Resumo: O presente artigo vem a realizar uma análise técnico-jurídica acerca da possibilidade de o Delegado de Polícia, em sede de investigação preliminar, aplicar o princípio da insignificância, quando o fato por ele investigado se tratar de infração penal que não causa de lesão ou perigo de lesão a bem jurídico tutelado pela norma penal.
Palavras-chave: Tipicidade. Princípio da Insignificância. Delegado de Polícia.
Sumário: Resumo. 1. Introdução. 2. Princípio da Insignificância. 3. Delegado De Polícia e os Procedimentos Policiais 4. Aplicação do Princípio da Insignificância pelo Delegado de Polícia. 5. Conclusão. 6. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por finalidade apresentar o princípio da insignificância como premissa de um direito penal republicano, devendo ser implementado sempre que presentes os seus requisitos autorizadores.
A aplicação do princípio da insignificância pelo Delegado de Polícia trata-se de um tema que vem sendo bastante discutido na doutrina, sobretudo após a vigência da Lei nº 12.830/13, que reconheceu à categoria o status de carreira jurídica, acarretando uma maior autonomia na análise técnico-jurídica dos procedimentos que preside.
Partindo desse prisma, debateremos a real possibilidade da autoridade policial, em sede de investigação preliminar, após análise fática e circunstancial, aplicar o princípio da insignificância e afastar a tipicidade da infração penal no caso concreto.
2 PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
Os aspectos históricos que permeiam o princípio da insignificância despontam para Roma antiga, onde vigia o axioma “minimis non curat praetor”, algo como “o pretor (magistrado) não se ocupa de temas irrelevantes”. Este brocardo tinha aplicação no direito privado, não sendo aplicado nos demais ramos do direito, sobretudo no direito penal.
O princípio em comento veio a ser inserido no âmbito Direito Penal no ano de 1967, pelo autor alemão Claux Roxin, em sua obra Política Criminal y Sistema del Derecho Penal.
O princípio da insignificância, também conhecido como princípio de bagatela, é corolário do princípio da intervenção mínima, que tem por escopo “castigar apenas quando não puder ser contidos por outro ramo do direito” (MASSON, 2016).
A criminalidade de bagatela tem por objetivo reduzir o âmbito de aplicação do direito penal, corrente também conhecida por Direito Penal Mínimo. Essa corrente defende que a retribuição por meio da privação da liberdade e/ou restrição de direitos, apenas deve incidir nas condutas que causem relevante lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado pela norma penal, e não em qualquer conduta que se adeque apenas sob o ponto de vista formal.
Sobre o princípio da insignificância, ensina Cleber Masson:
“O princípio da insignificância, fundamentado em valores de política criminal (aplicação do Direito Penal em sintonia com os anseios da sociedade), destina-se a realizar uma interpretação restritiva da lei penal. Em outras palavras, o tipo penal é amplo e abrangente, e o postulado da criminalidade de bagatela serve para limitar sua incidência prática.” (2016, p. 28)
A Suprema Corte também já explanou acerca do tema:
“O princípio da insignificância é vetor interpretativo do tipo penal, tendo por escopo restringir a qualificação de condutas que se traduzam em ínfima lesão ao bem jurídico nele (tipo penal) albergado. Tal forma de interpretação insere-se num quadro de válida medida de polícia criminal. Visando, para além da descarcerização, ao longo do descongestionamento da Justiça Penal, que deve ocupar-se apenas das infrações tidas por socialmente mais graves. Numa visão humanitária do Direito Penal, então, é de se prestigiar esse princípio da tolerância, que, se bem aplicado, não chega a estimular a idéia da impunidade. Ao tempo que se verificam patentes a necessidade e a utilidade do princípio da insignificância, é imprescindível que aplicação se dê de maneira criteriosa, contribuindo sempre tendo em conta a realidade brasileira, para evitar que a atuação estatal vá além dos limites do razoável na proteção do interessa público.” (HC 104.787/RJ, rel. Min. Ayres Britto, 2ª turma, j. 26.10.2010)
A maneira de aplicação do princípio da insignificância foi centro de diversas decisões do Pretório Excelso, tendo em vista que era necessário estabelecer critérios para utilização desta importante ferramenta de política criminal. Sendo assim, o STF estabeleceu requisitos de verificação para a aplicação da criminalidade de bagatela, no caso concreto. Tais requisitos são sempre relacionados ao fato, ao agente, a vítima.
Quatro são os requisitos objetivos estabelecidos pelo STF para aplicação do princípio da insignificância, são eles: a) mínima ofensividade da conduta; b) ausência de periculosidade social da ação; c) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; d) inexpressividade da lesão jurídica.
É consenso na doutrina penal que todos esses requisitos traduzem, em verdade, o mesmo critério. São repetições da mesma coisa, ditas de diversas maneiras, que se resume ao brocardo “sendo irrelevante a lesão ou o perigo de lesão causado pela conduta, não há crime.”
