RESUMO: O presente artigo visa analisar, desde os tempos remotos até os dias atuais, o conceito de poder familiar, que passou por diversas transformações ao longo dos anos até alcançar a concepção hodierna. Inicialmente de estrutura rígida e hierarquizada, o antes denominado “pátrio poder” era conferido em sua totalidade ao chefe de família, que possuía poder supremo em relação à mulher e aos filhos. Com os avanços sociais, contudo, tais poderes foram sendo abrandados até chegar na contemporaneidade, em que o agora denominado “poder familiar” passa a ser exercido no interesse único e exclusivo dos filhos. Com a Constituição Federal de 1988, os mesmos passam a gozar de absoluta prioridade perante o Ordenamento Pátrio, haja vista a consagração dos princípios do melhor interesse da criança e da convivência familiar, os quais remodelaram o conceito de poder familiar não só para transformar os filhos em sujeitos de direito, mas para torna-los figura central da Ordem Jurídica vigente.
PALAVRAS-CHAVE: Constituição, poder familiar, filhos
ABSTRACT: This article aims to analyze, from the earliest times until the present day, the concept of the institute of parenting capacity, which underwent several transformations over the years until reaching the current conception. Initially a rigid and hierarchical structure, the parenting capacity was conferred in its entirety on the head of the family, who had supreme power over his wife and children. With the social advances, however, these powers were softened until arriving at the contemporaneity, in which the parenting capacity happens to be exercised in the exclusive interest of the children. With the Federal Constitution of 1988, they are given absolute priority in view of the consecration of the principles of the best interest of the child and of family coexistence, which have reshaped the concept of parenting capacity not only to transform children In subjects of law, but to make them central figure of the Legal Order.
KEYWORDS: Constitution, parenting capacity, children
SUMÁRIO: 1. Do pátrio poder ao poder familiar. 2. O poder familiar após a Constituição Federal de 1988. 3. O poder familiar e os princípios do melhor interesse da criança e da convivência familiar. 4. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
A sociedade, e consequentemente o Ordenamento Jurídico, estão em constante transmutação, o que torna o poder familiar um instituto de alta complexidade a ser explorado. Não obstante a evolução social, o exercício do referido poder pelos pais deve sempre ser entendido como um poder-dever irrenunciável e imprescritível em favor dos filhos. Assim, faz-se necessário uma análise evolutiva do instituto para entender o seu real propósito.
1. DO PÁTRIO PODER AO PODER FAMILIAR
Para um correto entendimento acerca do tema, faz-se necessário uma breve explanação sobre a evolução do instituto desde os tempos romanos até os dias atuais.
De início, o denominado “pátrio poder” era atribuído com exclusividade ao marido, haja vista que a família era baseada no patriarcalismo e na hierarquia entre os seus membros.
Em Roma, o instituto era organizado de forma que o pater familias era o chefe supremo do núcleo familiar, na medida em que a família era regida pelo princípio da autoridade, que englobava tanto poderes de ordem pessoal como de ordem patrimonial.
De acordo com Washington de Barros Monteiro[1]:
No terreno pessoal, o pai dispunha originariamente do enérgico jus vitae et necis, o direito de expor o filho ou de matá-lo, o de transferi-lo a outrem in causa mancipi e o de entregá-lo como indenização noxae deditio. No terreno patrimonial, o filho, como escravo, nada possuía de próprio. Tudo quanto adquiria, adquiria para o pai, princípio que só não era verdadeiro em relação às dívidas.
Percebe-se que havia a outorga de poderes absolutos ao chefe de família, que necessariamente era do sexo masculino, sendo que a mulher, assim como os filhos, também era submissa ao homem. Dessa forma, denota-se que o menor era visto, nessa época, como mero objeto pertencente ao pai, e jamais como sujeito de direito.
A estrutura do pátrio poder até então vigente era bastante severa e rigorosa, mas com as transformações sociais que surgiram posteriormente, os poderes dos chefes de família foram sendo paulatinamente diminuídos. A sociedade evolui, à medida que passa a questionar certos paradigmas. Assim, o pai já não poderia mais, por exemplo, vender seus filhos menores.
Com a independência da mulher casada e a redução do autoritarismo patriarcal, aos poucos os filhos foram sendo tratados de forma mais igualitária e menos discriminatória.
