RESUMO: A eticidade é um dos mais relevantes princípios do Direito e está presente em todas as suas esferas. Dentro dele, se insere o princípio da boa-fé objetiva, que corresponde a um modelo de conduta pautado na moralidade e na ausência de ardileza. O presente artigo busca expor alguns aspectos da boa-fé objetiva dentro da esfera contratual, compreendendo a análise de algumas condutas relacionadas à ela. São estas: venire contra factum proprium, supressio, exceptio doli, substantial performance, duty to mitigate your own loss e tu quoque.
Palavras-chave: boa-fé objetiva; venire contra factum proprium; supressio; exceptio doli; substantial performance; duty to mitigate your own loss e tu quoque.
1. Introdução
O Direito dos Contratos é o ramo do Direito que supervisiona os atos contratuais. O contrato é um negócio jurídico no qual as partes se submetem a preceitos preestabelecidos, atendendo às vontades de ambas. Contudo, esse tratado deve acolher também um conjunto de princípios, situados dentro dessa esfera jurídica, responsáveis por fundamentá-la.
Há uma série de definições do vocábulo “princípio”. Para alguns autores, o sentido dessa expressão divide-se em dois: o moral e o lógico. O primeiro consiste nas qualidades positivas de algum indivíduo. Quando se fala que alguém tem princípios, o que significa é que essa pessoa é ética, honesta, de boa moral. Já o segundo se refere ao princípio como uma razão fundamental e geral, que serve como molde de determinada ciência ou arte.
Aplicando o conceito lógico ao Direito, tem-se que os princípios são, portanto, regras fundamentais que ditarão os sentidos que as normas devem seguir, para que se garanta os preceitos fundamentais da sociedade. No Direito Contratual, os princípios mais relevantes são a autonomia da vontade, a sociabilidade e a eticidade.
A autonomia da vontade consiste no poder dado a alguém para criar uma norma individual dentro dos limites estabelecidos pelo ordenamento jurídico. É relacionada, portanto, à expressão da liberdade. Contudo, vale ressaltar que tal liberdade não é absoluta, sendo sujeita às normas do próprio Direito. A sociabilidade é relacionada com a função social do contrato. Ou seja, os contratos devem estar de acordo com sua função social para que sejam válidos e efetivos, o que acaba relativizando a subjetividade do contrato. A eticidade é relacionada com a boa-fé objetiva e estabelece uma relação de confiança entre as partes, de forma que espera-se que ambos atuem de acordo com os padrões morais e éticos da sociedade.
2. Desenvolvimento
2.1. Boa-fé objetiva
A boa-fé pode ser dividida em dois aspectos: o subjetivo o objetivo. O primeiro corresponde à convicção de um indivíduo quando acredita ser titular de um direito que, na realidade, não o tem, apenas parece ter. É uma ignorância escusável e não se trata de um princípio propriamente dito. É como propõe o autor Assis Neto, em sua obra “Manual de Direito Civil”:
“A boa-fé subjetiva: é um estado psicológico, uma crença errônea a respeito de uma situação, em ordem a operar como justificativa para determinado comportamento.”
Já a objetiva é, de fato, um princípio e consiste na crença no comportamento dos outros, no sentido de que estes atuarão de forma ética e honesta. Corresponde a uma regra de conduta, fundada na honestidade, na lealdade e na consideração para com os interesses da outra parte. Dessa forma, é um modo de impedir que alguém omita ou minta sobre alguma informação acerca do contrato, de que se obtenha alguma vantagem injusta com esse negócio jurídico.
Tal princípio não está rigidamente fixado e depende sempre das circunstâncias do caso. Essa imprecisão, todavia, é necessária, pois o intérprete precisa dessa liberdade para estabelecer o sentido e o uso da boa-fé objetiva em cada caso. Mesmo não sendo rigidamente estabelecida, ela é tratada em alguns pontos no Código Civil de 2002. Pode ser notada, primeiramente, no art. 422, que diz o seguinte:
“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.
Além desse dispositivo, também destaca-se o art. 113, do mesmo Código, que versa:
“Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.”
Por fim, deve-se destacar também o art. 187:
“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”
A boa-fé objetiva, portanto, está presente em todo o âmbito do Direito Contratual. Ela está ligada com os preceitos morais da sociedade e impõe uma expectativa de conduta sobre as partes contraentes. Relacionados a tal princípio, existem certos conceitos que devem ser analisados. São eles: venire contra factum proprium, supressio, exceptio doli, substantial performance, duty to mitigate the own loss e tu quoque.
2.1.1. Venire contra factum proprium
A própria essência princípio da boa-fé objetiva proíbe o venire contra factum proprium. Este consiste nas situações em que uma parte age de forma contraditória em relação aos atos anteriormente praticados. Ou seja, uma vez gerada uma determinada expectativa de direito, baseada nos atos previamente praticados, esta não pode ser quebrada por comportamentos controversos posteriores.
