Resumo: Após o advento da Lei 12.015, de 07 de agosto de 2009, surgiu um novo tipo penal, qual seja, o Estupro de Vulnerável, inserto no art. 217-A do Código Penal Brasileiro. O legislador instituiu, nessa oportunidade, que o indivíduo menor de 14 anos de idade é absolutamente vulnerável, vindo a configurar crime ter com ele conjunção carnal ou praticar qualquer outro ato libidinoso. A partir daí tornou-se ainda mais ferrenha, na doutrina e jurisprudência, a antiga polêmica acerca do caráter da vulnerabilidade do menor, se absoluta ou relativa. No entanto, sustentamos que nenhuma alteração legislativa é desprovida de motivações fáticas e que cabe aos operadores do Direito considerá-las. Buscamos examinar, então, os fatores de vulnerabilidade que cercam o menor de 14 anos nos tempos da modernidade, a fim de reconhecer que, diante do panorama em que se encontra esse indivíduo, faz-se necessária a proteção estatal. O presente estudo objetiva, igualmente, mostrar que o Estado, ao sopesar os interesses em questão, também constata a prevalência da necessidade da proteção à infância e à juventude, que se encontra em risco a nível mundial, em face da proteção à autodeterminação sexual do menor. Ao final desta pesquisa, pode-se concluir, dessa forma, que o novo tipo penal se apresenta como uma das muitas vertentes integrantes da política criminal brasileira de proteção à criança e ao adolescente.
Palavras-chave: LEI Nº. 12.015/09 − ESTUPRO DE VULNERÁVEL – VULNERABILIDADE ABSOLUTA – POLÍTICA CRIMINAL – PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Abstract: After the enactment of Law 12,015, of August 7, 2009, emerged a new criminal type, which is the Rape of Vulnerable, inserted in Article 217-A of the Brazilian criminal law. The legislator instituted, on this occasion, that the individual under 14 years old is absolutely vulnerable, turning crime have carnal conjunction or practice other libidinous act with him. From there it became even fiercer, in doctrine and jurisprudence, the old controversy about the vulnerability of the child, whether absolute or relative. However, we contend that no legislative change is unreasonable or deprived of motivation and that it is up to operators of the law to consider them. We seek to examine, therefore, the vulnerability factors surrounding aged under 14 years in the times of modernity, with the view to recognize that in front of the panorama that this individual is inserted, it becomes necessary State protection. This study also aims to show that the State, when weigh up the interests at issue, notes the prevalence of the need for protection of children and youth, who are at risk globally, due to the protection of their sexual self-determination. At the end of this survey, we can conclude, thereby, that the new criminal type is presented as one of many aspects from the brazilian criminal policy of protecting children and adolescents.
Keywords: LAW Nº 12.015/2009 – RAPE OF VULNERABLE − ABSOLUTE VULNERABILITY − CRIMINAL POLICY − PRINCIPLE OF PROPORTIONALITY
INTRODUÇÃO
A questão da sexualidade infanto-juvenil é sempre um tema instigante para os operadores do Direito, seja porque envolve uma tensão entre direitos fundamentais, o que exige um sopeso entre os mesmos, ou porque o sexo é, no mais das vezes, assunto controverso.
É antiga a discussão acerca da vulnerabilidade do menor de 14 anos, haja vista a antiga previsão da presunção de violência que havia em relação aos mesmos, inserta no revogado art. 227 do Código Penal Brasileiro de 1940. Desde lá, já discutiam os doutrinadores se o consentimento do menor deveria ser considerado legítimo para práticas sexuais, parte deles, a exemplo de Bento de Faria[1] e Hungria[2], defendendo que a vulnerabilidade deveria ser absoluta, não podendo ser considerado válido seu consentimento, principalmente por causa do seu desenvolvimento psicológico e cognitivo incompletos. De outro lado, autores como Julio Fabbrini Mirabete[3] e Guilherme Nucci[4] já alegavam que o menor apresenta uma vulnerabilidade relativa, que poderia ceder ao caso concreto, como nas situações em que o mesmo apresentasse condições psicológicas de entender as implicações de seus atos, bem como quando já fosse “experiente” em práticas sexuais.
É dever de quem formula as leis penais compreender as circunstâncias que, na modernidade, circundam o objeto de uma norma penal. No caso do menor de 14 anos, torna-se imperioso admitir que o legislador procurou analisar todos os fatores de vulnerabilidade que cercam aquele, de modo a encontrar a melhor solução para a polêmica existente. Com a elaboração da Lei nº. 12.015, em 2009, buscou o legislador encerrar as discussões acerca do tema, introduzindo, no Diploma Penal, o tipo intitulado Estupro de Vulnerável, que impõe a vulnerabilidade absoluta do menor de 14 anos. No entanto, as velhas discussões tornaram-se ainda mais acirradas e ganharam novos contornos e argumentos.
O presente estudo se propõe a revelar que essa escolha do legislador não foi feita de forma arbitrária ou desarrazoada, mas que, acertadamente, optou pela vulnerabilidade absoluta desses indivíduos por questões fáticas que são objeto de uma política criminal.
Já que se faz necessário analisar o contexto que envolve aquilo que vai ser regulado, buscamos ressaltar alguns importantes fatores de vulnerabilidade que fazem parte do universo das crianças e dos adolescentes do Brasil, sem pretensão nenhuma de esgotá-los.
Ressaltamos que, após a constatação, pelo legislador, dos elementos de vulnerabilidade que explanaremos, o mesmo adotou uma política criminal de proteção à infância e à juventude, instituindo várias normas penais que objetivam o resguardo do bom desenvolvimento da criança e do adolescente, fazendo-se cogente harmonizar a questão da sexualidade infanto-juvenil com a mencionada política criminal.
