RESUMO: O presente artigo tem por objetivo demonstrar a inconstitucionalidade do dispositivo do Código Civil que impõe o regime de separação de bens obrigatória, também chamada de separação legal de bens, para a pessoa maior de setenta anos. Atualmente, a pessoa maior de setenta anos para casar-se deve observar o disposto no artigo 1.641, inciso II, do Código Civil, que define que o idoso é obrigado a contrair matrimônio sob regime de separação de bens. Segundo o enfoque do direito civil constitucional em que os preceitos insertos na Constituição Federal devem ser observados também nas relações privadas, tal imposição, além de inoportuna fere o princípio basilar do sistema jurídico atual: dignidade da pessoa humana.
Palavras-chave: Direito Civil. Direito Civil Constitucional. Idoso. Separação Obrigatória. Inconstitucionalidade.
ABSTRACT:This article aims to demonstrate the unconstitutionality of the Civil Code disposition regarding the imposition of the legal division of property for those above 70 (seventy) years. Currently, in order to get married, those above that age must observe the requirements as seen in article 1.641, line II, of the Civil Code, which states that the elderly must marry under the mandatory separation of property regime. From the standpoint of constitutional civil law, in which the Federal Constitution precepts must be observed also in private affairs, that imposition is untimely and hurts the basic principle of the current legal system: the human dignity.
Keywords: Civil Law, Constitutional Civil Law, Elderly, Mandatory separation of property, Unconstitutionality.
INTRODUÇÃO
Atualmente, a pessoa maior de setenta anos que visa contrair matrimônio deve observar o disposto no artigo 1.641, inciso II, do Código Civil, que define que o idoso é obrigado a casar-se sob o regime de separação de bens.
O Código Civil de 2002 definia que o regime de separação de bens era obrigatório para os maiores de sessenta anos. Entretanto, a Lei nº 12.344 de 9 de dezembro de 2010 aumentou a referida idade para setenta anos.
Com o advento dessa lei, o maior de setenta anos que decidir se casar deve, necessariamente, contrair o matrimônio sob o regime de separação legal de bens, sendo vedado, portanto, a livre escolha do estatuto patrimonial que regerá a vida conjugal dos consortes.
Entretanto, o Direito Civil vem sofrendo importantes mudanças em sua interpretação, passando a ser analisado sob a perspectiva constitucional, ou seja, os princípios basilares estampados na Constituição Federal passam a ser aplicados também nas relações privadas.
Diante desse fenômeno, denominado por muitos como a “constitucionalização do direito civil”[1] a norma que impõe a separação legal no caso apresentado nesse artigo é patentemente inconstitucional e inundada de discriminação e preconceito.
1.CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
1.1 BREVE HISTÓRICO ACERCA DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL
O Direito Civil era, durante a Idade Média, representado por princípios medievais pautado nos costumes que vinham do absolutismo monárquico.
A codificação civil tal qual como conhecemos teve início no Estado Liberal e materializou-se com o Código Napoleônico – Código Civil Francês de 1804.
O Estado Liberal, que tem como marco a Revolução Francesa de 1789, era composto por filósofos iluministas que lutavam bravamente contra o absolutismo. Tal movimento intelectual - conhecido como Iluminismo - tinha como adeptos, por exemplo, John Locke, Voltaire, Jean-Jaques Rousseau, Montesquieu[2], entre outros.
Esse movimento – que trazia como lema: liberdade, igualdade e fraternidade -contou com o apoio da burguesia da época e, tanto os burgueses quantos os intelectuais, aspiravam, como finalidade principal, a liberdade dos cidadãos em relação ao Estado.
O Estado Liberal, que nasceu praticamente com a Revolução Francesa, possuía como fundamento básico a defesa da liberdade do cidadão em suas relações privadas, rechaçando qualquer forma de intervenção estatal.
