusão. Referências.
As obrigações tributárias acessórias existem em grande número e várias são as suas peculiaridades e acepções em meio a legislação brasileira, o que acarreta, na maior parte das vezes, cristalina sensação de discrepância e desequilíbrio perante a relação jurídica de sujeição que existe entre a administração fiscal e os contribuintes; as quais, na maioria dos casos, são sobremaneira detalhadas e penosas para regular e efetivo cumprimento pelos administrados, na medida em que, a partir do momento em que estes não as satisfaçam, são de pronto autuados aquando da fiscalização tributária, com imposição de multas e outras penalidades por vezes exorbitantes e desconformes às diretrizes legais do país.
Nesse sentido, insta sublinhar o fato de que a Receita Federal do Brasil, seguindo o padrão imperativo e arbitrário da administração tributária pátria como um todo, não desviou de sua característica de poder de controle e comando ao editar a novel obrigação acessória tributária intitulada de e-Financeira, por meio da qual as instituições financeiras ficarão legalmente compelidas a partilhar dados e informações relativas a operações financeiras dos usuários de seus serviços diretamente ao Poder Público, de forma automática e irrestrita, nos moldes da Instrução Normativa nº 1.571 de 02 de julho de 2015, objetivando contrapor os dados assim obtidos com os constantes da declaração anual de Imposto de Renda do contribuinte.
Dessa forma, o presente trabalho possuirá o escopo central de proceder a uma detida análise sobre a temática dos direitos e garantias fundamentais dos contribuintes brasileiros face a supracitada recente obrigação tributária acessória e-Financeira, instituída pela Receita Federal do Brasil, a partir do que se concluirá pela constitucionalidade ou não acerca da referida medida fiscal perante o direito pátrio, com embasamento em importantes ditames normativos e em insigne e consolidada doutrina acadêmica.
Para tanto, preliminarmente, serão delineadas as nuances e os requisitos que envolvem e abrangem o instituto da obrigação tributária acessória perante o ordenamento jurídico vigente, especialmente com relação a sua noção conceitual, natureza jurídica, desígnio e intenção legal e o fato gerador que a respalda e norteia, bem como, ainda, sua grande preponderância normativa para a efetivação da tributação amplamente considerada, particularmente no que se refere ao mencionado novo dever instrumental tributário - como também é denominada a obrigação acessória - elaborado pela administração tributária federal. Assim, no que tange a e-Financeira, ressalta-se que este dever instrumental será amplamente examinado em tópico próprio, com a apresentação de seus requisitos e principais novidades para o âmbito do direito tributário, notadamente sobre como o instituto afetará a vida do contribuinte brasileiro.
Posteriormente, abordar-se-ão os nobres pilares principiológicos apregoados pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que configuram a mais notável e inalienável manifestação das garantias e liberdades individuais essenciais para a manutenção da dignidade e autonomia do contribuinte frente a arbitrariedade e imperatividade do Poder Público, em especial, por parte da administração tributária mediante a imposição de diversos deveres e obrigações fiscais a serem cumpridas por aquele.
Noutras palavras, nesse ponto do trabalho, serão apresentados os princípios republicanos que consagram os direitos e prerrogativas fundamentais dos cidadãos nacionais, quais sejam, a manutenção do basilar da vida privada do indivíduo, o resguardo ao sigilo de dados bancários do sujeito passivo da relação jurídico-tributária, a garantia de segurança jurídica, o cumprimento do devido processo legal, da reserva de jurisdição e do contraditório e ampla defesa; tudo com o fito de contrapor e refutar as expectativas almejadas pela Receita Federal do Brasil com a elaboração da e-Financeira, de forma a obrigar as instituições financeiras a repassarem os dados e informações sobre transações e negócios bancários realizados pelos usuários de seus serviços, isto é, pelos contribuintes.
Em seguida, após robustamente discorrer a respeito da obrigação tributária acessória, particularmente sobre a e-Financeira, bem como depois de expostos os princípios-garantias essenciais às liberdades do sujeito de direitos, examinar-se-ão, neste trabalho, alguns dos mais exímios precedentes jurisprudenciais edificados pelos tribunais nacionais que tratam sobre a matéria do direito fundamental ao sigilo de dados bancários, face a incessante finalidade da Receita Federal do Brasil em acessar as informações sobre transações bancárias realizadas pelos contribuintes por intermédio de simples requisição administrativa às instituições financeiras com as quais estes mantêm relação de clientela e confiança; julgados aqueles que são amplamente alicerçados e embasados nas mais supremas diretrizes disseminadas pela Carta da República de 1988, asseguradoras do ideal de perpetuação das liberdades individuais fundamentais intrínsecas ao cidadão brasileiro que objetivam concretizar e efetivar a sua dignidade humana, bem como consubstanciar justiças social e fiscal no país. Com isso, será estuada a latente questão da constitucionalidade ou não da e-Financeira no normativo interno, em consonância com os soberanos pressupostos constitucionais.
O fenômeno tributário permanece presente na maioria das sociedades organizadas contemporâneas, desde as civilizações pretéritas longínquas, sendo certo o seu pagamento pelo cidadão e a arrecadação pelo governante, tudo em decorrência do contrato social existente entre ambos, necessário para a perpetuação e progressão do meio social.
Assim, o denominado Estado Tributário ou Fiscal possui os mecanismos e prerrogativas imprescindíveis no sentido de atingir a sua tão almejada arrecadação de receita tributária, ao passo que aos contribuintes ou sujeitos passivos dessa relação jurídica eminentemente patrimonial, cabem exercerem o direito de serem cobrados dentro de seus respectivos haveres financeiros a luz dos pressupostos de justiça e razoabilidade, bem como vistoriar a destinação a ser conferida ao recurso público arrecadado.
Com o intuito de concretizar e formalizar a cobrança e arrecadação de tributos, o Estado percebeu a necessidade de se criar determinado procedimento para esse fim, tendo vislumbrado tal possibilidade por meio do instituto da obrigação tributária, cerne da aludida relação jurídica existente entre Estado e cidadão, matéria esta que é objetivo deste trabalho, especificamente no que se refere a obrigação tributária acessória, por vezes “de difícil cumprimento e muito trabalhosas” (PAULSEN, 2014a, p. 12).
Nesse sentido, cabe a partir de então apresentar os principais e primordiais requisitos e características que compõem a referida obrigação tributária acessória, a fim de melhor desenvolver sua ideia vital que permeia o campo do direito fiscal, qual seja, assegurar o estrito cumprimento do dever constitucional de pagar tributos, mediante determinação advinda do preceito maior da estrita legalidade.
Cumpre salientar, então, que a mencionada relação jurídica que emerge entre a administração tributária e o contribuinte, através da obrigação tributária, é agora muito mais pautada na legalidade do que no mero exercício de poder ou autoridade por parte do Estado, pois intrinsecamente conexa aos alicerces republicanos pertinentes ao Estado Democrático de Direito, instaurando entre os abrangidos, deveres e prerrogativas. Tem-se, portanto, que a relação jurídica tributária é aquela “que nasce, desenvolve-se e se extingue segundo regras preestabelecidas” (MACHADO, 2015, p. 28).
Preliminarmente, ressalta-se que a relação jurídica tributária comporta nuances cujas consequências são ditadas pela ciência do direito tributário, intentando regular o procedimento de recolhimento de tributos pelo Estado e, paralelamente, salvaguardar o patrimônio do cidadão (neste trabalho, compreenda-se por cidadão tanto a pessoa física quanto a pessoa jurídica) ao restringir o poder de tributar com vistas a rechaçar autoritarismos do ente tributante. Dessa forma, vislumbra-se que “essa relação constitui objeto essencial do direito tributário, que é de natureza obrigacional [...]” (MACHADO, 2015, p. 124).
Novamente, antes de se adentrar a conceituação propriamente dita da obrigação tributária acessória, merece esclarecimento a nomenclatura obrigação. Por obrigação, entende-se a prévia existência de uma relação jurídica negocial entre as partes envolvidas, tidas nas pessoas dos credores e dos devedores, em que este deve prestar algo àquele. Em outras palavras, o objeto da relação obrigacional é equalizado entre o literal dever do devedor de satisfazer determinada responsabilidade ou compromisso para com o credor, cabendo a este demandar que aquele assim o faça.
Diz-se que o devedor tem obrigação (dever) a cumprir perante o credor, enquanto o credor possui direito exercitável perante o devedor. A obrigação, nessa ótica, corresponde a um comportamento (ação ou omissão) que o credor pode exigir do devedor, e que é traduzível em prestação de dar, fazer ou não fazer. Fica, dessa forma, o devedor adstrito ao adimplemento de uma prestação em proveito do credor. O devedor tem dívida ou débito, em contraposição ao crédito do credor. (AMARO, 2014, p. 258, grifo do autor).
Nesse sentido, baseando-se em instituto originário do direito civil, igualmente aplicável ao direito tributário, a obrigação consiste substancialmente em determinado bem material ou desígnio negocial a ser prestado, executado ou não realizado pelo devedor em benefício do credor, visto entre ambos existir prévia relação jurídica contratual para que isso seja alcançado, incumbindo ao credor requisitar do devedor aquilo que por eles fora acordado.
Portanto, ao ser gerenciada no campo fiscal, a obrigação assume uma natureza tributária, ou seja, conserva a existência de um objeto a ser aproveitado por um credor frente a um devedor, entretanto, sob um diferente viés, uma vez que agora se fala em sujeito ativo e sujeito passivo da obrigação tributária, respectivamente representados pelo Estado e pelo contribuinte, obrigação essa que “se particulariza, no campo dos tributos, pelo seu objeto, que será sempre uma prestação de natureza tributária, portanto um dar, fazer ou não fazer de conteúdo pertinente a tributo” (AMARO, 2014, p. 261). Acrescenta-se, ainda, que:
Em direito tributário, a obrigação pode assumir as três formas previstas pelos civilistas: a obrigação de pagar tributo ou multa caracteriza-se como uma obrigação de dar (dinheiro); as obrigações de escriturar livros fiscais e de entregar declarações tributárias são obrigações de fazer; as obrigações de não rasurar a escrituração fiscal e de não receber mercadorias sem os documentos fiscais previstos na legislação são obrigações de deixar de fazer. (ALEXANDRE, 2015, p. 270, grifo do autor).
Tendo por base o supracitado, uma última observação deve ser realçada antes de se finalmente passar ao conceito da obrigação tributária acessória em si, qual seja, o fato do gênero obrigação tributária ser dividido em duas espécies: obrigação principal e obrigação acessória. O artigo 113 do Código Tributário Nacional (CTN) bem define essa regra, in verbis:
Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.
§ 1º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente.
§ 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.
§ 3º A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária. (BRASIL, 2015a, p. 222).
Assim, a luz do § 1º do supracitado dispositivo, observa-se que a obrigação principal é aquela que desponta a partir da constatação do fato gerador intrínseco a relação jurídica tributária, qual seja, o fato material do cotidiano que enseja, respectivamente, a aplicação e recolhimento de um tributo previamente estipulado por legislação competente com o intuito de arrecadação pecuniária por parte do Estado, bem como a imposição de determinada punição monetária caso o aspecto anterior seja descumprido, cuja total extinção se dá com o pagamento do crédito decorrente dessa operação. Com isso, nota-se que a obrigação principal resta:
[...] consubstanciada no vínculo abstrato que surge pela imputação normativa, mediante o qual o sujeito ativo ou credor - o Fisco - pode exigir do sujeito passivo ou devedor - o contribuinte - uma prestação de cunho patrimonial, denominada tributo. (COSTA, 2015, p. 197, grifo do autor).
Por outro lado, passando-se agora a real intenção deste tópico, conceitua-se a obrigação tributária acessória, a qual, conforme visto no dispositivo legal colacionado acima, em especial em seu § 2º, advém do ordenamento jurídico tributário e consiste em um ônus constituído por prestações positivas ou negativas (de fazer ou não fazer) a serem realizadas pelo contribuinte - sujeito passivo - em proveito do interesse arrecadatório ou investigatório da administração tributária. São, portanto, os mecanismos dispostos em lei que viabilizam a atividade fiscal do Estado, que estruturam a forma como esta deve ser posta em prática.
A obrigação tributária acessória perfaz-se como uma ferramenta que possui o fisco no sentido de organizar e concatenar a finalidade de cobrança tributária pelo ente soberano com a maneira com que o contribuinte procederá ao recolhimento da parcela pecuniária pertencente àquele, momento jurídico este em que se determina o que tal sujeito passivo deve ou não deve fazer para que o objetivo traçado pelo pacto social firmado entre ambos seja definitivamente alcançado. Sob essa ótica, vislumbra-se que a obrigação acessória se trata de uma:
[...] relação de cunho não obrigacional, vale dizer, o vínculo abstrato que surge pela imputação normativa, mediante o qual o sujeito ativo ou Fisco pode exigir do sujeito passivo ou contribuinte uma prestação consistente na realização de um comportamento positivo ou negativo, destinado a assegurar o cumprimento da obrigação tributária. Essa modalidade de relação jurídica diz com expedientes destinados à fiscalização da conduta dos contribuintes, mediante a imposição de deveres instrumentais ou formais. (COSTA, 2015, p. 197, grifo do autor).
Direciona-se, portanto, a obrigação tributária acessória, ao efetivo cumprimento por parte do contribuinte de suas responsabilidades procedimentais atreladas ao tributo - determinadas por lei -, no caminho de conferir concretude ao intento maior do Estado que é o de fomentar a arrecadação propriamente dita e facilitar o exercício fiscalizatório deste ente, cujo mecanismo é igualmente e amplamente conhecido como deveres instrumentais ou formais imprescindíveis a observância e praticabilidade do fato gerador do tributo, conforme supramencionado. Sobre isso tem-se que:
Os deveres, enquanto previsão normativa, visam a estimular os destinatários no sentido de exercitarem certas condutas [...] e passam a existir, concretamente, em termos jurídicos quando forem cumpridos pelos respectivos destinatários. [...]. Os deveres instrumentais se apresentam bastantes-em-si, exaurindo-se as expectativas normativas com a só realização da conduta prevista, isto é, com a expedição das regras individuais e concretas que os múltiplos deveres consubstanciam. (CARVALHO, P., 2012b, p. 197, grifo nosso).
Com vistas ao exposto, pode-se notar que os denominados deveres instrumentais compõem um núcleo formal imprescindível a realização da obrigação tributária principal, a partir do qual o contribuinte é estimulado a promoverem determinados comportamentos hábeis a concretizar a intenção central almejada pelo Estado com a imposição tributária (arrecadação financeira), cujas expectativas geradas pelos aludidos deveres são cessadas aquando de seus respectivos cumprimentos, uma vez que assim se atinge a finalidade da norma que os instituiu.
A par disso, merece destaque o fato de que as obrigações acessórias ou deveres instrumentais são materializados de diversas maneiras prescritas pela legislação pertinente, constituindo um grande arcabouço de responsabilidades paralelas ao tributo a serem devidamente adimplidas pelos contribuintes, imputadas a estes sob os mais nobres basilares de organização sistêmica, formalização procedimental e facilitação fiscalizatória. Veja-se:
As obrigações acessórias têm como conteúdo, por exemplo, a emissão de documentos fiscais, a elaboração e guarda de livros fiscais e a apresentação de declarações ao fisco. Podem obrigar, ainda, a simples abstenções, como quando a legislação veda ao transportador carregar mercadoria sem nota. (PAULSEN, 2014b, p. 201).
Insta salientar, ainda, que no caso de a obrigação tributária acessória não ser regularmente preenchida pelo sujeito passivo da relação jurídica em comento, esta converte-se de forma automática em obrigação principal no que se refere a penalidade prevista pelo § 3º do artigo 113 do CTN - analisado alhures -, incidindo sobre o patrimônio particular do devedor tributário na modalidade de multa administrativa, a ser recolhida ao fisco mediante pagamento de pecúnia, assim como ocorre com a obrigação principal em si, ou seja, com o tributo.
Percebe-se, então, a grande relevância que a obrigação acessória ou dever instrumental possui em relação ao fato gerador da obrigação tributária principal, pois se trata de instituto que edifica a relação jurídica fiscal entre o contribuinte e o ente administrativo, na medida em que solidifica as ferramentas legalmente dispostas para o sujeito passivo exercer de forma segura e eficaz o seu dever fundamental de pagar o tributo, na qualidade de devedor, bem como garante ao sujeito ativo exercer o seu direito constitucional e social de instituir e recolher o tributo de seus cidadãos, a fim de prover recursos e serviços públicos à sociedade, tudo em atendimento à disposição constitucional e em benefício do Estado Democrático de Direito.
A obrigação tributária acessória é caracterizada pela apreensão de certas nuances que a difere da obrigação tributária principal, especialmente no que tange à sua natureza jurídica como um todo. Por isso, consoante brevemente frisado anteriormente melhor analisado neste tópico, a obrigação acessória é composta por uma natureza não obrigacional ou não patrimonial, isto é, prescinde de aspecto monetário em seus meandros.
Prepondera-se, com isso, o cunho eminentemente formalista que tal espécie de obrigação tributária detém como objeto fim de sua imposição, ou seja, consiste em apresentar o procedimento e os instrumentos jurídicos intrínsecos à consecução e concretização do crédito tributário, o qual deriva da obrigação principal que, diversamente daquela, possui natureza patrimonial e pecuniária. O referido dever instrumental é, portanto, uma sujeição o “liame mediante o qual o Fisco pode exigir do sujeito passivo a prática de condutas estabelecidas em lei no interesse da arrecadação tributária” (COSTA, 2015, p. 199).
Dessa maneira, por não comportar a particularidade de lidar com valor econômico, como é o caso do tributo em si, a obrigação acessória se funda em uma relação de sujeição procedimental do cidadão-contribuinte frente a administração tributária, na medida em que perfaz uma conduta de “fazer, não fazer e tolerar” (MACHADO, 2015, p. 128).
Partindo dessa linha de raciocínio, observa-se que para que o procedimento formal intrínseco a obrigação acessória se concretize no mundo jurídico tributário, faz-se primeiramente necessária a edição de determinado mandamento normativo que constitua o elo instrumental que permeia a relação entre cidadão e Estado no sentido da prestação de certos deveres desprovidos de valor econômico. As obrigações acessórias:
[...] são destituídas de valor patrimonial. Não são pecuniárias. Substanciam deveres de fazer e não fazer previstos em lei. Ressalte-se, todavia, que deverão decorrer de previsões legais em estrito senso, ou seja, de leis em sentido formal e material, até porque ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei, a teor da Constituição da República. A ressalva, fazemo-la por isso que o conceito de legislação tributária é elástico no CTN (art. 96), compreendendo não apenas as leis, eis que abarca também os decretos e outros atos administrativos [...]. (COÊLHO, 2012, p. 606, grifo nosso).