Reconhecemos, no entanto, que as discussões e divergências doutrinas e jurisprudenciais são relutantes, cabendo aos legisladores e operadores do Direito proceder da maneira correta numa aparente colisão de princípios: recorrendo-se à ponderação dos princípios fundamentais em pauta, através da utilização do princípio da proporcionalidade.
1. TRATAMENTO JURÍDICO-PENAL BRASILEIRO DA SEXUALIDADE DO MENOR ANTES DA LEI Nº 12.015/2009
No Diploma Penal brasileiro de 1940, os crimes contra os menores encontravam-se sob a denominação do Capítulo “Da Sedução e da Corrupção de Menores”, havendo abolitio criminis com relação ao crime de Sedução (antigo art. 217[5]), sendo o crime de Corrupção de Menores[6] substituído pelo vigente art. 218[7], que também procura proteger o menor de 14 anos.
Antes da Lei nº 12.015/09, existia, concomitantemente, aos tipos acima descritos, a denominada presunção de violência, especificada no antigo art. 224[8], caput, do Código Penal brasileiro.
Conforme os ensinamentos de José Henrique Pierangeli, embora a vinculação da presunção de violência à idade da vítima só tenha se apresentando à nossa legislação com os Códigos Penais de 1890 e 1940, a questão da idade como critério decisivo para a aquisição da capacidade de autodeterminação sexual não é recente, remontando-se ao princípio Qui velle non potuit, ergo noluit[9], que, norteou várias legislações, levando-as a adotar critérios etários para validar o consentimento de prática sexual pela criança/adolescente.[10]
A citada presunção de violência foi muito criticada, não se chegando a um consenso entre a jurisprudência e a doutrina sobre seu caráter, se absoluta ou relativa. Nesse aspecto, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, nos autos do HC nº. 99.993, esclareceu o rumo tomado pela legislação pátria, quando assentou que as alterações trazidas pela Lei nº. 12.015/2009 abandonaram o sistema da presunção para as situações de violência previstas no antigo art. 224 do Código Penal, as quais passaram a constituir elementos do estupro de vulnerável, com pena mais severa[11].
2. AS MODIFICAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI Nº. 12.015 EM RELAÇÃO AO MENOR
Antes de falar nas mudanças introduzidas pela citada lei, cumpre demonstrar o painel social no qual ela se baseou, constatando-se ter havido uma clara tendência repressora do legislador, punindo severamente condutas que configurem ou que venham a configurar violência sexual contra o menor. Tal realidade é explicada pelas transformações sociais sofridas pela sociedade, a exemplo do avanço tecnológico que amplia as fronteiras da criminalidade, favorecendo o anonimato e a impunidade, como acontece, especialmente, com os chamados crimes de pedofilia praticados via internet.
Rogério Greco, com muita propriedade, adverte que as crianças e os adolescentes, atualmente, vêm sofrendo a ação das taras doentias dos pedófilos, sendo a internet utilizada como meio para a ação desses “psicopatas sexuais”[12].
Nunca esteve tão em alta o mercado do sexo, a exploração da sexualidade infantil, a identificação dos mais variados tipos de patologias sexuais com relação aos menores e, com isso, os mais variados tipos de violência infantil, como será explanado nos próximos capítulos.
3. O TIPO “ESTUPRO DE VULNERÁVEL” (ART. 217-A, CPB)
Pressionado por esse conjunto de fatores, o legislador decidiu tornar mais rigoroso o tratamento criminal envolvendo o menor, tendo sido criada, então, a categoria do “vulnerável”. Assim, com a edição da Lei nº. 12.015, publicada em 7 de agosto de 2009, os crimes sexuais contra o menor passaram a ser intitulados de “Crimes Sexuais contra Vulnerável”, considerando-se vulnerável o menor de 14 (catorze) anos ou quem, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato.
Passando a idade abaixo de 14 anos a ser elemento do crime de estupro de vulnerável, o legislador optou pela manutenção da posição doutrinária de que o menor de 14 anos não pode oferecer consentimento válido para a prática do sexo.
Entretanto, o marco de 14 anos de idade, como fato gerador de vulnerabilidade absoluta, é alvo de muitas críticas. A grande questão, nesse contexto, gira em torno da discussão acerca do caráter dessa vulnerabilidade, tendo a jurisprudência dominante, atualmente, se inclinado para o entendimento de que se trata de vulnerabilidade absoluta, considerando que a compreensão do menor de 14 anos acerca do significado ou das consequências do seu comportamento sexual não podem ser plenas[13].
O doutrinador Guilherme Nucci salienta: “o nascimento do tipo penal inédito não tornará sepulta a discussão acerca do caráter relativo ou absoluto da anterior presunção de violência”[14].
4. A VULNERABILIDADE DO MENOR DE 14 ANOS
Derivado do latim vulnerabilis, o termo vulnerável demonstra sempre a incapacidade ou a fragilidade de alguém, gerada por circunstâncias especiais, como nos leciona Eudes Quintino[15], o que evidencia, outrossim, que ser vulnerável não é o mesmo que ser incapaz, mas significa ter por direito a condição de superar os fatores de risco que podem afetar o seu bem-estar.
Segundo a própria Exposição de Motivos do Código Penal (nº. 70), “o fundamento da existência dessa ficção legal no caso dos adolescentes, é a innocentia consili do sujeito passivo, ou seja, a sua completa insciência em relação aos fatos sexuais, de modo que não se pode dar valor algum ao seu consentimento”.
Observa-se, ademais, que o conceito de vulnerável, apresenta-se, por vezes, na doutrina, relacionado à definição de criança, estatuída no caput do art. 2º da Lei 8.069/1990, segundo o qual criança é a pessoa até doze anos de idade incompletos, sendo adolescentes aqueles que estão entre doze e dezoito anos de idade.
