RESUMO: O presente trabalho pretende ilustrar como na atualidade a liberdade religiosa, impulsionada pela reforma protestante, vem sendo deturpada de seu conceito histórico por muitas igrejas que de Evangélica se transvestem, usando a liberdade religiosa como escudo para locupletamento através de estelionato religioso, muitas vezes associados ao curandeirismo e charlatanismo. Não só mostrando a realidade contemporânea e as consequências no caso concreto, mas apontando os culpados, entre os quais a legislação frágil e ultrapassada e a falta intervenção nesses crimes de ação penal pública incondicionada. A partir de denúncias, reportagens documentadas, mostrar que algo precisa ser feito para proteção da sociedade, que está sendo vítima de crimes contra: a Saúde Pública, a Pessoa e contra o Patrimônio Privado.
Palavras chaves: Liberdade Religiosa. Estelionato. Curandeirismo. Charlatanismo. Evangélica.
ABSTRACT: This work aims to discuss how the current religious freedom, driven by the Protestant Reformation, has been misrepresented his historical concept by many Evangelical Churches that are in fact contradictory to the real meaning of Protestantism, using religious freedom as a shield for illegal indulge themselves through religious racketeering, often associated to quackery and charlatanism. Not only showing the contemporary reality and the consequences in this case, but also pointing out the guilty, including the weak and outdated legislation and lack of state intervention in public prosecution crimes. From complaints, reports and documented cases show that to protect society, something need to be done, (society) are being a victim of crimes against Public Health, against the Person and the Private Patrimony.
Keywords: Religious Freedom. Larceny. Quackery. Charlatanism. Evangelical.
1 INTRODUÇÃO
A liberdade religiosa é um princípio constitucional de suma importância, que vem sendo contemplada pelas constituições brasileiras desde a Constituição de 1891, e este trabalho tem como objetivo mostrar brevemente a evolução da liberdade religiosa, focada principalmente no cristianismo e consequentemente na rica importância da Reforma Protestante na influência por uma liberdade religiosa no ocidente e suas consequências na atualidade.
O presente estudo estará centrado na Igreja Evangélica, sua evolução no mundo e no Brasil. Através de uma análise histórica este trabalho pretende mostrar que o princípio da liberdade religiosa está sendo deturpado de seu sentido original. O mérito da presente obra não estará numa discussão teológica ou filosófica, nem referente a devida legitimidade de diferentes vertentes religiosas advindas de uma mesma doutrina (Protestantes), sendo a liberdade de interpretar e pregar determinado pensamento inquestionavelmente aceita, incluindo o livre arbítrio para aderir aos dízimos ou outras ofertas, como qualquer tipo de doações.
A discussão se dará aqui no contexto plenamente jurídico, sendo indiferente as peculiaridades de ritos ou cultos, considerados amparados pela liberdade religiosa e não sendo objeto relevante para o Direito (se não estiverem infringindo lei, vide Charlatanismo e Curandeirismo).
Como supracitado, a liberdade religiosa é plena até atingir um bem jurídico, como a Saúde Pública, que é justamente o capítulo onde o Charlatanismo e o Curandeirismo se encontram no Código Penal.
O presente estudo pretende mostrar que há no atual contexto histórico um complexo e grandioso número de falsas Igrejas Evangélicas que costumam praticar tais crimes, associados normalmente ao Estelionato. Agem em forma de associação criminosa e parecem ter aval para praticar todos estes crimes livremente, inclusive pelas grandes mídias como a TV aberta. Em uma primeira visão parece que estariam protegidos pela liberdade religiosa, já que a impunidade impera, este artigo pretende mostrar que a permissão para essas práticas não se assemelha em nada com o sentido original de liberdade religiosa.
A partir de casos concretos registrados em reportagens e denúncias se fará provar que inúmeras dessas Entidades praticam claramente os tipos penais de Estelionato, Curandeirismo e Charlatanismo de maneira preordenada e organizada (algumas vezes findando em morte). Uma vez provada tal conduta se estaria falando de crimes contra Saúde Pública, Contra a Pessoa (Vida) e contra o Patrimônio privado e público, já que em muitos casos as Entidades acabariam desamparadas dos requisitos para Imunidade Tributária e consequentemente devendo tributos ao Estado.
Sendo a crítica não só à impunidade por parte da administração Pública, em uma situação tão delicada, mas a crítica vai também à Lei Penal, por estar desatualizada em relação ao contexto ultrapassado de 1940, por lógica sendo necessária uma mudança tanto na legislação quanto na atuação do Estado em relação a esses crimes de ação penal pública incondicionada.
2 AS INDULGÊNCIAS E SEU SENTIDO ORIGINAL
A palavra “indulgência” etimologicamente vem do latim, “indulgeo”, que significa “para ser gentil”, na doutrina católica se trata de um perdão eclesiástico, concebido em regra mediante alguma espécie de penitência, conforme o entendimento católico (KNIGHT, 2009).
O sentido original da palavra não teria conexão direta com o entendimento pejorativo que se tem desta prática hoje, levando em conta que se trava de uma espécie de ritual religioso, não trazendo em seu escopo o intuito de remir pecados em troca de dinheiro. Se tratando de um mero ritual espiritual como fora outrora, não teria a fúria de pré-reformistas e reformistas, consistia na simples remissão divina dos pecados a partir de sacrifícios físicos e espirituais.
Dentre outras formas de penitência, uma das mais comuns era se rezar determinada oração por inúmeras vezes, a depende do grau do pecado. Porém uma das indulgências que passou a ser corriqueiramente utilizada nos cleros foram as esmolas, essas que sim são responsáveis pelo sentido pejorativo no qual a palavra tem atribuída nos dias de hoje, como é citado no mesmo estudo sobre as indulgências (Portal Divina Misericórdia, 2013):
...Houve pregadores medievais que não expunham adequadamente a doutrina sobre as indulgências, coisificando-a e comercializando-a(...)“Acrescente-se que com indulgências irracionais e excessivas, que alguns prelados concedem sem consideração, aumenta-se o desprezo sobre o poder das chaves da Igreja...” (Concílio Lateranense IV, 1215: DS 819); “...a Igreja deseja que, ao conceder as indulgências, se use de moderação... para evitar que a grande facilidade em lhes conceder enfraqueça a disciplina eclesiástica.
O trecho do estudo é esclarecedor, ilustra bem que os abusos nas penitências denominadas “esmolas” existiam muito antes de Lutero, e foram severamente criticados por pré-reformistas que o inspiraram e foram também muito importantes para o combate dessa corrupção no papado e clero católico principalmente na idade média, como John Wycliffe e Jan Hus, como explica Tomat (2007, p. 118 e 217).
Alguns exemplos da comercialização das “esmolas” em troca de salvação eram tão absurdos que se cobrava pela indulgência de pecados supervenientes, já tendo pago, o fiel estaria salvo quando e se pecasse, entre os principais como retrata Tomat (2007, p. 157-159):
...A mulher adúltera que pedir a absolvição para se ver livre de qualquer processo e ser dispensada para continuar com a relação ilícita pagará ao papa 87 libras e 3 soldos. Em um caso análogo, o marido pagará o mesmo montante; se tiverem cometido incesto com o próprio filho, acrescentar-se-ão 6 libras pela consciência. (...) A absolvição de homicídio simples cometido contra a pessoa de um leigo custará 15 libras, 4 soldos e 3 denários. (...) Se o assassino tiver matado dois ou mais homens em um único dia, pagará como se tivesse assassinado um só. (...) Aquele que matar um bispo ou prelado de hierarquia superior pagará 131 libras, 14 soldos e 6 denários. (...) Aquele que quiser comprar antecipadamente a absolvição por qualquer homicídio acidental que possa vir a cometer no futuro pagará 168 libras e 15 soldos. (...) O herege que se converter pagará, pela absolvição, 269 libras. (...)A cidade que quiser que seus habitantes ou sacerdotes, freis ou monjas obtenham licença para comer carne e laticínio em épocas em que é proibido pagará 781 libras e 10 soldos. (...) Os leigos feios ou deformados que queiram receber ordenamentos sagrados e ter benefícios pagarão à chancelaria apostólica 58 libras e 2 soldos...
Como supracitado, não havia crime, nem o mais cruel que não fosse perdoado mediante pagamento. Nesse período, um dominicano, Tetzel, percorreu a Alemanha vendendo cartas de indulgência. Lutero posteriormente descreveu seu trabalho da seguinte maneira: “...Seus poderes e graça foram ampliados de tal forma pelo papa que, se alguém violasse ou engravidasse a Virgem Maria, ele teria perdoado aquele pecado assim que uma quantia de dinheiro suficiente fosse colocada em sua bolsa...”, ainda detalha de forma mais inacreditável o absurdo: “...A alma se elevava imediatamente para o Paraíso; não havia necessidade de comprovar dor ou arrependimento por um pecado se era possível comprar indulgências.... Tetzel vendia até o direito de poder pecar no futuro... qualquer coisa era garantida em troca de dinheiro...” Como retrata Tomat (2007, p. 159-160).