Resta cristalino, conforme suso mencionado, o caráter legal vinculativo atinente a obrigação tributária acessória, uma vez que tal instituto apenas subsiste no meio jurídico em decorrência da estrita legalidade imprescindível ao ramo do direito que ora se analisa, o que adstringe os laços de responsabilidades formais e materiais a serem dispensadas pelo administrado em proveito do ente administrativo fiscal, com o fito maior de alcançar a finalidade de arrecadação e fiscalização dos tributos.
Os deveres instrumentais não são, portanto, desde a criação de seus complexos emaranhados, provenientes da autonomia de vontades recíprocas das partes envoltas na relação negocial, visto que neles não cabem manifestações de desejos ou quereres obrigacionais, mas sim a necessidade e urgência demandadas pelo Estado enquanto aparelho de regência social com vistas a prover serviços públicos fundamentais ao povo que dele depende. Assim, abstraindo-se do caráter tendencioso de deliberação e ambição expressado por um ou ambos os sujeitos relacionados, in casu, bem como por restarem emanadas única e exclusivamente em virtude de lei, “o nascimento da obrigação não depende de nenhuma manifestação de vontade das partes que passam a ocupar os polos passivo e ativo do vínculo jurídico. Basta a ocorrência do fato previamente descrito na lei para que surja a obrigação” (AMARO, 2014, p. 262).
Nessa esteira, conclui-se que “somente poderão ser exigidas prestações positivas ou negativas, no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos, de quem quer que seja, no pressuposto de haver lei que disponha nesse sentido” (CARVALHO, P., 2012a, p. 287), pois trata-se de medida amplamente assegurada pelo artigo 5º, II, da Constituição Federal de 1988.
Por outro lado, quanto a característica de acessoriedade das obrigações acessórias, verifica-se que estas “têm autonomia relativamente às obrigações principais” (PAULSEN, 2014, p. 202). Isso é dito porque, diferentemente do que ocorre com a regra geral civilista de que o acessório segue o principal e dele depende, no direito tributário o procedimento muda nesse ponto, uma vez que podem muito bem deveres instrumentais serem instituídos com a única finalidade de preencher determinada formalidade metodológica no sentido de fazer valer e concretizar o crédito tributário objeto da obrigação principal, todavia, sem dele depender para que sua ocorrência tome corpo jurídico. Muito pelo contrário, pois:
A acessoriedade dessa obrigação, nos termos do Código, exsurge do fato de que o liame assim qualificado é estatuído para propiciar as efetivas fiscalização e arrecadação de tributo, objeto da obrigação principal, ainda que a situação fática específica não revele a exigência daquele. (COSTA, 2015, p. 199, grifo do autor).
Dessa forma, vislumbra-se que a imposição dos deveres instrumentais é realizada com o fito maior de conferir eficácia ao fato gerador do tributo, o qual é constatado com a ocorrência de certo fato material que enseja a aplicação do crédito tributário a ser adimplido pelo contribuinte em benefício do ente fiscal, sendo todo esse escalonamento estruturado mediante a instituição da obrigação tributária acessória com seus respectivos ônus formais e procedimentais, de forma completamente autônoma e independente da obrigação principal.
Possuem essa característica, então, em virtude de existirem contribuintes que os praticam sem necessariamente incorrerem em hipótese de incidência tributária, ou seja, sem darem ensejo ao dever de pagarem algum tributo - anseio final do fisco -, mas simplesmente por prévia exigência legislativa ou metodológica imposta pelo Estado com a intenção de organizar e edificar por completo a atividade tributante.
Inicialmente, quanto ao presente tópico, urge destacar que o fato gerador se constitui mediante a ocorrência de determinada situação do cotidiano que, por sua vez, excita a incidência prescritiva da preexistente norma instituidora do tributo, culminando no dever jurídico do contribuinte em adimplir o crédito tributário ou os deveres instrumentais de interesse do fisco.
Sob essa ótica, insta mencionar que o gênero fato gerador se subdivide em duas espécies, a saber: fato gerador da obrigação principal e fato gerador da obrigação acessória.
Conforme estrita previsão do artigo 114 do Código Tributário Nacional, o “fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência” (BRASIL, 2015a, p. 222). Assim, nesse ponto, nota-se o caráter eminentemente material intrínseco ao fato gerador da obrigação principal, qual seja, o de que a verificação de determinada situação fática do cotidiano, anteriormente descrita e pormenorizada em lei, é bastante para a constituição e respectiva exigência do crédito tributário.
Por outro lado, adentrando-se agora ao objetivo central do corrente item deste trabalho, de acordo com expressa estipulação do artigo 115 do Código Tributário Nacional, o “fato gerador da obrigação acessória é qualquer situação que, na forma da legislação aplicável, impõe a prática ou a abstenção de ato que não configure obrigação principal” (BRASIL, 2015a, p. 222). Destarte, compreende-se que para a caracterização do fato gerador da obrigação acessória, deve fazer-se presente uma circunstância apta a vincular a realização ou não de determinada conduta prescrita em lei, desde que não enseje a incidência do crédito tributário.
Nessa toada, o fato gerador da obrigação acessória alicerça-se na imposição de “deveres de fazer e não fazer por força de lei” (COÊLHO, 2012, p. 608). Logo, tem-se que tal espécie de fato gerador se refere única e exclusivamente ao procedimento formal prévio ao recolhimento ou a fiscalização tributária, cujo cumprimento é determinado a partir da legislação competente, sem, no entanto, ocasionar o aparecimento do fato gerador da obrigação principal e sua respectiva finalidade arrecadatória e econômica.
Dessa forma, a título ilustrativo, o caso “de quem é estabelecido comercialmente faz nascer as obrigações acessórias de não receber mercadorias sem o documento fiscal correspondente e de tolerar a fiscalização em seus livros e documentos” (MACHADO, 2015, p. 130). É cristalino, portanto, o pressuposto metodológico do fato gerador da obrigação acessória, inteiramente desprovido de qualquer cunho econômico.
Objeto de contestação e crítica por parte do presente trabalho, adentra-se agora ao estudo da nova obrigação tributária acessória denominada de e-Financeira, cuja criação competiu à Receita Federal do Brasil, mediante a edição da Instrução Normativa nº 1.571 de 02 de julho de 2015, com posterior publicação no Diário Oficial da União em 03 de julho de 2015, a qual se fundamenta majoritariamente na Lei Complementar 105 de 10 de janeiro de 2001.
O novel dever instrumental ora em comento foi elaborado com o anseio de fazer com que pessoas jurídicas, qualificadas em especial como instituições financeiras e seguradoras em corrente atividade no Brasil, prestem informações correlatas as movimentações financeiras de seus clientes, correntistas e segurados à Receita Federal do Brasil, constituídas por um conjunto de arquivos digitais referentes a cadastro, abertura, fechamento e auxiliares, pelo módulo de operações financeiras, vinculado ao Sistema Público de Escrituração Digital (SPED). Veja-se:
Art. 3º. [...]
Parágrafo único. A e-Financeira deverá ser transmitida ao ambiente do Sistema Público de Escrituração Digital (SPED) pelas pessoas jurídicas obrigadas a adotá-la, nos termos desta Instrução Normativa.
Art. 4º. Ficam obrigadas a apresentar a e-Financeira:
I - as pessoas jurídicas:
a) autorizadas a estruturar e comercializar planos de benefícios de previdência complementar;
b) autorizadas a instituir e administrar Fundos de Aposentadoria Programada Individual (Fapi); ou
c) que tenham como atividade principal ou acessória a captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, incluídas as operações de consórcio, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia de valor de propriedade de terceiros; e
II - as sociedades seguradoras autorizadas a estruturar e comercializar planos de seguros de pessoas.
[...]
§ 3º Fica responsável pela prestação de informações:
I - a instituição financeira depositária de contas de depósito, inclusive de poupança, em relação às informações de que trata o inciso I do caput do art. 5º;
II - a instituição custodiante das contas de custódia de ativos financeiros vinculadas às aplicações financeiras de que tratam os incisos II e III do caput do art. 5º;
III - o administrador, no caso de fundos e clubes de investimento cujas cotas estejam vinculadas às aplicações financeiras de que tratam os incisos II e III do caput do art. 5º, exceto:
a) fundos de investimento especialmente constituídos, destinados exclusivamente a acolher recursos de planos de benefícios de previdência complementar ou de planos de seguros de pessoas; e
b) fundos cujas cotas sejam negociadas em bolsa ou devam ser ou sejam registradas em balcão organizado;
IV - o distribuidor de cotas de fundos de investimento distribuídos a terceiros por conta e ordem vinculadas às aplicações financeiras de que tratam os incisos II e III do caput do art. 5º;
V - a instituição intermediária, no caso de ações, derivativos, ou cotas de fundos de investimento negociadas em bolsa ou que devam ser ou sejam registradas em balcão organizado vinculadas às aplicações financeiras de que tratam os incisos II e III do caput do art. 5º;
VI - a instituição autorizada a realizar operações no mercado de câmbio para as operações de que tratam os incisos VIII a X do caput do art. 5º;
VII - as pessoas jurídicas de que tratam as alíneas “a” e “b” do inciso I e o inciso II do caput, em relação às informações referidas nos incisos IV a VI do caput do art. 5º;
VIII - a pessoa jurídica administradora de consórcios, conforme art. 5º da Lei nº 11.795, de 8 de outubro de 2008, para as informações de que tratam os incisos XI e XII do caput do art. 5º; e
IX - a instituição que detenha o relacionamento final com o cliente, nos demais casos, em relação às informações de que trata o art. 5º. (BRASIL, 2015c, não paginado, grifo nosso).
Denota-se, portanto, que a e-Financeira se trata de obrigação acessória cuja finalidade é a de fazer concentrar sob posse da Receita Federal do Brasil, uma diversificada gama de informações sobre as transações financeiras e negócios jurídicos econômicos realizados pelo contribuinte brasileiro em seu cotidiano, seja perante o Banco com o qual possui relação de clientela, seja com sua seguradora, seja com relação a seus investimentos, entre outros.
Assim, conforme informação constante do Manual de Preenchimento da e-Financeira, alocado no sítio eletrônico do Sistema Público de Escrituração Digital (SPED), providenciado pela Receita Federal do Brasil, tal instituto consiste em “uma obrigação acessória que reúne diversas informações relativas a operações financeiras de interesse da Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB)” (BRASIL, 2016a, p. 9).
A justificativa por parte da administração tributária federal para a elaboração desse novo dever instrumental reside no fato de que este, por configurar um mecanismo de reunião de dados junto àquela instituição, possui a incumbência de servir como ferramenta fiscalizatória mediante a estruturação de um intitulado cruzamento de informações fiscais, tanto entre os esclarecimentos enviados ao referido órgão pelas pessoas jurídicas obrigadas para tanto, quanto às declarações anuais de rendimentos realizadas pelos contribuintes pessoas físicas.
Por intermédio desse procedimento, a Receita Federal parte do pressuposto de que assim sua estrutura seria capaz de atestar com mais nitidez e eficácia as situações anormais de sonegação fiscal eventualmente praticadas pelos contribuintes, através da confirmação de lacunas e incoerências visualizadas quando da comparação entre as informações constantes da declaração e-Financeira apresentada pelas instituições financeiras e afins, bem como dos dados comunicados pelos contribuintes em suas declarações anuais de imposto sobre a renda.
Nessa linha de pensamento, merece destaque o fato de que a atual e-Financeira emergiu ao mundo jurídico tributário com a finalidade de assumir a posição da Declaração de Informações sobre Movimentações Financeiras (Dimof), há época imposta pela Instrução Normativa RFB nº 811 de 28 de janeiro de 2008, cuja elaboração teve o objetivo de apurar ocasionais inconsistências tributárias, teve sua prestação obrigatória exaurida para fatos vislumbrados após o mês de dezembro de 2015.
Destarte, em decorrência da novel obrigação acessória ser mais estruturalmente pormenorizada e complexa do que a antiga Dimof, assevera-se que a e-Financeira constitui uma espécie de expansão e dilatação do dever instrumental anterior, haja vista possuir a vantagem de abranger e colacionar muito mais dados e informações. Com isso, se a partir do ano de 2008 até meados do ano de 2015 o ônus das instituições financeiras era o de apresentar o saldo anual obtido pelos usuários de seus serviços a cada 31 de dezembro, hodiernamente tais pessoas jurídicas e as demais mencionadas alhures estão obrigadas a informar todas as transações econômico-financeiras realizadas por seus clientes (contribuintes), respeitadas as quantias limítrofes referidas ao momento em que efetivamente se concretizaram.
A título ilustrativo da elevada complexidade e detalhamento de seu procedimento operacional, a e-Financeira trouxe no artigo 5º de seu texto normativo diversas obrigatoriedades a serem devidamente adimplidas por aquelas instituições referidas anteriormente. Veja-se:
Art. 5º. As entidades de que trata o art. 4º deverão informar no módulo de operações financeiras as seguintes informações referentes a operações financeiras dos usuários de seus serviços:
I - saldo no último dia útil do ano de qualquer conta de depósito, inclusive de poupança, considerando quaisquer movimentações, tais como pagamentos efetuados em moeda corrente ou em cheques, emissão de ordens de crédito ou documentos assemelhados ou resgates à vista e a prazo, discriminando o total do rendimento mensal bruto pago ou creditado à conta, acumulados anualmente, mês a mês;
II - saldo no último dia útil do ano de cada aplicação financeira, bem como os correspondentes somatórios mensais a crédito e a débito, considerando quaisquer movimentos, tais como os relativos a investimentos, resgates, alienações, cessões ou liquidações das referidas aplicações havidas, mês a mês, no decorrer do ano;
III - rendimentos brutos, acumulados anualmente, mês a mês, por aplicações financeiras no decorrer do ano, individualizados por tipo de rendimento, incluídos os valores oriundos da venda ou resgate de ativos sob custódia e do resgate de fundos de investimento;
IV - saldo, no último dia útil do ano ou no dia de encerramento, de provisões matemáticas de benefícios a conceder referente a cada plano de benefício de previdência complementar ou a cada plano de seguros de pessoas, discriminando, mês a mês, o total das respectivas movimentações, a crédito e a débito, ocorridas no decorrer do ano, na forma estabelecida no inciso I do caput do art. 15;
V - saldo, no último dia útil do ano ou no dia de encerramento, de cada Fapi, e as correspondentes movimentações, discriminadas mês a mês, a crédito e a débito, ocorridas no decorrer do ano, na forma estabelecida no inciso I do caput do art. 15;
VI - valores de benefícios ou de capitais segurados, acumulados anualmente, mês a mês, pagos sob a forma de pagamento único, ou sob a forma de renda;
VII - lançamentos de transferência entre contas do mesmo titular realizadas entre contas de depósito à vista, ou entre contas de poupança, ou entre contas de depósito à vista e de poupança;
VIII - aquisições de moeda estrangeira;
IX - conversões de moeda estrangeira em moeda nacional;
X - transferências de moeda e de outros valores para o exterior, excluídas as operações de que trata o inciso VIII;
XI - o total dos valores pagos até o último dia do ano, incluindo os valores dos lances que resultaram em contemplação, deduzido dos valores de créditos disponibilizados ao cotista e as correspondentes movimentações, ocorridas no decorrer do ano, discriminadas mês a mês, a crédito e a débito, na forma estabelecida no inciso I do caput do art. 15, por cota de consórcio; e
XII - valor de créditos disponibilizados ao cotista, acumulados anualmente, mês a mês, por cota de consórcio, no decorrer do ano. (BRASIL, 2015c, não paginado, grifo nosso).
Verifica-se, dessa maneira, que a aludida obrigação tributária acessória possui o condão de confirmar e atestar de todas as formas cabíveis e usuais perante o mercado financeiro atual, o seu teor altamente minucioso no sentido de englobar as mais variadas espécies de negócios jurídico-econômicos empenhados pelos contribuintes, usuário final dos serviços prestados pelas instituições financeiras obrigadas a apresentar a e-Financeira, os quais ficam bastante sujeitos a imperatividade do Estado e sua voracidade arrecadatória e fiscalizatória.
A e-Financeira traz à tona ao campo tributário uma excessiva onerosidade aos contribuintes pessoas físicas e jurídicas do Brasil, pois, por intermédio das instituições financeiras, adentra as mais diversificadas negociações e movimentações monetárias daqueles que já arcam com elevada carga tributária, cumprem com múltiplos e complicados outros deveres instrumentais e que movimentam a economia do Estado que tanto insiste em fomentar a distância de boa tratativa para com seu cidadão. É dentro desse contexto que a norma fiscal em apreço apresenta os valores-referências para sua efetiva declaração, observe-se:
Art. 7º. As entidades de que trata o art. 4º estão obrigadas à apresentação das informações relativas às operações financeiras mencionadas nos incisos I, II e VIII a XI do caput do art. 5º, quando o montante global movimentado ou o saldo, em cada mês, por tipo de operação financeira, for superior a:
I - R$ 2.000,00 (dois mil reais), no caso de pessoas físicas; e
II - R$ 6.000,00 (seis mil reais), no caso de pessoas jurídicas.
§ 1º Os limites mencionados no caput deverão ser aplicados de forma agregada para todas as operações financeiras de um mesmo tipo mantidas na mesma instituição financeira.
§ 2º Na hipótese em que seja ultrapassado qualquer um dos limites de que trata o caput, as instituições deverão prestar as informações relativas a todos os saldos anuais e a todos os demais montantes globais movimentados mensalmente, ainda que para estes o somatório mensal seja inferior aos referidos limites.
§ 3º A prestação das informações de que trata este artigo contemplará todos os meses, a partir daquele cujo limite tenha sido atingido, relativo ao período de referência da informação.
§ 4º Em relação às contas do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), de que trata a Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, deverão ser informadas apenas aquelas cujos depósitos anuais sejam superiores a R$ 100.000,00 (cem mil reais). (BRASIL, 2015c, não paginado, grifo nosso).
