RESUMO: O momento adequado para realizar a inversão do ônus da prova tem levado a acaloradas discussões na doutrina e jurisprudência. O presente artigo tem como objetivo analisar o momento processual mais adequado para realizar a inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor. Em um primeiro momento iremos tecer alguns comentários da parte histórica do direito do consumidor para então passar a analisar o momento processual mais adequado para realizar a inversão do ônus da prova.
Palavras-chaves: ônus da prova; consumidor.
ABSTRACT: The appropriate time to perform the reversal of the burden of proof has led to heated discussions on doctrine and jurisprudence. This article aims to analyze the moment of procedure best suited to perform the reversal of the burden of proof on the consumer defense code. At first moment, we will make a few comments of the historical part of consumer law to move to examine whether the reversal of the burden of proof should be performed before or on sentence.
Keywords: burden of proof; consumer.
INTRODUÇÃO
O cidadão tem tido maior acesso a informação, o que desencadeou um elevado número de demandas consumeristas. Com isso, a Constituição Federal de 1988 exigiu a confecção de um Código que regulasse as relações de consumo, haja vista a situação de vulnerabilidade que o consumidor enfrentava frente aos fornecedores, como também, as normas de direito privado não regulavam de forma satisfatória essas relações.
Assim em 1990 o consumidor passou a contar com legislação própria para defesa dos seus direitos tendo como objetivo equilibrar a relação do consumidor e do fornecedor. Para tanto, o Código de Defesa do Consumidor possui normas protecionistas e em especial o instituto da inversão do ônus da prova, que tem provocado acirradas discussões na doutrina e jurisprudência.
O Código de Defesa do Consumidor não informa qual o momento processual adequado para realizar a referida inversão do ônus da prova, fazendo com que doutrina e jurisprudência se dividam sobre tema.
Diante do exposto, iremos analisar o momento adequado para aplicar o instituto da inversão do ônus da prova nas matérias de cunho consumerista.
O direito do consumidor foi influenciado pela revolução industrial, que ocasionou um aumento demográfico nos grandes centros urbanos gerando um aumento no consumo aliada a vontade da indústria de produzir cada vez mais, o que exigia uma produção em série, ou seja, a homogeneização da produção. Neste momento o fornecedor começou a ditar as regras do jogo, qual seja, decidia “o que” e “como” produzir para atender a demanda, não se preocupando com a qualidade dos produtos.
Assim, criou-se a sociedade de massa, em que a produção era unilateralmente programada pelo fabricante ao oferecer produtos e serviços em grande oferta para serem adquiridos pelo maior número de pessoas. Com isso, surgiu a necessidade de proteção dessas pessoas que adquiriam produtos e serviços.
Nos Estados Unidos, principal expoente capitalista contemporâneo, editou sua primeira lei de proteção ao consumidor em 1890 (Lei Shermann), tratava-se da lei antitruste daquele país.
Entretanto, o direito do consumidor somente veio ganhar corpo na metade do século XX, início da década de 1960, quando o Presidente John Kennedy afirmou que o direito do consumidor seria o grande desafio do mercado, contaminando toda a Europa e os demais países capitalistas.
O direito do consumidor somente veio a se consolidar no Brasil com a Constituição Federal 1988 que o elencou como direito fundamental em seu art. 5º, XXXII, ao estabelecer que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” (Brasil, 1988). Antes disso, aplicava-se nas relações de consumo o Código Civil de 1917.
A Constituição Federal de 1988 ainda elencou a defesa do consumidor como princípio da atividade econômica. Vejamos:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor; (grifo nosso)
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
O art. 48 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal determinou a exigência de sistemizar um código de proteção ao consumidor no prazo de 120 dias da sua promulgação.
Com isso, surgiu a Lei nº 8.078/90 para regular as relações de consumo, pois as normas do regime privatista não estavam conseguindo resguardar principalmente as relações ditas de massa.
2. O ÔNUS DA PROVA NO CPC E NO CDC
O direito processual civil exige a comprovação de todas as alegações para que sejam valoradas juridicamente. Assim, o Código de Processo Civil estabelece no art. 373:
Art. 373. O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
§ 1o Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
§ 2o A decisão prevista no § 1o deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.
§ 3o A distribuição diversa do ônus da prova também pode ocorrer por convenção das partes, salvo quando:
I - recair sobre direito indisponível da parte;
II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.
§ 4o A convenção de que trata o § 3o pode ser celebrada antes ou durante o processo.
Conforme estabelece o art. 373, incisos I e II, do Código de Processo Civil, tanto autor como réu têm o ônus de provar suas alegações. O autor deve provar os fatos trazidos na petição inicial, enquanto ao réu cabe provar que não merecem sustentação as alegações do autor. Todavia, o novo Código de Processo Civil trouxe uma novidade no §1º, do art. 373, ao permitir expressamente a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova pelo juiz no caso da impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário.
Nas relações de consumo, quanto ao tema produção probatória, o Código de Processo Civil é utilizado de forma complementar, haja vista que o Código de Defesa do Consumidor tem regras diferenciadas e protetivas ao consumidor.
A proteção do consumidor é justificada pelo art. 4º, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor ao reconhecer a vulnerabilidade dos consumidores.
Assim prescreve o art. 4º, inciso I:
Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;
As provas produzidas deverão ser conduzidas de acordo com o art. 6º, VIII, do CDC, que assim estabelece:
“Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências
O artigo supracitado atribui ao julgador decidir pela inversão do ônus da prova caso estejam presentes os requisitos da verossimilhança da alegação ou a hipossuficiência do consumidor.