3 A REFORMA PROTESTANTE E A INFLUÊNCIA NA LIBERDADE RELIGIOSA
Conforme Tomat (2007, p. 156-158), a contradição da Igreja Católica Romana incomodou bastante os pré-reformistas como Wycliffe e Hus, o fim de ambos foi bastante trágico. Mas sua mensagem de liberdade para leitura das Escrituras, para interpretar independente da dogmática do clero, de pregar em uma língua acessível e principalmente de conter os abusos das indulgências inspiraram muito Lutero.
As indulgências já começavam a se desapegar do seu sentido original quase que por completo, pois o que se via era uma corrupção incessante de vendas de indulgência, um verdadeiro mercado divino. O auge dessa prática se deu entre 1513 e 1521, no pontificado de João de Mediei, o Leão X. Em sua época foi aberto uma verdadeira política de venda de indulgências, protagonizadas por membros da comunidade eclesiástica que percorriam a Europa vendendo “cartas de indulgência”.
O ápice ocorreu em 1517, quando a Igreja Católica divulgou algo conhecido como “A Taxa de Camarae”, uma enorme lista com os mais diversos pecados, de todos os tipos e seu compatível preço, que deveria ser pago à Igreja para se ver perdoado, podendo os pecados adentrar no céu sem maiores problemas e escapar do purgatório. Boa parte dessa lista já foi exposta no capítulo sobre indulgências, variam desde: mulher adúltera deve pagar 87 libres e 3 soldos para ser absolvida do pecado e continuar com a relação ilícita, o marido deve pagar o mesmo, porém se tiverem praticado incesto com o filho, se acrescenta 6 libras pela consciência; quem afogar o próprio filho paga 17 libras e 15 soldos, aquele que assassina irmão, irmã, mãe ou pai, pagará 17 libras e 5 soldos, porém se a morte for contra um bispo ou prelado de hierarquia superior, o preço é de 131 libras, 14 soldos e 6 denários.
Segundo Tomat (2007, p. 161), Lutero nasceu em 1483 e em 1507 foi ordenado sacerdote, quando havia terminado de forma brilhante a universidade. Vivendo nesse contexto obscuro no qual a Igreja estava dominada pela corrupção, Lutero se sentiu obrigado a pregar ao público contra estas práticas, para ele a absolvição do pecado estava intimamente ligada com a relação pessoal do fiel com Deus, não necessitando da intervenção de um confessor, muito menos de compras de indulgências.
Nessa discussão, conforme Araújo (2014, s/n), é de imenso valor conferir algumas das principais Teses das 95ª afixadas na porta da capela de Wittemberg em 31 de outubro de 1517 por Lutero. Esse importante feio marca o início da Reforma Protestante e é um dos pontos históricos mais importantes para o desenvolver da liberdade religiosa em todo mundo:
Movido pelo amor e pelo empenho em prol do esclarecimento da verdade discutir-se-á em Wittemberg, sob a presidência do Rev. padre Martinho Lutero, o que segue. Aqueles que não puderem estar presentes para tratarem o assunto verbalmente conosco, o poderão fazer por escrito. Em nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Amém. (...) 24ª Tese: Assim sendo, a maioria do povo é ludibriada com as pomposas promessas do indistinto perdão, impressionando-se o homem singelo com as penas pagas. 27ª Tese: Pregam futilidades humanas quantos alegam que no momento em que a moeda soa ao cair na caixa a alma se vai do purgatório. 32ª Tese: Irão para o diabo juntamente com os seus mestres aqueles que julgam obter certeza de sua salvação mediante breves de indulgência. 43ª Tese: Deve-se ensinar aos cristãos proceder melhor quem dá aos pobres ou empresta aos necessitados do que os que compram indulgências. 44ª Tese: Ê que pela obra de caridade cresce o amor ao próximo e o homem torna-se mais piedoso; pelas indulgências, porém, não se torna melhor senão mais seguro e livre da pena. 45ª Tese: Deve-se ensinar aos cristãos que aquele que vê seu próximo padecer necessidade e a despeito disto gasta dinheiro com indulgências, não adquire indulgências do papa. Mas provoca a ira de Deus. 46ª Tese: Deve-se ensinar aos cristãos que, se não tiverem fartura, fiquem com o necessário para a casa e de maneira nenhuma o esbanjem com indulgências. 50ª Tese: Deve-se ensinar aos cristãos que, se o papa tivesse conhecimento da traficância dos apregoadores de indulgências, preferiria ver a catedral de São Pedro ser reduzida a cinzas a ser edificada com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas. 84ª Tese: Ainda: Que nova piedade de Deus e dó papa é esta, que permite a um ímpio e inimigo resgatar uma alma piedosa e agradável a Deus por amor ao dinheiro e não resgatar esta mesma alma piedosa e querida de sua grande necessidade por livre amor e sem paga?86ª Tese: Ainda: Por que o papa, cuja fortuna hoje é mais principesca do que a de qualquer Credo, não prefere edificar a catedral de S. Pedro de seu próprio bolso em vez de o fazer com o dinheiro de fiéis pobres? 95ª Tese: E assim esperem mais entrar no Reino dos céus através de muitas tribulações do que facilitados diante de consolações infundadas.
Nesse contexto, Lutero travou um confronto enorme com os mais poderosos da Europa, teve que viver refugiado, mas teve apoio de outras autoridades muito poderosas, principalmente os Príncipes, e através de suas teses e da tradução da bíblia para o latim, a língua acessível, deu-se o principal passo na reforma protestante e um enorme passo para a liberdade religiosa no cristianismo ocidental, como afirma o professor Juberto de O. Santos (2014, s/n) em seu estudo sobre a Reforma:
...A Igreja possui um terço das terras. Há descontentamento geral. Vendo tantos abusos por parte do Clero, o monge agostiniano Martinho Lutero não se calou. Elaborou 95 teses e afixou-as na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, em 1517. A maioria era contra as indulgências. Principalmente as indulgências visando à construção da Basílica de São Pedro. Apoiado pela nobreza alemã, Lutero pôde divulgar suas ideias, calcada em dois princípios que se constituiriam no núcleo de sua doutrina: A Salvação somente pela fé e não pelas práticas religiosas e a Inutilidade dos Mediadores (Clero). Lutero foi excomungado em 1520. Ele queima publicamente a carta do papa (Bula papal), traduz a Bíblia para o Alemão, casa-se com uma ex-freira, fica abrigado na Saxônia. Eis suas reivindicações e críticas principais: Substituição do Latim pelo idioma alemão nos cultos religiosos; Questiona a grande quantidade de sacramentos (Preserva dois sacramentos: batismo e eucaristia); Livre interpretação da Bíblia; Contra o Celibato; Rejeita a Hierarquia Religiosa da Igreja de Roma; pregava a Salvação pela fé; (...)O Luteranismo expandiu-se basicamente no Sacro Império Romano-Germânico e nos países escandinavos (Suécia, Noruega e Dinamarca), regiões essencialmente rurais, pouco desenvolvidas em termos comerciais. Através de suas ideias, eles desapropriam as terras da Igreja.
Diferente dos seus antecessores Wycliffe e Hus, Lutero chegou a ver ainda em vida muitas mudanças na sociedade protagonizadas pela sua luta pela liberdade na religião Cristã. Contudo as coisas não são tão fáceis como parecem, muito menos nessa época de transição entre a idade média e a idade moderna, apesar de muitas comunidades terem sido influenciadas pelo luteranismo, algumas tiveram idas e vindas, outras só conseguiram conter o domínio estatal da Igreja Católica séculos depois.
A influência global da Reforma foi tamanha e é tão estudada por toda comunidade internacional, que segundo o ranking do Massachusetts Institute of Technology (Patheon,
2014), que é baseado em cálculos com base na produção histórica, línguas em que obra foi difundida, acessos em pesquisas da internet, entre outras, todas de caráter objetivo e baseadas em fórmulas preestabelecidas, Lutero ocupa a 5ª posição no ranque de Figuras Religiosa mais importantes, atrás apenas de: Jesus Cristo, Moisés, Muhamad e Abrão.
3.1 A INFLUÊNCIA DA REFORMA NAS LIBERDADES CONTEMPORÂNEAS
Eduardo Kroeff Machado Carrion, (2014, p. 29), coaduna com a conclusão lógica observável defendida no fim do ponto anterior, o qual reafirma a importância da Reforma Protestante não apenas na Liberdade Religiosa ocidental, mas em diversos fatores que dela decorreram. Como fica evidente, em suas palavras:
...Mas, mais recentemente, no mundo moderno, a base da afirmação dos direitos humanos encontra-se na liberdade religiosa. Daí, a importância também da reforma protestante e da afirmação da liberdade religiosa em alguns Estados europeus. Da Liberdade religiosa podemos deduzir, por extensão, inúmeras liberdades: a liberdade de consciência, a liberdade de cátedra, a liberdade de ensino, a liberdade de manifestação, finalmente até mesmo a liberdade de organização sindical e a liberdade de organização partidária. A liberdade religiosa significou uma importante mudança cultural, quebrando o monopólio do pensamento religioso hegemônico ou predominante... Significou a quebra do monopólio ideológico por parte da Igreja Católica.
