RESUMO: O presente artigo tem a finalidade de discutir a legitimidade das causas de imprescritibilidade abarcadas pela Constituição Federal de 1988, bem como se é possível alargar as hipóteses vigentes. Para alcance do objetivo proposto, buscar-se-á, em primeiro momento, conceituar o instituto da prescrição, expondo sua evolução histórica, sem se esquecer, por lógico, da apresentação do evoluir das hipóteses de imprescritibilidade, como reflexo dos avanços sociais. Posteriormente, adentrar-se-á na discussão central, apresentado as posições doutrinárias controvertidas a respeito de alguns aspectos da imprescritibilidade penal, especialmente, no que tange à (i)legitimidade das hipóteses, frente a maior gravidade de outros delitos tidos como prescritíveis, e ainda em relação à possibilidade de introdução no ordenamento jurídico de outros casos de imprescritibilidade. Por fim, nas considerações conclusivas, buscar-se-á defender a posição de que, diante da existência de crimes que causam maior dano à sociedade, não se mostram legítimas as hipóteses acolhidas. Por outro lado, far-se-ão considerações acerca da possibilidade de alargamento das hipóteses de imprescritibilidade, desde que por meio de emendas constitucionais.
Palavras-chave: Ilegitimidade. Hipóteses. Imprescritibilidade.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo científico tem por objetivo trazer à baila problemática existente em torno do instituto da imprescritibilidade penal, buscando esclarecer se as modalidades de crimes imprescritíveis abarcadas pela Constituição Federal de 1988 são legítimas diante da maior gravidade de outros crimes, bem como se pode ocorrer alargamento das hipóteses vigentes de imprescritibilidade, partindo da alegada ideia de serem cláusulas pétreas.
Com o intuito de desenvolver o estudo para alcançar a resposta do problema posto, a pesquisa buscará apresentar a conceituação do instituto da prescrição, sua origem e evolução história, tanto nos ordenamentos jurídicos norteadores (especialmente o Romano) quanto no pátrio.
Ainda, o artigo adentrará, especificamente, na apresentação do avanço da legislação pátria no que tange às espécies de prescrição e aos crimes em que instituto foi sendo acolhido, como resultado visível do próprio desenvolvimento sócio-cultural do povo brasileiro.
Com mesma importância, será exposto o avanço das causas de imprescritibilidade desde a época do Brasil Colônia até a atualidade, em que a previsão no ordenamento jurídico nacional é resumida a duas hipóteses - racismo e ações de grupos armados civis ou militares contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.
Focalizando, o ponto central do artigo científico, buscar-se-á apresentar as controversas posições doutrinárias acerca do tema e destas abstrair elementos teóricos para, com melhor qualidade, expor conclusões, especialmente, no que tange à legitimidade ou não das hipóteses de imprescritibilidade abarcadas pelo texto constitucional e ainda quanto à eventual possibilidade de alargamento de suas modalidades.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 A Conceituação de Prescrição Penal
O termo prescrição tem origem da expressão do latim praescriptio, do verbo praescribere, o qual se compõe de prae e scribere, que significa escrever antes ou no começo, sendo que o uso desse vocábulo pode ser explicado pelo modelo de processo penal utilizado no Direito Romano (TRIPPO, 2004).
O modelo processual de Roma era composto de quatro partes: demonstratio (enunciação dos fatos); intentio (indicação da pretensão do autor e a contestação do réu); condenmatio (atribuição outorgada ao juiz para condenar ou absolver); adjudicatio (autorização conferida ao juiz para atribuir a propriedade do objeto litigioso às partes), cabendo ao pretor direcionar o julgamento de acordo com essas fases, tendo ele, inclusive, poder para criar novas ações, nas quais fixava determinado prazo para a duração do processo (TRIPPO, 2004).
Em análise às origens do instituto, Baltazar (2003) esclarece que a prescrição é oriunda do latim praescriptio, significando uma escrita posta antes, a qual se apresentava como meio de defesa antes da demonstratio, como um alerta ao juiz, que, estando presente, o impedia de proferir julgamento de mérito.