No caso do menor de 14 anos, impreterível admitir que este se encontra inserido numa camada da população que é vítima dos fatores de vulnerabilidade, oriundos de várias vertentes sociais, desde a opressão intrafamiliar até o trabalho escravo. Segundo Vania Sierra e Wander Mesquita, dar-se conta desses fatores e conhecê-los mais a fundo, oferece ao Estado elementos sobre a real situação do menor, de forma a resguardá-los de maneira mais eficiente, oferecendo-lhes bloqueio às ações que intencionem impedi-los de experimentar o bem-estar na infância, devendo-se direcionar a política social estatal para a redução dos fatores de vulnerabilidade que afligem o bem-estar da população infanto-juvenil[16].
4.1.FATORES DE VULNERABILIDADE
Na criação do tipo “Estupro de Vulnerável”, forçoso entender que o legislador levou em conta as circunstâncias – sobre as quais explanamos adiante as considerações mais importantes - que permeiam a infância e a juventude brasileiras.
4.1.1 O DESENVOLVIMENTO INCOMPLETO DA MATURIDADE FÍSICA, EMOCIONAL E INTELECTUAL
A população infanto-juvenil tem trações bem característicos. O menor de 14 anos, certamente, ainda não consolidou sua noção de identidade própria, até por questões de experiência de vida, correndo o risco, assim, de querer “imitar” alguém ou internalizar algum comportamento que sequer sabe do que se trata ou quais são as consequências daquilo.
Não é desarrazoado concluir, pois, que o menor de 14 anos tende a agir com imprudência e, naturalmente, corre perigos por ele desconhecidos ou desconsiderados, mesmo quando se trata de uma camada social elevada.
Não se pode considerar que, somente por causa de um corpo quase completamente desenvolvido, há o necessário desenvolvimento completo fundamental para a prática do sexo.
Citando jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, o ministro Carlos Velloso, nos autos do Habeas Corpus nº. 73.662-9/MG, antes mesmo do advento da Lei nº. 12.015/2009, destacou que o impedimento legal de autogestão da sexualidade pelo menor de 14 anos funda-se em dois aspectos: primeiro, o de que a puberdade estaria associada a um período de perturbação psíquica que, somada à pouca experiência, torna frágil a vontade do adolescente; segundo, o da ignorância sobre as consequências dos atos, estando ambos os aspectos a fundamentar a incapacidade de autocontrole dos adolescentes[17]. O ministro Néri da Silveira, na mesma ocasião, assentou que, pela própria inexperiência característica das jovens menores de 14 anos, sendo presas fáceis ao joguete na mão do adulto, é que dá a lei maior proteção a essa categoria etária[18].
4.1.2 A PEDOFILIA
O termo “pedofilia” não é de cunho jurídico, mas sim clínico, designando um tipo de distúrbio sexual na qual o indivíduo tem o corpo infantil e a inocência natural da menoridade como objetos de sua libido. Caracterizada pela busca de prazeres egoístas, a prática da pedofilia pode interferir de forma drástica no desenvolvimento psíquico infantil, podendo provocar traumas irreversíveis, sendo importante salientar que o pedófilo age procurando estabelecer vínculos sexuais com a criança a partir do pressuposto de que a mesma consente e aprova, como nos ensina a autora Fani Hisgail[19].
Tendo em vista o fenômeno da pedofilia e o seu alcance como problema mundial, mister se faz atentar para a urgência da proteção à criança e ao adolescente que, na maioria das vezes, são ludibriados e enganados sobre as intenções do adulto pedófilo.
4.1.3 A INTERNET E A PORNOGRAFIA INFANTIL
A popularização da internet aconteceu a partir da década de noventa, aumentando a distribuição da pornografia online. As imagens veiculadas, além de enlevar o desejo dos pedófilos, representam o meio mais eficaz de seduzir as próprias crianças, psicologicamente influenciáveis e frágeis.
A pornografia infantil é um obstáculo à boa educação sexual. Elaborada pela Secretária Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e pela Subsecretária de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, pesquisa sobre Pornografia Infantil na internet, realizada em 2004, mostrou que o Brasil é o 10º país do ranking dos países hospedeiros de sites de pornografia infantil[20], sendo este, pois, um problema a ser enfrentado no nosso país.
Nesse contexto, brilhantes os apontamentos do Ministro Néri da Silveira em seu voto no Habeas Corpus Nº 73662-9/MG:
A lamentável realidade de que novelas e outros espetáculos transmitidos por televisão abordem, com naturalidade, cenas reprováveis – como anotado pela sentença – não pode conduzir à descriminalização desses fatos pelo Juiz, até mesmo porque, a prevalecer essa permissividade, os meios de divulgação já teriam derrubado considerável parte da legislação penal (...)[21]
Imperioso reconhecer que a problemática reside na utilização mercadológica da sexualidade infantil, transformando milhares de crianças em objetos sexuais, objetivando o consumo do prazer violento.
4.1.4 A VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTIL
Há décadas, o abuso sexual infantil tem sido objeto de discussão por parte de especialistas no mundo inteiro e por entidades que lidam com essa problemática, devendo-se registrar, no entanto, que não se trata de um problema recente, mas que data de longas datas, vindo a receber atenção há alguns anos.
Estudos do Departamento de Medicina Legal da Unicamp, de 1997, por exemplo, indicam que apenas 10% a 20% das vítimas denunciam o estupro.[22] Segundo a vice-presidente do Comitê das Nações Unidas sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, Xiaoqaio Zou, cerca de 2 milhões de crianças e adolescentes, menores de 15 anos, viram alvos de exploração sexual todos os anos.[23] A Organização Mundial de Saúde, por sua vez, estima que 150 milhões de meninas e 73 milhões de meninos abaixo de 18 anos já foram submetidos a algum tipo de relação sexual forçada ou outra forma de violência sexual envolvendo contato físico, embora esse número seja claramente subestimado.[24]
Imperativo reconhecer, através dos acontecimentos diários veiculados pela imprensa e abordados, inclusive, nas telenovelas, a evidência ganhada pela prática de violência sexual infantil, fazendo-se necessário reconhecer que muitas infâncias estão sendo roubadas no mundo inteiro, o que, inevitavelmente, obstaculiza o desenvolvimento psicológico do indivíduo, constituindo-se fator que poderá levar o próprio jovem a ser, futuramente, um adulto violento.