As vicissitudes por que passou a família, no mundo ocidental, repercutiram no conteúdo do poder familiar. Quanto maiores foram a desigualdade, a hierarquização e a supressão de direitos, entre os membros da família, tanto maior foi o pátrio poder e o poder marital. À medida que se deu a emancipação da mulher casada, deixando de ser aliens iuris, à medida que os filhos foram emergindo em dignidade e obtendo tratamento legal isonômico, independentemente de sua origem, houve redução do quantum despótico, restringindo esses poderes domésticos.[2]
No Brasil, o Código Civil de 1916 ainda seguiu uma linha extremamente conservadora e patriarcal, haja vista que atribuía, originariamente, o denominado “pátrio poder” ao marido, que o exercia com a colaboração da mulher. Na redação inicial do referido Código, o marido exercia o comando da sociedade conjugal e ao mesmo tempo sua autoridade sobre os filhos menores.[3]
Aos poucos, o papel da mulher no seio social foi sendo valorizado, mas somente com a Constituição Federal de 1988 foi consagrada de uma vez por todas a igualdade entre o homem e a mulher, em especial no tocante ao exercício da parentalidade.
Com o advento do Código Civil de 2002, adotou-se pela primeira vez a nomenclatura “poder familiar”:
Art. 1.631. Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade.
Parágrafo único. Divergindo os pais quanto ao exercício do poder familiar, é assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para solução do desacordo.[4]
Trata-se de nomen iuris mais condizente com a nova realidade familiar, eliminando a ideia de autoritarismo e patriarcalismo anteriormente predominante. Não obstante, denota-se que a expressão “poder familiar” ainda não é a mais interessante, pois ainda traduz uma ideia de “poder” em relação aos filhos.
Outrossim, o art. 1.643 do Código Civil de 2002 instituiu, em conformidade com o estatuído pela Carta Constitucional de 1988, que
Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)
I - dirigir-lhes a criação e a educação; (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)
II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584;
(...) [5]
Dessa forma, resta claro que foram extintas quaisquer diferenciações discriminatórias no que tange ao exercício do poder familiar pelo homem e pela mulher, de modo que hoje, ambos o exercem em igualdade de condições.
Ademais, com a promulgação da Constituição de 1988, o poder familiar passa a ser exercido tão somente no interesse do menor. Consagra-se definitivamente o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, remodelando o sistema até então vigente provocando alterações de base na estrutura patriarcal e discriminatória imposta pelo direito anterior.
2. O PODER FAMILIAR APÓS A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Com o advento da Lei Maior, ocorreu uma reformulação em todos os institutos de direito civil, com destaque para os institutos de direito de família. No que pertine ao poder familiar, não foi diferente.
Primeiramente, o princípio da igualdade entre homem e mulher refletiu no exercício da parentalidade, haja vista que agora os pais exercem o poder familiar em igualdade de condições.
Outrossim, o princípio do melhor interesse da criança colocou o menor no centro do Ordenamento Jurídico, conferindo total prioridade à criança e ao adolescente em quaisquer circunstâncias. Percebe-se, portanto, uma completa inversão de interesses no que diz respeito às relações paterno-filiais. O foco, agora, passa a ser os filhos.
Conforme explicitou Paulo Lôbo, “o poder familiar, sendo menos poder e mais dever, converteu-se em múnus, concebido como encargo legalmente atribuído a alguém, em virtude de certas circunstâncias, a que se não pode fugir”[6].
Ainda de acordo com o jurista, o poder familiar deve ser entendido como “uma consequência da parentalidade e não como efeito particular de determinado tipo de filiação. Os pais são os defensores legais e os protetores naturais dos filhos, os titulares e depositários dessa específica autoridade, delegada pela sociedade e pelo Estado.”[7]
Com a Carta Magna de 1988, adveio a ideia de poder familiar não mais como uma autoridade suprema que os pais exercem sobre os filhos, mas como um poder-dever a ser exercido em benefício exclusivo destes. Nessa linha, o art. 227 da Constituição Federal enuncia que
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. [8]
Por outro lado, a isonomia consagrada entre homem e mulher diminuiu a autoridade parental que era antes concentrada apenas no marido, conferindo uma igualdade de direitos e deveres de ambos os pais em relação aos filhos.
Denota-se, assim, que o ordenamento instaurado após 1988 reestruturou as relações paterno-filiais, valorizando o afeto e a convivência familiar como a melhor forma de proporcionar o desenvolvimento sadio dos filhos.
De acordo com Washington de Barros Monteiro:
Modernamente, o poder familiar despiu-se inteiramente do caráter egoístico de que se impregnava. Seu conceito, na atualidade, graças à influência do cristianismo, é profundamente diverso. Ele constitui presentemente um conjunto de deveres, cuja base é nitidamente altruística. [9]
3. O PODER FAMILIAR E OS PRINCÍPIOS DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E DA CONVIVÊNCIA FAMILIAR
Os princípios constitucionais da Convivência familiar e do Melhor interesse da criança vieram consagrar a especial proteção do Estado dada à criança, que, pela sua peculiar condição de sujeito em desenvolvimento, merece prioridade absoluta e imediata perante o Ordenamento Jurídico.