Logo, consoante propagado pelo dispositivo colacionado acima, tem-se que por essa mais recente norma, as instituições encarregadas de realizar a aludida comunicação a Receita Federal por meio do SPED, mormente aquelas cuja área de atuação é a econômico-financeira, estão compelidas a declarar a administração tributária federal qualquer transação mensal que ultrapasse o montante de R$2.000,00 (dois mil reais), efetuada pelas pessoas físicas, bem como o negócio jurídico monetário que supere os R$6.000,00 (seis mil reais), realizado pelas pessoas jurídicas; desde já para os fatos geradores originados a partir do mês de dezembro de 2015, com apresentação prenunciada para o último dia útil do mês de maio do ano de 2016.
Nesse contexto, a imposição estatal é de certa forma simples e objetiva: fiscalizar a todo custo para arrecadar a qualquer preço. Isso porque o horizonte de alcance do poder fiscalizatório da administração tributária é deveras alargado, uma vez que agora as quantias observadas acima dos valores suso destacados, mediante duras penas e violações aos direitos e garantias dos contribuintes, poderão ser apuradas para confrontação com as declarações prestadas pelos sujeitos passivos da obrigação tributária em momento oportuno.
Por oportuno, cabe aqui sublinhar a forma e o prazo para a entrega da e-Financeira, objeto do artigo 10 da Instrução Normativa nº 1.571/2015, cuja transmissão a Receita Federal do Brasil deverá ocorrer semestralmente até o último dia útil do mês de fevereiro, contendo as informações relativas ao segundo semestre do ano anterior; assim como até o último dia útil do mês de agosto, contendo as informações relativas ao primeiro semestre do ano em curso. A exceção a essa regra restringe-se para os fatos ocorridos entre o dia 1º e o dia 31 de dezembro de 2015, interstício no qual a e-Financeira terá sua entrega ao fisco prorrogada até o último dia útil do mês de maio de 2016, situação que está em corrente andamento no país.
Noutro patamar, urge ressaltar, ainda, que uma das maiores finalidades desse novel dever instrumental estatuído pelo ente tributário federal se baseia em garantir efetiva promoção ao acordo fiscal bilateral firmado entre o Brasil e os Estados Unidos da América, amplamente conhecido como FATCA, depreendido da sigla inglesa Foreign Account Tax Compliance Act, negociação esta que visa concretizar uma cooperação internacional entre as administrações dos dois países no sentido de equalizar uma permuta de dados e informações fiscais de interesse mútuo, de acordo com o disposto no artigo 11 da suscitada Instrução Normativa nº 1.571/2015. Mediante o referido acordo, o Brasil providenciará aos Estados Unidos os elementos das transações financeiras de contribuintes norte-americanos economicamente ativos em solo pátrio, bem como esta última nação fará o mesmo para com a primeira.
A título de complementação, cumpre preponderar que o Estado, enquanto entidade suprema encarregada de gerir a sociedade que o instituiu, no regular desempenho de sua função arrecadatória do tributo, não abandona a ideia “de exaltar o tributo e criar legislação cada vez mais apenadora, no mundo inteiro, para assegurar o cumprimento das obrigações fiscais impostas, sem grande contestação” (MARTINS, 2012, p. 4). É justamente o que se vislumbra no caso brasileiro com a criação da obrigação tributária acessória em comento, visto se tratar de manifestação de grande expressão impositiva na seara da administração tributária. Todavia, certos parâmetros e pressupostos devem ser observados em tais peculiares situações.
Isto posto, devidamente pormenorizado o presente instituto da e-Financeira, é possível frisar que este se trata de um dever instrumental um tanto quanto polêmico e tumultuado perante o ordenamento jurídico brasileiro, sobremaneira à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a qual alicerça o Estado Democrático de Direito brasileiro em princípios e preceitos liberais e sociais altamente imprescindíveis à perpetuação da justiça tributária e cidadã, quais sejam, o direito fundamental de resguardo ao sigilo bancário (artigo 5º, inciso XII), vida privada (artigo 5º, inciso X), segurança jurídica (artigo 5º, caput), devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV) e, ainda, o contraditório e a ampla defesa (artigo 5º, inciso LV).
Assim, por partir-se do pressuposto de que a e-Financeira contraria e infringe os sublinhados ditames constitucionais máximos e intrínsecos a efetivação das garantias e dos direitos fundamentais dos contribuintes brasileiros, volta-se a presente pesquisa em tratar sobre a inconstitucionalidade de tal regulamentação proposta pela Receita Federal do Brasil, o que será mais detidamente abordado adiante.
Inaugura-se nesta seção do presente trabalho, matéria imprescindível para a contraposição do instituto da e-Financeira frente ao ordenamento jurídico brasileiro, especialmente quanto ao direito constitucional em vigência no país. Portanto, cabe a partir de agora preponderar os diversos preceitos jurídicos que não corroboram e não coadunam com a novel obrigação acessória objeto de análise pela corrente pesquisa científica.
Nessa linha de raciocínio, tem-se que o dever instrumental introduzido pela e-Financeira no direito tributário pátrio é sobremaneira controverso e de difícil aceitação pela contemporânea doutrina brasileira, haja vista conferir a administração fiscal federal uma proeminente ampliação de seus poderes e prerrogativas fiscalizatórias com o intuito única e simplesmente arrecadatório, deixando de lado e, ainda pior, infringindo direitos e garantias fundamentais dos cidadãos-contribuintes da República Federativa do Brasil, sob o vago e superficial argumento de controle e combate à sonegação fiscal.
Cabe asseverar, entretanto, que não se pode penalizar o contribuinte de boa-fé do Estado brasileiro, aquele que quita com suas obrigações fiscais (principais e acessórias) de forma regular e nos moldes estabelecidos pela legislação tributária pertinente, amplamente sabedor de sua função cívica aquando do adimplemento de tais deveres para com a sociedade.
Com isso, não é crível o frívolo discurso da Receita Federal do Brasil a favor da imposição da e-Financeira, pois não podem os bons contribuintes (maioria) arcarem com os prejuízos e malefícios eventualmente causados ao tesouro nacional por aqueles contribuintes de má-fé (minoria), tendo seus direitos e garantias vitais aquebrantados por medida fiscal.
Desta feita, o atual tópico abordará as nuances atinentes aos imprescindíveis fundamentos consolidados pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 com o intuito de se fazer observar e respeitar os direitos individuais e coletivos dos contribuintes pátrios face a nova obrigação acessória instaurada pela Receita Federal do Brasil, pelo que será possível atestar se a regulamentação proposta pela Instrução Normativa nº 1.571/2015 é ou não detentora de caráter constitucional e, acima de tudo, legítimo perante a sociedade brasileira.
A título de introito a temática objeto deste tópico, urge desde logo asseverar que a vida privada foi alçada a uma das mais imprescindíveis garantias fundamentais esculpidas pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, com o fim supremo de conferir proteção ao cidadão brasileiro enquanto ser dotado de direitos e prerrogativas mínimas frente ao pátrio Estado Democrático de Direito, em respeito à dignidade humana lhe é intrínseca.
Em meio a esse contexto, a Constituição Federal de 1988 fincou o direito basilar da vida privada como uma de suas cláusulas pétreas, portanto, não passível de mudança ou revogação sem o nascimento de um novo e autêntico poder constituinte originário com o fito de fazer promulgar uma outra Carta Magna da República. Tendo isso em vista, o postulado máximo brasileiro estabeleceu, em seu artigo 5º, inciso X, o mandamento de que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (BRASIL, 2015b, p. 17, grifo nosso). Cristalina é, assim, a importância que denota o referido fundamento jurídico.
Ademais, não se poderia apreender o supracitado dispositivo de forma diversa. Isso porque a vida privada, também consubstanciada no direito pátrio pelo termo privacidade, ostenta um caráter de mínima proteção ao cidadão brasileiro, cuja finalidade maior é a de salvaguardar “um espaço íntimo intransponível por intromissões ilícitas externas [...] [que] envolve todos os demais relacionamentos humanos, inclusive os objetivos, tais como relações comerciais, de trabalho, de estudo etc.” (MORAES, 2014, p. 53-54, grifo nosso).
Sob esse enfoque, tem-se que o presente instituto confere ao ser humano, neste particular, aos nacionais, atributos de liberdades e autonomias privadas, pessoais e particulares do sujeito que se pretende não estarem ao alcance de terceiros sem sua imprescindível permissão, preceito constitucional este que rege e regula todas as relações e tratativas semeadas no meio social, pois todo aquele que denota essa prerrogativa de praticar atos próprios sem a intenção de vê-los acessados ou obtidos por outrem, não pode tê-la por violada indistintamente ou indiscriminadamente sem qualquer justificativa ou motivação para tanto.
“Pelo direito à privacidade, apenas ao titular compete a escolha de divulgar ou não seu conjunto de dados, informações, manifestações e referências individuais, e, no caso de divulgação, decidir quando, como, onde e a quem”. (TAVARES, 2012, p. 675). Em outras palavras, resta cristalina a característica de independência intrínseca a toda pessoa humana detentora de tal garantia fundamental no que se refere a autorregulação de sua vida com a prática de atitudes e comportamentos próprios sem que estes se tornem de conhecimento de terceiros aos quais não a interessam, cabendo a ela, ainda, optar e determinar se, quando e a quem os mencionados atos e informações a ela pertinentes serão propalados.
Nesse diapasão, importa frisar que a vida privada emanada do texto constitucional, carrega em sua esfera nuclear a característica de perfazer preceito norteador do instituto da personalidade humana, pois dela emanam aspectos intimamente conectados ao intelecto do indivíduo na medida em que permite a ele expressar e manifestar sua livre vontade sem a ingerência externa de outras pessoas. Sendo assim, verifica-se que:
A reclusão periódica à vida privada é uma necessidade de todo homem, para a sua própria saúde mental. Além disso, sem privacidade, não há condições propícias para o desenvolvimento livre da personalidade. Estar submetido a constante crivo da observação alheia dificulta o enfrentamento de novos desafios. A exposição diuturna dos nossos erros, dificuldades e fracassos à crítica e à curiosidade permanentes de terceiros, e ao ridículo público mesmo inibiria toda tentativa de autossuperação. Sem a tranquilidade emocional que se pode auferir da privacidade, não há muito menos como o indivíduo se autoavaliar, medir perspectivas e traçar metas. (MENDES; BRANCO, 2014, p. 340, grifo nosso).
Logo, é com base nesse entendimento que a privacidade atinente ao cidadão merece especial resguardo pelo ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que se refere ao âmago de cada indivíduo no que tange a sua liberdade e autonomia enquanto sujeito de direitos ambientado em um Estado Democrático, a partir do que são edificados os pilares de sua personalidade na condição de ser humano, podendo plenamente usufruir de suas faculdades mentais para agir em seu próprio interesse e sob a égide de suas convicções e sentimentos pessoais, sem ser obrigado ou compelido a ter sua vida observada ou inspecionada por outrem.
A vida privada e seus corolários comportam prerrogativas de serem “intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária” (BRASIL, 2014a, p. 156), conforme inteligente previsão do artigo 11 do Código Civil brasileiro, motivo pelo qual merecem salvaguarda e garantia mínima a liberdade e, com isso, a dignidade do cidadão; hábeis a assegurar o desenvolvimento da individualidade corporal e sentimental do sujeito social.
O direito republicano a privacidade constitui, como visto no tópico anterior, preceito basilar no que se refere a vida pessoal do indivíduo contextualizado em um Estado Democrático de Direito, vez que a ele garante o desembaraçado exercício de sua independência perante terceiros, podendo praticar atos cotidianos relativos à sua natureza personalíssima e na direção de seus interesses particulares, sem que os demais devam conhecê-los ou neles interferiram.
Tomando por base o exposto, convém ressaltar a nobre dicção do artigo 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, cuja promulgação se deu em 10 de dezembro de 1948 (assinada pelo Brasil na mesma data), pois traz em seu texto normativo a privacidade do ser humano como direito fundamental a ser protegido pelas nações comprometidas com o referido pacto internacional, atestando que “ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques” (BIBLIOTECA VIRTUAL DE DIREITOS HUMANOS, 1948, não paginado, grifo nosso).
Dessa maneira, vislumbra-se a importante notabilidade conferida a vida privada ou privacidade perante, inclusive, o ordenamento jurídico internacional mediante o que foi convencionado entre os países signatários na Declaração Universal de 1948, documento estrangeiro este que confirma a intangibilidade e inviolabilidade desse máximo direito humano, alicerçado sobre os pilares da liberdade e dignidade do cidadão perante o Estado que o abriga. É, portanto, direito que o indivíduo detém de salvaguardar sua autonomia e independência privadas sem que outros tomem conhecimento de seus atos ou sobre eles queiram intrometer-se sem o expresso consentimento daquele.
A partir da introdução da vida privada como garantia fundamental no ordenamento jurídico pátrio através da Constituição Federal de 1988, conforme analisado alhures, verificou-se a necessidade de sua regulamentação infraconstitucional, o que se efetivou por intermédio do artigo 21 do Código Civil brasileiro, dispositivo este que expõe que “a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providencias necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma” (BRASIL, 2014a, p. 157). Com isso, observa-se a real concretude e aplicação da prerrogativa fundamental propagada pela Carta Magna, na qual o Estado, por meio do poder de jurisdicional conferido ao juiz brasileiro, atua como ente protetor da privacidade, reprimindo qualquer espécie de infringência a esta.
Isso é ainda melhor esclarecido pela doutrina nacional, em prudente e razoável interpretação apregoada no Enunciado de nº 404 da V Jornada de Direito Civil, em referência ao supracitado artigo 21 do Código Civil, o qual de forma exímia estabelece que:
Art. 21. A tutela da privacidade da pessoa humana compreende os controles espacial, contextual e temporal dos próprios dados, sendo necessário seu expresso consentimento para tratamento de informações que versem especialmente o estado de saúde, a condição sexual, a origem racial, ou étnica, as convicções religiosas, filosóficas e políticas. (BRASIL, 2014a, p. 2041, grifo nosso).
À luz da norma colacionada acima, tem-se cristalizado mais uma vez o caráter personalíssimo intrínseco a vida privada de cada indivíduo em si considerado, motivo pelo qual tal pressuposto constitucional e humanitário merece especial amparo perante o Estado brasileiro, não podendo sofrer qualquer limitação ou mácula por parte de outrem, haja vista estar intimamente ligado a liberdade e dignidade do cidadão pátrio, sendo representada, portanto, pelo forte âmago emocional e expressivo do sujeito, referindo-se às suas escolhas, pensamentos e atitudes em meio ao seu contexto social, razão pela qual a privacidade só pode ser excepcionalmente restringida mediante categórica permissão por aquele que a exerce.
Nessa linha de pensamento, resta clara a justificativa e plausibilidade de inadmissão de nenhuma forma de violação a vida privada, a qual “se dá pelo conhecimento de fatos que o cidadão pretendia manter fora do conhecimento dos demais” (BALTAZAR JUNIOR, 2005, p. 28). Ademais, não compete a determinado indivíduo opinar ou decidir sobre a livre manifestação de vontade e deliberação própria desembaraçada de uma outra pessoa, cujo direito de personalidade lhe alberga a mais ilibada prerrogativa de manter os atos e escolhas de sua vida longe da ciência daqueles que sobre ela almejam ingerir-se, sob estrita possibilidade de atribuição de penalidade pecuniária (dano moral) àquele que agir contra esse mandamento.
“Em outras palavras, a esfera privada é condição para a livre estruturação de cada indivíduo em direção à autenticidade, sobretudo nas sociedades modernas, em que prevalece a uniformização moral e intelectual” (BELLOQUE, 2003, p. 21-22). Destarte, a autonomia individual, por ser decorrente do preceito máximo da liberdade, a qual possui estreitos laços com o princípio da dignidade humana, faz brotar o direito a personalidade humana atinente a cada cidadão em particular, desimpedido para gerir sua própria vida sem a intromissão de terceiros e, em especial, da administração pública, incumbida de protegê-los integralmente.
Isto posto, a vida privada, nesse sentir, constitui relevante suporte ao que se pretende defender nesse trabalho, especialmente ao direito basilar de proteção ao sigilo bancário no Brasil, difundido pela Constituição da República de 1988, observa-se que a novel obrigação tributária acessória e-Financeira instituída pela Receita Federal do Brasil, amplamente analisada na seção anterior, emerge no ordenamento jurídico pátrio na contramão de uma das mais zeladas garantias essenciais do ser humano, pois, por imiscuir-se na vida particular do indivíduo, infringe e afronta instantaneamente sua personalidade, dignidade e liberdade, pressupostos estes substanciais a seu pleno desenvolvimento enquanto sujeito de direitos.
Na contemporaneidade do ordenamento jurídico brasileiro, o sigilo bancário ou financeiro perfaz instrumento essencial para a perpetuação do direito à privacidade inerente ao cidadão nacional, cujo instituto fora analisado na subseção anterior, pois conserva sem eu cerne, a característica primordial de zelar e proteger os dados e informações pertinentes a pessoa singularmente considerada, sem que outros deles conheçam ou se apropriem de forma indevida, descabida em contradição ao que determina a norma constitucional e infraconstitucional pátria.
Assim, por portar a característica de direito fundamental intrínseco ao indivíduo brasileiro, alçado a essa categoria pelo artigo 5º, inciso XII da Carta Magna de 1988, o qual dispõe que “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal” (BRASIL, 2015b, p. 17, grifo nosso); merece especial salvaguarda pelo Estado, visto deter o pressuposto de defender a liberdade, a autonomia e a privacidade do povo brasileiro.
Sob esse enfoque constitucional acerca da matéria, tem-se que o sigilo bancário, apregoado pelo texto soberano da república sob a expressão sigilo de dados, a qual pode ser traduzida em confidencialidade de informações particulares (dados pessoais, bancários, financeiros, etc.); possui em sua natureza de imprescindibilidade o aspecto de não poder ser transgredido ou violado, ou seja, o ordenamento jurídico brasileiro não sanciona a hipótese de que o contribuinte pátrio tenha suas informações e dados privados, in casu, transações bancárias e financeiras, acessadas indistintamente e indiscriminadamente por outrem, tanto pelo próprio Estado ou pelos demais indivíduos desconhecidos àquele, salvo mediante reserva de jurisdição, isto é, o mencionado direito vital de resguardo ao sigilo bancário apenas pode ser transpassado na eventualidade de decisão judicial que entenda por sua descaracterização, sempre de forma motivada e em proveito do devido processo legal, o que será melhor abordado oportunamente.