A incapacidade natural do menor para consentir na prática sexual é defendida também pela Organização Mundial da Saúde (1999), ao conceituar a violência sexual infantil como todo e qualquer envolvimento de uma criança em quaisquer práticas sexuais não compreendidas por ela, uma vez que esta não se encontra preparada em razão de seu desenvolvimento ainda incompleto, sendo, ainda, todo e qualquer ato tendente a satisfazer as demandas sexuais de outra pessoa com o uso de crianças[25].
É lamentável constatar que a maioria dos casos envolvendo violência sexual infantil ocorre no âmbito doméstico, envolvendo, não raro, parentes e, assim, deixa-se a criança com medo de reagir. Essa verificação endossa ainda mais a necessidade da proteção estatal direcionada às crianças e aos adolescentes.
Juridicamente falando, as crianças e adolescentes vítimas de violência sexual são, não raro, tendentes a se tornarem adultos agressivos e abusadores, o que poderá comprometer o ambiente social, tendo em vista o possível aumento da criminalidade cuja raiz se encontra em traumas sofridos durante o período infanto-juvenil.
5. A POLÍTICA CRIMINAL E A VULNERABILIDADE ABSOLUTA DO MENOR DE 14 ANOS
Não importam as condições socioeconômicas dos indivíduos, há uma constante: todas as classes sociais reclamam uma pronta intervenção estatal objetivando o combate à violência e o estabelecimento de plena segurança social, sendo, portanto, a segurança pública o principal objetivo da política criminal.
Segundo Maria Carolina Duarte, a política criminal cuida da seleção de bens ou direitos que devem ser tutelados, escolhendo-se os meios aptos a implementar tal tutela, o que implica na crítica das atuais políticas[26]. Ressalte-se, ainda, que a política criminal não pode ser confundida com a opinião pública, devendo o legislador competente estudar, analisar os melhores caminhos para atingir os objetivos a serem atingidos.
O autor Fernando Galvão assevera que
(...) uma das preocupações da política criminal é dirigir o legislador à indagação sobre o que fazer com as pessoas que violam as regras de convivência social. Assim, no combate à criminalidade, a política criminal representa sempre uma investigação, sempre inacabada, sobre como realizar tal combate. O autor conceitua política criminal como "o conjunto de princípios e recomendações que orientam as ações da justiça criminal, seja no momento da elaboração legislativa, ou da aplicação e execução da disposição normativa.[27]
“O Direito Penal é a barreira intransponível da política criminal” (das strafrecht ist die unübersetzbare schranke der kriminalpolitik).[28] Essa famosa frase de Franz v. LISZT caracteriza uma relação de tensão, ainda hoje viva no âmbito da ciência penal[29], que será abordada adiante, sem pretensão de exaurir o assunto.
A problemática acerca da prevalência da vulnerabilidade absoluta ou relativa surge a partir do momento em que o Estado, no exercício da política criminal, elege, por via da atividade legislativa, a tutela da dignidade sexual do menor de 14 anos em face da tutela de outros bens jurídicos, a exemplo da liberdade sexual.
Conforme Paulo Pinto de Albuquerque, é importante ressaltar, inclusive, que o exercício da política criminal necessita não apenas da intervenção do Estado, mas também da colaboração da sociedade no que tange à prevenção criminal[30]. Assim, é papel da sociedade associar-se ao Estado a fim de que se atinjam certos objetivos comuns, como, por exemplo, a redução da criminalidade, sendo dever daquela praticar ou deixar de praticar condutas necessárias ao alcance desse propósito comum.
Conforme os apontamentos do autor Daniel Silva, nas legislações penais pretéritas, mormente no período anterior à Constituição de 1988, observava-se a tendência de proteger tão somente os direitos individuais por excelência. No entanto, com a evolução histórica, passou-se a tutelar outras dimensões ou gerações de direitos fundamentais, como os sociais e difusos (paz, segurança social, meio ambiente, sistema financeiro nacional), sendo estes também reconhecidos como merecedores da intervenção penal em face das demandas da sociedade[31].
Em suas decisões político-jurídicas, o Estado, inevitavelmente, encontra-se no dever de sopesar direitos e enlevar alguns direitos em face de outros, valendo-se, para alcançar seus propósitos, da estrutura do Direito Penal quando necessário for.
Ora, uma vez discorrido acerca da atividade político-criminais do Estado, questiona a autora Márcia Carneiro: “se o menor de 12 anos teria entendimento sobre sexo, não teria também entendimento suficiente para saber que a prática de ato infracional é errado? Por que não então abaixar a maioridade penal para 12, 10 ou 14 anos?”[32] Nesse sentido, tem-se que a constituição de um tipo penal ou de uma regra jurídica não passa sempre e apenas pelo crivo do discernimento ou da subjetividade, mas atende, primordialmente, a um planejamento integrado, criado pelo Estado, para a consecução de determinados fins.
Assim sendo, a política criminal acaba determinando o alcance e o conteúdo do Direito Penal, delimitando as questões da incriminação de algumas condutas e descriminalização de outras.
Repudiar a instituição de faixas etárias nos tipos penais é, em última análise, rejeitar a adoção de uma política criminal, o que, como visto, resta insustentável.
Segundo a autora Vania Sierra:
A relação entre vulnerabilidade e direitos para crianças e adolescentes expressa menos a ideia de fragilidade e dependência do que a intenção de criar condições para sua superação com base no exercício de uma cidadania especial, que compreende uma concepção mais complexa de bem-estar. Trata-se de direcionar a política social para a redução dos fatores de vulnerabilidade que ameaçam o bem-estar da população infanto-juvenil.[33]
Por isso, cria-se uma “teia protetora” à criança e ao adolescente, tendo em vista os referidos fatores de vulnerabilidade que os cercam.
