RESUMO: O artigo tem o objetivo de analisar as transformações da culpabilidade na teoria do delito, passando pelas teorias psicológica, psicológico-normativa, normativa pura e culpabilidade por vulnerabilidade. Também será tratada a culpabilidade como princípio e a adoção de cada um desses modelos ao longo da história do direito penal no Brasil através de revisão bibliográfica nacional e estrangeira.
Palavras-chave: Direito Penal. Teoria do delito. Transformações da culpabilidade. Teoria Psicológica. Teoria Psicológico-normativa. Teoria normativa pura. Teoria da culpabilidade por vulnerabilidade.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. A CULPABILIDADE NA DOGMÁTICA ATUAL. 1.1. PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE. 2. AS TRANSFORMAÇÕES DA CULPABILIDADE NA TEORIA DO DELITO. 2.1. TEORIA PSICOLÓGICA. 2.2. TEORIA PSICOLÓGICO-NORMATIVA. 2.3. TEORIA NORMATIVA PURA. 2.3. CULPABILIDADE POR VULNERABILIDADE. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS
O Estado tomou para si a função de punir com o fim de pacificar as relações conflituosas, evitando e extinguindo a vingança privada outrora institucionalizada. Existe um verdadeiro poder-dever e o ius puniendi estatal deve ser exercido de maneira subsidiária, racional e proporcional, observando as garantias individuais consagradas pela Constituição de 1988.
Para o direito penal contemporâneo qualquer pessoa só pode ser considerada culpada com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, consoante o princípio da inocência (ou não culpabilidade), extraído do artigo 5º, inciso LVII da Norma Superior, segundo o qual “ninguém será culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.
O instituto pode ser encarado sob três aspectos: integrante do conceito analítico de crime, princípio regulador da pena e princípio impedidor da responsabilidade penal objetiva.
Será tratado adiante dos avanços doutrinários no campo da culpabilidade, com a exposição das teorias psicológica, psicológico-normativa, normativa pura e da culpabilidade por vulnerabilidade.
1. A CULPABILIDADE NA DOGMÁTICA ATUAL
A culpabilidade pode ser conceituada atualmente como a reprovação pessoal pelo injusto penal praticado. Tal conceito é normativo, ou seja, valorativo. Eugenio Rául Zaffaroni e José Henrique Pierangeli[1] explicam que ele “se funda em que o sujeito podia fazer algo distinto do que fez e que, nas circunstâncias, lhe era exigível que o fizesse”.
Para a grande maioria dos doutrinadores penais é elemento integrante da teoria analítica do crime, tendo como essência a censura do injusto penal (fato típico + antijurídico) realizado pelo agente. Nas palavras do pai do finalismo Hans Welzel a culpabilidade contém uma relação dupla do não dever ser antijurídico frente ao poder ser adequado ao direito, ou seja, a ação de vontade do autor não está em conformidade com o direito, embora realizável conforme a norma[2].
Alguns autores pátrios consideram a culpabilidade como um pressuposto da aplicação da pena, excluindo-a da teoria geral do delito e agregando-a à teoria geral da pena. É o chamado finalismo dissidente. Os maiores entusiastas são René Ariel Dotti e Damásio Evangelista de Jesus.
Em sua obra denominada “O incesto”, publicada em 1976, René Ariel Dotti sustenta que a culpabilidade como pressuposto da pena e não elemento do delito tem previsão no ordenamento positivado, notadamente nas causas de “isenção de pena” previstas no art. 22, art.17 do Código Penal (antes da reforma de 1984)[3].
Damásio de Jesus reforça a tese do finalismo dissidente aduzindo que o CP trata das excludentes de antijuridicidade com as expressões “não há crime” (art. 23, caput), “não constitui crime” (art.150, § 3º), “não se pune o aborto” (art. 128, caput), enquanto que nas excludentes de culpabilidade o diploma repressivo emprega as expressões “é isento de pena” arts. 26, caput, e 28¸§ 1º), “só é punível o autor da coação ou da ordem” (art.22). Isto porque a causa de exclusão da ilicitude tornaria o fato não criminoso, pela impossibilidade de ser ao mesmo tempo lícito e antijurídico; quando, porém, incidisse uma causa de exclusão da culpabilidade o crime existiria, embora não seja efetivo, não em si mesmo, mas em relação à pessoa do agente declarado culpável. Para ele a culpabilidade não é requisito do crime. Entre outros exemplos reforça a argumentação com o crime de receptação, que pressupõe adquirir ou ocultar coisa produto de crime (art. 180¸ caput) e, no entanto, permite a responsabilização de quem adquiriu, por exemplo, coisa furtada por sujeito inimputável, agente este não culpável. Para o renomado autor o legislador brasileiro aceita a existência de crime sem culpabilidade [4].
