RESUMO: O presente artigo visa debater o atual cenário da intolerância religiosa instalada na sociedade contemporânea pátria e seus desdobramentos no campo jurídico-penal. É certo que a Constituição cidadã alargou a possibilidade de liberdade de expressão a um nível nunca visto antes no Brasil. Esse movimento de maior amplitude democrática é compreensivo diante de todas as mazelas deixadas pelo regime ditatorial militar imposto em nosso país por mais de duas décadas. Contudo, de 1988 até os dias atuais, a expansão da liberdade de expressão capitulada no art. 5º de nossa Lei Magna vem causando certas celeumas no meio jurídico com relação aos escritos de cunho racistas e intolerantes no campo religioso. Defensores de seus cleros vêm cada vez mais emitindo opiniões afrontosas e, em alguns casos, desrespeitosas, agressivas, desaguando no tipo penal do racismo. Sobre este escopo, o Supremo Tribunal Federal se deparou em recente julgado (RHC 134682/BA, Rel. Min. Edson Fachin) com o caso do livro escrito pelo padre Jonas Abib, o qual, defendendo a Igreja Católica, teceu em paralelo críticas ao espiritismo e religiões de origem africana, tais quais umbanda e candomblé. Nesta esteira, surge a questão central deste projeto: o proselitismo religioso exagerado, lastreado pela liberdade religiosa pode desaguar no crime de racismo?
Introdução
A segunda metade do século XX no Brasil foi marcada por uma sucessão de acontecimentos marcantes no cenário nacional. Talvez, o mais impactante tenha sido o golpe instituído pelas forças militares, tomando as rédeas do governo federal para si, o que gerou traumas enormes em todo o país.
Se de um lado a economia crescia em padrões nunca antes visto, o contorno político culminou em uma restrição atroz ao direito básico da liberdade de expressão. Idéias, pensamentos e opiniões passaram a ser cerceados. Meios de comunicação sofreram censura e restrição de posicionamento ideológico.
Sendo assim, toda essa seqüência de restrições e perseguições – muitas vezes violentas –, gerou uma natural necessidade de abertura irrestrita á liberdade de expressão ao legislador constituinte de 1988. Neste compasso, o texto magno hoje vigente não mediu esforços em permitir que qualquer cidadão possa expressar seus pensamentos sem qualquer tipo de restrição ou validação. Nosso artigo 5º da Constituição da República garante o livre pensar em diversas passagens de seu texto, representando uma verdadeira guinada democrática em relação ao regime autoritário pretérito.
O escopo deste artigo urge no embate natural entre a larga liberdade religiosa e de expressar a defesa de seu clero contra a possível tipificação do racismo em casos em que aquela defesa é feita de maneira agressiva e desproporcional.
Constituição Federal de 1988: Protetora da Liberdade Religiosa
De modo plenamente justificável, o Legislador Constituinte acertou em devolver à população a plenitude do direito de liberdade de expressão outrora tomado pelo regime militar.
Na Lei Maior, são várias as oportunidades em que se evidencia a abertura ampla ao clero e a divulgação de suas crenças religiosas. O artigo 5º, em seu inciso VI, afirma: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Adiante, o inciso VIII arremata que: “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”.
Neste compasso, resta inequívoca a disposição do legislador pátrio em conceder a democracia à todos os cleros, proporcionando assim a total liberdade de expressão dos cultos religiosos de todas as vertentes. Desta feita, desde vossa Carta Magna, aliada com a redemocratização anos antes, as igrejas como um todo avançaram em seu departamento de divulgação. Hoje em dia é bastante normal uma igreja evangélica, por exemplo, adquirir rádios e emissoras de televisão e nelas divulgarem seus cantos, programas de debates, cultos, e toda forma de divulgação e auto-publicidade.
Com o passar do tempo, mediante a – correta – ampliação do leque dos direitos de expressão, numa demonstração de imaturidade social, inúmeros devotos de cleros começaram a exacerbar em seu direito à liberdade de divulgação de pensamentos, desaguando numa verdadeira onda de desrespeito à religião alheia, zombações muitas vezes permeadas de preconceito.
Neste escopo, grupos que se sentiram ofendidos começaram a procurar tutela estatal para neutralizar tais desmandos. No caso em tela, o Ministerio Publico do Estado da Bahia, por meio de seu membro, achou por bem instaurar inquérito penal e, em seu fim, oferecer denuncia contra o ofensor, tipificando tal conduta como de crime de racismo, uma vez que o padre católico, na intensao de promover sua religião, exagerou proferindo inúmeros desagravos em relação às religiões do candomblé e umbanda, muito presentes no estado da Bahia.
Daí a pedra de toque da questão: o padre católico, na tentativa frustrada de promover sua religião, ao proferir tamanhos despautérios contra praticantes das religiões africanas supracitadas tão somente praticou o proselitismo, este protegido pela Constituição Federal, ou insurgiu em crime de racismo?
Limites entre Proselitismo Religioso e Racismo
A liberdade de expressão religiosa, tão veemente fincada em vosso texto Constitucional, naturalmente possui determinados limites, visto que não há direitos fundamentais ilimitados no ordenamento pátrio.