Ainda sobre a aplicação da criminalidade de bagatela, aduz Cleber Masson:
“Mais do que um princípio, a insignificância penal é um fator de política criminal. Portanto, é necessário conferir ampla flexibilidade ao operador do Direito para aplicá-lo, ou então para negá-lo sempre levando em conta as peculiaridades do caso concreto. É imprescindível analisar o contexto em que a conduta foi praticada para, ao final, concluir se é oportuna (ou não) a incidência do tipo penal.” (2016, p. 30)
Existem ainda requisitos subjetivos estabelecidos pela doutrina e principalmente pela jurisprudência, tanto relacionados ao agente, como relacionados à vítima.
Quanto ao agente, é imperioso conhecer alguns aspectos, como se o suspeito é afeito a reiteradas práticas delituosas, se exerce algum cargo público de repressão criminal, etc. Quanto à vítima, também há requisitos relevantes como o valor sentimental do bem atingido, a sua condição econômica, entre outros.
Todos esses são fatores que influenciam na decisão e podem obstacularizar a aplicação do princípio da insignificância, visto que, nestas situações fáticas, não há mínima ofensividade na conduta.
Partindo para análise técnica do tema, os Tribunais Superiores entendem que o princípio da insignificância tem natureza jurídica de CAUSA SUPRALEGAL DE EXCLUSÃO DA TIPICIDADE. Esse é o entendimento do STF:
“O princípio da insignificância qualifica-se como fator de descaracterização material da tipicidade penal. O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da framentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material.” (RHC 122.464/BA, rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, j. 10.06.2014)
É um pressuposto supralegal, pois se trata de uma criação doutrinária e jurisprudencial, não possuindo qualquer correspondência legal na legislação pátria.
A tipicidade penal é formada pela união da tipicidade formal (subsunção do fato ao previsto na norma penal) e da tipicidade material (a conduta, no caso concreto, causar relevante lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado).
Ressaltamos que o princípio da insignificância incide apenas sobre a tipicidade material, acarretando a atipicidade do delito em virtude de a conduta não causar “relevante lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado”, como exigido, apesar de haver a adequação formal ao tipo penal previsto.
Sobre o tema, ensina Cezar Roberto Bittencourt:
“A tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico. Segundo esse princípio, que Klaus Tiedemann chamou de princípio de bagatela, é imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Amiúde, condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado.” (2015, p.60)
3 DELEGADO DE POLÍCIA E OS PROCEDIMENTOS POLICIAIS
O delegado de polícia, autoridade pública - que exerce funções de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado - é o responsável pelas investigações policiais, produzidas e codificadas essencialmente em dois instrumentos, quais sejam: o inquérito policial e o termo circunstanciado de ocorrência.
Assim dispõe o art. 2º, §1º, da Lei nº 12.830/13:
“§ 1o Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.”
O inquérito policial é o principal instrumento procedimental que a Polícia Civil e a Polícia Federal possuem para desenvolver suas atividades, sendo o resultado escrito da concentração das diligências investigatórias, que tem por fim descobrir a autoria e a materialidade das infrações penais investigadas.
O referido procedimento, como explanado alhures, é presidido pelo Delegado de Polícia que, na qualidade de autoridade policial, é competente para instaurar e determinar as diligências que ocorrem dentro do inquérito policial.
O termo circunstanciado de ocorrência (TCO), por sua vez, é um procedimento policial simplificado, que possui a finalidade de substituir o inquérito policial em determinados tipos de infração penal.
O referido procedimento foi regulamentado pela Lei 9.099/95 e pode ser aplicado aos crimes de menor potencial ofensivo, tendo seu conceito formulado pelo art. 61 da referida lei:
“Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa”.
Sendo assim, a autoridade policial, ao tomar conhecimento da ocorrência de contravenção penal ou de crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, conforme dispõe o art. 69 da Lei nº 9.9099/95, deverá lavrar um termo circunstanciado de ocorrência.
O TCO trata-se de um procedimento simples, em que são deduzidos em seu corpo um breve histórico da infração penal apurada, a qualificação dos envolvidos e das testemunhas do fato. A lavratura do termo dispensa qualquer formalidade, tratando-se de um ato substitutivo ao inquérito policial, que visa dar celeridade em virtude da menor gravidade da infração penal.
Apesar de ser um procedimento simplificado, ainda assim, trata-se de um procedimento investigatório previsto em lei e de competência do Delegado de Polícia, pois demanda uma análise técnico-jurídica do fato, devendo ser indicada a autoria, a materialidade e suas circunstâncias.
4 APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELO DELEGADO DE POLÍCIA
Existe uma divergência doutrinária acerca da possibilidade de o delegado de polícia aplicar o princípio da insignificância, não existindo qualquer posição consolidada sobre o tema na jurisprudência.
Vimos que o princípio da insignificância tem a natureza jurídica de causa de atipicidade material do fato. Logo, estando presentes seus requisitos, não há falar em infração penal, tendo em vista a ausência lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado pela norma.
O delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, exerce cargo público de natureza jurídica, possuindo aptidão técnica para proceder à análise técnico-jurídica do caso concreto, identificando se estão presentes os pressupostos para aplicação do princípio da insignificância.