Na mesma linha, Trippo (2004) explana que, quando o processo não era intentado no prazo previsto, o pretor escrevia antes da fase demonstratio uma preliminar, na qual advertia o julgador de que o réu deveria ser absolvido sem a análise do mérito. E é justamente a essa parte introdutória que se denominou praescriptio, por vir escrita antes da demonstratio (TRIPPO, 2004).
Como se observa, a expressão prescrição, originariamente, significava aquilo que se escreve antes e tendo em conta que, no Direito Romano, a advertência de decurso do prazo para julgamento era escrita em preliminar ao processo, acabou sendo a expressão utilizada para denominar a perda do direito do julgador em proferir sentença de mérito. E é nesse sentido que vem sendo desenvolvida a conceituação de prescrição pelos doutrinadores de nossa época.
De acordo com o ensinamento de Schmidt (1997), considerando que as pretensões punitivas e executórias não são perpétuas, o Estado tem um determinado lapso temporal para mover a ação penal e, depois, executar a pena, se houver condenação, sob pena de perda do direito de punir ou de executar a sanção, em caso de se manter inerte.
A prescrição penal é a perda do direito de punir em decorrência da não utilização da pretensão punitiva durante certo lapso temporal, pelo que a punibilidade é extinta de forma direta e imediata, ao contrário, da decadência e da perempção que alcançam o direito de acusar o agente para, depois, por força de lei, extinguir a punibilidade como consequência (MARQUES, 1999).
Sobre a abordagem, ainda, expõe Marques (1999, p. 498):
[...] É da inércia do Estado que surge a prescrição. Atingido ou ameaçado um bem jurídico penalmente tutelado, é a prescrição uma decorrência da falta de reação contra o ato lesivo ou perigo do delinquente. Desaparece o direito de punir porque o Estado, através de seus órgãos, não conseguiu, em tempo oportuno, exercer a sua pretensão punitiva.
Por seu turno, Gomes (2009), ao conceituar prescrição, a retrata como a perda pelo Estado do ius puniendi concreto ou da pretensão executória em razão de sua inércia e do transcurso de determinado tempo. Isso em razão de que o direito punitivo do Estado não é eterno e se extingue depois de transcorrido certo lapso de tempo, com raras exceções (GOMES, 2009).
Ainda, sob outro olhar, o Estado estabelece critérios que limitam o exercício de seu poder de punir, fixando o lapso temporal pelo qual estará legitimado a aplicar a sanção penal correspondente de acordo com a gravidade da conduta e da sanção penal e, assim, escoado esse prazo, prescreve o direito estatal à punição do infrator, dado que não pode eternizar-se a pretensão punitiva (BITENCOURT, 2006).
Consoante doutrina de Nucci (2009), o não exercício em determinado espaço de tempo do direito de punir acarreta em sua perda, de maneira que ao Estado não mais interessa a repressão do crime, tendo em conta que o infrator não reincidente, readaptou-se à convivência social.
Perceptível, pois, que a prescrição penal decorre da inércia do Estado, que deixa fluir o tempo em demasia sem se utilizar do poder-dever de punir. Uma vez decorrido longo prazo, essa inércia apaga a possibilidade de punição do agente infrator, extinguindo sua punibilidade, realçando, assim, o sentimento de que o tempo apaga os efeitos do crime.
Após discorrer acerca da conceituação do instituto da prescrição, faz-se necessário explanar os aspectos relacionados à origem da prescrição, em especial, apontando os momentos históricos do avanço de sua aplicação.
2.2 A Origem e Evolução da Prescrição Penal
O instituto da prescrição é um tema muito antigo no campo do direito punitivo. Apesar de algumas divergências quanto ao exato momento de seu surgimento, é comum o entendimento de que a prescrição da pretensão punitiva surgiu em Roma, no ano de 17 ou 18 antes de Cristo, durante o governo do Imperador Augusto, por meio de edição da Lex Julia de adulteriis (SANTOS, 2010).