Sendo assim, de acordo com os ensinamentos de Canotilho[i], existem três espécies de liberdade religiosa, a saber:
a. Liberdade de Consciência: é o direito que cada ser humano tem de manter suas próprias convicções, eleger seus parâmetros de comportamento social. Esse primeiro nível remete a tudo de mais básico, é o direito do sujeito em ter seu ponto de vista no âmbito intimo.
b. Liberdade de Crença: é o direito do cidadão poder escolher entre ter religião ou não. Sabemos que o Estado brasileiro é laico. Daí, natural qualquer pessoa ter a prerrogativa interna de poder declarar-se religioso e/ou ateu
c. Liberdade de Culto: é a liberdade constitucionalmente aferida a cada grupo de determinado credo para, no gozo da democracia, poder fazer suas celebrações, atos de veneração e propagação da religião, seja na perspectiva individual ou coletiva.
Nesse contexto, imagine-se que um padre católico escreva um livro associando o Espiritismo e outras religiões de cunho africano ao demônio, devendo tais praticas ter que ser retirada da vida dos cristãos. Chega ao ponto em que defende a queima publica dos livros espíritas e da umbanda. Na denuncia movida pelo Ministerio Publico do Estado da Bahia consta: “O demônio, dizem muitos, "não é nada criativo". Ele continua usando o mesmo disfarce. Ele, que no passado se escondia por trás dos ídolos, hoje se esconde nos rituais e nas práticas do espiritismo, da umbanda, do candomblé e de outras formas de espiritismo. Todas essas formas de espiritismo têm em comum a consulta aos espíritos e a reencarnação."
Seguindo, a peça também afirma que: "Os próprios pais e mães-de-santo e todos os que trabalham em centros e terreiros são as primeiras vítimas: são instrumentalizados por Satanás. (...) A doutrina espírita é maligna, vem do maligno. (...)" ... "O espiritismo não é uma coisa qualquer como alguns pensam. Em vez de viver no Espírito santo, de depender dele e ser conduzida por Ele, a pessoa acaba sendo conduzida por espíritos malignos. (...) O espiritismo é como uma epidemia e como tal deve ser combatido: é um foco de morte. O espiritismo precisa ser desterrado da nossa vida. Não é preciso ser cristão e ser espírita, (...) Limpe-se totalmente! " ... "Há pessoas que já leram muitos livros do chamado "espiritismo de mesa branca", de um kardecista muito intelectual que realmente fascina - as coisas do inimigo fascinam. Desfaça-se de tudo. Queime tudo. Não fique com nenhum desses livros. (...)"
Contudo, em que pese as criticas ferrenhas acima transcritas, o escritor também exalta a democracia e tolerância de credos:
“Não estou falando contra as pessoas espíritas, contra as pessoas que frequentam umbanda, candomblé, mas estou falando aos cristãos que são inocentes úteis: sem saber dos fatos, vão e fazem tudo isso, só para conseguir o que desejam e do jeito que desejam. (...) Não estamos condenando os espíritas, mas o espiritismo. Estamos denunciando a obra covarde, suja, desleal que o inimigo tem feito, enganando muita gente, retirando os filhos de Deus da salvação de Jesus, arrancando os filhos de Deus dos braços de Jesus e os jogando nas garras do lobo. Podemos dizer sem medo que, infelizmente, os espíritas são as primeiras vítimas deste embuste do demônio. Não estamos contra eles: estamos contra aquele que os enganou. (…) São filhos de Deus, são filhas de Deus! Ele os quer resgatar a todos, sem exceção. Não estamos condenando os espíritas nem seus entes queridos, que foram vítimas do espiritismo. Pelo contrário, estamos afirmando que Deus quer salvá-los.”
Baseado no presente caso concreto, o Supremo Tribunal Federal acolheu a tese de que o réu tão somente fez comparações entre diversas religiões, não havendo que se falar em crime de racismo. Também vislumbrou o pretório excelso que um cidadão pode expressar sua opinião afirmando ser uma religião melhor que a outra (proselitismo), que um credo é superior ao outro, desde que o faça com intuito de ajudar os demais a se elevarem, sem perseguições ou rebaixamentos gratuitos.
Conclusão
Nossa democracia ainda não se fez madura por completo. O legislador Constituinte acertou em expandir o quanto mais a liberdade de expressão outrora tão maculado nos anos do regime de exceção.
Contudo, o direito á liberdade de opinião, mais precisamente no âmbito religioso, não fora um cheque em branco concedido pelo legislador aos diversos praticantes das mais variadas crenças religiosas brasileiras.
Deve-se praticar o proselitismo, cabendo a cada fiel a divulgação de suas crenças, garantindo o crescimento das igrejas, cleros, cultos afros, templos orientais, etc.
Assim, o proselitismo encontra seus limites na mera publicidade das ditas vantagens da referida religião, não podendo denegrir e perseguir outras similares com ideais de dominação, opressão ou violação da dignidade da pessoa humana.
Referências
CANOTILHO, JJ Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. Vol. 1. São Paulo: Coimbra Editora / RT, 2007, p. 609
[i] CANOTILHO, JJ Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. Vol. 1. São Paulo: Coimbra Editora / RT, 2007, p. 609
Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco; Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Eduardo Cavalcanti de Andrade. Intolerância Religiosa e Crime de Racismo - O Caso "Jonas Abib" Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jan 2017, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/48628/intolerancia-religiosa-e-crime-de-racismo-o-caso-quot-jonas-abib-quot. Acesso em: 23 dez 2024.
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