Assim sendo, se o fato é atípico para o juiz ou promotor de justiça, não deixará de ser para a autoridade policial, tendo em vista que a atipicidade material do fato se faz presente ab initio.
Essa discussão ganha vulto quando estamos diante de um caso de lavratura de auto de prisão em flagrante. Deve o delegado aplicar o princípio da insignificância e se abster de lavrar o respectivo auto?
Entendemos que sim. Ora, estando evidentes os requisitos para aplicação do princípio da insignificância, trata-se de fato atípico, devendo o delegado deixar de lavrar o auto.
Não propomos aqui a inação da autoridade policial diante de um crime bagatelar, pois é seu dever registrar a ocorrência e remeter as peças ao Poder Judiciário, sempre consignando seu entendimento pela não lavratura do procedimento.
Eis o entendimento de Fernando Capez:
“O auto somente não será lavrado se o fato for manifestamente atípico, insignificante ou se estiver presente, com clarividência, uma das hipóteses de causa de exclusão da antijuridicidade, devendo-se atentar que, nessa fase, vigora o princípio do in dubio pro societate, não podendo o delegado de polícia embrenhar-se em questões doutrinárias de alta indagação, sob pena de antecipar indevidamente a fase judicial de apreciação de provas; permanecendo a dúvida ou diante de fatos aparentemente criminosos, deverá ser formalizada a prisão em flagrante.” (grifos nossos) (2012, p. 323).
Também é o entendimento de Cleber Masson, que afirma:
“O princípio da insignificância afasta a tipicidade do fato. Logo, se o fato é atípico para autoridade judiciária, também apresenta igual natureza para autoridade policial. Não se pode conceber, exemplificativamente, a obrigatoriedade da prisão em flagrante no tocante à conduta de subtrair um único pãozinho, avaliado em poucos centavos, do balcão de uma padaria, sob pena de banalização do Direito Penal e do esquecimento de outros relevantes princípios, tais como o da intervenção mínima, da subsidiariedade, da proporcionalidade e da lesividade.” (2016, p. 43)
Quanto à lavratura do termo circunstanciado de ocorrência (TCO), o mesmo raciocínio se faz presente, tendo em vista que se trata apenas de um procedimento simplificado, quando da ocorrência de crime de menor potencial ofensivo.
É imperioso lembrar que o crime de menor potencial ofensivo foi devidamente valorado pelo legislador e possui natureza diversa do crime de bagatela, que é atípico. Sobre este ponto, ensina Cezar Roberto Bittencourt:
“O fato de determinada conduta tipificar uma infração penal de menor potencial ofensivo (art. 98, I, da CF) não quer dizer que tal conduta configure, por si só, o princípio da insignificância. Os delitos de lesão corporal leve, de ameaça, injúria, por exemplo, já sofreram a valoração do legislador, que, atendendo às necessidades sociais e morais históricas dominantes, determinou as consequências jurídico-penais de sua valoração. Os limites do desvalor da ação, do deslavor do resultado e as sanções correspondentes já foram valorados pelo legislador.” (2015, pp. 60-61)
5 CONCLUSÃO
Através do presente artigo expusemos o impasse existente na doutrina penal pátria acerca da possibilidade de aplicação do princípio da insignificância pela figura do delegado de polícia.
Inicialmente, apresentamos o princípio da insignificância ou do crime de bagatela, abordando desde seu aspecto histórico até sua aplicação no direito penal hodierno.
Em seguida, passamos a apresentar a figura do delegado de polícia, autoridade pública responsável por presidir os procedimentos policiais que apuram as infrações penais.
Por fim, entramos no cerne do debate jurídico, demonstrando o poder/dever que possui o delegado de polícia de, constatando estarem presentes os requisitos para aplicação do princípio da insignificância, aplicá-lo, se abstendo de lavrar ou instaurar procedimento policial, apenas registrando a ocorrência e remetendo ao Poder Judiciário, com a devida fundamentação jurídica.
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITENCOURT, C. R. Tratado de direito penal – parte geral. Vol. 1. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2015
CAPEZ, F. Curso de processo penal / Fernando Capez. – 19. ed. – São Paulo: Saraiva, 2012.
CAVANCANTE, M. A. L. Princípio da insignificância no direito penal brasileiro. E-book. 1. ed. Disponível em: < http://www.dizerodireito.com.br/2014/07/principio-da-insignificancia-no-direito.html > Acesso em: 10 de janeiro de 2017.
CUNHA, R. S. Manual de direito penal – parte geral. Volume único, 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2016..
MASSON, C. Direito penal esquematizado – parte geral. Vol. 1, 10. ed. São Paulo: Método, 2016.
Escrivão da Polícia Civil de Pernambuco. Graduado pela Universidade Católica de Pernambuco. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal na Universidade Cândido Mendes
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: XAVIER, Elielton Barbosa da Silva. Aplicação do princípio da insignificância pelo delegado de polícia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 jan 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/48900/aplicacao-do-principio-da-insignificancia-pelo-delegado-de-policia. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
Por: Thiago Filipe Consolação
Por: Michel Lima Sleiman Amud
Por: Helena Vaz de Figueiredo
Precisa estar logado para fazer comentários.