A expectativa de direito criada está intimamente ligada aos aspectos da lealdade, confiança e honestidade, conceitos que fundamentam a própria boa-fé objetiva. Por isso, ela veda a atuação incompatível das partes em relação aos atos anteriores, como ressaltado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em seu REsp 95.539SP, 4ª T., rel. Min. Rosado de Aguiar, DJU, 14101996:
“Havendo real contradição entre dois comportamentos, significando o segundo quebra injustificada da confiança gerada pela prática do primeiro, em prejuízo da contraparte, não é admissível dar eficácia à conduta posterior”.
Como relata o trecho “quebra injustificada da confiança”, é permitida essa conduta incoerente com os atos anteriores, desde que seja devidamente justificada. Existem situações que, devido as suas naturezas e circunstâncias, acabam gerando essa quebra da expectativa. Contudo, desde que não sejam de má-fé e que sejam justificáveis, não constituem uma extrapolação do princípio da boa-fé.
2.1.2. Supressio
A supressio, um conceito relacionado à boa-fé, tem como uma de suas funções o preenchimento de lacunas dos contratos e a produção de direitos e deveres implícitos às partes. Ela consiste na hipótese de que um direito não exercido durante determinado período de tempo não poderá mais ser efetuado.
Em um contrato de prestação duradoura, quando for caracterizado pelo seu não cumprimento durante um longo período de tempo, por falta de iniciativa do credor, e o devedor passa a acreditar que sua obrigação está extinta, está presente a supressio. Ou seja, nesse caso, o credor já perderia seu direito de cobrar a prestação que lhe era devida. Caso contrário, iria contra a boa-fé objetiva do devedor, que já seguiu sua vida, acreditando não ter mais nenhum pagamento pendente.
2.1.3. Tu quoque
O tu quoque veda que alguém que descumpriu uma certa norma legal ou contratual possa exigir de outrem o cumprimento daquela mesma conduta que ele não cumpriu. Ou seja, quem não cumpre os seus deveres também não pode exigir os seus direitos com base na norma violada. Isso seria um abuso de direito.
O tu quoque está relacionado com a proposição “não faça com os outros o que você não gostaria que lhe fizessem”. Dessa forma, além da ética e da moral, ele também preza pelo equilíbrio entre as prestações, evitando que haja um abuso de direito. Assim, ele resguarda o princípio da boa-fé, uma vez que todos esses elementos estão contidos dentro de tal princípio.
Um exemplo de uma situação cotidiana na qual pode ser notada a presença do tu
quoque é o caso de um condômino, contrariando as regras do condomínio, que utiliza as áreas comuns como se fossem suas, ou seja, com destinação pra si próprio. Nessa situação, se outro indivíduo começar a usar área comum para fins exclusivamente seus, aquele primeiro indivíduo não poderia exigir do outro o cumprimento das regras do condomínio, uma vez que ele mesmo não as segue.
2.1.4. Duty to mitigate the own loss
O duty to mitigate the own loss, ou dever de mitigar o próprio prejuízo, está contido no Enunciado n° 169 do Conselho de Justiça Federal:
“Art. 422: O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”.
Esse trecho significa que o credor, diante de uma situação que está gerando prejuízo, deve fazer o possível para diminuí-lo. Ele deve adotar as medidas mais céleres e adequadas possíveis para que o dano do devedor não seja agravado. Caso isso não seja seguido, poderá o credor sofrer sanções.
O duty to mitigate your own loss existe para impedir situações em que o credor adota a posição de inação, a fim de permitir que o prejuízo cresça cada vez mais, acreditando que a perda econômica do devedor lhe trará certas vantagens. Essa situação se classifica como um abuso de direito e é claramente uma afronta ao princípio da boa-fé objetiva.
Uma situação onde poderia ser notada essa hipótese é no caso de um indivíduo ter sua casa incendiada e, ‘ao invés de tentar apagar o fogo ou ligar para os bombeiros, prefere não fazer nada para receber mais dinheiro da seguradora.
2.1.5. Substantial performance
O substantial performance, ou adimplemento substancial, veda o que seria uma punição radical pelo inadimplemento modesto. Ou seja, preza pelo exercício equilibrado de direitos, de forma que sejam proporcionais a vantagem recebida pelo titular do direito e o sacrifício do outro. O desequilíbrio frustraria o princípio da boa-fé objetiva.
Um exemplo seria a situação em que um indivíduo compra um carro parcelado. Ele paga a maioria das parcelas, contudo, faltando apenas algumas, ele fica sem dinheiro e deixa de efetuar o resto do pagamento. Assim, o que se vedaria fazer seria a tomada de volta do carro, pela parte vendedora. Uma vez que o devedor já adimpliu uma grande parte do pagamento do carro, não faz sentido tirá-lo de sua posse, já que ele já demonstrou sua boa-fé e compromisso no pagamento da maioria das parcelas.