Entre os exemplos de esforços estatais em prol do menor, tem-se a Convenção sobre Direitos da Criança[34] (ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990) e a adoção, pelo Brasil, do Programa Nacional de Direitos Humanos, em 13 de maio de 1996[35]. Em relação à violência doméstica e sexual contra crianças e adolescentes, o PNDH estabelece a implantação e implementação do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil.
Além disso, o atual Código Penal estabelece alguns tipos penais, além do estupro de vulnerável, que revelam a política criminal brasileira de proteção ao menor, demonstrando que o tipo legal em estudo (“Estupro de vulnerável”) não foi criado sem razão de ser ou desvinculado de motivação fática. São exemplo dessa “rede de proteção ao menor” os crimes intitulados “Corrupção de menores” (“induzir alguém menor de 14 anos a satisfazer a lascívia de outrem”), “Satisfação de Lascívia Mediante Presença de Criança ou Adolescente” (“praticar, na presença de alguém menor de 14 anos, ou induzi-lo a presenciar conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer a própria lascívia ou de outrem”), “Favorecimento da Prostituição ou outra forma de Exploração Sexual de Vulnerável” (“submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone”), entre outros, como o art. 126, parágrafo único[36], do Código Penal Brasileiro.
Por derradeiro, estabelece nossa legislação penal que, nos crimes contra a liberdade sexual e nos crimes sexuais contra vulnerável, a ação penal é pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos.
Observa-se, pois, que há uma política criminal em favor do menor, tanto na legislação penal pátria quanto a nível mundial, enlevando a proteção e a prevenção da violência contra a população infanto-juvenil, com vistas a diminuir os seus fatores de vulnerabilidade através de um bom desenvolvimento biológico, psicológico, emocional e cognitivo.
6. POLÍTICA CRIMINAL E A VULNERABILIDADE ABSOLUTA DO ART. 217-A, CAPUT
Rogério Greco, defensor da vulnerabilidade absoluta do tipo estupro de vulnerável, afirma, com propriedade, que “a determinação da idade foi uma eleição politico-criminal feita pelo legislador. O Tipo não está presumindo nada, está tão somente proibindo que alguém tenha conjunção carnal ou pratique outro ato libidinoso com menor de 14 anos”[37].
Percebe-se, através das palavras do douto jurista, que não se trata da continuação da antiga presunção de violência, mas que, assim como em outros tipos, há uma proibição em relação à idade, por razões maiores, eleitas através de uma política criminal. As críticas a essa proibição são ferrenhas, mas, decerto, deve-se reconhecer a necessidade dela e a existência de outras decisões políticas.
Quando o legislador instituiu a vulnerabilidade absoluta no art. 217-A caput, do CPB, não está negando a pulsão sexual que possa existir no menor de 14 anos. Pelo contrário, tanto a reconhece que foi chamado à responsabilidade de sopesar o direito do menor à autodeterminação sexual e o direito à proteção da infância e juventude. Risco inerente a quase todas as decisões políticas, o resultado pode desagradar a muitas pessoas.
Todos os elementos formadores da situação lastimável de prostração do menor a nível mundial imploram um controle estatal, pois, como explanado, sabe-se que o indivíduo menor de 14 anos passa por um período de amadurecimento, repleto de transformações e de vulnerabilidade, não sendo correto relegar a questão apenas ao seu “entendimento”.
Considerando a necessidade da tutela do menor, é clarividente que o tipo estupro de vulnerável revela-se como apenas mais um crime cujo objetivo condiz com a política criminal adotada pela legislação penal pátria, que não protege apenas o desenvolvimento sexual do indivíduo, mas também tudo o que diz respeito à sua dignidade e ao seu crescimento saudável, onde a questão da sexualidade é uma das muitas facetas.
Por todo o exposto, admite-se a necessidade do tipo previsto no art. 217-A, caput do CPB e sua coerência com todo o diploma penal vigente, de modo que se faz forçoso reconhecer a vulnerabilidade absoluta do menor de 14 anos por uma questão de política criminal.
7. AS DIVERGÊNCIAS E A COLISÃO DE PRINCÍPIOS
Apesar do reconhecimento, pelo legislador, dos mencionados fatores de vulnerabilidade que envolvem a infância e a adolescência do menor brasileiro, não cessam as opiniões divergentes acerca do caráter da vulnerabilidade do menor de 14 anos, sendo possível, ainda, conferir a preponderância da necessidade de proteger a dignidade, a vida e o crescimento saudável desse jovem em face de sua autodeterminação sexual através da utilização do princípio da proporcionalidade. Sem pretensões de exaurir o debate acerca da teoria dos princípios e suas implicações, defende-se a necessidade da supremacia de um sobre outro em certas ocasiões.
A doutrina e a jurisprudência, divergentes com relação ao caráter dessa vulnerabilidade (se relativa ou absoluta), esforçam-se para definir se a idade de 12 anos vai separar o absolutamente incapaz do relativamente incapaz.
Alguns doutrinadores, como Guilherme Nucci, defendem que a vulnerabilidade é absoluta somente para o menor de 12 anos (idade estabelecida pelo ECA para a definição de criança), sendo relativa para os que têm entre 12 e 13 anos[38].
No entanto, tal método parece frágil, pois também cria uma vulnerabilidade absoluta para o menor de 12 anos, por um critério diplomático, exatamente o que essa corrente critica.
De acordo com a doutrina majoritária, se a vítima, a despeito de ser menor de 14 anos, for experiente o bastante em matéria sexual, atingindo maturidade o suficiente para discernir a conveniência da prática do ato libidinoso, resta descaracterizado crime de estupro de vulnerável[39].