Por tanto, fica claro a importância da liberdade religiosa para a cultura ocidental, não só no tocante à libertação do domínio da Igreja Católica e das formas de governos absolutistas, mas para os direitos humanos como um todo.
4 A LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 88
Conforme muito bem abordado no artigo “A liberdade religiosa nas constituições brasileiras e o desenvolvimento das Igrejas Protestantes”, de Francisco Ferreira (2013, s/n), A Constituição Federal de 1988, que marca o fim de décadas de ditadura e traz consigo uma ideologia democrática e cidadã. A Constituição é laica, não confessional, porém retoma a união de forma mais acentuada com as entidades religiosas, havendo uma grande cooperação entre obras da Igreja e do Estado, conforme observamos no seu artigo 5ª, inciso VI e VII:
É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a sua liturgia, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva... É assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva.
E no artigo 150, IV, alínea “b” fica vedado ao Estado cobrar impostos de qualquer natureza sobre templos de qualquer culto. Mostrando a forte cooperação que passa a existir entre o estado e as entidades religiosas.
Por fim, é de se notar que o marco entre a divisão do Estado e Religião foi a primeira Constituição Republicana de 1891, tirando a Igreja Católica de religião oficial e instituindo plena liberdade de culto a todas as designações espirituais. As constituições posteriores: 1934,
1937, 1967, 1969 e 1988, todas seguiram o ideal de separação entre Estado e Religião, mas apenas as protegendo, para que todo cidadão possa ter direito de liberdade de pensamento e crença sem interferência alheia.
4.1 A PERSONALIDADE JURÍDICA DAS IGREJAS COM O CÓDIGO CIVIL DE 2002
Ainda tendo como referência o artigo de Francisco São Leão Azevedo Ferreira, se pode compreender que a personalidade jurídica das igrejas com o advento do código civil, que passou a ter vigência em janeiro de 2003, era de Associação, pois eram constituídas como pessoa jurídica sem finalidade econômica ou lucrativa, sendo equiparadas por exemplo a: associações de moradores e clubes desportivos. Diante da visível inconstitucionalidade, em 23 de dezembro de 2003 foi publicada a Lei Federal 10.825, que alterou o Código Civil, o artigo 44 agora tinha acrescentado a organização religiosa como mais uma modalidade entre as pessoas jurídicas de direito privado, por tanto agora elas estavam isentas de prazos estabelecidos para reforma e adequação de seus estatutos para o regime de associação civil.
5 O ABUSO DA FÉ PELAS IGREJAS EVANGÉLICAS NO BRASIL
A aparente liberdade para alcançar riquezas de forma rápida se aproveitando da fé de fiéis vulneráveis e hipossuficientes fez com que muitos pastores criassem Igrejas com o principal intuito de abusando da fé, praticando crimes como charlatanismo, curandeirismo e estelionato alcançarem seus objetivos. E foram bem sucedidos.
Dos quatro pastores apontados pela Forbes como os mais ricos do Brasil (UOL, 2013), três desses possuem uma interseção com a Igreja Universal do Reino de Deus, um é o fundador da Igreja Universa (Macedo), o segundo é um ex-funcionário (Valdomiro Santiago) e em quarto o cofundador da Igreja Universal (R.R Soares). O terceiro é Silas Malafaia, o único Pentecostal dos quatro.
O problema não é esses pastores terem ficado ricos, mas o modo como ficaram, até porque o arrecadado nas igrejas deve ser utilizado para fins institucionais, por isso a imunidade aos impostos. O problema é que quando estes pastores em nome da teoria da prosperidade e das indulgências modernas fazem suas vítimas acreditarem que só serão abençoados se doarem o máximo possível, há configuração do estelionato. É como bem esclarece Nucci (2011, p. 774), a questão do trabalho espiritual, como passes espirituais, macumba, entre outros, quando se trata de atividade gratuita, ou quando for inerente a algum credo ou religião, é impunível, pois a Constituição garante a liberdade religiosa, porém, nas palavras do penalista: “...Quando se referir a atividade paga, cremos estar configurando o delito de estelionato.”
Devido a uma semelhança nas políticas agressivas de arrecadar doações, esses pastores acabaram sendo postos no grupo de pentecostais, não que o pentecostalismo tenha como essência essa política, mas como a Igreja Universal foi a primeira a iniciar essa política de salvação pelo sacrifício monetário, e posteriormente vários de seus ex-membros terem seguidos a mesma linha, em conjunto com o forte crescimento das igrejas pentecostais no Brasil, houve uma associação do movimento pentecostal com as Igrejas como a Universa, a Mundial de Valdomiro e a Internacional de R.R Soares. Porém essa associação é falha, o movimento pentecostal nada tem a ver com isto, na teoria, é sim um segmento evangélico que acredita em determinados pontos diferente das outras doutrinas, como a possibilidade de qualquer fiel ter o dom de falar em línguas, como afirma a reportagem sobre o seu significado (Significados, 2014). Tanto a Igreja Universal não é pentecostal, que o seu líder chegou a ridicularizar esse segmento, os comparando com terreiros de umbanda, na qual Edir Macedo diz não ver diferença entre o recebimento do “Espirito Santo” em Igrejas Pentecostais, com entidades como “pomba gira”, inclusive apontando líderes do movimento Pentecostal, como Marcos Feliciano, como documentado na reportagem (Amigos de Cristo, 2011).
Essa confusão é feita por vários especialistas, inclusive pelo IBGE, que categoriza a Igreja Universal como pentecostal, provavelmente devido ao fato de muitas das Igrejas Pentecostais apresentarem a mesma teologia da prosperidade, e serem palco de inúmeras cenas parecidas, como as de fiéis possuídos por demônios e milagres extravagantes. Posteriormente casos documentados ilustrarão o que é agora advertido. Mostrando que apesar de a ideologia Pentecostal originariamente não ter ligação com o estelionato e outros crimes, os seus fiéis veem sendo constantemente alvos de farsantes, que se locupletam em proveito dos vulneráveis.
6 DO CHARLATANISMO, CURANDEIRISMO E ESTELIONATO
Para se entender como ocorrem os crimes de charlatanismo, curandeirismo e estelionato nos âmbitos das Igrejas Evangélicas, com casos concretos, é necessário primeiro fazer uma minuciosa análise técnica desses tipos penais.
6.1 DO CHARLATANISMO
Analisemos então o que prevê o Código Penal no capítulo III, “Dos crimes contra a saúde pública”, do Título VIII, “Dos crimes contra a incolumidade pública”, em seu artigo 283: “Inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.”. O objetivo jurídico tutelado é a saúde pública, já o objeto material é o fato de o criminoso “anunciar cura secreta ou infalível” (NUCCI, 2011), o sujeito ativo pode ser qualquer um, inclusive o médico, e o sujeito passivo pode tanto ser a coletividade, quanto uma vítima em concreto (CAPEZ, 2013).
A maior parte da classificação doutrinária do crime é pacífica, o Charlatanismo é crime: formal, de forma livre, comissivo, instantâneo, de perigo comum abstrato, unissubjetivo, plurissubsistente (NUCCI, 2011) Rogério Greco tem posicionamento divergente em relação ao perigo, este considera que o crime é de perigo concreto (admitindo ser minoritário), além de argumentar ser possível na modalidade omissiva imprópria, caso do artigo 13, §2, do Código Penal (2010, p. 752).
É unânime o entendimento de que se trata de crime formal, independentemente de o sujeito passivo ser objeto ou não do tratamento anunciado, por ser crime de perigo abstrato, contra coletividade, basta, por exemplo, que o sujeito anuncie pela rádio que pode curar a AIDS, configurando assim o crime (CAPEZ, 2013). É também unanimidade que a tentativa é plenamente possível, como no exemplo trazido por Mirabete, no qual o agente é proibido de distribuir folhetos que já preparou com o anúncio fraudulento (MIRABETE, 2013). Também é majoritário que o elemento subjetivo do crime é o dolo, ou dolo de perigo (NUCCI, 2011).
Concordando com Greco e discordando da doutrina majoritária sobre o perigo do Charlatanismo ser abstrato, se tem jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em Habeas Corpus (HC 199200239382) de relatoria do Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, que entendeu que o crime de charlatanismo e curandeirismo são de perigo concreto, aludindo que a denúncia deveria indicar o resultado em sentido normativo, como podemos ver:
A denúncia deve descrever o fato delituoso com todas suas circunstancias, de modo a ensejar o exercício do direito de defesa. O charlatanismo e o curandeirismo integram o rol dos crimes contra a saúde publica, ou seja, praticado contra número indeterminado de pessoas. Crimes de perigo concreto (probabilidade de dano). O direito penal da culpa e incompatível com o perigo abstrato, hipótese ocorrente no plano hipotético. O homem responde pelo que fez ou deixou de fazer. Refute-se a simples suposição. Dessa forma, a denúncia precisa indicar o resultado (sentido normativo). Caso contrário, será inepta. A liberdade de culto e garantia constitucional, com proteção do local e da liturgia.
