ÂNGELA REGINA BINDA: Doutora em Letras pela UFES e professora do UNESC.
RESUMO: O presente artigo trazendo como assunto central a criminalização do aborto possui como objetivo avaliar a veracidade e adequação da norma no ordenamento jurídico brasileiro. Efetua, assim, não só, uma análise crítica e científica sob os argumentos utilizados para defesa da lei punitiva dando ênfase nas contradições legislativas pátrias, como também, observa através de uma perspectiva metodológica baseada na constitucionalidade e eficácia se tal norma possui total legalidade, ora, quanto a sua aplicação, ora, quanto aos resultados sociais obtidos. Enfatiza, portanto, a importância de que seja buscada na criação e/ou alteração da lei criminalizatória meios justos de acordo com a realidade social, para que então, seja alcançada a completa segurança jurídica no que diz respeito a direitos inerente do cidadão como: à vida, livre planejamento familiar e laicidade estatal.
Palavras-Chave: Aborto, criminalização, contradição, inconstitucionalidade, direito à vida.
INTRODUÇÃO
Este artigo tramitando nos campos do direito constitucional, civil e penal, tendo como base estudos realizados por especialistas do Direito como José Henrique Rodrigues Torres entre outros, se trata de uma tentativa de promover uma melhor análise jurídica quando a um assunto de extrema importância societal: a tipificação do abortamento como crime pelo Código Penal Brasileiro. Esta questão tem tido nítida relevância para a sociedade atual, uma vez, que tem levantado diferentes argumentos e dividido opiniões nos âmbitos científicos, legais, políticos e religiosos.
O artigo oferece uma observância jurídica quanto ao direito à vida e demarcar a importância de distinguir cientificamente o seu marco inicial. Possui ainda, o intuito de promover uma análise perspicaz e legal sobre a norma jurídica proibitiva em questão. Com isso, busca destacar, ora, inconstitucionalidades e contradições presentes na criminalização abortiva, ora, a violações de princípios inerentes considerados fundamentais quanto à aplicação do Direito Penal. O que resulta, portanto, não só, na ineficácia da aplicabilidade da lei - uma vez que não controla problema social em questão, promovendo, assim, um efeito contrário que culmina no aumento gradativo da realização do aborto de forma ilegal -, como também, em uma falha tentativa do Estado em proteger a vida do nascituro em detrimento a vida da mulher questionando, assim, a proteção jurídica que o Estado deveria oferecer a todos os direitos prometidos aos cidadãos.
Desse modo, buscamos oferecer uma visão crítica sob as dimensões da legalidade, veracidade e eficácia no que diz respeito à norma punitiva do aborto. Colocamos em evidência contradições de direitos pátrios, resultando, portanto, numa norma penal inconstitucional, isto é, há uma existência de conflitos e inadequações da lei que proíbe o aborto com as normas da Constituição Federal, o que torna sua validade contestável, tendo em vista que a Constituição Federal é lei de maior relevância no país.
Por fim, demonstra-se de importância crucial o estudo do tema aqui tratado. Pois, se trata de direitos. E por isso, devem ser conhecidos e analisados para que haja, não só, uma proteção ampla e correta dos mesmos, como também, para que se pensem formas de promover melhorias auxiliando, portanto, as questões sociais emergentes.
1 A INVIOLABILIDADE À VIDA E A IMPORTÂNCIA DO SEU MARCO INICIAL
De acordo com a Constituição Federal (1988) - norma hierarquicamente superior na jurisdição brasileira - em seu artigo 5º, caput, na parte dos deveres e direitos individuais e coletivos, consta a garantia da inviolabilidade do direito à vida. Sendo essa, portanto, um bem jurídico fundamental, pressuposto de todos os demais direitos tutelados no ordenamento jurídico pátrio (FALCÃO apud BRANCO, 2012, p.1). Inicialmente, nota-se que em virtude deste princípio a interrupção da gravidez resultando na morte do feto em formação é tratada no Código Penal Brasileiro (1940) em seus artigos 124 a 128 como uma conduta criminosa. Isto porque, a prática do aborto (na realidade, abortamento, que é a conduta, enquanto que o aborto é o resultado) é etiquetada como crime contra a vida humana, violando supostamente então, um dos direitos personalíssimos mais importantes resguardados na Constituição Federal (CARVALHO, 2013).