Hodiernamente, o instituto jurídico em comento encontra-se regulamentado pela controversa e largamente discutida Lei Complementar nº 105 de 10 de janeiro de 2001, a qual dispõe sobre o sigilo intrínseco às operações realizadas por intermédio das instituições financeiras. Assim, a aludida legislação assevera, em seu artigo 1º, que “as instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados” (BRASIL, 2015c, p. 762, grifo nosso), ou seja, tais entidades são legalmente obrigadas a salvaguardar os dados relativos as transações bancárias e financeiras efetuadas por aqueles que diretamente necessitam usufruir de seus serviços, pessoas estas que mantêm recíproca relação de confidencialidade, credibilidade e confiança com aquelas.
Nessa toada, analisada a importância do sigilo bancário nos meandros o direito brasileiro, vislumbra-se agora a necessidade de se apresentar sua noção conceitual, primeiramente com base na ilustre dicção abaixo salientada, aduzindo que o sigilo bancário é:
O direito do cliente e de terceiros à manutenção da confidencialidade de seus dados pessoais, inclusive financeiros, cuja revelação pode ou não afetar a privacidade de seu titular, conhecidos por um banco como consequência da relação negocial estabelecida entre este e o cliente, direito esse que se encontra excetuado em hipóteses justificadas. (CARVALHO, M., 2014, p. 23, grifo nosso).
Logo, verifica-se que o instituto do sigilo bancário é condizente com a garantia de proteção que merece ser conferida às informações e comunicações econômico-financeiras depositadas sob a administração de determinada instituição bancária ou financeira pelos usuários de seus serviços, vez que relativas a dados monetários atinentes a negócios e transações pessoais desses indivíduos, que dizem respeito às suas vidas privadas e particulares, pelo que não devem ser indistintamente revelados ou levados a conhecimento de terceiros; tudo em virtude da relação ética e de confiança travada entre os clientes e seus respectivos bancos, salvo a expressa exceção contida no texto constitucional sob a qual se debruçará mais adiante.
Nessa linha de pensamento, o sigilo bancário corresponde a uma autodeterminação financeira do cliente da instituição bancária no que se refere às transações e atos negociais econômicos por si firmados com outras entidades, sob o manto do nobre fundamento basilar da vida provada no país, o qual “atinge não só conta bancária, mas também dados ou outras informações, quer de clientes, quer de terceiros que os conheçam em função do exercício da atividade bancária” (ROQUE, 2008, p. 85).
Com isso, cabe às instituições financeiras estipuladas na legislação competente, atribuir resguardo às informações intrínsecas aos usuários de seus serviços longe do alcance do Estado e demais pessoas estranhas àqueles, sejam elas a título efetivamente econômico como, por exemplo, por meio das transações bancárias efetuadas por estes; bem como relativas a dados confidenciais que se formalizam a partir de negócios jurídicos particulares firmados com terceiros respectivamente abrangidos por tal proteção, pois amplamente conhecedores e diretamente envolvidos na aludida atividade contratual de cunho financeiro.
Dessa forma, o pressuposto central do presente instituto é o de que “às instituições financeiras e aos seus funcionários cabe o cumprimento da prestação de não revelar os dados colhidos em razão de sua atividade (espécie de obrigação de não fazer)” (BELLOQUE, 2003, p. 66, grifo nosso). Em outras palavras, os bancos e as entidades afins devem garantir confidencialidade às informações a que tenham aceso em decorrência das atividades por eles desenvolvidas em meio ao sistema financeiro nacional previamente confiadas por seus clientes, haja vista dizerem respeito única e exclusivamente a estes, pelo que devem ser deixadas fora da esfera de ingerência do ente estatal e terceiros alheios ao conhecimento do cliente bancário, o que configura expressa obrigação de não fazer por essas instituições, ou seja, caracteriza dever jurídico de não revelar (sinônimo) os dados financeiros daqueles que usam de seus serviços.
Com base no exposto, o sigilo bancário constitui, então, imprescindível mecanismo de salvaguarda da liberdade e da privacidade do cidadão brasileiro, visto assumir em seu conteúdo protetivo a função de balizador das informações técnicas e dados financeiros dos usuários dos serviços ofertados pelas instituições financeiras frente ao Estado e terceiros, bem como, por outro lado, cumpridor do ordenamento jurídico pátrio, vez que deve ser afastado aquando da necessidade dessas informações anteriormente protegidas serem reveladas àquelas entidades fiscalizadoras e averiguadoras de irregularidades em decorrência do devido processo legal, conforme determina a Lei Complementar nº 105/2001 e a Constituição da República Federativa do Brasil, o que será analisado no tópico seguinte do presente trabalho.
Analisada a fase introdutória do instituto em comento, a partir de agora há de se preponderar a eventualidade da quebra do sigilo bancário possibilitada pelo ordenamento jurídico brasileiro, todavia, alguns preceitos devem ser estritamente observados para que isso se concretize, bem como cabe sublinhar que o referido ato possui objetivo altamente específico, motivo pelo qual só é passível de materialização em circunstâncias sobremaneira extraordinárias, vez que se trata de direito fundamental atinente ao contribuinte brasileiro.
Sob esse ponto de vista, tem-se que mesmo se tratando de direito constitucional e de cunho essencial à natureza de prerrogativas do cidadão pátrio, o sigilo bancário, sob o manto do direito de proteção da vida privada do indivíduo, não é em sua totalidade absoluto ou intransponível. Contudo, para que tal pressuposto básico seja eventualmente afastado e tenha sua esfera de substancialidade afetada por situação alheia, porém, necessária; deve-se obedecer ao que prevê a Carta Magna de 1988 e a Lei Complementar nº 105/2001.
Assim, conforme ressaltado alhures, a dicção protetiva e fundamental do artigo 5º, inciso XII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 expressamente dispõe ser “inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal” (BRASIL, 2015b, p. 17, grifo nosso). Com isso, pode-se constatar que o direito ao sigilo bancário realmente não denota caráter de inafastabilidade, a qual pode ser obtida mediante prévia e estrita determinação do Poder Judiciário nesse sentido, cujo fim é o da garantia do bem da vida soberano de justiça e da perpetuação do Estado Democrático de Direito.
“Ora, havendo fundada suspeita da ocorrência de ilícitos, o Poder Judiciário pode autorizar a quebra do sigilo bancário, [...] por meio de procedimento no qual estejam assegurados o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal” (PACHECO, 2013, p. 167-168). Dessa maneira, resta plenamente lícito o afastamento do sigilo bancário no direito brasileiro, desde que realizado por autoridade judiciária competente e com a devida garantia de manutenção dos preceitos constitucionais essenciais ao contribuinte.
Por seu turno, a Lei Complementar nº 105/2001 igualmente aborda essa questão da quebra do sigilo financeiro com certa sintonia e consonância com a estipulação constitucional sobre a matéria, de acordo com o que se pode observar de seus seguintes dispositivos, in verbis:
Art. 1º. As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados.
§ 3º Não constitui violação do dever de sigilo:
IV - a comunicação, às autoridades competentes, da prática de ilícitos penais ou administrativos, abrangendo o fornecimento de informações sobre operações que envolvam recursos provenientes de qualquer prática criminosa;
V - a revelação de informações sigilosas com o consentimento expresso dos interessados;
[...]
§ 4º A quebra de sigilo poderá ser decretada, quando necessária para apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial, e especialmente nos seguintes crimes:
I - de terrorismo;
II - de tráfico ilícito de substancias entorpecentes ou drogas afins;
III - de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado a sua produção;
IV - de extorsão mediante sequestro;
V - contra o sistema financeiro nacional;
VI - contra a Administração Pública;
VII - contra a ordem tributária ou ocultação de bens, direitos e valores;
IX - praticado por organização criminosa.
[...]
Art. 3º. Serão prestadas pelo Banco Central do Brasil, pela Comissão de Valores Mobiliários e pelas instituições financeiras as informações ordenadas pelo Poder Judiciário, preservado o seu caráter sigiloso mediante acesso restrito às partes, que delas não poderão servir-se para fins estranhos à lide. (BRASIL, 2015c, p. 762-764, grifo nosso).
Consoante o que se viabiliza extrair do § 3º, inciso V, do artigo 1º da suso colacionada legislação infraconstitucional, é possível afirmar que configura excludente de infringência do sigilo bancário a situação em que aqueles interessados em determinada relação jurídica, como no caso da tributária, entre fisco e contribuinte, este último abdique dessa sua prerrogativa fundamental por expresso e sob sua livre manifestação de vontade, sem interferências alheias, pela liberação de seus dados e informações financeiras diretamente a administração tributária, sem a prévia apreciação da questão pelo Poder Judiciário.
Não obstante, não é o que ocorre, por exemplo, nas cláusulas de contratos de adesão elaborados por diversas instituições, em que o cidadão/contratante assina o referido acordo de vontades em virtude de patente necessidade do serviço prestado pela empresa/contratada, termo no qual constam itens vinculativos que fazem com que o indivíduo decline ou renuncie ao imprescindível direito de resguardo ao sigilo de seus dados e informações, o que caracteriza cristalina violação, pelo que tais cláusulas são altamente suscetíveis a futuras nulidades.
De outra senda, a partir do que se verifica do artigo 1º, § 3º, inciso IV e § 4º, da Lei Complementar nº 105/2001, é clarividente a natureza de excepcionalidade e extraordinariedade que denota a medida de quebra do sigilo financeiro do contribuinte brasileiro, haja vista que está intimamente atrelada a situações de anormalidade social, ou seja, ligada a práticas de ilicitudes e criminalidades por parte de determinados indivíduos ou organizações, desde que, acima de tudo, seja respeitada a reserva de jurisdição e o Poder Judiciário se manifeste ou aprecie o transcurso da questão da ruptura do sigilo mediante a instauração do devido processo legal. Nesse sentido, importa ressaltar que “ao limitar o sigilo bancário, o Estado busca facilitar a atuação da justiça para apurar os crimes e possibilitar ao fisco uma atuação efetiva de descobrir a riqueza que se oculta, escapando da tributação” (ROQUE, 2008, p. 98).
No que se refere à disposição apregoada pelo artigo 3º da lei complementar em apreço, vislumbra-se que para que possam ser devidamente manuseadas pelas entidades componentes com sistema financeiro nacional e repassadas a administração tributária, as informações e os dados bancários pertinentes aos contribuintes, constantes do banco de registros daquelas, especialmente no que se refere às instituições financeiras; devem obrigatoriamente ser previamente avaliadas e abalizadas pelo órgão judiciário brasileiro competente, cujo sigilo financeiro será sobremaneira limitado às partes que compõem a lide, isto é, a questão estará adstrita e vinculada ao processo judicial e não poderá ser utilizada para finalidade diversa que não aquela oportunamente autorizada pelo juízo.
É justamente por esse motivo que se ratifica a importância da justiça pátria aquando da análise da questão, pois “para autorizar a excepcional quebra do sigilo bancário, o Poder Judiciário faz um juízo de valor sobre os interesses envolvidos e a razoabilidade da media, diante das circunstâncias fáticas e jurídicas envolvidas no caso concreto” (PACHECO, 2013, p. 168), vez se tratar de instituição dotada de ampla imparcialidade e notória competência técnico-jurídica para decidir sobre o delicado problema ora debatido, pois se refere a um dos mais básicos direitos do contribuinte do Estado brasileiro.
Noutro vértice, merecem destaque nesse momento, os dois dispositivos que destoam por inteiro do restante da Lei Complementar nº 105/2001 (artigos 5º e 6º), uma vez que expressamente admitem a quebra do sigilo bancário dos contribuintes junto às instituições financeiras diretamente pelo ente tributário federal, qual seja, a Receita Federal do Brasil; inclusive, sem a necessidade de observar o devido processo legal/judicial, a garantia do contraditório e da ampla defesa, bem como a reserva de jurisdição conferida ao Poder Judiciário no que tange à matéria. Veja-se o teor dos artigos:
Art. 5º. O Poder Executivo disciplinará, inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor, os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administração tributária da União, as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços.
§ 1o Consideram-se operações financeiras, para os efeitos deste artigo:
I - depósitos à vista e a prazo, inclusive em conta de poupança;
II - pagamentos efetuados em moeda corrente ou em cheques;
III - emissão de ordens de crédito ou documentos assemelhados;
IV - resgates em contas de depósitos à vista ou a prazo, inclusive de poupança;
VI - descontos de duplicatas, notas promissórias e outros títulos de crédito;
VII - aquisições e vendas de títulos de renda fixa ou variável;
VIII - aplicações em fundos de investimentos;
IX - aquisições de moeda estrangeira;
X - conversões de moeda estrangeira em moeda nacional;
XI - transferências de moeda e outros valores para o exterior;
II - operações com ouro, ativo financeiro;
XIII - operações com cartão de crédito;
XIV - operações de arrendamento mercantil; e
XV - quaisquer outras operações de natureza semelhante que venham a ser autorizadas pelo Banco Central do Brasil, Comissão de Valores Mobiliários ou outro órgão competente.
Art. 6º. As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente. (BRASIL, 2015c, p. 764-765, grifo nosso).
Resta cristalino, então, que ambas as estipulações colacionadas acima caminham na contramão de todos os outros normativos constantes da mencionada lei, comentados em momento anterior. Iniciando a análise pelo artigo 5º, cumpre ressaltar que esta é a norma que ampara por completo a Instrução Normativa nº 1.571/2015 editada pela Receita Federal do Brasil, amplamente conhecida neste trabalho como regra instituidora da e-Financeira, obrigação tributária acessória que viabiliza com que o fisco federal transpasse o sigilo financeiro de seus contribuintes perante as instituições bancárias a título eminentemente de voracidade arrecadatória e presunção de sonegação fiscal por parte do titular do direito à privacidade. Percebe-se, outrossim, que as operações financeiras elencadas no rol do supracitado artigo 5º da Lei Complementar nº 105/2001, englobam as mesmas e, inclusive, transações bancárias constantes do artigo 5º da atual e polêmica Instrução Normativa nº 1.571/2015.
Nos moldes do salientado dispositivo, as instituições financeiras haverão de prestar as informações e dados relativos a transações e movimentações bancárias dos usuários de seus serviços (contribuintes sob o ponto de vista da administração tributária), de forma automática e imediata, desconsiderando o direito fundamental de resguardo do sigilo bancário.
Destarte, com base no teor do artigo 6º da Lei Complementar nº 105/2001, essas informações serão levadas ao conhecimento do fisco sem a necessidade de instauração de processo judicial a fim de que o Poder Judiciário se manifeste sobre a questão e autorize ou não a quebra do sigilo financeiro do contribuinte, situação esta que configura estrito autoritarismo por parte do Estado brasileiro, visto atentar contra os mais nobre preceitos fundamentais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa e da garantia da vida privada do cidadão. Para a Receita Federal, basta apenas a existência singelo procedimento administrativo ou fiscal em curso, nos quais “a quebra do sigilo bancário é efetuada pelo mesmo órgão que investiga e acusa [...], que não tem o dever de imparcialidade” (ROQUE, 2008, p. 168).
Assim, “em se cuidando da preservação da vida privada, a ponderação [sobre a quebra do sigilo bancário] se dará, usualmente, com interesses coletivos, como o direito à informação e interesse coletivo na arrecadação tributária e na apuração de fatos ilícitos” (BALTAZAR JUNIOR, 2005, p. 90). Em outras palavras, há de existir a quebra do sigilo financeiro de determinado indivíduo aquando da constatação de prática de eventuais crimes ou ilícitos tributários, opinião com a qual coaduna a presente pesquisa, entretanto, tão somente nessas situações delituosas e após devida apreciação do Judiciário acerca da questão, com fiel obediência ao devido processo legal e ao contraditório e a ampla defesa, uma vez que apenas nessas condições se formaliza o caráter imparcial que o caso demanda, consoante apregoa a Constituição Federal de 1988 e a Lei Complementar nº 105/2001, em seus artigos correspondentes ao mandamento superior da república.
Não obstante, não é isso o que se depreende da intenção traçada pela administração tributária federal com a instituição da e-Financeira, haja vista que, através desta medida, poderá ter amplo e irrestrito acesso às informações sobre transações financeiras dos contribuintes sem ao menos que estes anuam ou permitam tal ingerência por parte do fisco em suas vidas privadas e negócios jurídicos particulares, bem como, ainda, sem que saibam que estão sendo eventualmente investigados ou fiscalizados pela Receita Federal do Brasil. Agir na surdina ou na obscuridade, sem que aquele de direito tenha ciência desse fato, é, no mínimo, injusto, inseguro e desarrazoado por parte de quem realiza tal ato. Não é crível que tal atitude fazendária persista em meio ao ordenamento jurídico brasileiro, largamente estruturado sob os ditames constitucionais essenciais de resguardo ao sigilo bancário, garantia do devido processo legal, efetivação do contraditório e da ampla defesa, proteção da vida privada e da segurança jurídica.
Por seu turno, em defesa da tese fazendária, a administração tributária federal brasileira sustenta a posição de que não há qualquer espécie de violação ou infringência ao direito de resguardo do sigilo bancário e da vida privada dos contribuintes, haja vista que estes já prestam as informações relativas a seus patrimônios e transações financeiras na declaração anual do Imposto de Renda ao fisco federal, motivo pelo qual deve ser mantida a medida fiscal de acesso automático e imediato aos dados e negócios jurídicos bancários daqueles, prescindindo de decisão judicial a respeito da matéria e sem que tala ato configure quebra de sigilo. Veja-se:
[...] não parece consistente o pensamento de que não há afronta ao direito à intimidade – sendo desnecessária qualquer autorização judicial – quando a Administração Tributária conhece o patrimônio, a renda e as atividades econômicas do contribuinte por meio da sua declaração anual e de outras declarações de caráter financeiro, mas que, por outro lado, há grave lesão a esse direito constitucional – sendo imprescindível a intervenção judicial prévia – quando o Fisco conhece esse mesmo patrimônio, renda e atividades econômicas por meio de documentos em posse das instituições financeiras. (LEAL, 2013, p. 42).
Em que pese o esforço argumentativo dos defensores da Receita Federal do Brasil, este não merece prosperar. Isso porque, aquando da efetivação da referida medida denominada pela administração tributária de “transferência do sigilo bancário para o sigilo fiscal” (aduzem que as informações dos contribuintes obtidas junto às instituições financeiras serão protegidas de acesso externo ou alheio em virtude do sigilo fiscal), há sim clarividente ruptura do direito constitucional de salvaguarda do sigilo de dados e da privacidade do contribuinte, uma vez que não fora este, no uso de sua livre e desembaraçada manifestação de vontade, quem espontaneamente cedeu tais dados a administração tributária federal, mas sim teve sua autonomia e sua vida privada invadidas sem sua aquiescência ou mesmo autorização para tanto.