É muito comum se ver em igrejas evangélicas, através de rádio, TV ou mesmo pessoalmente, pastores de má-fé inculcando ou anunciando cura por meio secreto ou infalível, sendo o secreto aquele que só o pastor conhece, e infalível aquele que apesar de existir de forma menos eficaz em outros recintos, com ele é cem por cento de certeza de ocorrer a cura.
O charlatanismo é julgado sob a lei dos Juizados especiais, Lei 9.099/95, além de em face da pena mínima prevista é cabível suspensão condicional do processo, pelo artigo 89 da lei supra (CAPEZ, 2013). Mas a verdadeira intenção por trás ludibriar o crente a retribuir esse serviço financeiramente, inclusive muitas das vezes o líder religioso já deixa claro que as bênçãos estão diretamente ligadas às ofertas.
Tem-se então dois crimes, o estelionato e o charlatanismo, para alguns doutrinadores, como se tem dois bens jurídicos diferentes, saúde pública e patrimônio individual, há concurso de crimes. Mesmo porque caso o estelionato não se consumasse, a saúde pública teria sido ameaçada de qualquer forma (CAPEZ, 2013) e (MIRABETE, 2013), este último sendo mais preciso e considerando concurso formal. Apesar do entendimento doutrinário, existe jurisprudência em sentido contrário, entendendo que o crime meio (charlatanismo), que é mais brando, será absolvido pelo crime fim, o estelionato, como no RT 698/357, citado pela reportagem (Ceticismo, 2008):
Previstos nos artigos 283 e 284 do Código Penal, o charlatanismo e o curandeirismo, punidos pelo só fato de o agente anunciar curas ou prescrever substâncias – independentemente de ‘morder’ dinheiro – atuam como verdadeiros crimes-meios, através dele (posicionando-se pois, como verdadeiro ardil tipificador de ilícito mais grave) se chegando ao delito-fim do artigo 171, configurado pela ‘mordida’ efetivamente havida. Havendo delito mais grave, nele ficarão absorvidos”.
No capítulo subsequente será apresentado exemplo em caso concreto das possíveis devastadoras consequências do crime de charlatanismo, e que a vigente pena máxima (até dois anos), quando há morte é incompatível com a preciosidade dos bens jurídicos envolvidos.
6.2 DO CURANDEIRISMO
O curandeirismo é um crime contra a saúde pública, previsto no artigo 284 do Código Penal, no Título VIII “Dos crimes contra a incolumidade pública”, os elementos objetivos do tipo são: exercer (desempenhar atividade com habitualidade) o curandeirismo (normalmente “promovendo” a cura por meio de reza ou magia): a) prescrevendo (indicando ou receitando remédio), ministrando (fornecendo) ou aplicando (diretamente utilizando em alguém), habitualmente, qualquer substância; b) usando gestos, palavras ou qualquer outro meio (gesticulando ou fazendo qualquer tipo de ritual); c) fazendo diagnóstico (produzindo, executando, realizando). A pena prevista é de seis meses a dois anos (NUCCI, 2011).
Sua classificação doutrinária é de crime: doloso, de forma vinculada, monossubjetivo, plurissubsistente, de perigo comum, e um ponto importante que o diferencia do crime de charlatanismo, o curandeirismo se trata de crime habitual, neste sentido há um consenso entre a doutrina majoritária, por exemplo (NUCCI, 2011) e (GRECO, 2010), contudo novamente Rogério Greco é doutrina minoritária ao defender que se trata de crime de perigo concreto, apoiado em jurisprudência já citada (HC 199200239382), mas admitindo ser doutrina minoritária, a maioria o classifica como crime de perigo abstrato, seguindo este raciocínio Mirabete (2013); como visto no Habeas Corpus supra, é importante fazer a distinção entre o perigo ser concreto ou abstrato para a correta condução do processo penal, se mostrando mais substanciada a doutrina que classifica o crime como de perigo abstrato, pois como o bem jurídico é a saúde pública, o sujeito passivo a coletividade e o crime é formal, só de o sujeito ativo praticar o verbo (habitualmente) já estaria consumando o crime, não necessitando, por consequência, que alguém no caso concreto seja atingido para a caracterização do crime. Neste sentido, existe jurisprudência do TJPB, citada por Greco (2010, p. 754):
Curandeirismo. Promessa de cura através de gestos e diagnósticos. Verificação. Alegação da ré que trabalha como mera orientadora. Argumento infundado. Condenação mantida. Irresignação improvida. A liberdade religiosa assegura na nossa lei Maior, não se confunde com o baixo espiritismo manifestado por meio de palavras, gestos ou emprego de meios diversos par a cura de males físicos dos menos incultos, caracterizados de curandeirismo, crime de perigo efetivo, contentando-se com a mera probabilidade de sua ocorrência (TJPB, Processo 888.1995. 001684-5/001, Rel. Des. José Martinho Lisboa, pub. 20/09/1995).
Sobre a habitualidade é importante registrar que não se configura apenas na hipótese do inciso I, no qual a palavra é expressamente usada, mas em todas as possibilidades do curandeirismo, isso porque o seu tipo, através do verbo “exercer” (praticar, exercitar, desempenhar usualmente), traz uma ideia de continuidade (MIRABETE, 2013).
Sobre o sujeito ativo e passivo do crime de curandeirismo, Mirabete traz de forma precisa e técnica, ipse litteris (2013, p. 148):
Curandeiro é qualquer pessoa que pratica uma das condutas inscritas no artigo 284. Normalmente são indivíduos atrasados, ignorantes, grosseiros ou místicos (... médiuns, pais-de-santo etc.) ... Não é curandeiro, evidentemente, a prática religiosa lícita, empregada pelo ministro de culto, desde que não saia do terreno puramente espiritual e não substitua nem impeça a ação médica. Assim, como bem acentua Bento de Faria, não podem ser considerados como sujeitos ativos do crime: os ministros da Igreja quando praticam atos de exorcismo, porque são admitidos pelos seus cânones; quem pratica atos de qualquer religião ou doutrina, inclusive o espiritismo, desde que não ofenda a moral, os bons costumes ou faça perigar a saúde pública, ou apenas busque demonstrações em proveito da ciência...
...Sujeito passivo é a coletividade, já que o curandeirismo é um crime contra a incolumidade pública... Certamente pode haver sujeito passivo secundário, mesmo porque a ação do curandeiro pode provocar lesões ou até a morte. Na maior parte das vezes, são as vítimas pessoas rudes, ignorantes, analfabetas, mas por vezes, a clientela é composta de pessoas de cultura e recursos financeiros, atingidas por doenças incuráveis não debeladas pela medicina.
Para a doutrina majoritária não é possível a tentativa, por se tratar de crime habitual e formal, além de ser de perigo abstrato (MIRABETE, 2013), (NUCCI, 2011) e (CAPEZ, 2013), em sentido contrário entende Rogério Grego, novamente se fundamentando em jurisprudência, ipse litteris (2010, p. 754):
O simples fato de a ré ter recebido valores, prometendo-lhe a cura de sua enfermidade não autoriza a instauração de processo criminal, tendo vista que, para se configurar o tipo penal do art. 284 do Estatuto Repressivo é necessária a prática de uma das condutas descritas em seus incisos (STJ, HC 593 12/PR, Rel. Min. Gilson Dipp, 5ª T., DJ 9/10/2006, p. 329).”
O curandeirismo é “qualificado”, segundo o que dispõe o parágrafo único do artigo284 do Código Penal, “Se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica também sujeito a multa.”. Confirmando que o curandeirismo é punível a título gratuito, e determina prestação pecuniária quando o sujeito ativo é movido por fins financeiros (MIRABETE, 2013).
Em relação ao concurso de crimes, como no caso de Charlatanismo, não é pacífico, há aqueles que entendam ser concurso formal quando o agente por meio ardil e peculiar a fim de obter vantagem indevida ludibria a vítima prometendo cura através das ações de um curandeiro, apesar de ter entendimento de que o estelionato absorveria o curandeirismo (MIRABETE,2013). No sentido pela absolvição, citado pela reportagem (Cetisimo, 2008):
“…Responde por estelionato o agente que, mediante remuneração, se propõe a ‘tirar mal do corpo’, valendo-se de passes, gestos cabalísticos e palavras rituais. Eventual curandeirismo decorrente é de se ter, na espécie, por absorvido pelo delito contra o patrimônio” (JTACRIM 44/359).”