O Código Civil Brasileiro (2002) admite em seu artigo 2° parágrafo único, que o critério para aquisição de personalidade civil da pessoa é somente o nascimento com vida, todavia, a lei põe salvo desde a concepção do feto, mesmo que ainda não veio à luz, os direitos do nascituro que devem ser protegidos, o que reflete diretamente a na tentativa do Estado de proteger a vida do feto criminalizando o abortamento.
De fato, a vida, como bem fundamental à sociedade, merece proteção estatal. Entretanto, para tratar da existência humana faz-se necessário estudar o seu marco inicial, posto que isso, influenciará diretamente em quando de fato a vida deverá começar a ser protegida (CARVALHO, 2013). Contudo, pondo em campos opostos à religião e a ciência, é possível identificar divergências quanto ao seu tempo de iniciação.
Alguns juristas especialistas na área discutem que “é inegável, no entanto, que, para efeitos da criminalização do abortamento, a influência da religião, particularmente a cristã, tem especial importância para que o legislador tenha considerado a concepção o início da vida” (CARVALHO, 2013, p.3).
Não obstante, é interessante pontuar que o conceito de início da vida sofre variâncias conforme a religião adotada. Por exemplo, para o Judaísmo a vida se inicia após 40 dias da fecundação, quando se começa aquisição de formas por parte do feto. Outro exemplo é o Islamismo, que o ponto inaugural da vida seria o 120º dia posterior à fecundação, momento este em que Alá sopraria a alma no corpo do feto, Entretanto, para o catolicismo o momento de inicio da vida seria a concepção, isto é, desde a fecundação, quando há uma fusão dos gametas femininos e masculinos que dará origem ao zigoto (FALCÃO, 2012).
Carvalho (2013) apresenta em seu artigo “Inconstitucionalidade da criminalização do aborto”, que se tratando do fator religioso deve-se atentar que o Brasil é um Estado laico, ademais, nenhum argumento religioso pode ser utilizado na esfera pública sem tradução racional. Ou seja, para que a ideia seguida pela religião católica de que a vida começa com a concepção seja considerada válida no âmbito público, deve haver uma explicação científica que a fundamente, não sendo suficiente a palavra de Deus, de modo que, o legislador não deve ignorar a ciência e agir somente com embasamento religioso.
Ainda segundo Carvalho (2013) a lei não deixa em evidencia o momento de iniciação da vida, contudo, se buscarmos uma resposta no ordenamento jurídico pátrio, é possível identificar o critério utilizado pelo legislador para se definir o momento da morte [grifo nosso] na Lei de Transplante de Órgãos, que consiste na morte encefálica, isto é, a completa irreversível parada das funções de cérebro.
Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica [grifo nosso], constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina. (Art. 3º da Lei 9.434 de 1997) [1]
Diante disso, há um esclarecimento de que se o momento da morte é quando há uma parada das funções cerebrais, a contrario sensu[2], o momento de início da vida é quando o feto houver iniciado o desenvolvimento de atividade cerebral equivalente à pessoa humana (CARVALHO, 2013).
No entanto, somente durante a quarta semana se inicia a formação do tubo neural que é a estrutura onde, posteriormente, serão desenvolvidos o cérebro e a medula espinhal. E somente após o fim da oitava semana é que ocorrem os primeiros movimentos voluntários dos membros, momento pelo qual se pode dizer que há alguma, ainda que mínima, atividade encefálica, de tal modo que, o feto passa a ter características indubitavelmente humanas (MOORE e PERSUAD apud CARVALHO, 2013, p.4).