Entretanto, como explica Giordano Bruno Soares, “faltava uma ponte para ligar os novos pensamentos aos velhos ordenamentos jurídicos. A questão era como transformar com as novas ideias os antigos sistemas”[3]. A solução encontrada, então, foi a codificação. Por meio dos códigos passou a se estabelecer leis racionais que todos os homens deveriam obedecer. Exemplos desses códigos são: o próprio Código de Napoleão – Code Napoléon – de onde decorreu o Código Civil brasileiro de 1916, e o Código Civil alemão que teve seu surgimento no final do século XX[4].
O Code – que se tornou um paradigma no mundo - tinha como pilares os ideais iluministas, baseado, sobretudo, na liberdade e na igualdade. O diploma continha normas que visavam, principalmente, extinguir os privilégios dos nobres e evitar intervenção estatal na esfera privada[5].
Durante o Estado Liberal, os sujeitos possuíam liberdade plena para exercer qualquer relação jurídica privada. O liberalismo preconizava que os sujeitos eram livres para realizar e contratar negócios[6]. Nesse ínterim, os grandes ideais do direito civil eram o contrato e a propriedade - tida pelo Code como um direito mais que absoluto – que não sofreriam qualquer interferência do Estado.
Todavia, a beleza do lema “liberdade, igualdade e fraternidade” não revelou a verdadeira situação fático-jurídica da sociedade. Não era possível existir igualdade em uma sociedade desigual. O que se pregava era apenas uma igualdade formal, onde os burgueses, que dominavam o Parlamento, não hesitavam em explorar os mais fracos. Em verdade, a liberdade acabou por intensificar a exclusão social[7].
Tendo em vista que a liberdade pressupõe a igualdade substancial, irreal no Estado Liberal, despertou-se a necessidade de mudança no pensamento para admitir-se, de alguma maneira, a intervenção Estatal na relação privada. Ante a desigualdade provocada pelo liberalismo, o movimento do século das luzes passou a ruir.
A principal crítica fomentada era que os valos humanitários não eram observados. O patrimônio prevalecia sobre a pessoa humana logo que, nessa fase, garantia-se a propriedade a qualquer custo[8].
Foi nesse contexto que nasceu o Código Civil brasileiro de 1916. O legislador pátrio do século passado não se preocupou com a tutela do ser humano, garantia esta que passava a ser discutida em outros países.
Em razão desse fato, bem como a sociedade brasileira daquela época ser agrária e patriarcal, o Código Civil brasileiro de 1916 foi taxado de individualista e patrimonialista[9].
Ocorre que, mundialmente, restava cada vez mais claro que a não intervenção estatal em algumas situações privadas trazia grande desigualdade e prejuízos.
Diante das várias crises econômicas, o Estado Liberal não resistiu e abriu espaço para o Estado conhecido como “social”. Este teve origem na ânsia de proteção dos sujeitos em suas relações privadas e é baseado na justiça social e distributiva.
A transição do Estado Liberal para o Social trouxe grande repercussão para o direito civil. Este que era, anteriormente, fundado na plena liberdade e na absoluta autonomia de vontade nas relações privadas passou a se curvar para os ideais de justiça social, que estabeleciam que o Estado deveria regular a relação privada sempre que fosse necessário.
Esse movimento, dá lugar à humanização do direito civil, ao introduzir os princípios e valores sociais que garantem a proteção adequada do ser humano, rompendo, assim, com o sistema patrimonialista proveniente do liberalismo.
A solidificação desses ideais sociais no Brasil ocorreu apenas com a promulgação da Constituição Federal de 1988. O ordenamento jurídico exige do Estado, a partir de então, uma atuação positiva para atenuar as desigualdades sociais.
A autonomia da vontade começa a ser mitigada pelos princípios constitucionais que visam a justiça social. Diante dessa nova perspectiva, rompe-se a ideia do paralelismo entre Constituição e Código Civil.
Nesse diapasão, a Constituição torna-se não só a norma fundamental, mas também a norma fundamentadora de todo o ordenamento jurídico. “O respeito à Constituição, fonte suprema, implica não somente a observância de certos procedimentos para emanar a norma (infraconstitucional), mas também a necessidade de que o seu conteúdo atenda aos valores (diretrizes) presentes (e organizados) na própria Constituição”[10].