Igualmente superficial e frágil a alegação do fisco federal de que por já conhecer da renda, patrimônio e finanças dos contribuintes brasileiros, não há problema em obter, por intermédio das instituições bancárias os dados e informações atinentes àqueles para fins de averiguação, investigação e contraposição da declaração por eles prestada e das eventuais reais informações não declaradas, incompatíveis ou insuficientes à satisfação do crédito tributário; uma vez que já as possuem. Contudo, a Receita Federal incorre desrespeito e afronta a critérios fundamentais constitucionalmente consagrados com o fito de assegurar a harmonia e equilíbrio no Estado Democrático de Direito, tais como, o devido processo legal, o contraditório e ampla defesa, bem como a segurança jurídica; garantidores da justiça fiscal e social.
Diante do exposto acima, não resta outra alternativa que não pugnar pela inconstitucionalidade da Instrução Normativa nº 1.571/2015 editada pela Receita Federal do Brasil, edificadora da obrigação tributária acessória e-Financeira, visto infringir de forma cabal os princípios constitucionais pátrios e figurar como medida contraditória à legislação infraconstitucional, e igualmente pelo que será aduzido nos tópicos seguintes.
Compete aos entes federativos de todos os níveis e esferas de poder, instituir tributos, bem como aplicar e gerir as regras e normas a eles atinentes, para que possam ser exequíveis e efetivos no mundo jurídico, situação esta que engloba tanto o crédito tributário em si (objeto da tributação), como também as obrigações acessórias que os compõem com o fito de torná-los viáveis de cumprimento pelos contribuintes e para fins fiscalizatórios. Ocorre, todavia, que toda essa logística jurídica deve obedecer a certos requisitos e fundamentos constitucionalmente assegurados a qualquer cidadão brasileiro, como é o caso do princípio da segurança jurídica. Assim, impera ressaltar, então, que “segurança é a qualidade daquilo que está livre de perigo, livre de risco, protegido, acautelado, garantido, do que se pode ter certeza ou, ainda, daquilo me que se pode ter confiança, convicção” (PAULSEN, 2014b, p. 80).
Sob essa ótica, vislumbra-se o fato de que a amplitude do ordenamento jurídico brasileiro, especialmente, in casu, no que se refere ao pátrio Sistema Constitucional Tributário, este deve sempre coadunar e estreitar laços com o preceito maior da segurança jurídica, com a finalidade de conferir zelo e respeito às liberdades fundamentais dos cidadãos, in verbis:
Numa análise baseada na consagração da segurança jurídica de princípios fundamentais, o direito constitucional brasileiro traduz-se no mais expressivo compromisso com a efetividade de um Estado Democrático de Direito em matéria tributária que se tem notícia. [...] Sua construção postula garantia de certeza do direito, de confiança legítima e de estabilidade sistêmica, ao longo de toda a aplicabilidade das competências tributárias, nos limites dos direitos e liberdades fundamentais (TORRES, H., 2011, p. 337).
Assim, a partir do ideal colacionado acima, insta salientar que é cristalina a inarredável imprescindibilidade de efetivação do princípio constitucional da segurança jurídica perante o direito brasileiro, haja vista que tal norma basilar figura como mecanismo de garantia de harmonia, estabilidade e credulidade entre as instituições que compõem o mencionado Sistema Constitucional Tributário e o contribuinte pátrio, indivíduo este ao qual o preceito em comento certifica ampla salvaguarda às suas prerrogativas essenciais de liberdade e autonomia para gerir sua vida, pensamentos e comportamentos próprios, todos abalizados pelo atual ordenamento.
Traçadas essas premissas introdutórias, cumpre agora destacar que a segurança jurídica é prerrogativa tão essencial perante o direito brasileiro que, além de figurar como cláusula pétrea na qualidade de garantia fundamental do contribuinte pátrio, constante do artigo 5º, caput, da Constituição Federal de 1988, restou igualmente cristalizada no Preâmbulo do referido texto superior como uma finalidade precípua a ser buscada e alcançada pelo Estado Democrático de Direito brasileiro, as quais seguem realçadas abaixo:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia nacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
[...]
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes. (BRASIL, 2015b, p. 15-16, grifo nosso).
Nessa linha de raciocínio, verifica-se que o preceito em comento se traduz em honroso pressuposto intrínseco a perpetuação do livre e desembaraçado exercício de direitos individuais e sociais perante o ordenamento jurídico brasileiro, haja vista constituir, ainda, valor supremo a ser explorado em uma sociedade cujos fundamentos devem ser pautados pela fraternidade e harmonia. Com isso, é possível afirmar, então, que “a segurança jurídica significa sobretudo segurança dos direitos fundamentais” (TORRES, R., 2005, p. 3), uma vez se tratar de princípio constitucional revestido da mais alta preponderância de salvaguarda de garantias cívicas que irradiam e vinculam todas as normas que compõem o sistema constitucional tributário pátrio, o que denota sua incólume natureza de sobreprincípio, aos moldes da Carta Magna de 1988, fator este apto a afastá-lo de qualquer espécie de violação ou transgressão.
Portanto, em outras palavras, “[...] se os princípios devem ser tidos como invioláveis, com muito mais razão o são os sobreprincípios, inclusive o da segurança jurídica tributária, por encimar diversos princípios explícitos e implícitos que formam o ‘Estatuto do Contribuinte’ [...]” (MATTOS, 2004, p. 34). Logo, o mencionado preceito da segurança jurídica, especialmente no que tange à esfera tributária do direito nacional, deve ser mantido e preservado face a ingerências e interferências externas por parte da administração tributária, haja vista constituir alicerce fortalecedor e amplificador das demais prerrogativas fiscais fundamentais atinentes aos contribuintes brasileiros que os resguardam da atuação estatal.
“Deste modo, incumbe ao Estado zelar para que todos não só tenham uma proteção eficaz dos seus direitos como possam prever, em alto grau, as consequências jurídicas dos comportamentos que adotarem” (CARRAZZA, 2015, p. 482). Com isso, tem-se que a segurança jurídica pode ser caracterizada como mecanismo através do qual o ente administrativo-fiscal faz-se constitucionalmente vinculado a prover ao meio social, medidas e instrumentos hábeis a garantir a conservação das prerrogativas vitais de seus contribuintes, visto referir-se a efetiva ciência e a confiança/firmeza dos atos e comportamentos jurídico-tributários por eles praticados em suas relações interpessoais e com o próprio Estado, conferindo-lhes liberdade a fim de albergarem credulidade quanto àquilo que entendem por certo ou errado.
Em se tratando da segurança jurídica perante a questão do sigilo bancário (objeto do presente trabalho abordado no tópico anterior) é “inadmissível que o agente fiscal abra aquilo que o legislador, atento aos ditames constitucionais, cuidadosamente restringiu. Afinal, o afã arrecadatório absolutamente não legitima o arbítrio” (CARRAZZA, 2015, p. 485-486, grifo do autor). Elucidando o ora colacionado, cabe realçar que não é passível de transgressão ou sobreposição arbitrária o preceito que fora constitucionalmente alçado a categoria de direitos e garantias fundamentais do cidadão brasileiro, in casu, o sigilo bancário, em virtude de ser extensivamente protegido pelo sobreprincípio da segurança jurídica; com o mero fito de atender a voracidade de arrecadar do fisco nacional em claro desrespeito à disposição da Carta Maior.
“As restrições aos direitos fundamentais devem necessariamente preservar seu núcleo essencial, ou seja, não podem anular esse direito, sua essência” (MEYER-PFLUG; NEVES, 2012, p. 48). Destarte, em relação a segurança jurídica como preceito basilar previamente necessário à manutenção da prerrogativa fundamental de salvaguarda do sigilo bancário do contribuinte, temática objeto da corrente pesquisa, cabe salientar que aquando da necessidade de qualquer espécie de limitação a esse direito essencial do indivíduo, como no caso da quebra do sigilo bancário mediante autorização judicial nesse sentido, o direito vital protegido por este princípio não deixa de existir ou sucumbe perante o ordenamento jurídico pátrio, pelo contrário, apenas é excepcionalmente transpassado com observância a outras garantias substanciais, tudo em decorrência do postulado maior da segurança intrínseca ao cidadão brasileiro.
Com base nestas palavras e a título exemplificativo, não é prudente que se deixe surgir nova afronta ao princípio da segurança jurídica no âmbito tributário através da implementação da e-Financeira pelo ente fiscal federal no país, assim como ocorreu com a antiga Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), cuja finalidade precípua era a de financiar e custear a área social da saúde no Brasil, entretanto, desvios de finalidade dos valores arrecadados pelo fisco há época ocorreram (a receita tributária fora implementada em projetos outros que não os voltados a seara da saúde), situação esta que acarretou “induvidoso desrespeito ao postulado da segurança jurídica, pois essa mudança inopinada das regras no meio do ciclo existencial da questionada CPMF representa uma verdadeira burla ao contribuinte” (JARDIM, 2015, p. 135). Não se pode permitir que o contribuinte seja penalizado novamente na história do Brasil com tamanha injustiça fiscal, que infringe suas garantias fundamentais.
Desta feita, não há como se acatar a viabilidade de instituição da novel obrigação acessória e-Financeira pela Receita Federal do Brasil (delineada alhures) no ordenamento jurídico vigente, uma vez que se trata de medida fiscal notoriamente atentatória ao preceito superior da segurança jurídica do contribuinte brasileiro de boa-fé e idôneo, o qual não merece ter sua vida privada violada pela prática de ilícitos fiscais por aqueles poucos de má-fé. Assim, célebre é a frase proferida por ilustre jurista, de que as “[...] desconfianças não têm nenhum valor probatório, sob pena de todos passarem a viver sob o guante da insegurança e da incerteza” (CARRAZZA, 2015, p. 562). Tal é o objetivo do fisco com a e-Financeira: acessar os dados financeiros dos contribuintes mediante violação de seus direitos por tê-los como desonestos.
Aborda-se neste tópico um dos preceitos da mais alta valia constitucional para o direito brasileiro amplamente considerado, especialmente para robustecer a tese defendida no presente trabalho, visto portar em seu cerne a característica de balizador e realizador das tão almejadas justiças social e tributária, na medida em que resguarda sob o mais nobre manto os demais direitos e garantias fundamentais do cidadão e do contribuinte pátrio através da instituição de procedimentos, ritos e mecanismos judiciais aptos a conferir segurança jurídica ao sujeito passivo da relação jurídico-tributária no país, consideravelmente mais vulnerável nessa ocasião.
É de bom alvitre realçar que o princípio do devido processo legal é abordado no presente trabalho sob o seu enfoque estritamente judicial, uma vez que é o regular procedimento instaurado mediante Tribunal de Justiça integrante do Poder Judiciário, competente para apreciação de matérias tributárias, que atribui efetiva imparcialidade e objetividade no trato das peculiares e sinuosas questões jurídico-fiscais que envolvem a administração tributária e o contribuinte brasileiro, pois, por outro lado, o processo administrativo tributário é de certa forma tendencioso e parcial ao pleito do fisco, na medida em que, nesse caso, a autoridade que fiscaliza, autua e sanciona é a mesma que julga e decide as mencionadas situações que envolvem o crédito tributário, sempre a favor e em proveito da finalidade arrecadatória do Estado, vulnerando-se o contribuinte; motivos estes pelos quais não se aborda ou se destrincha, neste tópico, esta última modalidade de processo tramitado perante a esfera administrativa.
Pois bem, igualmente alçado a categoria de garantia fundamental imprescindível para a manutenção de equidade e justiça fiscal entre a administração tributária e seu administrado, resta efetivamente consolidado sob essa condição no artigo 5º, inciso LIV da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, dispositivo este que ilustra o fato de que “ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (BRASIL, 2015b, p. 20, grifo nosso). Dessa maneira, verifica-se que para que qualquer indivíduo tenha por restringido o direito de usufruir de sua autonomia e livre manifestação de vontade, bem como tenha seu patrimônio delimitado por outrem, faz-se indiscutivelmente necessária a instauração de regular procedimento legal para tanto, composto pela tríade processual formada pelo Estado-juiz, parte autora e parte ré, com observância a estritos ditames legais. Tal fato não poderia ser compreendido de forma diversa, uma vez que a Constituição Federal de 1988 amplamente protege a liberdade e a propriedade/patrimônio do cidadão brasileiro, preceitos basilares estes consubstanciados no artigo 5º, caput e inciso XXII do referido postulado maior.
Antes mesmo de adentrar ao ordenamento jurídico pátrio por meio da Constituição da República Federativa do Brasil, o princípio do devido processo legal é sobremaneira tido como um direito intrínseco a todo ser humano e indispensável para a proteção de todas as demais garantias fundamentais do indivíduo, o qual se encontra concretizado no § 1º do artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, dispositivo este que de forma cristalina prevê que “toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa” (BIBLIOTECA VIRTUAL DE DIREITOS HUMANOS, 1948, não paginado, grifo nosso). Assim, trazendo a referida regra internacional humanitária para o âmbito de circunscrição do direito tributário brasileiro, há de se ressaltar que ao contribuinte nacional deve ser certificada a prerrogativa de poder usufruir de mecanismos legais e estritamente formais amparados pela legislação vigente, com a finalidade maior de fazer valer o ideário de justiça apregoado pela Carta Magna, mediante salvaguarda dos demais direitos essenciais atinentes àquele frente à administração fiscal.
Sob essa ótica, observa-se o seguinte fato acerca do princípio em comento, in verbis:
O devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade, quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (direito a defesa técnica, à publicidade do processo, à citação, de produção ampla de provas, de ser processado e julgado pelo juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal). (MORAES, 2014, p. 110, grifo nosso).
À luz do exposto acima, depreende-se que o preceito do devido processo legal é medida constitucional voltada a satisfazer a plenitude dos direitos sociais e econômicos do contribuinte brasileiro, tanto a título subjetivo quanto objetivo, ou seja, trata-se de mecanismo jurídico firmado em conjunto com o Estado, através do Poder Judiciário, especificamente mediante apreciação das matérias tributárias por magistrado competente; cuja finalidade é a de viabilizar a consecução de aspectos procedimentais e instrumentais, tais como, a defesa abalizada aos ditames legais vigentes, a transparência e o desembaraçado acesso ao processo, a possibilidade de regular manifestação ao objeto da demanda fiscal pelo sujeito passivo, da larga realização e obtenção de provas e documentos pelo contribuinte face a administração tributária, etc.; todos institutos hábeis a melhor dizer o direito e efetivar a justiça perante o caso concreto.
Outrossim, insta salientar que “o devido processo legal assume uma amplitude inigualável e um significado ímpar como postulado que traduz uma série de garantias hoje devidamente especificadas e especializadas nas várias ordens jurídicas” (MENDES; BRANCO, 2014, p. 635). Portanto, é possível observar, a partir da ideia central disseminada pelo princípio do devido processo legal, que este pressuposto encadeia e escalona toda uma estrutura procedimental jurídica voltada a zelar pela salvaguarda de diversas garantias intrínsecas ao contribuinte, hodiernamente cada vez mais técnica e legalmente apuradas.
Em outras palavras, o devido processo legal possui o condão nuclear de fazer valer as prerrogativas do sujeito passivo da relação tributária por intermédio de aparatos judiciais com características singulares e específicas aptas a conferir regular ciência e conhecimento ao contribuinte a fim de que se manifeste sobre as alegações fiscais disferidas contra si e exercite seu direito de defesa em meio a instrumento isento e imparcial hábil a delinear e, por conseguinte, desvendar a verdade material tributária atinente a cada caso concreto em particular, através da ampla averiguação dos fatos e das provas pertinentes, por medida de justiça fiscal. Com isso, pode-se inferir que o preceito em análise “[...] significa a garantia concedida à parte processual para utilizar-se da plenitude dos meios jurídicos existentes [...], [com base na] necessidade de observar o critério da proporcionalidade, resguardando a vida, a liberdade e a propriedade” (TAVARES, 2012, p. 741).
Por outro lado, há de se ressaltar um grande corolário do princípio do devido processo legal, igualmente apregoado pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XXXV, qual seja, o amplamente conhecido direito à jurisdição ou também como reserva constitucional de jurisdição, preceito este que estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (BRASIL, 2015b, p. 19). Logo, por direito à jurisdição entende-se a garantia superior derivada do devido processo legal, por meio da qual são assegurados diversos direitos do cidadão brasileiro a partir do conhecimento de determinada questão que afronta prerrogativas daquele pelo Poder Judiciário, órgão jurisdicional competente para apreciar tais demandas e decidi-las com embasamento em regular processo instaurado com o intuito maior de aplicar e dizer o direito, ou seja, concretizar no caso concreto a garantia constitucional ou legal do contribuinte, em especial.
“Realmente, de nada valeriam os direitos, todos eles, se não houvesse a garantia da jurisdição. A garantia de que o Estado estará presente para solucionar os conflitos, que são invevitáveis na vida em sociedade” (MACHADO, 2015, p. 476). É essa justamente a finalidade precípua da reserva constitucional de jurisdição, a de abalizar e equalizar os conflitos jurídicos que hoje são cada vez mais presentes, principalmente quando se refere àqueles envoltos pela delicada relação existente entre a administração tributária e seu contribuinte, pois na maioria das vezes são controversos e tendenciosos ao exclusivo ponto de vista do fisco. Portanto, é nesse contexto que exsurge o papel fundamental do Poder Judiciário defendido pela Constituição Federal de 1988, o de fazer valer os direitos e as garantias fundamentais de seus cidadãos/contribuintes face à eventuais arbitrariedades praticadas pela administração pública/tributária brasileira.
É com base nesse entendimento que se pode afirmar que “a cláusula de reserva de jurisdição consiste em confirmar ao âmbito do Poder Judiciário a prática de certos atos que impliquem restrição a direitos individuais especialmente protegidos” (MENDES; BRANCO, 2014, p. 1083). Noutro sentido, o direito essencial à reserva de jurisdição apregoado pela Carta Magna de 1988 possui o intento de conferir máxima proteção a prerrogativas do cidadão brasileiro que são tidas como cláusulas pétreas perante todo o ordenamento vigente, de maneira a limitar tais garantias tão somente mediante prévia apreciação e posterior decisão sobre a matéria em debate pelo Poder Judiciário, entidade protetora e aplicadora da legislação no país.