Logo, é totalmente inapropriada a utilização de argumentos religiosos, tal qual o início da vida ocorre com concepção, para justificar a criminalização do aborto. Tal argumento não possui qualquer interpretação científica, e sim religiosa, violando assim a laicidade que o Estado deveria possuir (CARVALHO, 2013), e até mesmo a Constituição Federal que proclama esclarecidamente que “ninguém será privado de direitos por motivos de crença religiosa [...]” (Constituição Federal, 1988, p.9), tornando-se, portanto, uma norma inconstitucional e inviável quanto à utilização na esfera pública (CARVALHO, 2013).
1.1 A INEFICÁCIA DA NORMA E A PONDERAÇÃO ENTRE OS DIREITOS DAS MULHERES E A PROTEÇÃO DO FETO
De acordo com o Ministério da Saúde (2008) a tipificação do aborto como crime pelo Estado faz com que mulheres recorram cada vez mais por métodos alternativos e inseguros de fazê-lo e, consequentemente, tendo a vida colocada em risco, já que aborto é considerado a quinta maior causa de mortalidade materna no país. Um estudo feito pela Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) realizado em 2010 constatou que uma em cada cinco mulheres já fizeram aborto e que metade deste numero tratam-se de abortos induzidos. Cinco anos depois, uma pesquisa publicada em 2015 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que 8,7 milhões de brasileiras com idade entre 18 e 49 anos já fizeram ao menos um aborto na vida, sendo que 1,1 milhão de abortos foram provocados. Nota-se, portanto, que ambos os resultados coincidem quanto à conclusão: “no Brasil, evidentemente, a criminalização tem sido pífia, não tem impedido a realização dos abortos. Então se a criminalização é adotada para combater o aborto e proteger a vida dos fetos, isso tem sido totalmente ineficaz” (FERNANDES apud TORRES, 2013, p.2).
Sendo assim, segundo defensores dos Direitos Humanos o expressivo e crescente índice de mortes femininas em virtude da realização do aborto alternativo questiona o princípio da inviolabilidade da vida e a dignidade da pessoa humana. Vale evidenciar, que estes direitos deveriam ser garantidos e protegidos pelo próprio Estado brasileiro, uma vez que a Constituição Federal (1988) põe a salvo, no caput do art. 5° - como já fora citado - a sua pretensão em proteger toda a vida e claramente distingue o fenômeno vida como inviolável (IBAIXE, 2008).
Desse modo, faz-se necessário observar que pela perspectiva da asseguração dos direitos da mulher e não mais pela a do nascituro, a legislação brasileira ao criminalizar o aborto contradiz um dos princípios inerentes ao ser humano: a vida. Isto é, se o dever do Estado é, portanto, garantir qualquer que seja a potencialidade de vida, deveria também assegurar a existência da mulher em questão, o que não ocorre, já que mulheres que recorrem por meios incertos para métodos abortivos tem a vida posta em risco e extinção da medida protetiva desse direito (MARTINELLI apud TORRES, 2011, p.4).
O juiz de direito, professor de Direito Penal da PUC – Campinas, membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e da Associação Juízes para a Democracia, Torres (2011) explica que assim como assegura a Constituição Federal:
Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos [...] para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988, p.68)
As mulheres possuem, não só, autonomia de determinar livremente o número de seus filhos, como também, decidir os intervalos entre seus nascimentos e sobre o próprio corpo. Tratando-se da maternidade opcional, possuem o direito a plena assistência no âmbito da saúde sexual e reprodutiva, a uma vida livre de morte materna evitável, liberdade de autodeterminação, controle sobre sua sexualidade e livre decisão sobre o exercício da maternidade. Além de informação e acesso aos serviços para exercer os seus direitos sem coerção, discriminação ou violência, uma vez que todos esses direitos são proclamados pelo sistema de proteção dos Direitos Humanos Femininos e incorporados ao sistema constitucional brasileiro. O Estado ao criminalizar o aborto contraria de modo flagrante os direitos humanos, sexuais e reprodutivos das mulheres. Pois, têm o dever e a obrigação jurídica e ética de garantir e assegurar o exercício de todos esses direitos uma vez que são tutelados pela lei maior do nosso ordenamento e, assim sendo, possui maior relevância segundo a hierarquização instituída.