Diante da nova perspectiva, fez-se necessário uma releitura do Código Civil brasileiro de 1916 para trazer a correta interpretação da lei infraconstitucional frente a nova Carta Maior que tem como pilar a dignidade da pessoa humana.
O Código Civil, assim como todas as outras normas infraconstitucionais, começam a relacionar-se com a Constituição Federal em um verdadeiro “diálogo das fontes”[11].
A correta interpretação do Código Civil passa, portanto, por um filtro, e sua aplicação deve refletir uma postura constitucional tendo por primazia a dignidade da pessoa humana.
Daí porque falar-se em Direito Civil Constitucional – a verdadeira interação entre as fontes normativas.
Diante desses ideais, o legislador verifica a necessidade de criar um conjunto de leis civis que se coadunem melhor com a nova Constituição, tendo em vista que esta tem como pilar a dignidade da pessoa humana enquanto aquela tinha como princípio absoluto a proteção do patrimônio. Nasce, após catorze anos de promulgação da Carta Magna, o novo Código Civil.
Entretanto, por ser um projeto produzido em 1975, época em que os valores sociais ainda mostravam-se tímidos, o novo Código Civil de 2002 acaba por mesclar diretrizes já superadas com diretrizes modernas. Um grande exemplo de valor já superado e que o legislador de 2002 perdeu a chance de rechaçar do ordenamento jurídico é a separação legal de bens para o maior de setenta anos, regra que visa tão somente a proteção do patrimônio - deixando claro resquício do Estado Liberal que em nada se coaduna com o Estado Social e com o Estado Constitucional de Direito.
1.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS: DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA LIBERDADE NO ÂMBITO FAMILIAR
Com o advento do Estado Social e com a promulgação da Constituição Federal de 1988, titulada pelos parlamentares como “constituição cidadã”[12], a República Federativa definiu que a base para todo ordenamento seria a proteção da pessoa humana.
Mais que um princípio a dignidade da pessoa humana passa a ser considerada por muitos como um meta-princípio que dissemina valores a serem observados na aplicação e interpretação de todos os outros direitos fundamentais [13].
Ingo Sarlet, assim, esclarece que a dignidade da pessoa humana possui tanto uma função integradora quanto hermenêutica tendo em vista que o meta-princípio “serviria de parâmetro para a aplicação, interpretação e integração não apenas dos direitos fundamentais e das demais normas constitucionais, mas de todo ordenamento jurídico”[14].
Diante dessas características, alguns doutrinadores estabelecem que para aferição da dignidade humana certos parâmetros mínimos devem ser observados para a adequada consecução normativa do princípio. São eles: 1) Não Instrumentalização: o ser humano não pode ser tratado como um meio para a obtenção de um determinado fim. O ser humano deve ser “um fim em si mesmo”[15]; 2) Autonomia Existencial: as pessoas tem liberdade para viver suas vidas de acordo com suas escolhas. Essa característica protege a liberdade existencial sem a qual o princípio da dignidade jamais se concretizaria. Bernardo Gonçalves, citando Dworkin, explica: “dignidade é autonomia, que somente se satisfaz através do uso das liberdades definidas pelo Direito. Desse modo, isometricamente, igualdade e liberdade se convergem para afirmar que cada cidadão tem direitos iguais à liberdade de ação juridicamente autorizada ou não proibidas, para que cada um, de acordo com sua própria concepção de vida-boa, persiga tal ideal”[16]; 3) Direito ao Mínimo Existencial: derivado do constitucionalismo social, o direito ao mínimo seriam as condições materiais básicas para uma vida digna.
A Constituição Federal ao estabelecer o princípio da dignidade humana como fundamento da República[17] consagrou o ser humano como o centro do sistema jurídico em torno do qual giram todos os outros institutos[18]. Dessa maneira, as normas de direito civil, bem como dos outros ramos do direito, devem ser voltadas para a tutela do ser humano.