Entretanto, cotejando a jurisprudência recente, vê-se que a relatividade ou não da presunção de violência continua a ser questão controversa entre os juízes.
Nesse sentido, confira-se Francisco Dirceu Barros, apontando que:
Há jurisprudência nos dois sentidos. Houve decisões a favor da vulnerabilidade relativa, alegando que a vulnerabilidade é relativa: "...quando comprovada a experiência da menor na prática sexual. (RT: 678:345.)"; "...quando a vítima já manteve relações sexuais com vários homens. (RT: 542:323.)";"...quando a menor é "prostituta de porta aberta". (RT: 506:259.)" e "...pois não basta a idade, exigindo-se que a vítima se "mostre inocente, ingênua e totalmente desinformada a respeito do sexo". (RF: 285:350.)[40]
Ilustra-se a discussão, ainda, com o Habeas Corpus nº 73662-9/MG, julgado pelo STF, em 1996, de relatoria do ministro Marco Aurélio Mello. Seguindo a orientação do emblemático voto do ministro, o reconhecimento de “precocidade” na aparência física e na conduta é seguido de uma pressuposição de “precocidade” no desenvolvimento psicológico[41].
Não obstante, ainda este ano, numa decisão sigilosa (número do processo não divulgado) da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a relatora, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, afirma, em um processo que discute a vulnerabilidade do menor de 14 anos, que as garotas envolvidas, todas de 12 anos de idade, “já se dedicavam à prática de atividades sexuais desde longa data”, motivo pelo qual reconheceu a vulnerabilidade relativa do menor de 14 anos, concedendo sentença absolutória ao réu[42].
Diante dessas divergências, é preciso questionar: quem é competente o suficiente para “medir” a maturidade de um jovem menor de 14 anos? Como já foi demonstrado, a maturidade biológica nem sempre é acompanhada da maturidade psicológica, emocional e cognitiva. Será que essa preconizada maturidade para assuntos sexuais pode ser aferida pelo juiz? Será que ela advém de “experiências sexuais anteriores” ou dos “costumes do mundo globalizado”? É preciso que os operadores do Direito façam uma análise dessas questões sob a ótica de outras disciplinas, sobretudo da sociologia e psicologia, sem tender a simplificar as questões sexuais humanas apenas por estarem elas inseridas nas páginas dos autos de um processo.
Outro argumento bastante frágil para a resolução desse empasse é a afirmação de uma tal prática de “promiscuidade anterior”, que conduziria à absolvição do acusado nas ações penais por crime de estupro de vulnerável. Ora, se assim for, decerto, haverá quem se encarregue de introduzir essas vítimas no mundo do sexo precoce, como também testemunhas suficientes se aproveitando disso para tentar inocentar o réu, que, não raro, poderá ter, de fato, praticado violência contra a vítima. Haveria, então, o indesejado estímulo à criminalidade.
Querer colocar a menoridade sexual sob o manto do juízo do caso concreto é não só humilhar o menor que seja considerado processualmente “afeito às práticas sexuais, experiente no assunto”, etc., como querer fazer uma análise subjetiva que poderá nem chegar perto da realidade. É revestir o juiz de uma capacidade que ele não tem. Não se deve inferir, sumariamente, que um menor de 14 anos, por já ter praticado relações sexuais, possa ser considerada prostituto e, assim, restar descaracterizada do seu estado vulnerável.
8. COLISÃO ENTRE PRINCÍPIOS
Sabe-se que os direitos fundamentais não são absolutos e ilimitados, encontrando seus limites em outros direitos fundamentais, também consagrados pela Constituição Federal. No caso dos direitos fundamentais, poderá haver uma aparente contradição entre eles, sendo necessário utilizar-se da aplicação do princípio constitucional fundamental da proporcionalidade, que concederá ao caso concreto uma aplicação coerente e segura da norma constitucional.
Segundo Helena Nunes, o princípio constitucional da proporcionalidade deve ser utilizado, diante de um caso concreto, como uma ponderação correta e harmoniosa entre dois interesses que estejam em conflito[43].
O princípio da proporcionalidade possui os seguintes subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido restrito.
Conforme os apontamentos de Jair Lima, a adequação determina uma relação, uma conexão entre o meio e o fim, ou seja, o meio tem que ser apto a alcançar o fim. A necessidade confere se a restrição a um determinado direito é a forma menos gravosa de atingir a um determinado objetivo. Da análise da proporcionalidade em sentido estrito, analisa-se o grau de sacrifício ao princípio, assim como o grau de importância do outro princípio, verificando-se, por fim, se a concretização de um compensa o sacrifício do outro: se o peso do primeiro é alto, deve-se sacrificar o segundo; se a importância do segundo é alta, não se deverá privilegiar o primeiro[44].
Assim, podemos afirmar que é comum e inevitável a preponderância de algum/alguns princípios em face de outros e que é necessário fazer a análise desses três subprincípios para que se chegue à solução mais justa e eficaz.
A liberdade sexual tem sido o bem jurídico aventado pela doutrina moderna como sendo o único digno de tutela nos crimes sexuais, por não apresentar qualquer conotação moral. Rogério Greco, no entanto, defende que, nesse caso, “deve-se ter também como bem juridicamente protegido o desenvolvimento sexual do menor.”[45] Neste ponto, a opção terminológica utilizada pela Lei nº. 12.015/2009 foi louvável, porque seu conteúdo semântico abrangente permite que dele se extraia o significado de outros bens jurídicos, como, por exemplo, liberdade, intimidade sexual, saúde, respeito, etc.
De um lado, os maiores defensores da vulnerabilidade relativa sustentam a liberdade sexual como bem jurídico a ser tutelado pelo Estado e que a presunção de vulnerabilidade absoluta desses indivíduos retira ou suprime essa liberdade de “decidir” quando exercer a prática sexual. Alegam, assim, ofensa ao principio da autodeterminação sexual do menor.
