Resumo: Este trabalho tem o objetivo de questionar a ampliação da aplicação da causa de diminuição de pena do crime de tráfico de pessoas quando o agente é primário e não pertence à organização criminosa, hipótese não aplicável, como regra, a outros delitos, demonstrando-se assim incoerência legislativa na formação dos tipos penais.
Palavras-chave: tráfico de pessoas; causa de diminuição de pena; coerência e integridade.
1.Introdução
O tema específico aborda a nova lei sobre o crime de tráfico de pessoas, Lei 13344/16, publicada em 07 de outubro do mesmo ano, com vacatio legis de 45 dias, inserindo o art. 149-A no Código Penal.
Assim reza a sobredita Lei:
Tráfico de Pessoas
Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de:
I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;
II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;
III - submetê-la a qualquer tipo de servidão;
IV - adoção ilegal; ou
V - exploração sexual.
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
§ 1o A pena é aumentada de um terço até a metade se:
I - o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las;
II - o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência;
III - o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função;
Ou
IV - a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional.
§ 2o A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não integrar organização criminosa.
Observa-se que o parágrafo 2º do artigo 149-A traz uma causa de diminuição de pena para o agente que for primário e não integre organização criminosa.
Por outro lado, não é novidade que a lei penal traga redutores penais em seus dispositivos. Assim já ocorre com o crime de furto, que no parágrafo 2º do art. 155 assim dispõe:
Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 1º - A pena aumenta-se de um terço, se o crime é praticado durante o repouso noturno.
§ 2º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa.
Logo, no furto, se o agente é primário e de pequeno valor a coisa subtraída, o juiz pode diminuir a pena de um a dois terços, dentre outras hipóteses.
Na legislação especial também encontramos possibilidade de diminuição da pena para o crime tipificado no artigo 33 da Lei de Drogas e seu parágrafo 4º:
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
[..]
§ 4o Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.
Temos então a causa de diminuição de pena no tráfico de pessoas, a do crime de furto e de tráfico de drogas, para ficar com esses três exemplos.
Quanto aos outros delitos do Código Penal ou Leis especiais, por que o legislador também não permitiu diminuição da pena na terceira fase da dosimetria quando houver primariedade e o agente não integre organização criminosa?
2. A incoerência legislativa
Antes de analisar o artigo 149-A do Código Penal, observa-se que a causa de diminuição prevista para o furto, além da primariedade do agente, exige-se que o bem subtraído seja de pequeno valor, de modo que a previsão da diminuição é mais específica aos delitos patrimoniais.
Pode-se argumentar que a causa de diminuição do furto poderia ser aplicada ao crime de roubo se o objeto subtraído, mediante violência ou grave ameaça, for de pequeno valor.
Porém, o tipo penal do roubo, possui em tese, maior gravidade em relação aos crimes de furto, já que naquele há presença de violência ou grave ameaça, de modo que a lei penal buscou reprovar com maior rigor os autores de roubo, sem permitir qualquer causa de diminuição, ainda que o agente seja primário.
Segundo Cleber Masson:
é inadmissível a extensão do privilégio do furto (art. 155, § 2º, do CP) ao crime de roubo. Não é correto sustentar a tese de lacuna da lei e consequente analogia in bonam partem. O privilégio somente é cabível nas hipóteses expressamente previstas pelo legislador, razão pela qual não foi propositalmente inserido no crime de roubo. Além disso, a gravidade em abstrato do delito não se coaduna com as benesses do privilégio, sendo irrelevantes a eventual primariedade do agente e o pequeno valor da coisa roubada.(MASSON, Cleber. Código Penal comentado. 3 edição. São Paulo: Método, 2015)
Já nas condutas do artigo 33 da Lei de Drogas, da mesma forma, o agente primário, com bons antecedentes, não integre organização criminosa ou se dedique a atividade criminosa, terá a redução da pena.
Neste sentido, esclarecem Andrey Borges de Mendonça e Pedro Paulo Carvalho que:
este parágrafo é inovação da nova Lei de Drogas. Ao mesmo tempo em que a nova Lei aumentou a pena base do delito previsto no artigo 33, caput e §1º – que antes era de três anos e agora passou a ser de cinco anos -, previu uma causa de diminuição de pena para estes crimes, visando beneficiar aquele traficante que preencher os requisitos estipulados. Realmente, como aumentou a pena base do delito, poderia ser fonte de iniquidades aplicar a todo traficante no mínimo a pena de cinco anos de reclusão, principalmente para o traficante eventual. Assim, visando evitar uma padronização severa e com o intuito de diferenciar o grande do pequeno traficante, surgiu a nova causa de diminuição de pena.(MENDONÇA, Andrey Borges; CARVALHO, Pedro Paulo Galvão de. Lei de Drogas: Comentada artigo por artigo. 3ª edição. São Paulo: Método, 2012, p. 120).
Agora temos o novo tipo penal no artigo 149-A, parágrafo 2º, do Código Penal, determinando-se que a pena seja reduzida para o agente primário que não integre organização criminosa.
Qual o discrímen necessário que permite ao legislador inserir tal causa de diminuição de pena ao tráfico de pessoas e não estender aos demais delitos do Código Penal?