O princípio do melhor interesse da criança, baseado na doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente, provocou uma inversão de interesses no que diz pertine às relações entre pais e filhos. Assim, hoje, visa-se prioritariamente alcançar o bem-estar da criança, em toda e qualquer situação, independentemente de quaisquer circunstâncias. Segundo Orlando Gomes, “só recentemente se veio a compreender que o poder atribuído ao pai deve ser exercido no interesse do filho, abrandando-se, nos costumes e na lei, o jugo paterno.” [10]
Portanto, a criança, agora reconhecida pelo art. 227 da Lei Maior como sujeito de direitos, deve receber tratamento especial pela família, pelo Estado e pela sociedade. Hodiernamente, podemos dizer que o poder familiar tem por fim último o bem estar dos filhos, e não mais o interesse dos pais, como ocorria outrora. Dessa maneira, a Carta Magna andou bem ao instituir o princípio do melhor interesse da criança, aniquilando, de uma vez por todas, vestígios de patriarcalismo e hierarquia familiar. O poder familiar agora se volta em proveito do menor, que passa a gozar de absoluta prioridade no âmbito do ordenamento pátrio.
Outrossim, o direito à convivência familiar, igualmente, tem papel de fundamental importância no desenvolvimento do menor. É a base que possibilitará um crescimento sadio aos filhos, na medida em que a criança, pela sua vulnerabilidade, reclama que os pais dirijam sua educação e criação, o que lhes possibilitará um desenvolvimento pleno.
A convivência familiar diz respeito ao direito dos filhos de conviverem no seio de um ambiente familiar saudável. O referido direito, além de estar expresso no art. 227 da Carta Magna, está igualmente consignado no art. 9.3 da Convenção dos Direitos da Criança: “os Estados Partes respeitarão o direito da criança que esteja separada de um ou de ambos os pais de manter regularmente relações pessoais e contato direto com ambos, a menos que isso seja contrário ao interesse maior da criança.”[11] A referida Convenção, portanto, valorizando a convivência familiar e a tutela prioritária do menor, assegura a manutenção das relações paterno-filiais, ainda que os genitores estejam separados.
4. CONCLUSÃO
A Constituição Federal de 1988, fundamentada na dignidade humana, consagrou a proteção especial à família tutelando os seus membros e conferindo à criança prioridade absoluta. O poder familiar, inicialmente de caráter egoístico e patriarcal, transforma-se em instituto inteiramente voltado para a tutela da criança, que ganhou tratamento completamente distinto após 1988. A família abandona a rigidez existente outrora e abraça o afeto como elemento determinante para a sua manutenção, e os filhos, consequentemente, tornam-se o único e exclusivo motivo condutor do poder familiar.
REFERÊNCIAS
CÓDIGO CIVIL DE 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm Acesso em 31.Dez.2016.
CÓDIGO CIVIL DE 1916. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1910-1919/lei-3071-1-janeiro-1916-397989-norma-pl.html Acesso em 31.Dez.2016.
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm Acesso em 31.Dez.2016.
CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm Acesso em 31.Dez.2016.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
GOMES, Orlando. Direito de família, 14ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002.
LÔBO, Paulo. Famílias, 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010.
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional, 4ª edição. São Paulo: Editora Método, 2010.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Vol. 2: direito de família. 37ª edição. São Paulo: Saraiva, 2004.
RODRIGUES, Sílvio. Direito civil. Vol. VI. 27ª edição. São Paulo: Saraiva,2002.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.33ª edição. São Paulo: Malheiros, 2010.
VENOSA, Sílvio de Sávio. Direito civil: Direito de família.3ª edição. São Paulo: Atlas,2003.
[1] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Vol. 2: direito de família. 37ª edição. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 346.
[2] LÔBO, Paulo. Famílias, 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p.293.
[3] CÓDIGO CIVIL DE 1916. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1910-1919/lei-3071-1-janeiro-1916-397989-norma-pl.html Acesso em 31.Dez.2016.
[4] CÓDIGO CIVIL DE 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm Acesso em 31.Dez.2016.
[5] CÓDIGO CIVIL DE 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm Acesso em 31.Dez.2016.
[6] LÔBO, Paulo. Famílias, 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p.294.
[7] LÔBO, Paulo. Famílias, 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010,p. 295.
[8] CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm Acesso em 31.Dez.2016.
[9] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Vol. 2: direito de família. 37ª edição. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 347.
[10] GOMES, Orlando. Direito de família, 14ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002, p. 389.
[11] CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm Acesso em 31.Dez.2016.
Servidora Pública do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco; Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Carolina Dias Martins da Rosa e. Uma breve reflexão sobre o poder familiar antes e após a Constituição Federal de 1988 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jan 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/48536/uma-breve-reflexao-sobre-o-poder-familiar-antes-e-apos-a-constituicao-federal-de-1988. Acesso em: 23 dez 2024.
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