Segundo Jawsnicker (2008), a Lex Julia de adulteriis fixava o prazo de cinco anos para os crimes nela previstos, tais como adultério, estupro e lenocínio, sendo que, com o passar do tempo, os romanos estenderam o reconhecimento da prescrição para a generalidade dos crimes, ficando excetuados da regra somente os crimes de parricídio, apostasia e parto suposto, ou seja, estes eram considerados imprescritíveis.
A imprescritibilidade desses delitos foi reconhecida pelo direito romano em razão de serem considerados crimes gravíssimos. Haja vista os romanos considerarem a família uma instituição sagrada, a morte do chefe de família pelo filho (crime de parricídio) não podia ficar sem punição, independente do tempo transcorrido; no delito de apostasia, em virtude da influência do Cristianismo, religião oficial, buscava-se evitar a perda de seguidores, sob ameaça de punição eterna; no parto suposto, considerando a imprescritibilidade do estado das pessoas, a punibilidade também deveria ser imprescritível (BALTAZAR, 2003).
Posteriormente, o prazo prescricional foi estendido para vinte anos para a totalidade de delitos, exceto para aqueles previstos na Lex Julia de adulteriis, que se manteve em cinco anos (BALTAZAR, 2003). Além disso, ressalta-se que, até então, os regramentos existentes tratavam apenas da prescrição da pretensão punitiva, não havendo discussões quanto à executória (BALTAZAR, 2003).
No mesmo ponto de estudo, Jawsnicker (2008) explana que o Direito Romano alargou o prazo prescricional para vinte anos, restando mantida, entretanto, a prescrição qüinqüenal para os crimes previstos na Lex Julia de adulteriis e para o crime de peculato. Relata ainda que, como ocorreu em outros aspectos do direito, Roma influenciou as legislações penais posteriores, de forma que a prescrição da pretensão punitiva foi admitida pelo Direito Germânico e de outros povos (JAWSNICKER, 2008).
Nesse sentido, Trippo (2004) refere que, posteriormente à queda do Império Romano - marco inicial da Idade Média -, em que pese o direito dos povos bárbaros invasores ignorasse a prescrição, por terem um grau de evolução jurídica inferior, os preceitos de Roma foram ressuscitados pelos jurisconsultos italianos, de forma que as fontes romanas serviram de base para a edificação de um sistema jurídico, que abarcou as regras prescricionais.
Entretanto, no decorrer da Idade Média, vislumbrou-se forte redução dos prazos prescricionais, gerando críticas contundentes ao instituto da prescrição penal, que, por seu turno, resultaram no aumento do lapso dos prazos prescribentes, dificultando a ocorrência da causa extintiva de punibilidade, como efeito direto da voz dos críticos (PORTO, 1998).
Da mesma forma, Baltazar (2003) leciona que, na Idade Média, os prazos prescricionais sofreram enorme redução, o que provocou apreciações negativas do instituto, prevendo-se, inclusive, seu desaparecimento. Para contornar a situação, os prazos prescricionais foram ampliados de maneira indiscriminada, com a fixação do prazo de dez anos para inúmeros delitos, sem qualquer distinção acerca da gravidade, como também, por outro lado, a imprescritibilidade passou a abranger maior número de crimes (BALTAZAR, 2003).
Assim, é possível verificar que a prescrição já aplicada à época do Império Romano sofreu apagamento quando da queda do império, vindo a emergir novamente por trabalho dos jurisconsultos italianos. Ademais, após redução considerável dos prazos, que, por certo, resultavam em muitos casos de extinção de punibilidade, as críticas praticamente suprimiram o instituto. Entretanto, retornou a prescrição penal com força quando do aumento de seus prazos.
Por sua vez, a modalidade de prescrição da pretensão executória teve origem bem mais recente, em 1791, na França (JAWSNICKER, 2008). Ademais, essa espécie de prescrição foi introduzida pelo Código Penal Francês com prazo de trinta anos, após já ser reconhecida pela jurisprudência das Cortes:
[...] o antigo direito Francês adotará como regra, o prazo de vinte anos, dos romanos, assim como o princípio da não prescrição de alguns crimes [...] como a prescrição se veio insinuando na prática, até sua consagração na legislação, por via do critério de que as condenações deveriam ser executadas dentro de trinta anos, porque do contrário estariam prescritas (CARVALHO FILHO, 1944, p. 190-191, apud JAWSNICKER, 2008).