Com a devida vênia dos brilhantes autores citados, ousa-se discordar. A técnica redacional do Código Penal é imprecisa, não se podendo atribuí-la uma sistematização teórica. Por vezes, o código se utiliza de diferentes expressões, como: “punível” e “isento de pena”, para se referir à ausência de culpabilidade (art. 22 – coação moral irresistível e 26 – inimputabilidade, respectivamente). Há uma clara dificuldade na sistematização teórica, porque o Código não observou qualquer técnica na utilização das expressões. A expressão “é isento de pena”, como outras, não é utilizada somente nos casos de exculpação, mas em várias situações em que se quer opor obstáculos a coerção penal[5].
A qualificação como injusto penal expressa apenas que o fato pelo autor não é aprovado pelo direito, mas não é em si punível ainda. Para se concluir que se deve responder pessoalmente pelo injusto, é necessário um terceiro nível de valoração, que é a culpabilidade[6].
1.1. PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE
Além de integrante do conceito analítico de crime, a culpabilidade é tratada como um verdadeiro princípio do direito penal. Sob esta ótica, ela pode assumir diversas acepções. Esta visão só foi possível, como se verá adiante, quando se concebeu o instituto como reprovação pessoal do autor pelo injusto, uma verdadeira garantia, consequência de um Estado Democrático de Direito, cuja violação resultaria num desconhecimento da própria essência do conceito de pessoa[7].
O primeiro desdobramento da culpabilidade como princípio é o afastamento da responsabilidade penal objetiva (pelo resultado) e, ainda dentro desta acepção, deve ser vista como exigência de que a pena não seja infligida senão quando a conduta do sujeito, mesmo associada causalmente a um resultado, lhe seja reprovável[8].
Outra vertente da culpabilidade-princípio é a medição e individualização da pena, a fim de encontrar a mais justa aplicável ao autor pelo fato praticado. O fundamento está na primeira regra do critério trifásico previsto no artigo 68 do Código Penal: a análise a primeira das circunstâncias judiciais a ser observada é a culpabilidade, conforme o artigo 59 do diploma repressivo. A culpabilidade, uma vez condenado o agente, exercerá uma função medidora da sanção penal que a ele será aplicada, devendo ser realizado um outro juízo de censura sobre a conduta por ele praticada, alcançando-se a pena razoável a ser imposta ao sujeito[9].
2. AS TRANSFORMAÇÕES DA CULPABILIDADE NA TEORIA DO DELITO
2.1. TEORIA PSICOLÓGICA
Sugere-se que a teoria psicológica tenha sido a primeira a tratar da culpabilidade. Convém esclarecer que entre os romanos já havia um conceito psicológico e bem elaborado, que dividia o dolo em malus e bonus. Este era sagacidade, a perspicácia, enquanto aquele representava a astúcia endereçada a um fim ilícito, uma perversidade[10].
A teoria psicológica foi desenvolvida por Franz Von Liszt (líder da Escola de Política Criminal, criada em 1888 na Alemanha) e por Beling. Por isso é também chamada de Liszt-Beling.
Esta concepção psicológica da culpabilidade baseava-se no conceito clássico de delito (modelo causalista), segundo o qual ação era tida como “o fato que repousa sobre a vontade humana, a mudança do mundo exterior referível à vontade do homem”[11] que, por sua vez, era bipartida em comissão e omissão. Comissão seria “a causação do resultado por um ato de vontade. Este se apresenta como movimento corpóreo voluntário, isto é, como tensão (contração) dos músculos, determinada não por coação mecânica ou psicofísica, mas por ideias ou representações, e efetuada pela inervação dos nervos motores”[12]. Já a omissão, “o não empreendimento de uma ação determinada e esperada”[13].