São um tanto quanto rasas as jurisprudências que entendem pela absolvição do curandeirismo pelo estelionato, por se tratar de bem jurídico diverso e mais valoroso, o exemplo claro é se o concurso do curandeirismo não for com o estelionato, e sim com o estupro, como é muito comum, ficaria também absolvido? Mirabete entende que não, no caso dos curandeiros que se aproveitam da situação de fragilidade da vítima para induzi-las que a forma de atingir a cura é através de conjunção carnal, estaria caracterizando concurso formal de crimes com o estupro ou violação sexual mediante fraude. Caso não exista habitualidade persiste o crime sexual (MIRABETE, 2013). No mesmo sentido se posiciona Capez, em suas palavras (2013, p.312): “... É fato comum a prática de atos libidinosos ou a manutenção de relações sexuais pelo curandeiro com a vítima a pretexto de debelar males espirituais... O agente responderá pelo crime de curandeirismo em concurso com um dos delitos contra os costumes”.
Por ser o bem jurídico tutelado de extrema importância, a ação penal é incondicionada, independendo de representação da vítima (se houver em concreto), por ser a pena máxima cominada de menor potencial ofensivo, serão observadas as diretrizes da Lei dos Juizados Especiais Criminais, Lei 9.099/95. Em decorrência da pena mínima prevista, é cabível a suspensão condicional do processo, com base no artigo 89 da lei supra (CAPEZ, 2013).
6.3 DO CHARLATANISMO E CURANDEIRISMO MAJORADOS
A forma majorada do charlatanismo e curandeirismo previstas no artigo 285 do Código Penal (remete ao artigo 258 do Código Penal) resulta em consequência muita mais séria do que na modalidade comum, pois no primeiro pode haver lesão corporal de natureza grave ou morte. Apesar de o título do artigo 258 do Código Penal chamar de qualificadora, é visível que na realidade se trata de causa especial de aumento de pena, também conhecida como majorante. Os resultados elencados no artigo supracitado só podem ser considerados a título de culpa, tratando-se então se crime preterdoloso (GRECO, 2010).
O artigo 258 do Código Penal explica que caso o crime de charlatanismo ou curandeirismo resulte em lesão corporal de natureza grave a pena privativa de liberdade será aumentada da metade, caso resulte em morte, a pena será aplicada em dobro. O que significa que o máximo de pena possível no crime de Charlatanismo será de quatro meses e meio até um ano e meio, quando resulte em lesão corporal de natureza grave e de seis meses até dois anos quando resulte em morte; no caso do curandeirismo a pena máxima quando resulta em lesão corporal de natureza grave será de nove meses até três anos, e quando resulte em morte de um ano até quatro anos.
Por tanto, por haver as majorantes do artigo 258 do Código Penal, mesmo sendo a pena máxima culminada muito baixa em relação aos bens jurídicos tutelados, não há que se falar em aplicá-las separadamente, como jurisprudência citada por Greco, (2010, p. 713): “...Previsão da genérica qualificação de lesões de perigo comum em decorrência de lesões pessoais ou de morte, não há como se considerarem separadamente tais resultados para havê-los como figura de paralela imputação ao lado do delito básico que as ensejou”. (TACrim./SP, HC, Rel. Azevedo Franceschini, JTACrim/SP 36, p. 69).
É, por tanto, flagrante a baixa severidade das penas supra. Anômala é a lógica legislativa ao prever que um crime em que o objeto jurídico que é a saúde pública e vida humana ser inferior a um crime contra o patrimônio privado, sem violência, como no caso do estelionato. Parece haver uma inversão de valores, que não pode passar mais tempo sem uma drástica alteração, haja vista que a realidade de 1940, sobre a exploração da fé, e a prática indiscriminada de tais crimes é outra em relação a do século XXI, a inércia legislativa é causa estimuladora do crime, que continua injustamente sendo de baixa punibilidade.
6.4 DO ESTELIONATO
O estudo do estelionato é importantíssimo para o almejado neste trabalho, pois, via de regra é o que os líderes religiosos de má-fé, almejam ao cometer reiteradamente os crimes supra estudados, curandeirismo e charlatanismo. O artigo 171 do Código Penal traz que comete estelionato aquele que, para obter para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio ou mantendo alguém em erro, mediante artifício ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.
É o que ocorre quando um líder religioso ludibria seu “rebanho” com garantias de curas, milagres, prosperidade, caso as vítimas façam generosas doações à sua Igreja, assim, obtendo para si a vantagem ilícita em prejuízo alheio.
O estelionato está inserido no título dos crimes contra o patrimônio, é crime material, comum ou próprio (§2ª), comissivo, via de regra instantâneo, de forma livre, instantâneo (poderá ser de efeitos permanentes em casos específicos), de dano, monossubjetivo plurissubsistente (GRECO, 2010) e (NUCCI, 2011), podendo ainda, ser omissivo por existir a possibilidade de manter a vítima no erro, segundo Greco.
O sujeito ativo no crime de estelionato é qualquer pessoa, o sujeito passivo é toda pessoa que tem discernimento, baseado nisso não pode ser sujeito passivo do crime de estelionato a criança e o débil mental, neste caso estar-se diante do crime previsto no artigo 173 do Código Penal. Há ainda o caso de não possuir capacidade natural de ser iludido, como o ébrio em estado de coma, sendo neste caso vítima de crime de furto (BITENCOURT, 2009).
No caso de torpeza bilateral, que inclusive é bastante comum no caso de estelionato envolvendo a fé em credos, quando por exemplo um pai de santo promete fazer uma macumba para que o alvo do sujeito passivo do estelionato seja amaldiçoado com um câncer, mesmo havendo má-fé da vítima do estelionato, ainda se configura o crime, não afastando a sua incidência a torpeza bilateral (CAPEZ, 2013), (NUCCI, 2011).
É majoritário o entendimento de que o estelionato admite tentativa, ocorre quando o agente consegue ludibriar a vítima, mas no momento de consumar o delito é surpreendido por fato alheio a sua vontade e acaba por não obter êxito, configurando mera tentativa (CAPEZ, 2013), (GRECO, 2010).
O estelionato é majorado em um terço se for cometido contra entidade de direito público ou instituto de economia popular, não se pode fazer interpretação extensiva, entendendo como entidades de direito público, por exemplo, sociedades de economia mista, que são pessoas jurídicas de direito privado (BITENCOURT, 2009).
Importantíssimo nesta análise acerca do estelionato é o entendimento jurisprudencial e doutrinário sobre o concurso de crimes, o mais comum é em relação ao documento falso, que poderemos usar como analogia para entendermos como se daria esse concurso com o curandeirismo e charlatanismo, e mesmo com o próprio documento falso, que também é utilizado por falsos líderes religiosos para alegarem que curaram doenças e até mesmo trouxeram pessoas já declaradas mortas ao mundo dos vivos.
Há na jurisprudência quatro posições distintas (CAPEZ, 2013):
O primeiro entendimento é baseado na súmula 17 do Superior Tribunal de Justiça, que defende que quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absolvido. Reafirmo este posicionamento, o mesmo Tribunal editou a súmula 73, que alega que a utilização de papel-moeda grosseiramente falsificado configura, em tese, crime de estelionato. O segundo posicionamento é do Supremo Tribunal Federal, que defende que há concurso de crimes. Justificando que um crime atinge um bem jurídico, fé pública e outro o patrimônio privado, ainda que se considerar que se o primeiro for falsidade de documento público é mais severo que o estelionato, afastando a teoria da absorção.
O terceiro posicionamento é que há concurso material, conforme RT, 567/355.
O quarto posicionamento é que o crime de falso, (em relação ao crime de documento público, deve prevalecer sobre o estelionato), baseado no RT, 581, 312.
No contexto doutrinário, Damásio entende se tratar de crime material, pois o concurso formal exige unidade de conduta, no caso há pluralidade de conduta, crime de falsidade e de estelionato, normalmente em tempos diversos.
Com base no exposto, em relação a todas as teorias citadas seria inadmissível (fazendo analogia técnica) a absorção do crime de curandeirismo e charlatanismo pelo estelionato. Vejamos por quê: Segundo o STJ o crime de falso será absolvido pelo estelionato, quando esse não gerar maior potencialidade ofensiva. Seria absurdo entender (como algumas jurisprudências fazem, ex.: JTACRIM 44/359) que o crime de curandeirismo e charlatanismo não possuem maior potencialidade ofensiva, ora, estamos falando de crime contra saúde pública cujo sujeito ativo é a coletividade.
O posicionamento do Supremo Tribunal Federal é bastante preciso ao diferenciar os bens jurídicos, considerando haver concurso formal, novamente é vencida a teoria da absorção.
Há concurso material, posicionamento adotado no RT, 567/355, coaduna com a doutrina de Damásio, tem fundamento legal no artigo 70 do Código Penal, pois de fato, há mais de uma conduta, diferente do que prevê no crime formal. No caso do curandeirismo, por exemplo, precisaria de habitualidade, no charlatanismo apenas a prática, futuramente havendo a prática do estelionato baseado na confiança adquirida por tais crimes, não há sentido em considerá-las uma mesma conduta, pois as anteriores muito antes já estavam consumadas.