Nesse sentido, observa-se que, apesar da prescrição executória receber status de lei em 1791, o Direito Francês já vinha adotando na prática este instituto em situações em que o Estado fracassava, por longo lapso temporal, em dar cumprimento ao edito condenatório.
2.3 A Prescrição Penal: do Brasil Colônia à Atualidade
O direito penal brasileiro adotou o instituto da prescrição punitiva em 1832, com a entrada em vigor do Código de Processo Criminal, o qual refutava expressamente a prescrição executória, que somente foi acolhida pelo ordenamento interno em 1890, por meio do Decreto nº 774, do dia 20 de setembro daquele ano (SANTOS, 2010).
No Código de Processo Penal de 1832, havia prazos prescricionais diferenciados para três categorias de delitos: crimes e contravenções de competência do juiz de paz (prescrição em um ano para o culpado presente e de três anos para o ausente em local sabido); para os delitos afiançáveis (prescrição em seis anos para o presente e dez anos se estivesse ausente, mas em lugar conhecido dentro do Império); para os crimes inafiançáveis, o prazo era de dez anos quando estive o acusado no lugar da culpa (BALTAZAR, 2003).
Antes dessas datas, não se tem notícia do reconhecimento da prescrição pelas legislações vigentes na época do Brasil Colônia: Ordenações Afonsinas e Manoelinas. Já as Ordenações Filipinas expressamente ignoravam o instituto da prescrição, seja da pretensão punitiva estatal, seja da pretensão executória (SANTOS, 2010).
A ausência de regras relativas à aplicabilidade da prescrição nas normas em vigor no período Brasil Colônia é tida como natural, visto que os textos normativos eram extremamente severos, não cuidando de qualquer instituto que pudesse ser reconhecido como humanista - caso da prescrição, que era, não raras vezes, intitulado de prêmio à impunidade (BALTAZAR, 2003).
O Código Penal da República (1890) não previa nenhum caso de imprescritibilidade e trouxe a novidade da prescrição executória, sendo que tanto a prescrição da ação quanto a prescrição da condenação observavam os mesmos prazos (BALTAZAR, 2003). Salvo nos casos de queixa privada, em que o prazo prescricional era de seis meses, e nos delitos de lenocínio e adultério, cujo prazo era de três meses, a prescrição se regulava pelo mesmo prazo do tempo da condenação e era contada entre a data do fato e o trânsito em julgado, com apenas uma causa interruptiva, a pronúncia (BALTAZAR, 2003).
Posteriormente, veio a reforma do Código Penal de 1890, por meio do Decreto nº 4.780, de 27 de dezembro de 1923, que introduziu um único caso de crime imprescritível, o delito de moeda falsa quando estivesse o acusado em país estrangeiro (SCHMIDT, 1997). Outro ponto importante da reforma foi que a prescrição passou a ser regulada pela pena máxima em abstrato prevista ao delito, bem como foram acrescentadas mais duas causas interruptivas da prescrição, o despacho confirmatório da pronúncia e a sentença condenatória recorrível (SCHMIDT, 1997).
Relevante também é que a reforma de 1923 inseriu no sistema normativo a prescrição da pretensão punitiva intercorrente, analisada entre a sentença condenatória e o trânsito em julgado, entretanto, tendo como base a pena imposta na sentença, ao contrário das demais modalidades, que eram calculadas pela pena em abstrato (SCHMIDT, 1997).
Na mesma época, surgiram as primeiras discussões doutrinárias e jurisprudenciais acerca da possibilidade de aplicação da prescrição retroativa, em que seria considerada a pena aplicada na sentença, com a contagem do prazo prescricional desta para trás, sob o argumento de que, em caso de sentença condenatória não recorrida pelo órgão acusador, não poderia ocorrer agravamento da pena em recurso defensivo, em vista da vedação do reformatio in pejus (BALTAZAR, 2003).