Sem maiores aprofundamentos na teoria causalista da ação, havia uma dependência de resultados naturalísticos, em que houvesse mudança do mundo exterior a partir da ação (como gênero) para caracterizar o crime. Por isso, uma das maiores críticas a esta corrente é a alocação da omissão como causa de uma interferência no mundo exterior e com produção de resultado naturalístico, especialmente porque há uma ausência de ação! O próprio Liszt afirmou que “devemos convir em que, rigorosamente considerado, o resultado produzido não é em caso algum causado pela omissão em si, mas sempre pelas forças naturais que exercem sua atividade colateralmente à omissão”[14].
O injusto possuía uma natureza objetiva, enquanto culpabilidade era considerada por Liszt como o vínculo subjetivo do agente com o resultado, que abrigava em seu centro os elementos subjetivos dolo (“representação da importância do ato voluntário como causa”) e culpa (chamada culpa stricto sensu, era o “não-conhecimento, contrário ao dever, da importância da ação ou da omissão como causa”)[15]. Neste modelo, “para que esse vínculo psíquico mereça a consideração do Direito, é preciso que o sujeito seja capaz de culpabilidade, isto é, seja imputável (...). A imputabilidade funciona como precedente necessário da culpabilidade”[16].
Dentre as inúmeras críticas a este modelo, é possível destacar a dificuldade de se lidar como uma culpabilidade-gênero que abarcava um dolo de natureza psicológica ou culpa, de natureza normativa (valorativa); ainda, a ausência de vínculo psicológico entre o agente e o resultado no caso de culpa inconsciente. E, “se a culpa se esgota no nexo psicológico, tem-se de concluir que o inimputável também age culpavelmente, pois o menor e o doente mental também são capazes de agir com vontade”.[17] Ainda, afirma Reinhard Frank se o conceito de culpabilidade não abarca nada mais que um resumo de dolo e culpa – ou estes de acordo com a consciente ou imprevista causação do resultado -, poderia resultar absolutamente incompreensível como pode se excluir a culpabilidade no caso do estado de necessidade, já que o autor do estado de necessidade sabe o que faz (tradução livre) [18]-[19].
2.2. TEORIA PSICOLÓGICO-NORMATIVA
Diante das inúmeras críticas dirigidas à teoria psicológica da culpabilidade, em 1907, Reinhard von Frank introduziu em sua monografia (Uber den Aufbau dês Schuldbegriff) um elemento normativo dentro da culpabilidade: a reprovabilidade da conduta, mudando o caráter daquela, que era estritamente psicológico do autor para com o fato.
O conceito de reprovabilidade do injusto, muito embora surgido com Frank, desenvolveu-se com Goldschmidt. Leciona Claus Roxin que o conceito normativo de culpabilidade experimentou um desenvolvimento posterior muito influente graças a Goldschimdt. Este tentou deduzir a reprovação, que Frank não havia fundamentado de maneira mais detalhada, de uma infração a uma “norma de dever”. Junto à “norma jurídica” que exigiria uma conduta externa e cuja infração fundamentaria a antijuridicidade, existiria implicitamente uma norma de dever que imporia a cada qual preparar sua conduta interna de modo necessário que se possa corresponder com as exigências impostas pelo ordenamento jurídico a sua conduta externa (...). Viu na inexigibilidade a ideia diretriz das causas de exculpação (tradução livre) [20].
Com o desenrolar da teoria, ao dolo foi acrescentada a real consciência da ilicitude, fazendo com que aquele fosse normativo (ideia que remonta ao Direito Romano, que diferenciava o dolus bonus do dolus malus, conforme mencionado na seção 2.1).
Mesmo com a reestruturação, a culpabilidade possuía um dolo com componentes subjetivo (psicológico, ligado à vontade) e objetivo (normativo, caracterizado pela consciência da ilicitude do fato). Era ao mesmo tempo uma relação psicológica e um juízo de reprovação ao autor da relação psicológica[21]. Por isso apontava Aníbal Bruno que o dolo e a culpa relacionavam o agente com o seu ato, psicológica e normativamente[22].
Neste sistema o dolo e culpa tornaram-se elementos da culpabilidade, não mais espécies, ao lado da imputabilidade (capacidade de culpabilidade) e da exigibilidade de um comportamento conforme o direito, quando nas circunstâncias, fosse possível assim exigir.