No mesmo sentido, acrescentam, ainda, outros autores, como Adelina Carvalho, que ao interferir de tal forma, o Estado viola o Princípio da Intervenção Mínima, que deve orientar a sua atuação ao tutelar bens jurídicos tão íntimos, como se revela a questão da autodeterminação sexual.[46]
Por outro lado, os defensores da vulnerabilidade absoluta pugnam pela preponderância do princípio de proteção à infância e adolescência, do desenvolvimento sexual do menor, da proteção à família e da dignidade humana.
Nessa esteira, prevê a Constituição Federal que:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)
§ 4º - A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.
Percebe-se, assim, que a proteção integral ao menor constitui princípio constitucional e dá ensejo a outras normas infraconstitucionais, que apontam no mesmo sentido, como os artigos 3º e 5º da Lei. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente).
Ponderando-se e analisando-se, do ponto de vista da proporcionalidade, os princípios defendidos pelos defensores da vulnerabilidade relativa e os da vulnerabilidade absoluta, passa-se pela análise dos três subprincípios acima citados, quais sejam, adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
Analisando a adequação, temos como fim maior a redução do perigo causado pelo quadro deplorável de violência sexual infantil, pois o fim da autodeterminação sexual do menor é simplesmente a prática do sexo e a realização dos seus desejos sexuais, que se mostra um fim um tanto quanto egoísta e pequeno, comparando-se com toda a problemática da opressão do menor no mundo inteiro e suas nefastas consequências, como já exposto, sucintamente, até aqui, neste trabalho. Se a sociedade objetiva a redução dos índices preocupantes de exploração do menor, pode-se considerar que a vulnerabilidade absoluta é apta a, gradativamente e conjuntamente com outros fatores, alcançar tal fim.
Quanto à proporcionalidade em sentido estrito, conclui-se que o direito à proteção ao menor tem maior peso, pois estamos discutindo acerca de um problema mundial, alarmante, com possibilidade de se expandir e produzir gerações e mais gerações de adultos revoltados, com propensão à violência, que perderam oportunidades de estudo por causa dos envolvimentos sexuais, pois não puderam sentir-se protegidos pelo Estado, estando sujeitos a todas as consequências da falta de dignidade, de saúde, de segurança e de respeito. Se compararmos, vamos notar que a supressão temporária do direito de fazer sexo para uma pessoa com 13 anos de idade não vai ser tão nociva a ela quanto permitir que a mesma viva sob o manto do medo, sofrendo os efeitos de falsos depoimentos, da inexperiência, da imprudência natural da idade, da falta de informações, da sorte ou azar, de aproveitadores, de ameaças, da gravidez indesejada, dos envolvimentos com crimes e drogas, etc.
Assim, é imperativo afirmar que o princípio da proteção à infância e adolescência deve ter preponderância sobre o principio da autodeterminação sexual do menor, haja vista todo o quadro de vulnerabilidade, de violência e opressão ao menor, como esposado neste trabalho.
A certificação de superioridade do princípio da proteção à infância e à adolescência endossa a adoção da política criminal nesse sentido, na qual o resguardo do desenvolvimento sexual do menor é apenas um dos objetivos.
CONCLUSÃO
Resta claro, com esta pesquisa, que o impedimento imposto no Diploma Penal, preceituando que ter conjunção carnal ou praticar qualquer outro ato libidinoso com o menor de 14 anos é crime de Estupro de Vulnerável, não se funda em quaisquer outras razões senão os fatos objetivos que a modernidade nos trouxe e na consequente e necessária adoção de uma política criminal.
Através da análise de alguns dos mais importantes fatores de vulnerabilidade do menor de 14 anos, quais sejam, sua natural imaturidade física, psicológica, a atuação dos pedófilos, a pornografia e o papel irresponsável da internet e da mídia, a violência sexual infantil a nível mundial e a falta de apoio das instituições criadas para protegê-los, percebemos um agrupamento de elementos de opressão à infância e à juventude, tornando-se papel não só do Estado como da sociedade lutar para resguardar a vida, a dignidade, o crescimento e o desenvolvimento saudáveis desses indivíduos.
Da constatação, pelo legislador, dos fatores de perigo que circundam as crianças e os adolescentes, bem como da necessidade de protegê-los, criou-se um conjunto de regras que objetivam resguardá-los, educá-los, fornecer-lhes oportunidades para um bom crescimento e desenvolvimento, fazendo-se, assim, contraponto às investidas do mundo moderno, que, por muitas vezes, os arrastam a caminhos que eliminam seus direitos.
Assim, o tipo penal em estudo é mais uma das formas de proteção que o Estado implantou na sociedade, assim como muitas outras, o que, inegavelmente, trará alguns ônus a serem suportados por esta, que não deve se furtar a envidar esforços para a melhoria da vida em comunidade.
Pode-se, ainda, através do princípio da proporcionalidade, reafirmar o maior peso da proteção à infância e à adolescência em face da proteção à autodeterminação sexual de uma pessoa de 13 anos de idade, como visto, a fim de manter intacta a redação do art. 217-A, caput, CPB.
Conclui-se, pois, que se sobressai a existência de uma política criminal brasileira em prol do menor, restando claro que o tipo “Estupro de vulnerável” não se configura uma proibição desarrazoada ou insensível do legislador, sendo certo que podemos verificar o acerto deste através do estudo dessa política criminal e/ou através do princípio da proporcionalidade.
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[1] FARIA, Bento de. Código penal brasileiro comentado. 3. ed. Rio de Janeiro: Distribuidora Record, 1961, v. 6, p. 65.
[2] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 4. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959. v. VIII. p. 233 e 234.
[3] MIRABETE, Julio Fabbrini.Código Penal Interpretado. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 1890 e 1891.