O Código Penal de 1940 trouxe novo entendimento quanto à prescrição; deixou de empregar a prescrição como causa de extinção da ação e da condenação para utilizá-la como causa extintiva de punibilidade, haja vista que atua diretamente sobre o poder de punir do Estado, cessando a punibilidade de determinado fato criminoso (SCHMIDT, 1997). Demais disso, o ordenamento ampliou os prazos prescricionais, fixando o prazo mínimo em dois anos para crimes com pena máxima inferior a um ano e o prazo máximo em vinte anos para delitos com sanção máxima superior a doze (SCHMIDT, 1997).
Atualmente, a prescrição penal tanto punitiva quanto executória está disciplinada no Código Penal brasileiro, promulgado pelo Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940, sendo que a matéria atinente à prescrição sofreu algumas alterações com a reforma de 1984, em especial, no tocante à introdução, em texto de lei, da prescrição retroativa, até então, objeto de controvérsias da jurisprudência (BALTAZAR, 2003).
2.4 A Imprescritibilidade Penal no Ordenamento Pátrio
Em uma análise histórica, Jawsnicker (2008) relata que, no decorrer do tempo, a imprescritibilidade tem sido uma constante no ordenamento do país, entretanto, assumindo diferentes formas. No período colonial, a imprescritibilidade era a regra para todos os delitos, tanto a pretensão punitiva quanto a executória se prolongavam no tempo, sem limite (JAWSNICKER, 2008).
No Brasil Império, a prescrição da pretensão punitiva foi acolhida em 1832, com o Código Processual Criminal, todavia, a prescrição das penas ainda não era albergada, sendo que, somente após a proclamação da República, com a vigência do primeiro Código da República (1890), a imprescritibilidade das penas foi abrandada (JAWSNICKER, 2008).
Posteriormente, em 1932, com a entrada em vigor da Consolidação das Leis Penais, bem como, mais recentemente, em 1985, com a vigência da Lei 7.209/84, e, por fim, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a imprescritibilidade apagou-se do cenário nacional como regra para se tornar verdadeira exceção (JAWSNICKER, 2008).
Em explanação mais abrangente, Schmidt (1997) esclarece que a reforma normativa introduzida pela Lei 7.209/84, de 11/07/1984, baniu qualquer modalidade de imprescritibilidade, seja punitiva, seja executória. No entanto, o instituto da imprescritibilidade retornou a vigorar no país com a promulgação da Constituição Federal de 1988, reacendendo a não influência do tempo em determinadas espécies de crimes (SCHMIDT, 1997).
Com o advento da Constituição Federal de 1988, a imprescritibilidade somente passou a ser admitida em duas espécies de crimes, quais sejam, racismo e ações de grupos armados civis ou militares contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, possibilidades que estão inseridas no artigo 5º, incisos XLII e XLIV, da Carta Magna (SANTOS, 2010).
2.5 O Debate Jurídico em Torno da Imprescritibilidade Penal
Quando se fala em imprescritibilidade, muitas questões vêm a foco. A doutrina pátria tem debatido com ênfase alguns pontos relevantes, entre eles pode-se destacar: a retroatividade ou não a fatos anteriores à promulgação da Constituição de 1988; a (im)possibilidade de alargamento do rol de crimes de imprescritíveis; e, caso acolhido, qual o meio legislativo competente.
Não menos incisivas são as discussões concernentes à viabilidade da imprescritibilidade às bases sociais, bem como à legitimidade das modalidades de imprescritibilidade encartadas na Constituição Federal, haja vista ser inegável a existência de muitos delitos mais gravosos no rol de condutas criminalizadas, aliás, este o ponto cerne do presente artigo.
Note-se que, em observância ao princípio da irretroatividade de norma penal mais gravosa ao infrator e tendo em conta que, entre a vigência da Lei 7.209/84 e a promulgação da Carta Maior de 1988, não havia previsão de crimes imprescritíveis, se torna inviável a aplicabilidade da imprescritibilidade a fatos ocorridos antes da vigência da Lei Suprema de 1988 (JESUS, 2003).