Desta feita, é com base nesse ideário que se depreende que a novel obrigação tributária acessória e-Financeira elaborada pela Receita Federal do Brasil não encontrar respaldo no sistema constitucional tributário brasileiro, uma vez que ao transpassar o dever de resguardo do sigilo bancário do contribuinte, adentrando e se imiscuindo na vida privada deste, bem como, por conseguinte, violando seu intrínseco postulado de segurança jurídica; o fisco federal infringe prerrogativas essenciais à salutar perpetuação da vida em sociedade pelo cidadão pátrio, amplamente asseguradas pela ordem maior vigente.
Não é crível, portanto, que um mero procedimento administrativo conduzido por técnicos e analistas fiscais (defendido pela Receita Federal como medida suficientemente necessária a defesa do contribuinte aquando da instituição da mencionada obrigação acessória), possua a nobre e imprescindível imparcialidade exprimida por um juiz de direito togado e com respectiva competência jurisdicional para a regular apreciação e julgamento de matéria jurídico-tributária, uma vez que, no primeiro caso, a mesma autoridade pública que fiscaliza, autua e julga é única e exclusivamente a administração tributária, notoriamente parcial e tendenciosa à função arrecadatória e impositiva do Estado. Tal motivo tão somente enseja a retirada da e-Financeira do sistema jurídico brasileiro, haja vista que a unilateral posição do fisco não substitui ou destitui o devido processo legal e o direito à jurisdição, garantidos ao contribuinte.
No que se refere a temática a ser analisada no corrente tópico, urge preponderar que o alicerce constitucional do contraditório e ampla defesa constitui consagrado mecanismo de igualdade e justiças social e fiscal no âmbito do direito brasileiro, visto conferir salvaguarda ao contribuinte no que tange às suas mais elementares prerrogativas estabelecidas pela Constituição Federal de 1988, na medida em que as concretiza no plano fático-jurídico por intermédio da abrangente possibilidade daquele em não só se manifestar sobre determinada investigação ou autuação empenhada pela administração tributária, mas também contrapor os argumentos da acusação fiscal e apresentar as suas próprias ponderações, tudo dentro de devido processo legal regularmente instaurando perante autoridade judicial competente.
Traçadas essas premissas, impende ora realçar que o princípio do contraditório e ampla defesa se encontra previsto no artigo 5º, inciso LV da Carta da República de 1988, cujo teor estabelece que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (BRASIL, 2015b, p. 20, grifo nosso). Portanto, tem-se que tal preceito viabiliza a nobre oportunidade daquele que é acusado ou apontado pela prática de determinada infração ou ilicitude, de formalmente se manifestar a respeito do assunto, bem como produzir seus argumentos e as provas que eventualmente atestam sua inocência ou não concorrência para a concretização do ato objeto da ação judicial em apreço por magistrado qualificado para tanto.
“Há muito vem a doutrina constitucional enfatizando que o direito de defesa não se resume a um simples direito de manifestação no processo. Efetivamente, o que o constituinte pretende assegurar – como bem anota Pontes de Miranda – é uma pretensão à tutela jurídica” (MENDES; BRANCO, 2014, p. 551). A partir desses enunciados, verifica-se que a finalidade precípua do princípio do contraditório e ampla defesa é a de salvaguardar, por completo, muito além da particular prerrogativa do réu de aduzir expressa defesa ou argumentos adversos àqueles expostos pelo autor, também zelar pelos demais direitos e garantias fundamentais que circundam e derivam de tal preceito, através da execução do outrora mencionado devido processo legal, tudo com o intento maior de tornar eficaz a pretensão à proteção e ao amparo jurídico que o Estado atribui a seu administrado por intermédio das instâncias judiciais.
Dessa maneira, cumpre destacar que “entre as cláusulas que integram a garantia da ampla defesa encontra-se o direito à defesa técnica, a fim de garantir a paridade de armas (par conditio), evitando o desequilíbrio processual, a desigualdade e injustiça processuais” (TAVARES, 2012, p. 760, grifo do autor). Em outros termos, para a abrangente consecução do objetivo apregoado pelo preceito constitucional ora em análise, cabe ao réu em determinada demanda judicial, realizar seu direito a defesa embasada em apurada técnica jurídica e legal com o fito de fazer valer a isonomia e equidade processuais, assim com afastar qualquer espécie de parcialidade ou injustiça procedimental.
Nessa linha de pensamento, urge salientar que “[...] a todo ato produzido pela acusação caberá igual direito da defesa de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que melhor lhe apresente, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor” (MORAES, 2014, p. 111). Assim, mediante clarividente determinação auferida do irrestrito fundamento do contraditório e ampla defesa, há que se aduzir que recai ao réu, em ação judicial iniciada e empenhada pela parte autora, a prerrogativa de usufruir de mecanismos processuais aptos a contrapor ou refutar a tese defendida pelo sujeito adverso nos autos, estruturando e legitimando seus próprios argumentos com base em convicção e interpretação particulares acerca da matéria em debate no feito, tudo em benefício do amplo interesse de sua defesa.
Continuamente, insta preponderar o fato de que a ampla defesa e o contraditório são requisitos imprescindíveis à própria efetivação da tutela jurisdicional em si, uma vez que sem a estruturação e aplicação formal de ambos em meio ao processo, o direito enquanto ciência perece em sua íntima natureza dialógica, argumentativa e discursiva. Veja-se:
Observe-se que a garantia da efetividade da tutela jurisdicional perigaria se o direito de defesa não fosse, em qualquer fase do processo, adequadamente assegurado. De consequência, a lei deve não só assegurar o contraditório, como remover qualquer obstáculo de caráter processual ou econômico que, sem apoio na Constituição, impeça ou mesmo, dificulte ao contribuinte a tutela em juízo dos próprios direitos e interesses legítimos. (CARRAZZA, 2015, p. 532, grifo nosso).
Sob esse enfoque, vislumbra-se que para o regular exercício do direito em comento, devem ser estabelecidos instrumentos jurídicos que acarretem o livre e desembaraçado gozo da aludida prerrogativa de larga manifestação discursiva e probatória em prol de seu legítimo interesse no processo, afastando-se por completo aqueles eventuais aspectos que os impedem ou restringem, de modo a satisfazer a garantia jurisdicional tão almejada por meio do processo.
Isto posto, no que se refere ao âmbito tributário, rememorando o que fora mencionado no início do corrente tópico, o princípio do contraditório e ampla defesa constitui, in casu, o direito constitucional do contribuinte de apresentar todas as alegações pertinentes a sua defesa, bem com todas as provas e instrumentos jurídicos que corroborem suas afirmações, a fim de contrapor a tese defendida pela administração fiscal aquando da instauração do processo judicial tributário em defesa do interesse arrecadatório do Estado, tudo perante magistrado competente que assegure imparcialidade, certeza do direito e justiça fiscal ao caso concreto.
Portanto, em linhas gerais, pertence ao contribuinte a prerrogativa de contestar e se insurgir contra eventuais arbitrariedades e imposições adotadas por parte do Estado no uso do seu poder de tributar; especialmente, no caso do presente trabalho, com a forçosa aplicação da obrigação tributária acessória e-Financeira pela Receita Federal do Brasil, cabe àquele advogar a nobre tese protetora de seus direitos fundamentais da vida privada, sigilo bancário, segurança jurídica, devido processo legal e contraditório e ampla defesa; rogando, então, pela patente inconstitucionalidade da aludida desarrazoada medida fiscal, ora testilhada neste trabalho.
Preliminarmente, há de se ressaltar que esta última seção do presente trabalho possui o ideal primário de realçar e corroborar todo o arcabouço jurídico tributário-constitucional delineado alhures, por intermédio de detida análise do hodierno entendimento e conteúdo das nobres decisões judiciais prolatadas pelos colendos tribunais pátrios acerca da temática da quebra do sigilo bancário de forma automática pela administração tributária sem prévia e necessária autorização judicial, bem como sobre a proteção que deve ser conferida aos direitos fundamentais do contribuinte. Intenta-se, assim, comprovar a inconstitucionalidade da novel obrigação tributária acessória pela Receita Federal do Brasil que visa transpassar o resguardo constitucional do sigilo bancário e, portanto, infringir garantias vitais do cidadão brasileiro.
Não obstante, antes de adentrar ao objeto deste capítulo, qual seja, a apresentação, interpretação e compreensão de imprescindíveis precedentes jurisprudenciais sobre a temática debatida neste trabalho, cumpre rememorar o ponto de vista sobre a mencionada obrigação tributária acessória e-Financeira adotado pela administração tributária federal no país, uma vez que se reveste em aspecto importante para posterior contraposição frente aos julgados dos tribunais pátrios. Assim, veja-se abaixo a visão da Receita Federal do Brasil sobre o assunto:
As operações praticadas pelos contribuintes, bem como a situação financeira e patrimonial, devem ser anualmente declaradas à Receita Federal. As informações financeiras, portanto, não revelam informação nova para o Fisco em relação aos contribuintes que declaram e cumprem suas obrigações para com o Estado.
[...]
Nessa mesma linha, o Brasil, a exemplo de vários outros países, firmou acordo com a Administração Tributária dos Estados Unidos (IRS), em 23 de setembro de 2014, na modalidade de reciprocidade total, que estabelece intercâmbio de informações prestadas pelas instituições financeiras dos respectivos países.
[...]
A e-Financeira, além de viabilizar a troca de informações com os EUA, possibilitará, também, a partir de 2018, o intercâmbio de informações com aproximadamente 100 países em cumprimento ao Common Reporting Standard (CRS), patrocinado pelos países do G20 no âmbito do Fórum Global sobre Transparência e Troca de Informações Tributárias. (BRASIL, 2016b, não paginado, grifo nosso).
Consoante trecho colacionado acima, é possível observar que a Receita Federal do Brasil vislumbra na e-Financeira, mero procedimento de fiscalização e confirmação de dados de transações bancárias relativas ao contribuinte por intermédio das instituições financeiras com as quais mantém relação de consumo e clientela, haja vista que, a fim de cumprir com o seu dever constitucional de pagar tributos, já presta e fornece “espontaneamente” as referidas informações ao fisco federal aquando da elaboração da declaração anual do Imposto de Renda. Com isso, a administração tributária federal alega não tratar com informações das quais já não tenha conhecimento prévio (pois ofertadas pelo próprio contribuinte), motivo pelo qual intenta fazer crer que a debatida medida fiscal é ato regular e amparado pelo ordenamento vigente.
Destarte, a Receita Federal do Brasil prepondera, ainda, que a recente obrigação acessória criada por si possui a relevante finalidade de realizar uma troca internacional das informações sobre transações financeiras de seus contribuintes coletadas junto às instituições bancárias das quais estes são usuários, de forma amplamente recíproca com a administração tributária dos Estados Unidos a partir do Foreign Account Tax Compliance Act (FATCA), acordo bilateral firmado entre ambos os países (já examinado em momento anterior deste trabalho). Em seguida, o fisco federal brasileiro sublinha que além desse pacto com os Estados Unidos, a e-Financeira irá igualmente possibilitar a permuta dos mencionados dados e informações referentes às operações bancárias realizadas pelos contribuintes pátrios com em torno de 100 países, por meio do Common Reporting Standard (CRS), o que se denomina de Fisco Global; tudo com o fito de realizar fiscalização mais apurada, evoluída e eficiente para combater ilícitos de evasão de divisas, sonegação fiscal e demais crimes fiscais a nível mundial.
Ocorre, todavia, que ao assentar esse entendimento acerca da obrigação acessória em comento, o ente tributário federal brasileiro incorre em veemente afronta e infringência a imprescindíveis princípios resguardados pelo nobre regramento da Constituição da República de 1988 ao contribuinte/cidadão nacional, notadamente considerados como direitos e garantias fundamentais tão somente passíveis de restrição aquando da concretização de certas situações e para fins específicos e bastante delineados. Com isso, por tudo o que será exposto na presente seção do trabalho, mediante análise de pontuais e pertinentes julgados sobre a matéria da quebra automática do sigilo bancário pela Receita Federal do Brasil, será possível inferir que a obrigação e-Financeira não coaduna com o ordenamento jurídico vigente e, dessa maneira, merece ter sua aplicação afastada do direito brasileiro por patente inconstitucionalidade.
Sob esse ponto de vista, com vistas a refutar por completo o objetivo pretendido pela hodierna administração fiscal do país, em especial, pela Receita Federal do Brasil através da criação da e-Financeira; prepondera trazer à baila o ilustre e enriquecedor julgado proferido pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do Recurso Extraordinário de nº 389808-PR em 15 de dezembro de 2010, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, no qual é sobremaneira reforçado o ideal de proteção que deve ser direcionado ao preceito do sigilo bancário na ordem jurídica vigente frente a imperatividade e arbitrariedade do Estado, in verbis:
SIGILO DE DADOS - AFASTAMENTO. Conforme disposto no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, a regra é a privacidade quanto à correspondência, às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações, ficando a exceção - a quebra do sigilo - submetida ao crivo de órgão equidistante - o Judiciário - e, mesmo assim, para efeito de investigação criminal ou instrução processual penal. SIGILO DE DADOS BANCÁRIOS - RECEITA FEDERAL. Conflita com a Carta da República norma legal atribuindo à Receita Federal - parte na relação jurídico-tributária - o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 2010, não paginado, grifo nosso).
A partir da ementa elencada acima, referente ao mencionado julgado exarado pela Suprema Corte do país, tem-se por cristalino o entendimento jurisprudencial de que, em estrita e devida observância aos regramentos constitucionais republicanos intrínsecos ao Estado Democrático de Direito brasileiro, o sigilo de dados bancários, por se tratar de preceito basilar e fundamental à perpetuação da harmonia social e da justiça tributária, intimamente ligado a essencialidade de salvaguarda da vida privada do cidadão frente a administração tributária, só pode ser regularmente transpassado ou superado em eventuais e excepcionais circunstâncias fáticas e processais e tão somente por intermédio de entidade alheia e imparcial à relação jurídico-tributária existente entre fisco e contribuinte.
Em outras palavras, conforme demonstrado em tópico próprio sob o ponto de vista doutrinário e, agora, sob o viés jurisprudencial, o sigilo bancário perfaz garantia essencial do contribuinte que se encontra protegida pelo princípio da privacidade a ele pertencente, motivo pelo qual só pode ser suplantando em ocasiões incomuns e desde que realizada prévia análise por órgão jurisdicional competente de titularidade de juiz de direito togado para tanto, bem como para fins específicos de investigação criminal ou instrução processual penal, isto é, a quebra do sigilo financeiro do indivíduo somente poderá ser efetivada com o objetivo de se apurar e averiguar a ocorrência de ilícitos fiscais praticados por contribuintes de má-fé, que burlem a arrecadação do Estado e o dever constitucional de pagar tributos. Por tais razões, não encontra amparo no direito brasileiro, norma infraconstitucional que atribua a administração fiscal a prerrogativa de afastar de forma unilateral e arbitrária o sigilo bancário do contribuinte, uma vez que, inclusive, figura como parte na relação jurídico-tributária havida com aquele.
Nessa linha de raciocínio foi o voto proferido pelo ínclito também Ministro Celso de Mello, nos autos do Recurso Extraordinário de nº 389808-PR, cujo teor acompanha na íntegra o entendimento estruturado pelo Ministro Relator Marco Aurélio. Em sua sábia argumentação sobre a matéria, o eminente julgador esmiúça a fundo a valoração constitucional protetiva que é conferida ao sigilo financeiro do contribuinte brasileiro frente a atuação impositiva do Estado por meio de sua administração tributária. Veja-se parte do decisum neste particular:
A quebra do sigilo bancário importa, necessariamente, em inquestionável restrição à esfera jurídica das pessoas afetadas por esse ato excepcional do Poder Público. A pretensão estatal voltada à “disclosure” das operações financeiras constitui fator de grave ruptura das delicadas relações - já estruturalmente tão desiguais - existentes entre o Estado e o indivíduo, tornando possível, até mesmo, quando indevidamente acolhida, o próprio comprometimento do sentido tutelar que inequivocamente qualifica, em seus aspectos essenciais, o círculo de proteção estabelecido em torno da prerrogativa pessoal fundada no direito constitucional à privacidade.
[...]
Em tema de ruptura do sigilo bancário, somente os órgãos do Poder Judiciário dispõem do poder de decretar essa medida extraordinária, sob pena de a autoridade administrativa interferir, indevidamente, na esfera de privacidade constitucionalmente assegurada às pessoas. Apenas o Judiciário, ressalvada a competência das Comissões Parlamentares de Inquérito (CF, art. 58, § 3º), pode eximir as instituições financeiras do dever que lhes incumbe em tema de sigilo bancário.
[...]
Não configura demasia insistir, Senhor Presidente, na circunstância - que assume indiscutível relevo jurídico - de que a natureza eminentemente constitucional do direito à privacidade impõe, no sistema normativo consagrado pelo texto da Constituição da República, a necessidade de intervenção jurisdicional no processo de revelação de dados (“disclosure”) pertinentes às operações financeiras, ativas e passivas de qualquer pessoa eventualmente sujeita à ação investigatória (ou fiscalizatória) do Poder Público. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 2010, não paginado, grifo nosso).
Há de se pontuar, com base no trecho do voto em destaque, que o douto julgador realça o fator inquestionável de vulnerabilidade a que é submetido o princípio da salvaguarda do sigilo de dados bancários aquando da ingerência por parte da administração fiscal no sentido de sobrepujá-lo a seu bel prazer em mero benefício do intuito arrecadatório e fiscalizatório que almeja, a todo momento, implementar e aprimorar no meio social, o que acaba violando o pilar constitucional de garantia da vida privada do contribuinte, em meio a uma relação jurídica cotidiana que já denota, por si só, caráter de notória delicadeza e fragilidade; motivo pelo, in casu, qual a obrigação acessória e-Financeira tem sua aplicação cristalinamente refutada e contestada perante o ordenamento jurídico pátrio.
Ademais, prepondera sublinhar, com base nos entendimentos escalonados pelos Ministros supramencionados, o pertinente fato de que a reserva de jurisdição por ambos sobremaneira enaltecida perfaz aspecto constitucional essencial para a manutenção da imparcial e ilibada aplicação da legislação tributária, no sentido de prover sopesada interpretação da referida norma para aplicá-la no mundo jurídico de forma a satisfazer a pretensão daquele que legalmente a detém, conforme o cada caso concreto em particular, especialmente quando se abordam questões amplamente envoltas por direitos e garantias fundamentais dos contribuintes frente a administração fiscal. Em outras palavras, cabe única e exclusivamente ao Poder Judiciário a prerrogativa de quebrar o sigilo bancário dos usuários dos serviços prestados pelas instituições financeiras com as quais mantenham relação de confiança e clientela, e não à Receita Federal do Brasil como pretendido por ela mediante a instituição da e-Financeira.