Torres (2012) ainda cita, que segundo a Corte Europeia de Direitos Humanos diante da necessária ponderação entre os direitos das mulheres e a proteção do feto, ou seja, quando houver uma colisão desses princípios, devemos nos guiar pelo principio da proporcionalidade, em sua tripla dimensão: adequação, necessidade e proporcionalidade estrita.
No que diz respeito à dimensão sob a perspectiva da adequação, seu conceito baseia-se na existência da relação adequada entre um ou vários fins determinados, isto é, deve haver adequação entre o meio utilizado (proibição abortiva) entre o fim visado (diminuição dos casos). Nota-se que isto não ocorre já que “essa legislação punitiva tem levado as mulheres à clandestinidade, e não a não fazer o aborto” (FERNANDES apud TALIB, 2013, p.2).
Tratando-se sob a dimensão da necessidade sua definição diz que dentre as soluções possíveis deve-se optar pela menos gravosa, neste caso vista como a vida da mulher em questão, já que esta, de fato, já é dotada de direitos e deveres, uma vez que o nascituro[3] - segundo correntes natalistas[4] - “é mera expectativa de pessoa, por isso, tem meras expectativas de direito [...]” (ABDALA, 2008, p.40).
Por fim, no âmbito da proporcionalidade estrita cabe uma verificação da relação custo benéfico da medida, ou seja, observar se há eficácia entre os danos causados pela proibição e os resultados obtidos.
1.2 A INTERVENÇÃO MÍNIMA DO DIREITO PENAL E A VIOLAÇÃO DE SEUS PRINCÍPIOS INERENTES
Sabe-se que o direito penal é considerado como última rátio, ou seja, “último remédio”, última alternativa. Isto faz com que seja legítima a utilização do sistema punitivo usado pelo Estado somente quando ineficazes e inaplicáveis os demais ramos do direito para a regulamentação da situação. Isto faz com que deva ser utilizado como último instrumento em situações de punição, respeitando, consequentemente, o princípio da intervenção mínima (CARVALHO, 2013).
O direito penal moderno apresentar-se-ia como ultima ratio, de forma que deveria ser mínima a sua intervenção nas relações sociais, consoante seus preceitos de: a) idoneidade, a criminalização como meio útil para resolver o problema social; b) subsidiariedade, demonstração de inexistência de alternativas para a regulação da conduta indesejada; e c) racionalidade, comparação dos benefícios e dos custos sociais decorrentes da criminalização. (WEBER, apud CARVALHO, 2013, p.1).
Conclui-se então, que o direito penal é a última via a ser recorrida e, para que alcance a legitimidade deverá ser usado apenas após análise de seus preceitos, para só então haver a possibilidade de criminalização. É importante salientar que uma vez não havendo tal análise a criminalização contraria princípios jurídicos e democráticos (MARTINELLI apud TORRES, 2011, p.4). Olhando pela perspectiva do assunto aqui tratado, e tendo em vista que o aborto é considerado crime pelo Código Penal Brasileiro (1940) sendo tratado, portanto, no âmbito do direito penal, o abortamento para ser admitido pela lei pátria como criminoso e submetido à penalização deve passar previamente pela análise de tais requisitos, não sendo assim, viola princípios democráticos e consequentemente se torna inconstitucional (MARTINELLI apud TORRES, 2011, p.4).
O princípio da idoneidade, por exemplo, exige que a criminalização de qualquer conduta deva ser um meio útil para controlar um determinado problema social. Contudo, a criminalização do aborto tem sido absolutamente inútil, ineficaz e ineficiente para conter a prática dessa conduta. Basta lembrar que, de acordo com dados oficiais do Ministério da Saúde, são praticados mais de um milhão de abortos no Brasil todos os anos (MARTINELLI apud TORRES, 2011, p.4).