Continua Jesus (2003) referindo que, não obstante haja discussões acerca de tal posição, se mostra descabível retroagir norma constitucional tendente a causar prejuízo ao agente, isso porque seria desobedecer a mandamento encartado na própria carta constitucional.
Em sentido contrário, Rocha (2007) entende que as previsões constitucionais de imprescritibilidade retroagem a fatos anteriores à promulgação da Constituição Federal de 1988, desde que não alcançados pela prescrição à época da entrada em vigor do texto constitucional. Nesses casos, a retroatividade seria possível, dado que a entrada em vigor da Constituição ocorreu ainda quando existente o poder de punir do Estado e o texto elege, de forma expressa, a impossibilidade de prescrição (ROCHA, 2007).
Avaliando a possibilidade de retroatividade, Rocha (2007, p. 884-885):
Não se trata de aplicação de norma penal prejudicial ao réu retroativamente, mas em relação a pretensões que são viáveis e ainda podem ser satisfeitas. Nesse caso, não se pode alegar que a Constituição proíbe, no inc. XL do art. 5º, a aplicação retroativa do disposto penal prejudicial ao réu. A imprescritibilidade dos crimes ainda não atingidos pela prescrição não importa aplicação retroativa. De qualquer forma, a restrição constitucional refere-se aos dispositivos legais, e não aos constitucionais.
Sob outro enfoque, ao analisar a previsão constitucional de imprescritibilidade, Capez (2005) expõe pensamento no sentido de que a prescrição do poder punitivo do Estado é direito individual do infrator, de modo que não poderiam ser ampliadas as hipóteses de imprescritibilidade, nem mesmo por meio de emenda constitucional, haja vista se tratar de cláusula pétrea, elencada no artigo 60, § 4º, IV, da Constituição Federal. Dessa forma, não poderiam ser admitidas emendas constitucionais com o fim de restringir o direito individual do cidadão-infrator à prescrição penal (CAPEZ, 2005).
Na visão de Santos (2010), as previsões de imprescritibilidade não se tratam de direito individual do cidadão, posto a ausência de qualquer referência a respeito no diploma constitucional, pautando-se as regras inseridas no artigo 5º, incisos XLII e XLIV, do Magno Diploma, de meras regras de imprescritibilidade, descabendo, pois, a postura de ter a imprescritibilidade status de cláusula pétrea.
Ainda, alude Santos (2010) que o Constituinte, ao criar norma específica sobre a imprescritibilidade do crime de racismo, buscou apenas alargar a proteção às vítimas do crime racial, sem o intuito de que isso gerasse direito aos infratores de outras modalidades de crimes, tampouco a impossibilidade de ampliar o rol de crimes imprescritíveis. Em verdade, a proposição teve como finalidade a criação de direito individual à vítima de racismo e não aos infratores de outros crimes (SANTOS, 2010).
Dando continuidade à lição, Santos (2010) ensina que, partindo do pressuposto de que a imprescritibilidade é direito individual das vítimas e não dos infratores de outros delitos, a criação de novas modalidades de crimes imprescritíveis não viola direito algum, pelo contrário, assegura a novas vítimas direito novo. Nesse condão, o reconhecimento de novos delitos como imprescritíveis estaria de acordo com a previsão do art. 5º, § 2º, do Texto Constitucional, que, em suma, dispõe que os direitos e garantias expressos na constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados (SANTOS, 2010).
Demais disso, sob esse entendimento, ficaria aberta a possibilidade da imprescritibilidade ser estendida a outros delitos por meio de previsões em tratados e convenções, vez que estes podem ser incorporados pelo texto constitucional, por aprovação do Congresso Nacional, com status de emenda constitucional, por força do § 3º do artigo 5º da Constituição Federal (SANTOS, 2010).
Assim, está aberto na doutrina amplo debate acerca da possibilidade ou não de alargar as situações de crimes imprescritíveis. Inobstante isso, entre os doutrinadores que aceitam a possibilidade de inclusão de novas modalidades no ordenamento pátrio não há unanimidade quanto ao meio idôneo. Há quem diga que é indispensável emenda constitucional; por outro lado, o uso de legislação infraconstitucional também é defendido.