O substantial performance não significa que não deva haver nenhuma sanção ao (in)adimplemento parcial. O que ele sugere é que deve haver uma sanção, mas proporcional à gravidade do inadimplemento, que, nesse caso, é mínimo. Em outras palavras, não poderia haver uma sanção máxima para um inadimplemento mínimo.
2.1.6. Exceptio doli
A exceptio doli diz respeito à impossibilidade de cobrança de uma obrigação que já foi cumprida. Uma vez paga a prestação por inteiro, o devedor se exime da obrigação e não pode mais ser cobrado por ela nem pelo credor e nem por qualquer outra pessoa.
Essa questão está relacionada ao fato de que o devedor vincula-se à prestação somente durante o período em que ele não a cumpriu completamente. Uma vez adimplida totalmente, não há mais esse vínculo, portanto ninguém pode cobrar mais nada dele. Ninguém pode cobrar duas vezes do devedor por apenas uma obrigação, que já foi cumprida.
A boa-fé se insere aqui no sentido de que essa dupla cobrança visa um pagamento duplo, que seria injusto, uma vez que há apenas uma obrigação. Essa cobrança, portanto, se opõe aos valores da honestidade e da confiança, que devem se inserir na relação entre as partes.
3. Conclusão
Princípios são preceitos fundamentais que norteiam o ordenamento jurídico. Sua função é estabelecer parâmetros à atuação de todos os entes jurídicos, em todas as suas atribuições. Dentro do Direito Contratual, são diversos os princípios que podem ser encontrados. Dentre eles, pode-se destacar os princípios da autonomia privada, da sociabilidade e da eticidade.
O princípio da eticidade é relacionado com a boa-fé objetiva. A boa-fé objetiva diferencia-se da subjetiva por esta ser um estado psicológico baseado na crença de que está agindo de acordo com as normas estabelecidas, enquanto a primeira é uma regra de conduta, baseada na honestidade, confiança, ética, dentre outros valores sociais.
Existem alguns conceitos que decorrem do princípio da boa-fé objetiva e a ajudam a preencher lacunas nos contratos, além de propor direitos e deveres implícitos às partes. São eles: venire contra factum proprium, supressio, exceptio doli, substantial performance, duty to mitigate your own loss e tu quoque.
O venire contra factum proprium consiste no fato de que os contraentes não podem atuar contraditoriamente. A supressio significa que, a partir de um momento, por descuido de uma parte, esta deixa de ter o direito de cobrar determinada obrigação, fazendo com que a outra fique livre de prestá-la. A substantial performance veda o que seria uma punição radical pelo inadimplemento mínimo. O duty to mitigate your own loss diz que a parte deve evitar o agravamento do próprio prejuízo. O tu quoque ressalta que um indivíduo só pode cobrar o adimplemento de uma determinada obrigação outra parte, caso ele não seja inadimplente nessa obrigação. Por fim, a exceptio doli se caracteriza pelo fato de que ninguém pode cobrar de outro uma obrigação que já foi cumprida.
Apesar de haver muitos princípios no Direito Contratual além dos mencionados, estes têm especial relevância. Pode-se notar essa questão pela extensão de seus campos de atuação. Isso faz com tais ideais acabem gerando outros princípios derivados deles mesmos, aumentando mais ainda sua incidência. Logo, a presença forte de tais princípios faz com que mereçam ser analisados com mais atenção e empenho.
Como os princípios são parte da base do ordenamento jurídico, moldando-o e estabelecendo parâmetros a serem seguidos, seu estudo é imprescindível. Dentro da esfera contratual não poderia ser diferente. O entendimento das dimensões e dos significados deles facilita a compreensão de toda sistemática dos contratos, pois revela os reais sentidos das normas e dogmáticas estabelecidas. É um sistema complexo e merece sua devida atenção. Tal complexidade se mostra na extensa quantidade de princípios componentes do Direito Contratual. Entretanto, cada um deles tem sua devida importância e contribuição dentro desse âmbito jurídico, estabelecendo padrões a serem seguidos.
Referências bibliográficas
FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de direito civil: contratos / Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald – 6 ed. rev., e atual. Salvador: Ed. Podivm, 2016.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 3: contratos e atos unilaterais / Carlos Roberto Gonçalves - 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
ASSIS NETO, Sebastião de Marcelo de Jesus, Maria Izabel de Melo. Manual do Direito Civil - 3ª edição, São Paulo: Juspovivm, 2014.
Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALBUQUERQUE, Marina Faraco de Freitas Tres. A eticidade e alguns de seus desdobramentos dentro da esfera do Direito Contratual Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 jan 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/48903/a-eticidade-e-alguns-de-seus-desdobramentos-dentro-da-esfera-do-direito-contratual. Acesso em: 23 dez 2024.
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