A complexidade do conceito de culpabilidade fez com que inúmeras divergências surgissem, principalmente quanto ao funcionamento de seus elementos. Enquanto para Frank haveria dolo sem culpabilidade, Goldschmidt defendia que o dolo era pressuposto para culpabilidade, pois que era um dado psicológico. Já Mezger, asseverava que o dolo requeria a consciência da antijuricidade, que era sempre culpável[23].
Refletindo sobre o dolo normativo, Mezger ao tratar da questão da consciência da antijuridicidade, formulou a culpabilidade por conduta de vida, na tentativa de não deixar impune o criminoso habitual e o criminoso por tendência[24]. Para aclarar a ideia, pensemos que num dado meio social um sujeito seja criado sem a devida valoração e diferenciação do “certo” e do “errado”, porque imerso num ambiente de violência e hostilidade. Poder-se-ia afirmar que o mesmo sujeito não desenvolveu a consciência real do que é ilícito e, por conseguinte, dentro da concepção de dolo normativo (com a consciência da ilicitude em seu seio), não poderia ser punido, por ausência de dolo.
Por isso, Mezger procurou suprir esta falha preconizando que o sujeito, em razão de sua vida pregressa, pudesse ser considerado culpado apenas agindo dolosamente, sem que obtivesse a real consciência da ilicitude do fato cometido.
Dentre as inúmeras críticas dirigidas a “culpabilidade por condução de vida”, Bitencourt afirma com brilhantismo:
Considera como núcleo da culpabilidade , segundo essa concepção, não o fato, mas o autor. (...) Uma concepção dessas, voltada exclusivamente para o autor, e perdendo de vista o fato em si, o seu aspecto objetivo, pode levar, como de fato levou, na Alemanha nazista, a um arbítrio estatal, a uma intervenção indevida no modo de ser do indivíduo. Nesse sentido, pune-se alguém por ser determinada pessoa, porque apresenta certas características de personalidade, e não porque fez algo, em última análise[25].
No Brasil, a teoria psicológico-normativa da culpabilidade foi adotada durante a vigência da parte geral original do Código Penal de 1940. De acordo com o item 13 da exposição de motivos primária, “no tocante à culpabilidade (ou elemento subjetivo do crime), o projeto não conhece outras formas além do dolo e da culpa stricto sensu (...)”.
É possível reconhecer a adoção desta teoria no Código Penal Militar (Decreto-Lei 1001/69), uma vez que em seu artigo 33, sob a rubrica da culpabilidade, traz as noções de dolo e culpa, levando a crer que não fazem parte da conduta, mas da culpabilidade; também não existe distinção entre coação física e moral (art. 38,§ 2º e art. 40 do CPM); ainda, há a aparente adoção do dolo normativo, no qual está contida a consciência da ilicitude, bastando para tanto a análise do erro de fato (art.36, caput do CPM)[26].
A denominada teoria normativa pura (ou finalista) encontrou em Hans Welzel, professor das Universidades de Göttingen e de Bonn, o aperfeiçoamento, de modo que os elementos da teoria analítica do crime, especialmente pertencentes ao tipo e a culpabilidade, foram todos rearranjados.
De início, a ação humana deixa de ser fruto de uma causalidade cega, puramente naturalística e passou a ser considerada um atuar dirigido a determinada finalidade, desde o seu objetivo. O agente conduz os acontecimentos causais para a consecução de determinado fim[27]. Juarez Tavares afirma:
“As origens do finalismo como forma de ser do mundo remontam, segundo Platão, a Anaxágoras, teria sido o primeiro a aduzir que a causalidade seria obra da inteligência humana. Entretanto, a concepção que, efetivamente, marcou a filosofia do finalismo deve ser atribuída a Aristóteles, sendo reproduzida com inegável maestria por Santo Tomás de Aquino: tudo o que existe na natureza existe para um fim; o fim é a substância ou forma ou razão de ser da própria coisa. Em Santo Tomás de Aquino chega-se mesmo a afirmar-se a independência entre a pura causa impulsionadora do acontecimento e o fim que norteia a atividade: a necessidade com que a flecha se move e pela qual se dirige ao alvo, foi-lhe imprimida por quem a lançara e não pertence a flecha[28] ”.