Para Rocha (2007), a imprescritibilidade é exceção à regra, posto que se deve evitar o prolongamento excessivo da relação jurídica que possibilita a aplicação do poder punitivo, sendo essa exceção escolha política que reconhece gravidade especial a determinados fatos e, assim, só podem ser identificadas por opção política-constitucional, de forma que o legislador infraconstitucional não poderia alargar as possibilidades de crimes imprescritíveis.
Em opinião diversa, Santos (2010) entende que novas normas de imprescritibilidade podem ser introduzidas por meio de leis ordinárias, visto que nenhuma regra de criação formal de normas estabelece alguma proibição. Ainda refere que a ausência de normas infraconstitucionais sobre o tema decorre de que, à época da promulgação do Código Penal e da reforma da parte geral em 1984, o ordenamento jurídico estava sob a égide de outros textos constitucionais e não da atual Constituição (SANTOS, 2010).
Como é possível perceber, a pesquisa a respeito do tema imprescritibilidade, deparou-se, até o momento, com uma redoma de discussões: a retroatividade ou não a fatos ocorridos antes da promulgação da Constituição de 1988; a (im)possibilidade de alargamento do rol de crimes de imprescritíveis; e, sendo possível, qual o meio legislativo adequado.
Além desses pontos, tem-se necessária a apresentação de debate doutrinário quanto à viabilidade da imprescritibilidade frente aos anseios da sociedade, bem como acerca da legitimidade das espécies de imprescritibilidade preceituadas na Carta Maior, tendo em conta a existência de outros delitos de maior gravidade.
De acordo com Zaffaroni e Pierangeli (2004), não há razão para a imprescritibilidade, de forma que todos os delitos deveriam estar sujeitos à prescrição. Entretanto, recentemente vários movimentos internacionais têm reafirmado o esforço pela imprescritibilidade de crimes atentatórios à paz e à humanidade, em especial, quanto a crime de genocídio e a outros puníveis com pena de morte e prisão perpétua (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004).
Em que pesem os movimentos existentes, o ensinamento de Zaffaroni e Pierangeli (2004) é de que não existe, no rol de crimes, conduta - por mais hedionda que seja – merecedora de imprescritibilidade, haja vista que as expectativas da sociedade de afirmação da ordem jurídica não perduram indefinidamente. Isso porque a aversão da sociedade e a revolta decorrente do crime, bem como a cobrança por justiça vão enfraquecendo com o decorrer do tempo (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004).
No mesmo sentido, Trippo (2004) aduz que a imprescritibilidade deveria ser substituída pela majoração dos prazos prescricionais, porém, com respeito ao limite de trinta anos, ponto culminante da ação punitiva, na forma do artigo 75 do Código Penal, que representa patamar máximo das penas e do tempo de cumprimento de pena privativa de liberdade.
Por outro lado, Beccaria (2003) expõe pensamento no sentido de que, em se tratando de crimes horrendos, que perduram na lembrança da sociedade por muito tempo, se houver comprovação dos mesmos, não deve ocorrer a prescrição em favor do culpado, que, no mais das vezes, evita o castigo pela fuga. Entretanto, para os delitos de pequena importância, sem grave abalo social, se deve determinar prazo para que o infrator, exilado voluntariamente, possa retornar ao convívio social, sem temer novos castigos (BECCARIA, 2003).
Importante discussão também ocorre quanto à legitimidade das modalidades de imprescritibilidade previstas no texto constitucional. Conforme Trippo (2004), a Constituição Federal, em primeira ordem, visa à inviolabilidade do direito à vida, o mais importante bem jurídico, razão pela qual merece maior rigor da tutela penal. Desta feita, a imprescritibilidade da ação de grupos armados contra a ordem constitucional não se mostraria razoável ante os valores encartados, posto que há valorização maior da democracia e da ordem constitucional do que da vida (TRIPPO, 2004).