Não há como fazer uma analogia com a quarta teoria, pois o crime de curandeirismo e charlatanismo nunca alcançarão pena superior a do estelionato, ainda que majorados pela morte.
Observemos que o entendimento da absolvição no crime de falso é completamente incompatível com possível analogia com o crime de curandeirismo e charlatanismo (apesar de existirem jurisprudências supracitadas, que dele se utilizam), pois, além de se tratarem de bens jurídicos diversos, no caso do curandeirismo e charlatanismo, estas sempre causarão dano a um bem jurídico mais valioso, além de que via de regra já estão consumadas quando o estelionato vem a ocorrer.
O crime de estelionato é de ação penal pública incondicionada. O rito será ordinário, conforme artigo 394 do Código de Processo Penal. Contudo, caso não seja majorado, caberá a suspensão condicional do processo, conforme artigo 89 da Lei dos Juizados especiais (CAPEZ, 2013).
7 DO MODUS OPERANDI: CASOS CONCRETOS EM IGREJAS EVANGÉLICAS
Já analisados os conceitos teóricos sobre os crimes em pauta, será agora estudado casos concretos em que as condutas dos pastores tipificam os crimes de charlatanismo, curandeirismo e estelionato, muitas das quais em concurso.
7.1 CHARLATANISMO EM IGREJAS EVANGÉLICAS
Como já estudado, o charlatanismo se consuma no momento em que o líder religioso inculca ou anuncia cura por meio secreto ou infalível. Mas é difícil encontrar um caso isolado, pois via de regra, quem anuncia algo, acaba por ter que demonstrar ser capaz, o que levaria ao crime de curandeirismo, se praticado habitualmente, e ainda, é muito comum nos âmbitos das igrejas evangélicas, ter o ato milagroso feito em troca de “ofertas”, constituindo estelionato.
Um caso que tomou grande repercussão por ter fulminado na prisão de dois pastores, um de 35 e outro de 49 anos, foi o ocorrido em Manaus, segundo o documentado (Gospelmais,2012). No qual policiais foram convocados a conter um tumulto numa igreja, já que os fiéis estavam indignados com afirmações perigosas de um pastor de 49 anos, que garantia curas milagrosas e extrações de insetos dos corpos de enfermos.
De acordo com informações da delegada Fernanda Antonucci, que acompanhou o caso “muitos (fiéis) chegaram a parar os tratamentos médicos e outros até morreram por acreditarem que ele poderia curá-los.” Durante o depoimento na delegacia, o pastor confirmou que poderia fazer curas milagrosas, transformar objetos e dar forma a outros, negou apenas que seriam feitas mediante pagamento, segundo ele: “Era apenas uma sugestão e ninguém era obrigado a entregar envelopes de dinheiro.” Os pastores responderam em liberdade até o julgamento.
O caso documentado demonstrou que a conduta de determinado pastor o tipificou ao menos o charlatanismo, mesmo que nunca tivesse de fato exercido o curandeirismo, só por anunciar a cura por meio milagroso ou secreto, já estaria consumado o charlatanismo, que neste caso, segundo o dito pela delegada, parece ter atingido inúmeras pessoas que cessaram o tratamento médico, inclusive tendo casos de morte.
7.2 DO CURANDEIRISMO EM IGREJAS EVANGÉLICAS
Um caso de curandeirismo que tomou bastante repercussão, principalmente na internet, foi o protagonizado pelo pastor Isaias, segundo a reportagem, que acompanha o vídeo do ato, o pastor teria ressuscitado a pequena menina Vitória. Segundo a reportagem (Jornalvdd, 2013) a jovem Vitória havia morrido após uma pneumonia, o site inclusive direcionado o leitor a um link com acesso a certidão de óbito. No sábado de manhã os preparatórios para o velório já estavam prontos, até que Liliane, tia da menina, a pegou e a levou para seu carro, saindo do cemitério em alta velocidade. Naturalmente, todos assustados, acionaram a polícia. No momento em que o coronel Abelardo Souza conseguiu com apoio da polícia militar de Cariacica localizar o carro de Liliane, tiveram uma surpresa, a menina estava viva. O que aconteceu foi que uma conhecida da tia da menina havia lhe contado sobre um pastor capaz de ressuscitar pessoas, tendo ressuscitado mais de vinte. Foi então que Liliane levou a menina até o pastor Isaias, e enquanto tudo era filmado ressuscitou a pequena vitória.
O Pastor que exerce o curandeirismo usando gestos e palavras (falando inclusive em línguas), já fez o ato mais de vinte vezes, configurando habitualidade. Porém a questão se mostra complexa, o homem realmente parece ter ressuscitado a pobre menina. Contudo, se o mínimo de investigação for feita no caso, qualquer leigo percebe que o atestado apresentado é falso, a reportagem direciona a uma imagem, que é claramente forjada, dentre outros motivos, pois o documento original do qual este foi adulterado é a primeira imagem que aparece no site Google quando se pesquisa por “certidão de óbito”, além disto, nem todas as alterações para falsificar o documento foram feitas de maneira correta, por exemplo, a causa da morte, segundo o atestado a morte foi causada, entre outras, por anencefalia, ora, a menina ressuscitada no vídeo tem cérebro e crânio, outros fatores notórios que mostram a clara falsificação é a data da morte ser futura em relação da ressurreição, e o fato de o médico que “atestou” o óbito estar com a CRM inativa.
Neste caso, o crime de curandeirismo foi realizado em concurso com o de falsificação de documento público. Por serem consumados em momentos diferentes e ofenderem bens jurídicos diversos, se entende que houve crime material. Este caso apresenta uma situação que merece bastante atenção, pois muitas pessoas acreditaram neste poder do pastor Isaias, mostrando o quão perigoso são os crimes contra a saúde pública, no qual o sujeito passivo pode ser a coletividade, inúmeras pessoas podem ter cessado o tratamento médico por achar que caso morressem, seriam ressuscitadas pelo “poderoso” pastor.
Peculiar caso de curandeirismo que tomou destaque foi o do Pastor César Peixoto, documentado pelo (Globo G1, novembro de 2011), seu principal milagre é o do emagrecimento, conhecido como “emagrecimento instantâneo” ou “lipoaspiração divina”, a princípio parece inofensivo tratar tal conduta como curandeirismo, mesmo porque o método do pastor não é evasivo e não há aplicação, prescrição ou ministração de substâncias, sendo baseada na simples oração e na fé. Contudo não se pode deixar levar pela aparente inocência, ao habitualmente “curar” fiéis através de gestos, palavras ou qualquer outro meio, está o pastor consumando o crime de curandeirismo.
Obesidade é considerada uma doença, pode ser efeito colateral de outras doenças, é necessário muitas vezes acompanhamento médico, sendo perigoso para a coletividade que alguém que tem bastante influência, como um pastor, alegue, como no caso, ter recebido “o dom da cura”. É importante esclarecer que apesar de a especialidade ser o emagrecimento, o pastor César também realiza campanhas sobrenaturais, podem durar até três noites, na primeira acontecem cirurgias divinas, com cura para diversas enfermidades, como: gastrite, úlcera, doenças nos ossos e problemas respiratórios. Na segunda noite é feita uma oração para libertar pessoas do vício das drogas; e finalmente, na terceira noite é quando ocorre o “emagrecimento espiritual”, na qual, segundo o pastor, pessoas chegam a perder 20 quilos em poucos minutos.
Além dos citados, existem inúmeros outros casos de curandeirismo espalhados pela internet, tumores retirados, cirurgias de órgãos vitais sem corte, demônios sendo retirados de doentes e presos em garrafas, entre outros.
7.3 DO ESTELIONATO EM IGREJAS EVANGÉLICAS
Esta modalidade de estelionato é o que move tantos pastores de má-fé a praticarem os crimes já estudados. O objetivo final é o lucro se aproveitando da fé dos crentes vulneráveis e em situações frágeis, tanto de saúde e espiritual quanto financeira.
Como não poderia ser diferente, a Igreja que mais tem casos de escândalos em relação ao estelionato religioso é a mais rica e poderosa, a pioneira no ramo, a Igreja Universal do Reino de Deus, sobre ela alguns casos serão expostos, inclusive a denúncia do Ministério Público Federal, que abrange inúmeros crimes como lavagem de dinheiro, evasão de divisas, quadrilha, falsidade ideológica, mas o que interessa neste momento para o estudo é o estelionato.
De acordo com o documentado no site do MPF (MPF.MP, 2009), na denúncia de autoria do Procurador da República Sílvio Luís Martins de Oliveira, o modo de arrecadar dinheiro pelo estelionato se dava com “oferecimento de falsas promessas e ameaças de que o socorro espiritual e econômico somente alcançaria aqueles que se sacrificassem economicamente pela Igreja”, o MPF ainda afirma na denúncia:
Assim foi que valores doados por fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus, em sua maioria pessoas humildes e de escassos recursos financeiros, sofreram uma espúria engenharia financeira para, ao final, se converterem em participações societárias de integrantes da IURD em empresas de radiodifusão e telecomunicações, certamente um destino totalmente ignorado pelos crentes e pela Receita Federal, bem como absolutamente incompatível com os objetivos de uma entidade que se apresenta como religiosa perante a Sociedade e o Estado.