Hans Welzel, neste passo, propôs a alocação do dolo e da culpa dentro da estrutura do tipo penal, porque para ele integravam a ação humana e não a culpabilidade. Com isso, houve um “esvaziamento” da culpabilidade, reservando a esta somente a reprovabilidade da conduta. Daí dizer que a teoria é normativa pura:
O elemento constitutivo da culpabilidade, que converte uma ação e uma vontade de ação em culpável, é somente a censurabilidade. É o elemento novo decisivo que se une à ação e lhe dá a qualidade de culpável. Na teoria da culpabilidade, só se trata de seu conteúdo enquanto seu objeto que é valorizado como culpável – a ação e a vontade de ação – já foi averiguado na teoria da ação e do injusto [29].
Essa transformação da culpabilidade em conceito valorativo, com a exclusão dos elementos psicológicos, deve-se à distinção feita por Alexander Graf zu Dohna entre objeto da valoração e valoração do objeto. Nas palavras de Hans Welzel:
Foi Dohna (Aufbau, pág. 32) quem deu o passo decisivo ‘ para o conhecimento de que no juízo de culpabilidade, exatamente igual ao estabelecimento da antijuridicidade, temos que ver com o resultado de uma valoração’, e separou nitidamente entre valoração (censurabilidade) e objeto da valoração (dolo), e limitou o conceito da culpabilidade à valoração do objeto[30].
Desta forma, na estrutura finalista, dolo e culpa são retirados da culpabilidade e passam a pertencem ao tipo, como elementos subjetivos deste, decorrendo do próprio conceito de ação humana. Já a consciência da ilicitude do fato manteve-se na culpabilidade. A está é reservado tão somente o juízo de reprovação, desde que exigível tal comportamento do sujeito e seja ele imputável.
2.3.CULPABILIDADE POR VULNERABILIDADE
Qualquer pesquisa empírica é capaz de demonstrar um traço básico do criminoso, do perseguido pelo sistema penal, que é o baixo status social. Por isso, há quem afirme que a teoria lombrosiana apenas serviu para conferir um aspecto científico a esse sentimento presente no senso comum, que é retratar o indivíduo pertencente a uma classe desfavorecida como imagem do típico delinquente, de tal modo que se trace até uma relação entre pobreza e crime[31].
Eugenio Raúl Zaffaroni atento à realidade da América do Sul propôs aplicação do princípio da vulnerabilidade, a fim de mitigar o que se costuma chamar de seletividade criminalizante, que o poder punitivo direcionado a certo estereótipo. Normalmente são alvos preferenciais do sistema penal o negro, o pobre, o desempregado, do sexo masculino e jovem. Seriam considerados vulneráveis os pertencentes a esse “recorte” da sociedade.
Com brilhantismo peculiar, Zaffaroni explicita:
o sistema penal apresenta diferentes graus de periculosidade para os
habitantes, segundo seu status social e suas características pessoais. A sobre-representação de algumas minorias na prisionização, de maior número de imigrantes, em ocasiões de minorias sexuais, em todo caso a maior incidência em homens jovens, desempregados, habitantes de bairros marginais, etc., são todos dados verificáveis. A periculosidade do sistema penal se reparte segundo a vulnerabilidade das pessoas, como se fosse uma
epidemia[32].
A situação de vulnerabilidade seria a analisada sob a ótica do esforço pessoal do agente. Ensina Zaffaroni:
O esforço pode ser de diferentes magnitudes:
(a) São excepcionais os casos de quem parte de um estado de vulnerabilidade muito baixo e faz um esforço extraordinário até alcançar a situação concreta de vulnerabilidade. Não sempre, mas em muitas oportunidades, os esforços obedecem a perda de cobertura precedidas por lutas de poder.
(b) Também são menos freqüentes os casos de pessoas que, por partir de um estado alto, custar-lhes-ia pouco alcançar a situação de vulnerabilidade, mas mesmo assim realizam um esforço muito alto para atingi-la. Em geral, tais casos tratam-se de fatos que estão perto da patologia e constituem aberrações.
(c) A maioria dos criminalizados não leva a cabo importantes esforços para
alcançar a situação concreta de vulnerabilidade; partindo de um estado elevado, é preciso um esforço insignificante para que seja concretizada a periculosidade do poder punitivo. É muito mais fácil selecionar pessoas que circulam pelos espaços públicos com o figurino social dos delinqüentes cometendo injustos de pequena ou média gravidade[33].