Em análise comparativa entre as penas previstas para as condutas especificadas na Lei 7.716/89 (Lei de Crimes Raciais) e dos crimes de homicídio e latrocínio, Trippo (2004) refere que não se verifica pena maior de cinco anos de reclusão para delitos raciais, comportando suspensão da pena, início de cumprimento em regime aberto, anistia, graça e indulto; todavia, para os referidos crimes contra a vida, a pena máxima alcança trinta anos, em regime de cumprimento inicial fechado, sendo vedados indulto, graça e anistia, em razão da hediondez.
Nesse contexto, a crítica de Trippo (2004) é no sentido de que os ilícitos raciais não estão incluídos entre os mais gravosos do sistema penal brasileiro, de forma que se mostram abaladas a lógica e a credibilidade desse sistema ao se observar que a resposta do ius puniendi é perpétua no caso de crimes de racismo e transitória em delitos mais graves.
Arremata Trippo (2004) aduzindo que o senso comum do povo brasileiro considera o racista menos perigoso que o latrocida e o homicida, posto que aquele não fere o bem maior, demonstrando-se, assim, que a Constituição Federal afastou-se da autodefinição da sociedade, o que configura a desproporcionalidade da imprescritibilidade do crime de racismo. Ademais, cita que a imprescritibilidade não modificará o preconceito racial do brasileiro, fruto de mentalidade colonialista, que exige mudança cultural, socialização da educação, melhor distribuição de renda e não rigor da lei (TRIPPO, 2004).
Verificável, portanto, que muitos pontos atinentes à matéria da imprescritibilidade são alvos de discussões e críticas doutrinárias. Por oportuno, mister esclarecer que serão retomadas adiante, visando trazer ao leitor as conclusões pertinentes acerca da celeuma jurídica.
3. CONCLUSÃO
A respeito da problemática em torno da imprescritibilidade penal, vem a lume, em primeiro momento, a questão da possibilidade ou não das regras de imprescritibilidade retroagirem a fatos não alcançados pela prescrição entre a vigência da Lei 7.209/84, que não reconhecia a imprescritibilidade, e a promulgação da Carta Maior de 1988. No ponto, considerando o princípio constitucional da irretroatividade de norma penal mais gravosa ao infrator, parece inconcebível que haja retroatividade a esses fatos.
Outro ponto relevante é a possibilidade ou não de estender a imprescritibilidade a outros delitos em razão da suposta condição de cláusulas pétreas das duas espécies previstas no texto constitucional. Quanto a essa indagação, o entendimento de que a imprescritibilidade é direito individual da vítima e que as duas espécies previstas na Lei Maior não configuram direito individual dos infratores de outros delitos merece maior crédito. Assim, em tese, não se mostraria inviável a criação de novas situações de imprescritibilidade, visto que se estaria ampliando a gama de direitos individuais, o que é possibilitado pelo § 2º, do artigo 5º, da Constituição Federal.
Aceita a possibilidade de expansão das espécies de imprescritibilidade, deve ser ressaltado que só poderá se dar o alargamento por meio de emenda constitucional, uma vez que as previsões existentes na atualidade estão encartadas na Constituição Federal, o que, afasta do legislador infraconstitucional a competência para tal matéria.
Ainda quanto à imprescritibilidade, entende-se que merece acolhida quando se trata de crime, excessivamente, maléfico à sociedade, como, por exemplo, no caso de genocídio, de maneira que o instituto da imprescritibilidade, sob esta ótica, não se mostraria em descompasso com os interesses da sociedade.
Entretanto, há visível desproporcionalidade quando observado que crimes mais gravosos, atentadores de bens jurídicos de maior relevância (a exemplo da vida), não recebem a mesma tutela jurídica do texto constitucional que é dada ao crime de racismo e às ações de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, pelo que, salvo melhor juízo, as modalidades de imprescritibilidade abarcadas pelo texto constitucional não se mostram legitimadas frente aos princípios que regem a sociedade brasileira.
REFERÊNCIAS
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 6023: informação e documentação: referências: elaboração. Rio de Janeiro, 2002.
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Advogada. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FAVERI, Fernanda Cristina Weirich de. A ilegitimidade das hipóteses de imprescritibilidade penal expressas no texto constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 out 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47685/a-ilegitimidade-das-hipoteses-de-imprescritibilidade-penal-expressas-no-texto-constitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
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