Para ilustrar de forma mais precisa o tipo de estelionato citado pelo MPF, citaremos uma estratégia extremamente comum de ser tomada pelos pastores da Universal, eles chamam ao palco pessoas que estão supostamente encarnadas por demônios, muitas das vezes os demônios são as causas dos males, da falta de saúde, do desemprego, neste caso que a reportagem traz (BlogPovo, 2014), o demônio estava preocupado com o Templo de Salomão, segundo o “demônio” o Ministério Público estava de conluio com as forças das trevas para parar as obras, mas a parte que nos leva ao estelionato religioso é ainda mais extravagante. O pastor questiona ao homem endiabrado: “E as pessoas que ajudarem, doarem para a construção do Templo... A pessoa vai doar a casa, carro, dinheiro, doar o salário, dinheiro guardado, vai pegar o que ela tem no banco, vai vender as roupas, vai vender o que ela tem para a construção do Templo. O que vai acontecer?”
O “demônio” então responde: “Vai mudar a vida por completo... E a promessa que Edir prometeu àquele desgraçado vai se cumprir.” Ou seja, o pastor em parceria com o demônio estava incentivando as pessoas a doarem tudo que tinham, inclusive seu sustento, o salário que tem caráter alimentício, casa, etc., pois assim, teriam a vida mudada por completo, este é um perfeito exemplo do estelionato que o Procurador Federal da República se referia quando denunciou a supracitada Igreja.
Estratégia não tão diferente da utilizada pela Universal foi utilizada por outro dos mais bem sucedidos pastores no ramo da teologia da prosperidade, agora pelo líder de uma das Assembleia de Deus, Silas Malafaia, como exposto na reportagem (Carlos Costa Jornalismo,
2013), o pastor pede para seus fiéis fazerem um sacrifício, em troca Deus dará a tão sonhada casa própria, porém o sacrifício é bastante apelativo, se quiserem a graça de Deus, devem doar parte do aluguel, pagamento das prestações do programa “Minha Casa, Minha Vida” ou, para quem vive de favores na casa dos outros por não possuir casa própria. O certo é que, a casa própria é o sonho de muitas pessoas humildes, e para estas pessoas uma prestação de aluguel não é coisa pouca, quando seu pastor as garante que Deus dará uma casa em troca, se fizeram o sacrifício para a Igreja, muitas dessas pessoas passarão por situações financeiras difíceis, tendo prejuízo em favor da Igreja, que, se configurada má-fé (dolo) do Pastor, estaria cometendo justamente o estelionato.
Outro caso que tomou bastante repercussão foi o do cofundador da Igreja Universal do Reino de Deus, que apesar de ter saído desta por algumas diferenças, nutre semelhanças na forma de arrecadar doações, o Missionário R.R Soares, líder da Igreja Internacional da Graça, aparentemente tem uma política menos agressiva que seus concorrentes, contudo não menos astuta, como mostra a reportagem (UOL, 2011), o Missionário criou uma nova forma de dízimo, agora automático por contracorrente. Segundo o Missionário, quem fizer o cadastro no banco como ele explica, receberá um “presente de Jesus”, sem dizer o que será.
Para completar o raciocínio acerca do último caso apresentado, sobre o método do R.R Soares, que pode parecer não grave, uma nova declaração do Missionário vai mais a fundo, como mostra a reportagem (O Grande Diálogo, 2013), em um de seus quadros na TV, “pergunte ao missionário”, uma pergunta oportuna é feita: “Missionário, uma pessoa que não é fiel no dízimo, isso tem influência na salvação da mesma”? A resposta foi bem dura, segundo o Missionário quem não é fiel ao dízimo não terá a salvação, de tal forma, é preciso comprar a salvação pagando os dízimos. A resposta do Missionário é baseada em trechos bíblicos, segundo a reportagem, fora de contexto e ilógicos da forma como apresentados (compara quem não paga dízimo a “ladrão ou roubador” de Deus). O que podemos de fato captar disto, é que mesmo sem grandes encenações como em outras igrejas mais apelativas, R.R Soares também condiciona recompensas divinas a doações, e por vezes, como no caso, usa do medo de seu fiel para arrecadá-las, o que poderia ser uma maneira de ludibriar a vítima para obter vantagem indevida (estelionato), se existente o dolo, que é elemento subjetivo do tipo.
Alguns casos são bastante delicados e gerarem dúvidas, outros geram repulsa de qualquer expectador, o caso a seguir exposto é novamente da Universal, desta vez um de seus pastores utilizará de uma criança de apenas nove anos para praticar sua encenação estelionatária, como mostra a reportagem (UOL-Folha, 2011), o caso ocorreu em um culto da Universal na cidade de Santo Amaro, no vídeo, o menino conta ao bispo Guaracy Santos que seus pais têm brigado com frequência. O bispo questiona qual sacrifício ele fará pelos pais. “Eu vou dar tudo que eu tenho”, responde a criança. Guaracy devolve: “E o que é tudo que você tem”? O menino responde que são brinquedos. O bispo quer ter certeza, pergunta se ele irá vender, a criança confirma, novamente o líder religioso pergunta o que ele fará com o dinheiro, pergunta se irá pôr no altar, a criança então promete. Como não poderia faltar, aparece alguém possuído pelo demônio, a mãe da criança, o pastor faz a criança expulsar o “diabo” de sua mãe e depois termina, “Seja fiel, vende o que você tem. Tem fé para isso? Vai na tua fé”.
Segundo a Folha, especialistas alegaram que não existe artigo que fale especificamente sobre o caso, mas que o mostrado no vídeo fere princípios do ECA, pois expõe o menino a possíveis constrangimentos, mesmo com rosto borrado.
Deste caso algumas ponderações precisam ser feitas, primeiro não poderia se configurar estelionato tendo como sujeito passivo a criança, neste caso seria configurado o crime de abuso de incapazes. Se o caso for uma encenação, para arrecadar doações dos espectadores, aí sim haveria estelionato. Além de tudo, ainda há, como a especialista citou, a exposição da criança a constrangimento, pautada pelo ECA.
Apesar das falhas da administração, o judiciário já adotou medidas sensatas no que se refere à devolução do dinheiro arrecadado pelo estelionato contra fiéis. Como mostra a reportagem (O Globo, 2009), no qual após ser convencido de que vender todos seus bens (um carro) e doar todo dinheiro para Igreja Universal era a forma de solucionar todos seus problemas, coisa que o fiel garante que não aconteceu, o STJ manteve a decisão de obrigar a Universal a devolver o dinheiro doado. No mesmo sentido, Edilson Cesário, empresário, ex- fiel, move ação contra a Universal, objetivando receber uma indenização de R$ 400 mil, pastores teriam convencido o empresário a pegar empréstimo para doar R$ 338 mil e doar à Igreja, assim rezariam para ele vencer uma causa trabalhista avaliada em R$ 1 milhão, contudo isso não aconteceu e o fiel agora se encontra endividado. O advogado do empresário acredita que ele foi vítima de um golpe dos religiosos que convenceram outros fiéis a emprestar o dinheiro a ele.
8 AS CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS DA IMPUNIDADE
Como exaustivamente apontado nos capítulos supra, é evidente que o bem jurídico atingido pelos crimes de curandeirismo e charlatanismo, a saúde pública, está sendo subestimado ao ter como pena máxima culminadas de menor potencial ofensivo. No caso do curandeirismo, não será julgada nos juizados especiais se resultar em morte ou lesão grave, as formas majoradas, já o charlatanismo mesmo com resultado em morte, será julgado nos juizados especiais criminais. Pois em conformidade com o artigo 61 da Lei 9.099/95 os crimes julgados nos JECrims serão os de menor potencial ofensivo, com pena máxima de dois anos.
A suspensão condicional do processo prevista no artigo 89 da Lei 9.099/95 poderá ser concedida inclusive nos casos mais graves, como curandeirismo majorado pela morte. A condenação por ser muito branda ainda poderá resultar na suspensão condicional da pena, prevista no artigo 77 do Código Penal, quando a sentença condenatória trazer pena não superior a dois anos. Todos os crimes supracitados podem ser ainda, agraciados com a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos, pois as penas isoladamente jamais serão superiores a quatro anos, estando abrangidos pelo benefício do artigo 44 do Código Penal.