A culpabilidade pelo ato seria o grau máximo a ser atribuído pelo injusto, levando-se em conta o esforço pessoal do sujeito para que alcançasse a situação concreta de vulnerabilidade. Nas lições do Ministro Argentino:
A quantificação penal reconheceria como limite máximo a culpabilidade do ato, porém não explicitamos com isso o corretivo fático que permitiria estabelecer penas por debaixo de esse limite. A nosso juízo, isto pode praticar-se a partir da vulnerabilidade que a pessoa oferece ao exercício do poder punitivo. É um dado da realidade que quanto maior é o esforço que uma pessoa há feito para fazer-se vulnerável ao exercício do poder punitivo, menor será o espaço da agência judicial para baixar a pena do limite assinalado pela culpabilidade e vice-versa.
Deste modo, a quantificação penal consistente sempre na tarefa de impor a pena menos violenta possível, colocaria um limite máximo (magnitude «0») que estaria dado pela culpabilidade do ato. O espaço de poder da agência judicial para quantificar a pena por debaixo desse limite (magnitude «-1», «-2», etc.) dependerá sempre do esforço que haja feito a pessoa por alcançar a situação de vulnerabilidade em que o há surpreendido o poder punitivo, esforço de que formará parte a magnitude do conteúdo do injusto, entre outros dados (caracteres pessoais que correspondam ao estereótipo, por exemplo).
Uma pessoa cujas características pessoais coincidam com as do estereótipo criminal, basta com que incorra em um injusto leve para que seja vulnerável. Pela regra geral, a vulnerabilidade alcançada com pouco esforço concede à agência judicial um espaço de poder muito considerável para impor penas mínimas ou muito leves, sem que as agências restantes do poder punitivo tenham argumentos ou elementos para criticá-la ou desprestigiá-la. Inversamente, ante a esforços muito grandes, a agência judicial carece de poder para proceder de igual forma.
Partindo do principio de que a pena mais leve é a menos violenta, a agência judicial tem poder no primeiro caso para baixar a magnitudes -1, -2 etc., mas não pode fazê-lo no segundo, sob pena de sofrer desprestígio, críticas e perda de poder, caso em que não lhe restará outro meio que manter-se na magnitude “0” (indicada pela culpabilidade do ato) (tradução livre) [34].
Exemplificando, imagine-se que um parlamentar, detentor de diploma de nível superior, cursos, una-se a um desempregado, analfabeto, de poucos recursos, importar e revender drogas. O esforço pessoal do parlamentar para ingressar numa situação concreta de vulnerabilidade foi muito maior que a do desempregado, de modo que a fixação de sua pena levará este dado da realidade em consideração.
Em suma, o conceito proposto utiliza dados da realidade (status social), convertido em valoração jurídica, cujo objeto é o esforço pessoal empreendido pelo agente para que fosse apanhado pelo aparelho repressor estatal (situação de vulnerabilidade concreta).
O tratamento dogmático penal brasileiro sofreu influência das teorias antecedentes à normativa pura. A teoria psicológica foi adotada na redação original no Código de 1940, a psicológico-normativa no Código Penal Militar e a normativa pura após a reforma da parte geral do código penal em 1984.
Contudo, não havia mais espaço para um vínculo psicológico entre autor e o fato, nem conduta despida de finalidade com uma culpabilidade mista de elemento valorativo e psicológico. As teorias não conseguiram se sustentar após as inúmeras críticas que conduziram ao surgimento do finalismo, sobre o qual se assenta a teoria normativa pura da culpabilidade.
O estágio atual da culpabilidade permitiu o seu desdobramento em princípios da teoria do delito e da teoria da pena, evitando-se a responsabilidade penal objetiva e atuando na dosimetria justa da pena. Logrou posição constitucional e estreita relação com o princípio da individualização da pena. Tornou-se uma base sólida do garantismo penal, indissociável do Estado democrático de direito.
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[1] ZAFFARONI, Raul Eugenio; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral.5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 571.
[2] WELZEL, Hans. Op. cit., p. 214.
[3] DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 779 p.
[4] JESUS, Damásio de. Direito Penal – Parte Geral, volume 1. 34ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p.499-500.
[5] ROCHA, Fernando Galvão. Direito Penal – Parte Geral. Niterói: Impetus, 2004. p. 912.