O tráfico de pessoas "é um dos crimes mais perversos que se conhece, porque viola diversos direitos humanos inalienáveis. É um comércio de gente, no qual a liberdade, a integridade física e psicológica, a honra e a dignidade da vítima são aviltadas".(Migração e tráfico internacional de pessoas : guia de referência para o Ministério Público Federal / Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. – Brasília : MPF, 2016, p. 59)
Não obstante a perversidade do crime de tráfico de pessoas, não impediu que o legislador diminuísse a pena do agente primário e que não integrasse organização criminosa.
Utilizando a lógica da Lei de Drogas, pode-se argumentar que a diminuição também tem o objetivo de não penalizar mais severamente aquele que se dedica de forma eventual ao crime de tráfico de pessoas.
Ora, se a hermenêutica e jurisprudência devem manter coerência e integridade, não há isonomia na interpretação que não estenda também a diminuição de pena para o agente primário e que não integre organização criminosa para outros delitos, pois estes também podem ser praticados de forma reiterada ou eventual.
Conforme leciona Lenio Streck:
Haverá coerência se os mesmos preceitos e princípios que foram aplicados nas decisões o forem para os casos idênticos; mais do que isso, estará assegurada a integridade do direito a partir da força normativa da Constituição. A coerência assegura a igualdade, isto é, que diversos casos terão a igual consideração por parte do Poder Judiciário. Isso somente pode ser alcançado através de um holismo interpretativo, constituído a partir de uma circularidade hermenêutica. Coerência significa igualdade de apreciação do caso e igualdade de tratamento".(STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – A exigência de coerência e integridade no Novo Código de Processo Civil. In: STRECK, Lenio Luiz; ALVIM, Eduardo Arruda; SALOMÃO, George(coords.). Hermenêutica e jurisprudência no novo código de processo Civil: coerência e integridade. São Paulo: Saraiva: 2016, p. 157-158).
No que tange à integridade, o ilustre professor supracitado destaca:
Já a integridade é duplamente composta, conforme Dworkin: um princípio legislativo, que pede aos legisladores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente e um princípio jurisdicional, que demanda que a lei, tanto quanto possível, seja vista como coerente nesse sentido".(STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – A exigência de coerência e integridade no Novo Código de Processo Civil. In: STRECK, Lenio Luiz; ALVIM, Eduardo Arruda; SALOMÃO, George(coords.). Hermenêutica e jurisprudência no novo código de processo Civil: coerência e integridade. São Paulo: Saraiva: 2016, p. 158).
3. Conclusão
Com efeito, a causa de diminuição de pena do tráfico de pessoas, atrelando-se a primariedade do agente e não integração a organização criminosa deve lida para além de tal tipo penal do artigo 149-A, pois se a redução é possível para crimes de tamanha perversidade, na linguagem do Guia de referência para o Ministério Publico Federal, com maior razão deve ser diminuída a pena do agente que cometa quaisquer outros crimes, desde que estejam preenchidos tais requisitos.
Não há lógica em prever causas de diminuição de pena para crimes de maior reprovação social e negar para outros delitos sem justificativa razoável.
A gravidade do delito apontada por Masson no tipo penal de roubo, para não receber a diminuição em razão do pequeno valor do objeto subtraído, em relação ao tráfico de pessoas não foi obstáculo ao legislador.
A simples previsão legal de causas de diminuição de pena para uns delitos e outros não, sem qualquer fundamento, reforça o emprego da analogia in bonam partem.
Dessa forma, sob o princípio da isonomia, o artigo 149-A, parágrafo 2º, do Código Penal, pode ser interpretado no sentido de sua aplicação para outros delitos, no qual a primariedade e o não pertencimento à organização criminosa estejam presentes, pois podem ser interpretados como conteúdo de norma geral, não existindo nenhum discrímen que torne interpretação mais estrita.
Referências
Migração e tráfico internacional de pessoas : guia de referência para o Ministério Público Federal / Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. – Brasília : MPF, 2016
MENDONÇA, Andrey Borges; CARVALHO, Pedro Paulo Galvão de. Lei de Drogas: Comentada artigo por artigo. 3ª edição. São Paulo: Método, 2012
MASSON, Cleber. Código Penal comentado. 3 edição. São Paulo: Método, 2015
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – A exigência de coerência e integridade no Novo Código de Processo Civil. In: STRECK, Lenio Luiz; ALVIM, Eduardo Arruda; SALOMÃO, George(coords.). Hermenêutica e jurisprudência no novo código de processo Civil: coerência e integridade. São Paulo: Saraiva: 2016
Mestre em Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos pela Universidade do Estado do Amazonas, Especialista em Direito Penal, Processo Penal e Processo Civil pela Universidade Federal do Amazonas. Defensor Público do Estado do Amazonas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DIAS, Eduardo Augusto da Silva. Coerência e integridade na aplicação da causa de diminuição de pena para o tráfico de pessoas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 jan 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49060/coerencia-e-integridade-na-aplicacao-da-causa-de-diminuicao-de-pena-para-o-trafico-de-pessoas. Acesso em: 23 dez 2024.
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