Com supedâneo no entendimento consubstanciado pelo Supremo Tribunal Federal por meio do julgado suso discorrido, várias outras decisões foram sendo prolatadas em outras esferas jurisdicionais pelo país (conforme se verá adiante), uma delas é a que se refere a Apelação em Reexame Necessário nº 1204889-SP, cuja relatoria foi incumbida a então Desembargadora Regina Helena Costa; bem como o entendimento cristalizado na Apelação em Mandado de Segurança nº 13822-SP, com relatoria pela Desembargadora Consuelo Yoshida; ambas do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, proferidas no ano de 2013, respectivamente realçadas abaixo. Veja-se:
AGRAVO LEGAL. DECISÃO MONOCRÁTICA. ART. 557, CAPUT, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. AÇÃO ORDINÁRIA. FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA. QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTE DO STF. I - Nos termos do § 1º-A, do art. 557, do Código de Processo Civil e da Súmula 253/STJ, o Relator está autorizado, por meio de decisão monocrática, a negar seguimento ou a dar provimento ao recurso e ao reexame necessário, nas hipóteses de pedido inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com a jurisprudência dominante da respectiva Corte ou de Tribunal Superior. II - O Supremo Tribunal Federal, conferindo interpretação conforme a Constituição da República à Lei n. 9.311/96, à Lei Complementar n. 105/2001, bem como ao Decreto n. 3.724/01, decidiu pela impossibilidade de a Receita Federal quebrar o sigilo bancário do contribuinte sem prévia autorização judicial (cf.: RE 389808/PR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, j. em 15.12.10). III - Agravo legal improvido. (BRASIL, Tribunal Regional Federal da 3ª Região, 2013a, não paginado, grifo nosso).
AGRAVO LEGAL. TERMO DE EMBARAÇO DE FISCALIZAÇÃO. NULIDADE. QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. 1. O Supremo Tribunal Federal decidiu recentemente que o Fisco não pode quebrar o sigilo bancário sem ordem emanada do Poder Judiciário. 2. Não há elementos novos capazes de alterar o entendimento externado na decisão monocrática. 3. Agravo legal improvido. (BRASIL, Tribunal Regional Federal da 3ª Região, 2013b, não paginado, grifo nosso).
A partir dos precedentes jurisprudenciais apresentados acima, verifica-se que a notável decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal conquistou ampla aceitação pelos demais tribunais brasileiros e, nos anos que a sucederam, passou a ser seguida e adotada de maneira inequívoca. Tal fato é sobremaneira constatado pelas decisões suso evidenciadas, as quais firmaram entendimento em insurgência a pleitos recursais interpostos com o fito de fazer valer o objetivo almejado pela administração tributária de ver o sigilo bancário dos contribuintes brasileiros automaticamente transpassado por sua mera deliberação e de forma unilateral, sem prévia autorização do Poder Judiciário ou do próprio cidadão; o que por ambas não foi admitido, pelo que se manteve, portanto, a reserva republicana da jurisdição e a extensa proteção constitucional confirmada pelo Excelso Pretório ao princípio do sigilo de dados alicerçado na garantia da privacidade do indivíduo, por refletir nobre medida de segurança jurídica a este.
Nesse contexto, outro decisum de notória relevância no que tange à matéria de resguardo do sigilo bancário ora debatida, foi o exarado na Apelação Criminal nº 27706720104058300-PE no ano de 2014, com relatoria realizada pela Desembargadora Margarida Cantarelli, do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, feito no qual se seguiu por completo o entendimento cristalizado pelo Supremo Tribunal Federal, no sentido de não admitir a obtenção de prova através da quebra do mencionado sigilo financeiro do contribuinte pela Receita Federal do Brasil sem anterior permissão judicial para tanto, in verbis:
PENAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. DANO À COLETIVIDADE. CONTINUIDADE DELITIVA. ART. 1º, I, C/C ART. 12, I, AMBOS DA LEI Nº 8.137/1990 C/C ART. 71 DO CÓDIGO PENAL. QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO SEM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. ILICITUDE DA PROVA. NULIDADE. ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PRECEDENTES DESTE REGIONAL. APELAÇÃO PROVIDA. I. O Supremo Tribunal Federal, nos autos do RE-389808/PR, entendeu ser incompatível com a Constituição da República o disposto no art. 6º da Lei Complr nº 105/2001, reconhecendo que a quebra do sigilo bancário, ali disciplinada e nas demais normas regulamentadoras, só poderá acontecer mediante autorização judicial, sendo, portanto, inconstitucional a sua realização na esfera Administrativa sem tal autorização. II. Inocorrendo a quebra do sigilo bancário pela Receita Federal do Brasil, por ausente autorização judicial, não seria constituído o crédito tributário nem haveria como ser feita a representação fiscal para fins penais. III. Decorrendo o conjunto probatório carreado aos autos unicamente da quebra do sigilo bancário, forçoso reconhecer a sua ilicitude. IV. Aplicação do art. 386, VI, do Código de Processo Penal. V. Apelação provida. (BRASIL, Tribunal Regional Federal da 5ª Região, 2014b, não paginado, grifo nosso).
Em conformidade com o juízo de valor consubstanciado pelo Poder Judiciário no julgado supracitado, urge novamente sublinhar que os tribunais pátrios, ao assim decidir, atuam em amplo alinhamento com a determinação constitucional, da feita que mantêm irrestritamente salvaguardados os preceitos e garantias essenciais intrínsecos ao cidadão brasileiro, notadamente na situação do sigilo de dados, da vida privada do sujeito de direitos e à segurança jurídica que a ele confere autonomia e liberdade em meio ao Estado Democrático de Direito, uma vez que o poder de decisão final sobre tais questões é atribuído a órgão jurisdicional imparcial na relação jurídico-tributária e altamente qualificado para tanto.
Sobre essa temática, igualmente se manifestou o Superior Tribunal de Justiça, guardião da legislação infraconstitucional brasileira, de maneira a também aplicar a interpretação inicial conferida pelo Excelso Pretório a matéria; nos autos do Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 41109-SP, em 2014, com relatoria pela Ministra Maria Thereza de Assis Moura. Veja-se:
HABEAS CORPUS. ARTIGO 1º, INCISOS I E II, DA LEI N.º 8.137/90. RECEITA FEDERAL. QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. ÂMBITO DO PROCESSO PENAL. NULIDADE DA PROVA. RECURSO PROVIDO. 1. A quebra do sigilo bancário para investigação criminal deve ser necessariamente submetida à avaliação do magistrado competente, a quem cabe motivar concretamente seu decisum, em observância aos artigos 5º, XII e 93, IX, da Carta Magna. 2. Não cabe à Receita Federal, órgão interessado no processo administrativo tributário e sem competência constitucional específica, fornecer dados obtidos mediante requisição direta às instituições bancárias, sem prévia autorização do juízo criminal, para fins penais. 3. Recurso provido para declarar a nulidade das provas obtidas através da quebra do sigilo bancário sem autorização judicial, devendo o Juízo de origem desentranhar, envelopar, lacrar e entregar ao increpado as informações porventura já encaminhadas. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, 2014c, não paginado, grifo nosso).
A partir dessa decisão ora apresentada, tem-se por cristalina a finalidade do Poder Judiciário brasileiro, qual seja, confirmar o devido e respeito, aplicação e efetividade ao ordenamento pátrio, de maneira a afastar eventuais ingerências externas por parte da administração pública na vida particular de cada cidadão que contribui para o seu regular funcionamento. Com isso, há de se ressaltar que, com supedâneo no julgado elencado acima, o Superior Tribunal de Justiça, tal como o Supremo Tribunal Federal, não tolera a atitude empenhada pela administração tributária do país com o fito de desviar e desrespeitar a determinação apregoada pela Constituição Federal de 1988, uma vez que não cabe a essa instituição o privilégio de fazer cessar de forma unilateral a proteção suprema direcionada a preceitos basilares e fundamentais da república insculpidos na Carta Maior, mas tão somente a prévia e necessária apreciação por órgão jurisdicional; haja vista ser parte plenamente interessada e com objetivos claros e concisos que almejam a todo instante o único e exclusivo cumprimento da voracidade arrecadatória e fiscalizatória do Estado, a ponto de, inclusive, como ocorre com o caso da tentativa de afastamento automático do sigilo bancário do contribuinte, incorrer em infringência e violação a direitos e garantias fundamentais do indivíduo brasileiro.
Posteriormente, cumpre salientar o recente precedente jurisprudencial prolatado nos autos da Apelação Cível nº 00053265620084036105-SP, no corrente ano de 2016, cuja relatoria ficou sob a responsabilidade do Desembargador Antonio Cedenho, fase recursal na qual novamente o Egrégio Tribunal se posicionou a favor das garantias individuais dos contribuintes brasileiros e, portanto, negou o acesso automático pela administração tributária às informações sobre transações econômico-financeiras daqueles mediante simples requisição administrativa às instituições financeiras (quebra unilateral do sigilo de dados bancários do cidadão), confirmando a interpretação conferida ao tema pelo Supremo Tribunal Federal. Observe-se:
PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. APELAÇÃO. AGRAVO LEGAL. AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL. IMPOSTO DE RENDA PESSOA FÍSICA. LC 105/2001. QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO SEM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. IMPOSSIBILIDADE. INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA PELO STF. RE 389808-PR. JULGAMENTO POR DECISÃO MONOCRÁTICA. ART. 557, "CAPUT", DO CPC. AGRAVO LEGAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. [...] 3. A possibilidade de acesso às informações bancárias do contribuinte pelas autoridades fiscais, sem a necessidade de intervenção judicial, está prevista no art. 6º da Lei Complementar nº 105/2001. Contudo, reportando-me ao entendimento anterior à edição da lei complementar, somente seria possível a quebra do sigilo bancário com autorização judicial. Entendimento em contrário viola o direito à intimidade e à vida privada garantidos constitucionalmente, além de afrontar o inciso XII do art. 5º. Destarte, o sigilo bancário compreendido pelo sigilo de dados, à luz da norma constitucional é direito individual protegido, somente podendo ser violado em casos excepcionais. 4. Desrespeita o Estado Democrático de Direito a norma infraconstitucional que permite a violação aos dados bancários do contribuinte por mera requisição unilateral feita pela autoridade administrativa. Ressalte-se que, embora pendentes de decisões definitivas nas ações diretas de inconstitucionalidade sobre o tema, em sede de recurso extraordinário o Pleno do Supremo Tribunal Federal adotou o entendimento de que a quebra do sigilo bancário por requisição exclusiva da autoridade administrativa, sem autorização judicial, não viabiliza a exigibilidade do crédito tributário, eis que eivada de inconstitucionalidade (RE 389808-PR). 5. Uma vez que a matéria discutida nos autos já foi objeto de apreciação pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, fica dispensada a aplicação da regra da reserva de Plenário, a teor do disposto no parágrafo único do art. 481 do Código de Processo Civil. 6. Como se vê, a decisão agravada resolveu de maneira fundamentada as questões discutidas na sede recursal, na esteira da orientação jurisprudencial já consolidada ou majoritária. O recurso ora interposto não tem, em seu conteúdo, razões que impugnem com suficiência a motivação exposta na decisão monocrática. 7. Agravo legal a que se nega provimento. (BRASIL, Tribunal Regional Federal da 3ª Região, 2016c, não paginado, grifo nosso).
Dessa forma, impera novamente ressaltar que não é prerrogativa da administração fiscal brasileira obter, diretamente junto às instituições financeiras das quais os contribuintes usufruem dos serviços bancários prestados, os dados relativos as transações e movimentações financeiras dos contribuintes mediante automática, unilateral e sorrateira quebra do sigilo bancário que a eles é fortemente protegido pela Constituição Federal de 1988, configurando direito básico do cidadão e que não pode ser transpassado ou infringido pelo Estado.
Isso é igualmente estendido aos nobres corolários do preceito do sigilo de dados bancários, todos fundamentais e vitais para a perpetuação da salutar existência do cidadão, quais sejam, os ideias democráticos e libertários da privacidade, segurança jurídica, devido processo legal (reserva de jurisdição) e contraditório e ampla defesa, conforme robustamente delineado alhures; uma vez caracterizarem a mais nobre e autêntica intenção de salvaguarda da autonomia e da dignidade do ser humano frente às ingerências e interferências ocasionadas pelo Estado em sua vida, motivo pelo qual, in casu, a obrigação acessória e-Financeira criada pela Receita Federal do Brasil deve ter sua aplicação repelida do ordenamento jurídico brasileiro, por clarividente medida de justiças social e fiscal perante o Sistema Constitucional Tributário.
Por outro lado, por fim, no corrente ano de 2016, o Supremo Tribunal Federal prolatou, nos autos do Recurso Extraordinário nº 601314-SP, em Repercussão Geral, com relatoria sob a responsabilidade do Ministro Luiz Edson Fachin; decisão na qual se admitiu a possibilidade do acesso aos dados e informações financeiras dos contribuintes pela administração tributária brasileira por intermédio de simples requisição às instituições financeiras com as quais aqueles conservam relação de clientela, o que conferiu superficial e frívola constitucionalidade aos artigos 5º e 6º da Lei Complementar nº 105/2001, alicerce primeiro da obrigação tributária acessória e-Financeira editada pela Receita Federal do Brasil, in verbis:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. DIREITO TRIBUTÁRIO. DIREITO AO SIGILO BANCÁRIO. DEVER DE PAGAR IMPOSTOS. REQUISIÇÃO DE INFORMAÇÃO DA RECEITA FEDERAL ÀS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. ART. 6º DA LEI COMPLEMENTAR 105/01. MECANISMOS FISCALIZATÓRIOS. APURAÇÃO DE CRÉDITOS RELATIVOS A TRIBUTOS DISTINTOS DA CPMF. PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE DA NORMA TRIBUTÁRIA. LEI 10.174/01. 1. O litígio constitucional posto se traduz em um confronto entre o direito ao sigilo bancário e o dever de pagar tributos, ambos referidos a um mesmo cidadão e de caráter constituinte no que se refere à comunidade política, à luz da finalidade precípua da tributação de realizar a igualdade em seu duplo compromisso, a autonomia individual e o autogoverno coletivo. 2. Do ponto de vista da autonomia individual, o sigilo bancário é uma das expressões do direito de personalidade que se traduz em ter suas atividades e informações bancárias livres de ingerências ou ofensas, qualificadas como arbitrárias ou ilegais, de quem quer que seja, inclusive do Estado ou da própria instituição financeira. 3. Entende-se que a igualdade é satisfeita no plano do autogoverno coletivo por meio do pagamento de tributos, na medida da capacidade contributiva do contribuinte, por sua vez vinculado a um Estado soberano comprometido com a satisfação das necessidades coletivas de seu Povo. 4. Verifica-se que o Poder Legislativo não desbordou dos parâmetros constitucionais, ao exercer sua relativa liberdade de conformação da ordem jurídica, na medida em que estabeleceu requisitos objetivos para a requisição de informação pela Administração Tributária às instituições financeiras, assim como manteve o sigilo dos dados a respeito das transações financeiras do contribuinte, observando-se um translado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal. 5. A alteração na ordem jurídica promovida pela Lei 10.174/01 não atrai a aplicação do princípio da irretroatividade das leis tributárias, uma vez que aquela se encerra na atribuição de competência administrativa à Secretaria da Receita Federal, o que evidencia o caráter instrumental da norma em questão. Aplica-se, portanto, o artigo 144, §1º, do Código Tributário Nacional. 6. Fixação de tese em relação ao item “a” do Tema 225 da sistemática da repercussão geral: “O art. 6º da Lei Complementar 105/01 não ofende o direito ao sigilo bancário, pois realiza a igualdade em relação aos cidadãos, por meio do princípio da capacidade contributiva, bem como estabelece requisitos objetivos e o translado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal”. 7. Fixação de tese em relação ao item “b” do Tema 225 da sistemática da repercussão geral: “A Lei 10.174/01 não atrai a aplicação do princípio da irretroatividade das leis tributárias, tendo em vista o caráter instrumental da norma, nos termos do artigo 144, §1º, do CTN”. 8. Recurso extraordinário a que se nega provimento. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 2016d, não paginado, grifo nosso).
Insta preponderar, nesse ponto, que embora o pleito recursal do contribuinte lesado no processo em epígrafe não tenha sido provido pelo plenário do tribunal, o Excelso Pretório não nega ou se abstrai de enaltecer a indelével imprescindibilidade do direito constitucional de resguardo do sigilo bancário do cidadão pátrio frente às intromissões estatais fiscais no âmago da personalidade e na vida privada destes, aspectos da mais nobre relevância e essencialidade para a esfera individual do sujeito de direitos fundamentais e vitais. Assim, conforme se depreende do próprio julgado acima, o indivíduo é detentor de garantias republicanas e democráticas que afirmam sua liberdade e autonomia no sentido de poder e querer decidir não revelar informações suas, protegidas pelo sigilo de dados, a terceiros e à administração tributária, entidade estatal preocupada tão somente com a arrecadação e fiscalização.
Dessa maneira, consoante asseverado pelo Supremo Tribunal Federal no precedente supra, não é crível que este soberano e ínclito guardião da Constituição da República tenha decidido em benefício da ampliação de poder de ingerência e controle por parte da administração tributária e em prejuízo dos direitos e garantias individuais dos contribuintes brasileiros, que notoriamente demandam maior salvaguarda no mundo fático-jurídico pátrio justamente em decorrência do discrepante caráter de desigualdade e desequilíbrio a que são submetidos perante o poder de império e autoridade imposto pelo Estado, por meio da criação de obrigações e deveres a serem cumpridos por seus súditos, in casu, pela edição da Instrução Normativa 1.571/2015 pela Receita Federal do Brasil que concebeu a e-Financeira.
Não há como se admitir que requisitos objetivos para a requisição de informação pela Administração Tributária às instituições financeiras ou “mero e simples” translado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal, nos termos da ementa colacionada acima, prevaleçam sobre a suprema e inextinguível vontade e dicção constitucional que, de forma ampla e transparente, resguarda o caráter de indispensabilidade e imprescindibilidade conferidos aos direitos e prerrogativas fundamentais dos contribuintes. Isso porque, quanto aos alegados requisitos objetivos, estes representam tão somente a vontade e interesse unilaterais da administração tributária, impostos e determinados às instituições financeiras por meio de obrigações acessórias motivadas pelo ato de arrecadar por arrecadar, em frontal desrespeito às liberdades e direitos líquidos dos cidadãos. Com relação a aludida mera transferência e compartilhamento das informações bancárias dos contribuintes para o âmbito da administração fiscal, tal fato configura notória quebra de sigilo bancário pelo ente tributário, uma vez que antes as informações relativas às transações financeiras dos contribuintes ficavam sob a então responsabilidade daquelas instituições bancárias com as quais estes, por livre manifestação de autonomia e vontade, escolheram manter relação de consumo, negocial, confiança e credibilidade; não ocorrendo o mesmo no momento em que tais dados são forçosamente e arbitrariamente repassados a esfera de poder do fisco.