[6] ROXIN; ARZT; TIEDEMANN. Introducción al derecho penal y al derecho penal procesal. Barcelona: Ariel, 1989. p. 38.
[7] ZAFFARONI, Eugenio Raul ;BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal brasileiro I – Teoria Geral do Direito Penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revan: 2003., p. 245.
[8] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 5ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 136.
[9] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte geral. 18ª Ed. Niterói: Impetus, 2016. p.
[10] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos do Direito Penal. 4ª ed. Saraiva: Rio de Janeiro, 1991.
[11] LISZT, Franz Von. Tratado de Direito Penal, t.I. Trad. José Higino Duarte Pereira. Campinas: Russel, 2003. p. 221.
[12] Ibid.
[13] Ibid., p. 229.
[14] Ibid., p. 232.
[15] Ibid., p. 277 e 290.
[16] BRUNO, Aníbal. Direito Penal: Parte Geral, tomo II. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967. p. 26.
[17] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Pena: Parte Geral. 16ª ed. Rio de janeiro: Forense, 2003. p. 239.
[18] FRANK, Reinhard. Sobre la estructura del concepto de culpabilidad. Trad. Gustavo Eduardo Aboso e Tea Low. 2ª ed. Buenos Aires: Julio César Faira, 2004. p. 30.
[20] ROXIN, Claus. Derecho Penal – Parte general. Tomo 1. Fundamentos. La estructura de la teoria do delito. Trad. e notas Diego Manuel Luzón Pena e outros. Madri: Civitas, 2000. p. 795-796. El concepto normativo de culpabilidad experimento um desarrollo ulterior muy influente gracias a Goldschmidt. Este intento deducir la reprochabilidade, que Frank no habia fundamentado de manera más detallada, de la infraccion de uma ‘norma de deber’. Junto a la ‘norma juridica’ que exigiria uma conducta externa y cuya infracción fundamentaria la antijuridicidad, existiria ‘implicitamente’ uma ‘norma de deber’ que impondria a cada cual disponer su conducta interna del modo necesario para que se pueda corresponder com las exigências impuestas por el ordenamiento jurídico a su conducta externa (...). Vio em la inexigibilidad la idea directriz de las causas de exculpacion.
[21] ZAFFARONI, Raul Eugenio; PIERANGELI, José Henrique. Op.cit., p. 574.
[22] BRUNO, Aníbal. Op. cit., p. 32.
[23] ZAFFARONI, Raul Eugenio; PIERANGELI, José Henrique. Op.cit. p. 574.
[24] YAROCHEWSKY, Leonardo Isaac. Da inexigibilidade de conduta diversa. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p.26.
[25] BITENCOURT, Cezar Roberto. Erro de tipo e erro de proibição: uma análise comparativa. 3ª ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2003. p 68.
[26]No mesmo sentido: NEVES, Cícero Robson Coimbra; STREIFINGER, Marcello. Manual de Direito Penal Militar. 2ª ed. Saraiva: São Paulo, 2012. p. 173-174.
[27] WELZEL, Hans. Op. cit., p. 79-81.
[28] TAVARES,Juarez. Teorias do delito: variações e tendências. São Paulo: RT, 1980. p. 54.
[29] WELZEL, Hans. Op. Cit. p. 217.
[30] WELZEL, Hans. Op. Cit. p. 219.
[31] THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos? O crime e o criminoso: entes políticos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998. p. 64.
[32] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Culpabilidade por vulnerabilidade. Trad. Daniel Andrés Raizman e Fernanda Freixinho. Revista Discursos Sediciosos n.14. Rio de Janeiro: Revan, 2004.. Tradução de Culpabilidad por vulnerabilidad. p.31 e ss.
[33] Ibid., p. 14.
[34] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Hacia um realismo jurídico penal marginal. Caracas: Monte Avila Latinoameriacana, 1993. p.110-111.
Advogado atuante na área de Direito Administrativo Militar, Administrativo e Penal. Graduação: Universidade Federal Fluminense. Áreas de preferência: Penal, Processo Penal, Criminologia, Constitucional e Administrativo.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Pedro Henrique Neves Coutinho da. As transformações da culpabilidade na teoria do delito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 jan 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/48515/as-transformacoes-da-culpabilidade-na-teoria-do-delito. Acesso em: 23 dez 2024.
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