Torres (2011), em sua defesa a inconstitucionalidade da criminalização abortiva, não só pontua a falha do Estado ao controlar o problema social culminando, então, numa violação ao princípio de idoneidade que o direito penal deveria respeitar ao recorrer a sua aplicação, como também, descreve o conflito existente entre os dois outros princípios: subsidiariedade e racionalidade.
A criminalização do aborto também viola o princípio da subsidiariedade, que determina que, no processo democrático de criminalização, devem ser considerados os benefícios e os custos sociais causados pela adoção da medida proibicionista criminalizadora. Lembre-se de que o aborto inseguro, praticado na ilegalidade, é uma das principais causas de morte materna no Brasil, onde centenas de milhares de mulheres estão colocando em risco as suas vidas e a sua saúde para interromper gestações não desejadas.
O princípio da racionalidade, embasado na principiologia do Estado-Penal Mínimo e da ultima ratio, proclama que a criminalização somente se justifica quando não houver outros meios ou alternativas para o enfrentamento do problema social a ser arrostado. E é absolutamente inegável que o problema do aborto pode e deve ser enfrentado fora do sistema penal, de modo mais eficaz e não danoso, sem que as mulheres tenham que suportar os riscos do aborto inseguro. É infinitamente mais eficaz adotar políticas públicas de promoção da saúde das mulheres, em especial no âmbito da saúde sexual e reprodutiva [...], garantir informações sobre a sexualidade e o uso dos meios de anticoncepção e, ainda, garantir o acesso pleno aos meios anticonceptivos (MARTINELLI apud TORRES, 2011, p.4).
Por conseguinte, mais uma vez fica clara a inconstitucionalidade presente na norma ao criminalizar os métodos abortivos, não só no fato de que em primeira instancia não foi recorrido a outros meios para regulamentar a situação em questão, já que houve uma precipitada caracterização da conduta como criminosa, desrespeitando, portanto, a intervenção mínima do direito penal nas relações na esfera social, como também, houveram violações aos princípios democráticos elementares relativos a possibilidade de criminalização considerados primordiais e inerentes ao direito criminalista (TORRES, 2011).
CONCLUSÃO
Diante de todo o exposto neste artigo conclui-se que é inconstitucional, contraditória e ineficaz a criminalização genérica do crime de aborto.
A criminalização é Inconstitucional porque são apontados desacordos com a Constituição Federativa (1988). Há de fato, por exemplo, uma violação a garantia de não privar nenhum indivíduo de direitos por motivos de crença religiosa. Haja vista, que levar em conta como marco inicial da vida o momento da concepção é uma visão proferida pela religião, defendida sem quaisquer garantias cientificas e, portanto, se torna inaplicável no âmbito público. Desse modo, faz-se necessário questionar a validez da norma, já que as mulheres optantes por interromper a gravidez não possuem outros recursos, a não ser recorrerem por métodos ilegais, incertos e de riscos. Ou seja, são privadas do direito a um aborto seguro, o que nos faz questionar um dos princípios de maior relevância na jurisdição pátria: a inviolabilidade à vida, já que a Constituição possui pretensão em proteger a vida deveria fazer isso no sentido mais amplo possível, ou seja, o Estado deveria proporcionar garantias para proteger a vida da mulher, isto é, oferecer meios seguros pra aquelas que optarem pela realização do aborto.
Desse modo, a inconstitucionalidade da norma proibitiva também é provada através da banalização do Direito Penal. Isto é, no momento em que o Estado recorre ao direito criminalista punindo mulheres que realizam o procedimento interruptivo da gravidez é ignorada condições crucias para a sua aplicação, tornando, assim, sua aplicação banal. É violado o princípio da intervenção mínima do direito penal, que classifica sua utilização como ultima rátio, em último caso, e também, seus princípios regentes: idoneidade, subsidiariedade e racionalidade. Estes princípios são encarregados de fornecer a validez necessária para a utilização do direito penal. Resumem-se respectivamente em: verificar se norma criminalizatória posta analise é um meio útil para resolver o problema social, se é inexistente outros meios para regulamentar a conduta desejada e se na comparação dos benefícios e dos custos sociais decorrentes da criminalização há uma ponderação lucrativa.