Entretanto, o Código de Defesa do Consumidor foi omisso em relação ao momento adequado para declarar a inversão do ônus da prova, o que gerou divergências na sua aplicação.
3. MOMENTO PROCESSUAL ADEQUADO PARA DECLARAR A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA
De acordo com o que já foi consignado, o Código de Defesa do Consumidor possui peculiaridades próprias que regulam o procedimento probatório.
A inversão do ônus da prova pode ser convencional, legal ou judicial. A inversão convencional é realizada por acordo entre as partes. Enquanto a distribuição legal ou “ope legis”, adotada pelo Código de Processo Civil, organiza prévia e abstratamente a obrigação de produzir a prova, assim ao autor cabe provar os fatos constitutivos do seu direito e ao réu provar os fatos impeditivos, modificativos e extintivos do direito do autor, segundo o artigo 373 do Código de Processo Civil.
Entretanto, o Código de Defesa do Consumidor adotou, em regra, a distribuição judicial ou “ope judicis” do ônus da prova, haja vista que o magistrado pode redistribuir o ônus probatório, desde que verificada a verossimilhança da alegação ou a hipossuficiência do consumidor.
Todavia, o momento adequado para a inversão do ônus probatório tem levado a grandes discussões, haja vista o silêncio do Código a respeito do tema.
Parte da doutrina, capitaneada por Nelson Nery Júnior e Ada Pellegrini Grinover, defende que o momento mais adequado para a inversão do ônus da prova seria na sentença, pois entendem que tal instituto seria uma regra de julgamento.
Contudo, entendo que o momento processual mais adequado para a inversão do ônus da prova seria antes da sentença conforme o entendimento do respeitado doutrinador Daniel Amorim Assumpção Neves:
“Para que o réu não seja surpreendido com a inversão quando já finalizada a instrução probatória, entendo que, em respeito ao princípio do contraditório, a sinalização de possível inversão – se necessário for – deve ser feita expressamente já na decisão saneadora”. (NEVES, 2010)
Entendimento este seguido pelo não menos festejado Marcus Vinícius Rios Gonçalves, que assim prescreve:
“Por isso, embora o ônus da prova seja, antes de qualquer coisa, regra de julgamento, caberá ao juiz na decisão de saneamento e organização do processo definir a sua distribuição, observado o art. 373, cabendo agravo de instrumento sempre que houver redistribuição, na forma do art. 373, §1º. Com isso, evita-se ofensa ao princípio do contraditório e eventual cerceamento de defesa daquele que ficaria prejudicado com alteração do ônus, já que a questão será apreciada em momento processual tal que permita àquele a quem o ônus for carreado socorrer-se das provas necessárias”. (GONÇALVES, 2016)
A jurisprudência também era vacilante sobre o momento adequado para a inversão do ônus, mas no ano de 2012 o tema foi pacificado pela Segunda Seção (engloba a 3ª e 4ª Turmas) do Superior Tribunal de Justiça, que assim entendeu:
“A inversão do ônus da prova de que trata o art. 6º, VIII, do CDC é regra de instrução, devendo a decisão judicial que determiná-la ser proferida preferencialmente na fase de saneamento do processo ou, pelo menos, assegurar à parte a quem não incumbia inicialmente o encargo a reabertura de oportunidade para manifestar-se nos autos”. (STJ. 2ª Seção. EREsp 422.778-SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgados em 29/02/2012)
Portanto, o Superior Tribunal de Justiça seguiu o entendimento de oportunizar a quem não tinha inicialmente o encargo probatório a oportunidade para se manifestar nos autos, privilegiando assim, o princípio do contraditório.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se, assim, que em homenagem ao princípio do contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal, o requerimento de inversão do ônus da prova deve ser apreciado pelo magistrado no momento do despacho saneador.
Com isso, ambas as partes irão estar a par de suas obrigações ao iniciar a fase instrutória, garantindo maior segurança as relações jurídicas, como também, assegurando a paridade de armas e evitando surpresas para parte.
Portanto, andou bem o Superior Tribunal de Justiça ao uniformiza o tema, entendendo que o despacho saneador é o momento em que se definem os pontos controvertidos da lide, sendo esse o momento processual adequado para a inversão do ônus da prova, respeitando-se assim os princípios do contraditório e ampla defesa, como foi afirmado supra.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em 28. nov. 2016.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Principais Julgados do STF e STJ comentados 2012. 1ª edição. Dizer o Direito Editora. Manaus-AM. 2013.
GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do Consumidor. 6ª edição. Editora JusPodivm. Salvador-Bahia. 2012.
GONÇALVES, Marcus Vinícius Rios. Direito Processual Civil Esquematizado, p. 476, 7ª edição. Editora Saraiva. São Paulo-SP. 2016.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil V. 2, Processo de Conhecimento. 6ª edição. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo-SP. 2007.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Processo Civil, p. 391, 2ª edição. Editora Método. São Paulo-SP. 2010.
NUNES, Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 8ª edição. Editora Saraiva. São Paulo-SP. 2015.
NUNES, Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor. 2ª edição. Editora Saraiva. São Paulo-SP. 2005.
Advogado e Assessor jurídico da Prefeitura de São Domingos do Cariri - PB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MAIA, Enio da Silva. A inversão do ônus da prova no CDC e seu momento processual adequado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 dez 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47950/a-inversao-do-onus-da-prova-no-cdc-e-seu-momento-processual-adequado. Acesso em: 23 dez 2024.
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