[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 693
[5] Art. 217 - Seduzir mulher virgem, menor de 18 (dezoito) anos e maior de 14 (catorze), e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança:(Revogado pela Lei nº 11.106, de 2005)
[6] Art. 218 - Corromper ou facilitar a corrupção de pessoa maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, com ela praticando ato de libidinagem, ou induzindo-a a praticá-lo ou presenciá-lo: Pena - reclusão, de um a quatro anos.
[7] Art. 218. Induzir alguém menor de 14 (catorze) anos a satisfazer a lascívia de outrem: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Parágrafo único. (VETADO). (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
[8] Art. 224. Presume-se a violência, se a vítima:
a)Não é maior de catorze anos;
b)É alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstancia;
c)Não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência
[9] Que significa “quem não pode querer, não quer, quem não pode consentir, dissente”.
[10] PIERANGELI, José Henrique. Escritos Jurídicos Penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 167.
[11] BRASIL. Superior Tribunal Federal. Ministro Joaquim Barbosa. Habeas Corpus nº 99.993. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=606697> Acesso em: 27/11/2012.
[12] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume III – 9. ed. Niterói, RJ: Impetus, 2012, p. 534.
[13] BRASIL. Superior Tribunal Federal. Ministro Ellen Gracie. Habeas Corpus nº 94.818-9- MG. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=541647> Acesso em: 27/11/2012.
[14] NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009. 1. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 37.
[15] JÚNIOR, Eudes Quintino de Oliveira. O conceito de vulnerabilidade no direito penal. Disponível em: Acesso em: 25/10/2012.
[16] Cf. SIERRA, Vania M.; MESQUITA, W.A. Vulnerabilidades e fatores de risco na vida de crianças e adolescentes. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 20, n. 1, p. 148-155, jan./mar. 2006. Disponível em: ; Acesso em: 18/10/2012.
[17] LOWENKRON, Laura. (Menor)idade e consentimento sexual em uma decisão do STF. Disponível em: Acesso em: 12/11/2012.
[18] Ibid.
[19] HISGAIL, Fani. Pedofilia: um estudo psicanalítico. Disponível em: Acesso em: 20/11/2012
[20] HISGAIL. Op. Cit.
[21] BRASIL. Superior Tribunal Federal. Ministro Marco Aurélio. Habeas Corpus nº 73.662-9- MG. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=74663> Acesso em: 27/11/2012.
[22] SOUZA, Cecília de Mello; ADESSE, Leila. Violência sexual no Brasil: perspectivas e desafios. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2005. Disponível em: Acesso em: 13/10/2012.
[23] GIRALDI, Renata. ONU revela alto índice de violência sexual em crianças e jovens. Disponível em: . Acesso em: 10/05/2014.
[24] CHILD RIGHTS INFORMATION NETWORK. Op. Cit.
[25] CHILDHOOD – Pela Proteção da Infância (coordenador Elder Cerqueira Santos). Vítimas da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes: Indicadores de Risco, Vulnerabilidade e Proteção. Disponível em: Acesso em: 06/10/2012.
[26] Cf. DUARTE, Maria Carolina de Almeida. Política Criminal, Criminologia e Vitimologia: caminhos para um direito penal humanista. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1236, 19 nov. 2006 . Disponível em: . Acesso em: 27/05/2014.
[27] GALVÃO, Fernando. Política Criminal. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 22-23.
[28] LISZT, Franz Von. Strafrechtliche Aufsätze, p. 80, v. 2.
[29] ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal. Tradução de Luís Greco. São Paulo: Renovar, 2000, p. 01.
[30] ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. O que é a política criminal, porque precisamos dela e como a podemos construir? Disponível em: Acesso em: 22/10/2012.
[31] Cf. SILVA, Daniel Addor. Política Criminal como Política Pública: función “social” del derecho penal. Disponível em: Acesso em: 10/10/2012.
[32] CARNEIRO, Márcia Maria Milanez. A redução da Menoridade penal na Legislação Brasileira (ou maioridade penal). Disponível em: Acesso em: 28/05/2014.
[33] SIERRA;MESQUITA, Op. Cit.
[34] UNICEF. A Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível em:< http://www.unicef.pt/docs/pdf_publicacoes/convencao_direitos_crianca2004.pdf> Acesso em: 27/11/2012.
[35] BRASIL. Decreto nº 7.037, de 21 de Dezembro de 2009. Institui o Planejamento Nacional dos Direitos Humanos. Disponível em:< http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh3/pndh3.pdf > Acesso em: 27/11/2012.
[36] Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de um a quatro anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência
[37] GRECO, Op. Cit. p. 533.
[38] BARROS, Op. Cit., p. 71.
[39] LOWENKRON, Op. Cit.
[40] BARROS, Francisco Dirceu. Vulnerabilidade nos Novos Delitos Sexuais. Disponível em: Acesso em 12/10/2012.
[41] Habeas Corpus nº 73.662-9/ MG
[42] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Presunção de violência contra menor de 14 anos em estupro é relativa. Disponível em: Acesso em: 19/10/2012.
[43] NUNES, Op. Cit.
[44] LIMA, Op. Cit.
[45] GRECO, Rogério. Op. Cit., 2012. P. 538.
[46] CARVALHO, Adelina de Cássia Bastos Oliveira. Violência sexual presumida: uma análise em face do princípio constitucional da presunção de inocência e da capacidade de autodeterminação sexual do menor. Curitiba: Juruá, 2006. p. 131-133.
Advogada, Bacharel em Direito pela UFPE, Pós-graduada em Direito Civil pela Universidade Anhanguera UNIDERP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RAMOS, Jéssica Talita Alves. A vulnerabilidade absoluta do menor de 14 anos (art. 217-a, CP) à luz da política criminal brasileira e do princípio da proporcionalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 dez 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/48322/a-vulnerabilidade-absoluta-do-menor-de-14-anos-art-217-a-cp-a-luz-da-politica-criminal-brasileira-e-do-principio-da-proporcionalidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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