Igual posição foi adotada no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade de nºs 2.386, 2.397 e 2.859, admitindo-se o ininterrupto acesso aos dados financeiros dos contribuintes pela Receita Federal do Brasil por simples requisição administrativa às instituições bancárias, sem se ater ao resguardo constitucional do sigilo de dados bancários. Não obstante, na contramão do entendimento firmado nas referidas Ações Diretas de Inconstitucionalidade e no suso comentado Recurso Extraordinário nº 601314-SP, dois respeitáveis e insignes decanos do Supremo Tribunal Federal, quais sejam, o Ministro Marco Aurélio e o Ministro Celso de Mello não seguiram o entendimento da maioria dos demais magistrados, os quais votaram vencidos nos casos pela inadmissibilidade do livre acesso pela administração tributária às informações dos contribuintes com infringência ao sigilo de dados. Veja-se abaixo trecho do notável decisum do Ministro Celso de Mello:
Entendo, Senhor Presidente, e já o disse neste Tribunal, que a majestade da Constituição não pode ser transgredida nem degradada pela potestade do Estado, pois, em um regime de perfil democrático, ninguém, a começar dos agentes e autoridades do aparelho estatal, pode pretender-se acima e além do alcance da normatividade subordinante dos grandes princípios que informam e dão essência à Lei Fundamental da República.
Por tal razão, votarei vencido neste caso, que se soma aos dois julgamentos realizados na semana passada em cujo âmbito registrou-se – e digo isto com todo o respeito – preocupante inflexão hermenêutica, de índole regressista, em torno do pensamento jurisprudencial desta Suprema Corte no plano sensível dos direitos e garantias individuais, retardando, em minha percepção, o avanço de uma significativa agenda judiciária concretizadora das liberdades fundamentais em nosso País.
[...]
Esse tema ganha maior relevo se se considerar o círculo de proteção que o ordenamento constitucional estabeleceu em torno das pessoas, notadamente dos contribuintes do Fisco, objetivando protegê-los contra ações eventualmente arbitrárias praticadas pelos órgãos estatais da Administração Tributária, o que confere especial importância ao postulado da proteção judicial efetiva, que torna inafastável a necessidade de autorização judicial para efeito de exposição e revelação de dados protegidos pela cláusula do sigilo bancário.
[...]
Em havendo situação de colidência entre princípios impregnados de qualificação constitucional, como pode ocorrer entre as prerrogativas institucionais da Administração Tributária, de um lado, e os direitos e garantias básicas dos contribuintes, de outro, a resolução desse estado de antagonismo deverá constituir objeto de um pertinente juízo de ponderação, a ser exercido não por um dos sujeitos parciais da relação litigiosa, que certamente atuaria “pro domo sua”, mas, isso sim, por um terceiro juridicamente desinteressado, como os órgãos integrantes do Poder Judiciário do Estado.
Não tem sentido, contudo, que o legislador haja outorgado essa competência à própria Administração Tributária, incumbindo-a de superar, ainda que mediante critérios e procedimentos indicados na lei, a situação de polaridade conflitante que a opõe ao contribuinte, quando, na realidade, essa função, de caráter eminentemente arbitral, deve ser desempenhada pelo Poder Judiciário, que ostenta, nessa particular condição institucional, o atributo – inerente à jurisdição – da “terzietà”.
[...]
A submissão do Fisco às limitações decorrentes da cláusula da reserva de jurisdição não desampara os direitos dos entes tributantes, pois estes sempre poderão pretender o acesso às contas bancárias e aos dados existentes em instituições financeiras, referentes aos contribuintes, desde que o façam por intermédio do Poder Judiciário, expondo a sua postulação ao controle e à supervisão dos juízes e Tribunais.
[...]
Sustenta-se que o litígio constitucional em questão não envolve quebra do sigilo bancário, mas, sim, mera transferência de dados sigilosos ou simples compartilhamento de informações reservadas existentes sobre os contribuintes e as pessoas em geral nas instituições financeiras.
Vejo, nessa alegação, um claro eufemismo que mal consegue disfarçar uma situação de evidente inconstitucionalidade que afeta a pretensão do Estado de manter, por deliberação própria e sem controle jurisdicional prévio, uma contínua fiscalização do Poder sobre os sujeitos passivos da relação jurídico-tributária.
Na realidade, a circunstância de a administração estatal achar-se investida de poderes excepcionais que lhe permitem exercer a fiscalização em sede tributária não a exonera do dever de observar, para efeito do correto desempenho de tais prerrogativas, os limites impostos pela Constituição e pelas leis da República, sob pena de os órgãos governamentais incidirem em frontal desrespeito às garantias constitucionalmente asseguradas aos cidadãos em geral e aos contribuintes, em particular.
[...]
Sendo assim, Senhor Presidente, e tendo em consideração as razões expostas, entendo que a decretação da quebra do sigilo bancário, ressalvada a competência extraordinária das CPIs (CF, art. 58, § 3º), pressupõe, sempre, a existência de ordem judicial, sem o que não se imporá à instituição financeira o dever de fornecer, seja à Administração Tributária, seja ao Ministério Público, seja, ainda, à Polícia Judiciária ou ao Tribunal de Contas da União, as informações que lhe tenham sido solicitadas. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 2016d, não paginado, grifo nosso).
Em suma, o benemérito ministro aduz não caber à administração fiscal a prerrogativa de proceder ao acesso das informações bancárias dos contribuintes mediante singelo pedido administrativo seu para as instituições financeiras, tendo em vista que tal fato viola os direitos e garantias fundamentais do cidadão, em especial sua liberdade e privacidade, fontes republicanas que perfazem justiça tributária e mantêm a dignidade humana. Depreende-se, portanto, que os protetivos constitucionais visam, acima de tudo, abalizar e equalizar os interesses que vigoram no Estado Democrático de Direito brasileiro, sejam eles pertinentes ao fisco ou ao sujeito passivo da relação jurídico-tributária, de modo que, para tanto, se faça necessária uma apreciação prévia acerca da matéria em debate por órgão equidistante e imparcial em tal situação, qual seja, o Poder Judiciário, na qualidade de zelador e aplicador do ordenamento jurídico pátrio; tudo com o fito de assegurar o cumprimento do preceito republicano da reserva de jurisdição, haja vista que, caso contrário, incorrer-se-ia em velada inconstitucionalidade com a efetivação do irrestrito acesso às informações dos contribuintes diretamente pelo fisco, órgão sobremaneira interessado, engajado e parcial nessa relação, o qual atuaria de forma a garantir para si a todo momento o objeto em discussão.
Destarte, há que se ressaltar que em nada o princípio da reserva de jurisdição obstaria a eventual necessidade de acesso as informações sobre transações financeiras dos contribuintes para fins de investigação e apuração de ilícitos fiscais pela autoridade fazendária, muito pelo contrário, bastaria que tal pleito fosse regularmente submetido à apreciação de órgão jurisdicional investido por magistrado competente e qualificado, o qual seria devidamente apreciado e autorizado na medida em que fosse motivado e estivesse fundamentado em indícios de materialidade de crimes tributários, já que o direito ao sigilo bancário em questão não é absoluto, todavia, demanda ordem judicial para que possa ser transpassado, conforme denotam os primados do devido processo legal, do contraditório e ampla defesa e da segurança jurídica. São os juízes e os tribunais, na qualidade de pessoas e entidades altamente imparciais e desinteressadas no litígio que envolve a autoridade tributária e o contribuinte, quem possuem o poder de controle, supervisão e decisão sobre a matéria, por medida de justiças social e fiscal.
Nessa linha de raciocínio, cumpre destacar que a supracitada virada na jurisprudência da Suprema Corte da República representa forte e infeliz retrocesso hermenêutico e interpretativo acerca dos direitos e garantias fundamentais dos contribuintes brasileiros, inclusive em consonância com o entendimento de ambos os ilustres Ministros Celso de Mello e Marco Aurélio, uma vez que o Excelso Pretório já havia decidido essa questão da quebra do sigilo bancário diretamente pela Receita Federal do Brasil como inconstitucional em meados de 2010, no julgamento do debatido Recurso Extraordinário de nº 389808-PR, o que transparece veemente violação às liberdades individuais dos cidadãos nacionais, previamente asseguradas de forma abrangente através da estruturação de estável compromisso judicial consolidador dessas substanciais garantias libertárias. Assim, não se pode admitir que a administração tributária emplaque a tese de que a mera transferência ou compartilhamento das informações financeiras dos contribuintes anteriormente acobertadas pelo sigilo bancário e que, a partir de tal ato, ficam sob a proteção do sigilo fiscal; possa ser entendido como situação em harmonia e concordância com os primados constitucionais da inviolabilidade da vida privada do indivíduo, direito ao sigilo de dados bancários, segurança jurídica, devido processo legal, reserva constitucional de jurisdição e contraditório e ampla defesa.
Desta feita, por tudo o que fora robustamente exposto e explanado alhures, acerca do acesso direto e automático aos dados e informações financeiras dos contribuintes pela Receita Federal do Brasil, por intermédio das instituições financeiras, a partir do que determina a novel obrigação tributária acessória e-Financeira; em frontal desrespeito e transgressão ao preceito basilar de resguardo ao sigilo bancário e a seus corolários constitucionais, rememorados no parágrafo anterior, roga-se pela inconstitucionalidade da referida medida fiscal por restar desamparada por tudo aquilo de apregoa o Sistema Constitucional Tributário e por todo o histórico jurisprudencial edificado pelos nobres magistrados e tribunais pátrios.
Em linhas gerais, a título conclusivo do presente trabalho, urge preponderar que sua temática central girou em torno da constitucionalidade ou não da questão que envolve a recente obrigação tributária acessória e-Financeira, introduzida ao direito pátrio pela Receita Federal do Brasil por intermédio da Instrução Normativa nº 1.571 de 02 de julho de 2015, contrapondo-a em relação aos direitos e garantias fundamentais dos contribuintes brasileiros, difundidos pela soberana disposição inserta na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Para tanto, previamente foram expostas as nuances legais e todos os respectivos aspectos sobre a obrigação tributária acessória amplamente considerada, seu conceito, natureza jurídica e fato gerador, a partir do que se fez preponderante observar que a obrigação tributária acessória emergiu ao direito tributário de forma paralela a obrigação tributária principal - caracterizada pelo próprio crédito tributário (objeto pecuniário da tributação) -, de maneira a viabilizar o cumprimento do dever republicano de pagar tributos dentro do Estado Democrático de Direito, bem como facilitar o poder de fiscalização empenhado pela administração fiscal.
Contudo, há que se ressaltar que a obrigação tributária acessória, atendendo a sua finalidade maior de instrumentalização e formalização do poder de tributar exercido pelo Estado sobre o contribuinte, com a criação de procedimentos e mecanismos jurídicos e legais aptos a fazer com que o sujeito passivo da relação jurídico-tributária destine parcela de seu património a administração fiscal a título de pagamento de tributo; deve, sobremaneira, exercer sua prerrogativa de arrecadar e controlar a atividade tributante sempre em conformidade e obediência às prescrições mandamentais constitucionais, com o único propósito de resguardar as garantias e os direitos fundamentais do cidadão, insculpidos na Magna Carta de 1988.
Destarte, a Receita Federal do Brasil, objetivando exercer sua atividade tributante de modo a exercer maior fiscalização e controle sobre a arrecadação tributária no país, deveria adotar, como primeiro passo, a instituição de deveres instrumentais - obrigações acessórias - outros que não a robustamente debatida e-Financeira, uma vez se tratar de medida desamparada pela Constituição Federal de 1988; bem como, ainda, a implementação de melhorias estruturais de seus órgãos e ampliação do número de agentes fiscais para cumprir, com cada vez mais efetividade e diligência, a necessidade do recolhimento pecuniário do contribuinte e o empenho de investigação sobre eventuais práticas de ilicitudes fiscais.
Não cabe a um dever instrumental, motivado por infringências e transgressões ao ordenamento jurídico vigente, tal como a e-Financeira, cuja atribuição é a de unilateralmente determinar que as instituições financeiras nacionais automaticamente encaminhem ao fisco federal os dados e informações atinentes às transações e negócios jurídicos econômicos realizados pelo contribuinte no livre e manifesto gozo de sua autonomia e liberdade, violando, pois, desígnios e anseios republicanos protetivos dos direitos essenciais intrínsecos ao indivíduo; ter aplicabilidade assegurada e passível de execução em meio ao normativo interno do país, em cristalino desrespeito e desarmonia aos ditames democráticos.
Sob essa ótica, insta sobrelevar que ao cidadão brasileiro, contribuinte que é para a ininterrupta edificação de uma nação melhor e cada vez mais equitativa, é notadamente devido assegurar a salvaguarda às suas liberdades individuais, substanciais para a consecução de uma existência a cada dia mais digna e justa, protegida das ingerências ocasionadas pelo Estado, atendendo-se aos primados constitucionais de manutenção da vida privada do indivíduo, resguardo ao seu sigilo de dados bancários, concretização de real segurança jurídica as suas prerrogativas, zelo pela aplicação do devido processo legal - reserva de jurisdição - e efetividade do contraditório e ampla defesa; consoante nobre e soberana estipulação da Carta Maior.
Nessa linha de raciocínio, incumbe ao Poder Público limitar e restringir a sua própria esfera de atuação por meio de sua administração tributária com a edificação de procedimentos que coadunem com o texto soberano. Portanto, impende a Receita Federal do Brasil, in casu, não interferir ou imiscuir-se na vida privada do contribuinte, haja vista ser direito seu praticar atos que não queira desvendar ou revelar a terceiros estranhos, inclusive, ao fisco federal, posto que se referem a sua liberdade e autonomia existencial; não violar ou transpassar por mero interesse arrecadatório e fiscalizatório o direito de o contribuinte ter por conservado o sigilo bancário sobre informações relativas às suas transações e movimentações econômicas realizadas em instituição financeira com a qual tenha estabelecido relação de confiança e credibilidade; não transpassar o dever de segurança jurídica a que está compelida a observar em relação ao sujeito passivo da relação jurídico-tributária, de modo a não proceder com desvios ao normativo superior da república, sem surpresas procedimentais ou delimitações fiscais a direitos amplamente conferidos a esse indivíduo; não deixar de obedecer ao mandamento do devido processo legal, já que só através deste mecanismo jurídico-processual pode o contribuinte exercer a regular garantia de seus interesses e objetivos particulares frente ao pleito da administração tributária, mediante apreciação da questão posta em análise, por magistrado togado e invariavelmente competente para decidir de forma imparcial e equidistante aos objetivos almejados por ambas as partes, cujo fator é preponderante quando se trata de tal matéria em um Estado Democrático de Direito a fim de repelir qualquer tentativa de imposição de arbítrios e imperativos por parte do Poder Público - reserva de jurisdição -; bem como, por fim e não menos importante, não se abster de respeitar o contraditório e ampla defesa, uma vez que, corolário do basilar do devido processo legal, constitui a ferramenta jurisdicional que propicia ao contribuinte expressar sua defesa e manifestação de forma a refutar o objetivo empenhado pela administração fiscal tão somente com motivação arrecadatória.
Logo, por oportuno, tem-se por imprescindível fazer observar que o tão desejado acesso aos dados e informações bancárias dos contribuintes pela Receita Federal do Brasil não pode ser obtido por mera requisição administrativa às instituições financeiras com as quais aqueles sustentam relação de clientela, mas sim apenas e tão somente mediante prévia e necessária apreciação com conseguinte autorização emanada por juiz qualificado integrante de órgão do Poder Judiciário, haja vista ser esta a entidade constitucionalmente responsável pela excepcional restrição a direito fundamental do cidadão brasileiro, ou seja, pela quebra do sigilo bancário deste, desde que, ainda, existentes indícios da materialidade de ilícitos tributários eventualmente praticados pelo contribuinte; tudo em decorrência do princípio supremo da reserva de jurisdição, pois é o ente jurisdicional quem possui inércia e desinteresse em relação as partes envolvidas no litígio tributário.
Diante de tudo o que fora robustamente exposto no presente trabalho, em especial pela doutrina e jurisprudências pátrias apresentadas e debatidas, notadamente com embasamento no insigne julgado proferido pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 389808-PR em 2010 - o qual ensejou a prolação de notáveis outros precedentes pelos tribunais pátrios -, deve-se sempre primar pelos direitos e garantias individuais dos cidadãos brasileiros diante de ingerências praticadas pelo Estado, refutando-se por completo o recente entendimento firmado pela atual conjuntura do Excelso Pretório na Repercussão Geral em Recurso Extraordinário nº 601314-SP, decisão esta que destituiu e retroagiu à uma indelével agenda judiciária que vinha sendo construída no país em benefício das liberdades e prerrogativas individuais dos contribuintes. Com isso, em meio a esse cristalino dissenso jurídico que se instituiu com a criação da e-Financeira, conclui-se que os operadores do direito brasileiro devem caminhar no sentido de defender a salvaguarda das garantias fundamentais dos indivíduos pátrios, bem como alinhar, em conjunto com a hodierna doutrina e oportuna jurisprudência, o entendimento pela inconstitucionalidade da referida medida fiscal, primando, sobretudo, por dignidade humana, equidade e justiças social e tributária no Brasil.
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Advogado. Bacharel em Direito pela Faculdade Integrada Brasil Amazônia (FIBRA). Especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus (FDDJ). Advogado em Belém-PA, sócio proprietário do escritório Willian Praia Advocacia e associado ao escritório Nelson Wilians & Advogados Associados.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PRAIA, Willian Kleber Cardoso. A Instrução Normativa nº 1.571 de 02 de julho de 2015 da Receita Federal do Brasil: vicissitudes e inconstitucionalidade perante o ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 out 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47683/a-instrucao-normativa-no-1-571-de-02-de-julho-de-2015-da-receita-federal-do-brasil-vicissitudes-e-inconstitucionalidade-perante-o-ordenamento-juridico-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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