O charlatanismo e curandeirismo são crimes de perigo abstrato, e as correspondentes penas na lei vigente só assim os consideram, porém esses crimes podem ter danos concretos através de condutas mais graves do que as tipificadas, como quando um pastor retira um pedaço de carne do crente afirmando ser um câncer, convencendo a vítima que está curada, e a coletividade de que aquele meio é mais eficaz que o científico. Quando a conduta for extravagante e mais nociva, causando inclusive a morte, faz-se necessário pena mais severa. Por tanto, não se defende o simples aumento das penas, mas sim uma tipificação mais complexa com respectivas qualificadoras para situações de maior dano e de perigo à coletividade, as majorantes genéricas do artigo 258, que são usadas de forma “emprestada” pelo artigo 285 do Código Penal deveriam ser extintas e substituídas por qualificadora mais específica no próprio tipo do artigo do curandeirismo e charlatanismo.
Para observar que crimes tão graves possuem penas incompatíveis com o bem jurídico que representam, pode-se comparar a pena máxima culminada ao curandeirismo e charlatanismo convencionais com os crimes de “violação de sepultura”, e “destruição, subtração ou ocultação de cadáver”, que possuem pena máxima de três anos, cumulados com multa. O argumento não é que os mortos não merecem respeito, merecem, mas a incolumidade e saúde pública também, as penas máximas do curandeirismo e charlatanismo não correspondem à realidade social e ao bem jurídico protegido, principalmente quando há morte.
O estelionato religioso, como nos casos estudados, é uma prática corriqueira nas igrejas evangélicas que adotam uma ideologia de comércio da fé (teologia da prosperidade), não acontecem isoladamente, então devem quando investigados, serem analisados como crime continuado, várias pessoas têm seu patrimônio atingido, devendo a pena ser aumentada se possível, até dois terços, como prevê o artigo 71 do Código Penal e com o possível concurso com outros tipos penais.
Um dos importantes pontos que se debate ao analisar igrejas que adotam práticas criminosas é sobre a imunidade tributária, caso configurado intenção diferente das que levam a igreja a receberem a imunidade constitucional, deveria tal benefício ser perdido. O artigo 14 do CTN prevê que o benefício é subordinado a alguns requisitos, não sendo respeitados, a imunidade é prejudicada.
Conforme reportagem (Estadão de S. Paulo, 2011), o MPF estuda requerer a cassação da imunidade tributária da Igreja Universal do Reino de Deus, pois seu fundador Edir Macedo foi denunciado por evasão de divisas, lavagem de dinheiro e estelionato. O Procurador da República Silvio Luís Martins de Oliveira solicitou a análise da medida almejando que a Universal perca a exoneração fiscal. Segundo o argumento a “agressiva política arrecadatória” da Igreja, a qual teria se tornado entidade religiosa com fins lucrativos, e o suposto enriquecimento ilícito de seus dirigentes por meio de desvio de recursos doados pelos fiéis. Segundo o Procurador, o líder da Igreja, Edir Macedo, seria “organizador de atividades criminosas” e “mentor da política criminosa da Universal”.
Além de todos os fatores expostos, ainda é preciso que fique claro que todos os crimes citados são de ação penal pública incondicionada, devendo, mesmo que branda a pena, serem processados, e não é o que acontece na realidade, os charlatões, curandeiros e estelionatários praticam estes crimes em plena TV, rádios, e quando não possuem recursos para tais meios, pela internet, mas sempre aberto ao público, porém são agraciados pela falta de ação das autoridades responsáveis.
As consequências é que movidos pela ganancia do dinheiro fácil e livre de impostos, alimentados pela falha legislativa e pela inércia das autoridades públicas, o ramo das igrejas evangélicas que abusam da fé para enriquecerem rapidamente vem crescendo muito, esta é uma consequência óbvia e perigosa. De acordo com dados do IBGE, conforme reportagem (UOL- Notícias, em 2012), até o início da década de 90, os evangélicos representavam apenas 9% da população brasileira, através da expansão das Igrejas de origem evangélica por intermédio da TV e rádios o número de evangélicos é agora de 44,16%. Os dados do IBGE mostram também que desses evangélicos, 60% são de origem pentecostal, 18,5% evangélicos de missão e 21,8% são de origem não determinada. Segundo os religiosos o Brasil possui a maior concentração mundial de evangélicos pentecostais.
O fato de as igrejas evangélicas estarem crescendo não é um problema social, nem mesmo o fato de sua maioria serem do segmento pentecostais. O problema social é que é justamente através das igrejas pentecostais que mais se observam casos de curandeirismo, charlatanismo e estelionato religioso, e como dito na reportagem, essas igrejas cresceram muito com o uso da TV e da rádio, sendo os fiéis dessa doutrina, justamente os alvos dos criminosos.
A consequência desses dados é que cada vez mais estelionatários, curandeiros e charlatões estarão dominando os canais de TVs e mídias, conquistando em larga escala fiéis hipossuficientes e vulneráveis que por estarem em situação frágil financeiramente, espiritualmente e fisicamente, acabam acreditando nas falsas promessas dos “homens de Deus” que com muita autoridade garantem que são o caminho da salvação, mas não conseguem angariar fiéis apenas com a retórica, mas sim praticando crimes para os convencerem de que são o caminho para salvação, pondo em risco a saúde pública e em seguida os ludibriando e atingindo seu patrimônio através do estelionato.
9 CONCLUSÃO
Diante de todo exposto, fica evidente que o ramo da comercialização da fé, interligado a diversos crimes como charlatanismo, curandeirismo e estelionato vêm crescendo bastante nas últimas décadas, líderes religiosos evangélicos conseguiram dominar boa parte dos horários das TVs e rádios, em alguns casos compraram rádios e TVs, expandindo seu negócio criminoso impunimente como se estivessem amparados por uma liberdade religiosa absoluta.
Contudo, como já estudado, o princípio da liberdade religiosa é pedra fundamental para um estado democrático de direito, foi extremamente importante na evolução das liberdades modernas, porém jamais foi idealizado, nem historicamente, nem juridicamente, para legitimar a prática de crimes. Quando Martinho Lutero lutou pela liberdade religiosa que era inexistente na época do domínio Católico, foi entre outros motivos, justamente para se livrar da comercialização da fé, parecida com o que se vê hoje nas igrejas estudadas. Muito atual analogia se vê ao analisar a 86ª tese de Lutero, que criticava o papa por ser riquíssimo e exigir dinheiro dos fiéis pobres através de indulgências para construir a Catedral de São Pedro, assim como Edir Macedo, pastor mais rico do Brasil fez, ao incentivar que seus fiéis pobres doem tudo, casa, carro, salário, para ajudar na construção do Templo de Salomão.
Quando as constituições trouxeram o princípio da liberdade religiosa, foi para permitir ao cidadão liberdade de culto e consciência, não para aproveitadores praticarem crimes se aproveitando dos vulneráveis impunimente. Ainda assim, quando invocada liberdade de credo para, por exemplo, não servir ao exército em tempo de paz, deverá o sujeito se prestar a pena restritiva de direito, sob pena de perda ou suspensão de direitos políticos. Por tanto, se ela não é absoluta para deixar de praticar obrigação, menos ainda é para praticar conduta criminosa.
Os bens jurídicos atingidos por pastores criminosos, como a saúde pública, o patrimônio privado, são protegidos pela lei, e a liberdade religiosa originariamente foi uma luta idealizada justamente para conter abusos das igrejas e de seus líderes de má-fé, não para permitir e justificar os abusos, não se pode matar em nome de religião, assim como não se pode atacar a saúde pública nem o patrimônio privado através dos crimes supracitados.
Por tanto, é necessário que haja algumas mudanças legislativas, as penas cominadas ao curandeirismo e charlatanismo precisam ser revistas (ou criada outras formas qualificadas, as atuais majorantes são ineficazes) para o contexto histórico e para fazerem jus ao bem jurídico protegido, assim as autoridades públicas poderiam ter um incentivo maior na investigação e oferecimento da denúncia de tais crimes, que são de ação penal pública incondicionada, e que hoje, mesmo findando em morte possuem penas ínfimas. E são tratados como comuns, apesar de boa parte da população ver que há uma ilicitude e imoralidade nas cenas de tais ações, os crimes são veiculados pela TV, rádio e internet como se fossem normais.
Por fim, o intuito do trabalho é mostrar que, além da falha legislativa, os operadores do direito não devem confundir a liberdade religiosa defendida por grandes homens, inclusive protestantes, como Jan Hus, John Wycliffe e Martinho Lutero, pelo direito de farsantes travestidos de pastores de cometerem crimes, escondido atrás dos muros das igrejas, pelo contrário, os criminosos que se aproveitam da fé devem ser severamente punidos, em nome da liberdade religiosa dos fiéis vulneráveis que estão sendo ludibriados diariamente, a lei penal deve ser, por tanto, aplicada sem medo de ferir a liberdade religiosa.
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Advogado, graduado em direito pela UNI-RN, Especialista em direito administrativo pela Faculdade Signorelli.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALBUQUERQUE, Rodrigo Passos de. A liberdade religiosa e a prática de charlatanismo, curandeirismo e estelionato nas igrejas evangélicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 dez 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47876/a-liberdade-religiosa-e-a-pratica-de-charlatanismo-curandeirismo-e-estelionato-nas-igrejas-evangelicas. Acesso em: 23 dez 2024.
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