A lei é contraditória, pois, o mesmo ordenamento jurídico que tipifica como crime a interrupção da gravidez através do Código Penal Brasileiro (1940), também garante na Constituição Federal (1988) fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável o direito livre das famílias planejarem quantos filhos terão e quando terão e ainda veta claramente qualquer medida coercitiva do estado no que diz respeito à interferência no exercício deste direito. Conclui-se, que a própria Constituição Federal expõe que o Estado não possui qualquer autonomia para interferir na escolha particular do planejamento familiar.
Por conseguinte, a norma ainda é ineficaz, porque a utilização de uma lei punitiva para tentar diminuir os casos de aborto, não faz com que os procedimentos diminuam e sim que mulheres recorram cada vez mais por meios alternativos de fazê-lo. O que culmina em um índice cada vez mais crescente de mortes femininas e de um resultado estatal falho na tentativa de solucionar o problema social, uma vez que o Estado tenta proteger a vida fetal e em detrimento disso a vida da mulher é posta em grande risco.
Logo, é inapropriada a utilização de uma lei que pune mulheres por efetuarem o aborto, já que após uma análise crítica e cientifica sobre o assunto conclui-se que a lei é inconstitucional, contraditória, ineficaz e violadora de princípios jurídicos. Não cabe à população ou a religião decidir sobre isso, uma vez que o tema para ser resolvido deve ser discutido sob uma visão cientifica e no âmbito da saúde pública, e não através de juízo de valor social, moral e religioso que tem sido responsável pela morte de inúmeras mulheres e por a transformarem em criminosas.
REFERÊNCIAS
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TALIB, Rosângela. Juristas e movimentos sociais pedem liberação do aborto no novo Código Penal. Rede Brasil Atual, São Paulo, n. 7, p. 2, 8 set. 2013. Entrevista concedida a Sarah Fernandes.
TORRES, José Henrique Rodrigues. Aborto e legislação comparada. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-67252012000200017&script=sci_arttext>. Acesso em: 12 de abr. 2016.
TORRES, José Henrique Rodrigues. Liberdades, São Paulo, n°7, p. 14-17, maio - agosto. 2011. Entrevista concedida a João Paulo Orsini Martinelli.
TORRES, José Henrique Rodrigues. Juristas e movimentos sociais pedem liberação do aborto no novo Código Penal. Rede Brasil Atual, São Paulo, n. 7, p. 2, 8 set. 2013. Entrevista concedida a Sarah Fernandes.
[1] Lei Ordinária nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fim de transplante e tratamento, e dá outras providências, resultada do Projeto de Lei do Senado de n° 6 de 1995 (CASA CIVIL, 1997).
[2] Em sentido contrário. Argumento de interpretação que considera válido ou permitido o contrário do que tiver sido proibido ou limitado (ADMIN, 2013, p.1).
[3] Aquele que há de nascer (AURÉLIO, 2011, p.526).
[4] A teoria natalista é a corrente que prevalece entre os autores clássicos do Direito Civil, para quem o nascituro não poderia ser considerado pessoa, pois é exigido para tanto o nascimento com vida. Assim, tal sujeito teria apenas mera expectativa de direito, a qual se concretizaria no momento em que ele respirasse fora do ventre materno (ASFOR, 2013, p.3).
Graduanda em Direito pelo Centro Universitário do Espírito Santo, UNESC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERNANDES, Débora de Souza. Criminalização do aborto: inconstitucionalidades e contradições legislativas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 out 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47719/criminalizacao-do-aborto-inconstitucionalidades-e-contradicoes-legislativas. Acesso em: 23 dez 2024.
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