Com o intuito de proteger a dignidade da pessoa humana e estabelecer, de certa forma, um “mínimo existencial” também no âmbito familiar, o legislador dispôs de forma clara, no parágrafo 7º do artigo 226 da Constituição Federal de 1988, que o planejamento familiar é de livre decisão do casal e que o Estado devia propiciar os recursos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
O advento da nova norma constitucional passa a proteger a ideia de que cada pessoa é autônoma e deve constituir-se segundo sua própria decisão. Diante da nova perspectiva, a família que outrora era calcada no desenvolvimento patrimonial passa a ter seu alicerce no desenvolvimento do ser humano que somente será alcançado se a pessoa puder se desenvolver livremente. Nesse sentindo, Paulo Mota declara:
A protecção da personalidade pressupõe a liberdade para o seu desenvolvimento segundo o próprio projecto, situação e possibilidade, independentemente de vinculação a um determinado modelo de personalidade, ligado a uma determinada mundividência, credo ou religião que não seja resultante da própria pessoa como ente dotado de capacidade de escolha[19].
De outra maneira não poderia ser. A família como base da sociedade[20] passa a ser pautada na liberdade que tem seus membros em construir um núcleo familiar, baseado no afeto, conforme seus objetivos e perspectivas, sendo incoerente bem como inconstitucional qualquer intervenção estatal que restrinja essa autonomia desde o advento da Constituição Federal de 1988. A espontaneidade, como explica Walsir Júnior, é a “propriedade nuclear” da dignidade da pessoa humana[21].
No entanto, como será exposto a seguir, a história do direito de família nem sempre teve a dignidade da pessoa humana e a liberdade de escolha como direitos assegurados e protegidos pelo Estado.
Esclarece-se, por fim, que os movimentos históricos sempre influenciaram a entidade familiar e que até os dias atuais faz-se necessária uma constante releitura dos núcleos familiares para preservar, dia pós dia, a dignidade da pessoa humana de acordo com os novos anseios, que advêm da evolução dos valores e costumes presentes em cada geração, mantendo, assim, sempre preservado o principal pilar da Carta Magna.
2 DIREITO DE FAMÍLIA
2.1 DA EVOLUÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA NO BRASIL
Como dito acima, os movimentos históricos sempre determinaram e influenciaram os inúmeros núcleos familiares que, ainda, estão em progressiva evolução. A família acompanha o progresso dos valores e costumes de cada época e acaba por ser delineada segundo esses parâmetros em cada etapa da história.
Para analisar a atual codificação em relação ao direito de família, faz-se necessário um prévio e sucinto estudo acerca do conceito de família e suas características no decorrer dos anos.
Na Roma antiga, o conceito de família estava intimamente ligado ao casamento e este, por sua vez, passava, necessariamente, por uma solenidade religiosa. Dessa maneira, torna-se evidente a influência que a Igreja tinha sobre as normas jurídicas, muitas vezes umas se confundindo com as outras.
Família era, portanto, uma associação religiosa que tinha como principal intuito a construção de uma descendência capaz de adorar seus antepassados.
Nessa época, exaltar os mortos era a maneira de demonstrar o valor destes. Essa valoração não era feita pelo o que o sujeito havia feito em vida, e sim pelo culto prestado a ele por seus familiares pós-morte[22].
Com o avanço dos costumes, mudanças de pensamentos, influenciados pela era das luzes, e com as inúmeras revoluções, a sistemática jurídica torna-se desatualizada e clama por inovação.
Em meio a essa nova ordem nasce o Código Napoleão, exemplo mundial da “constituição” privada, baseado em ideias do novo Estado Liberal, tendo como principal característica a abstenção do Estado em relação à vida privada.
Os burgueses, classe propulsora das reinvindicações da época, ansiavam pela sua liberdade econômica que, diante da estrutura monárquica, nada conseguiam.
Dessa maneira, o Código Napoleão traz como seu pilar a liberdade para que os indivíduos pudessem desenvolver suas atividades econômicas sem nenhuma influencia estatal.
Nota-se que todo o ordenamento era pautado para a efetivação da circulação patrimonial e, sob essa perspectiva, a aquisição da propriedade privada tornou-se o grande objetivo da sociedade.
Diante dessa cultura patrimonialista, nem a estrutura familiar ficou imune. Os códigos civis “editados sob inspiração do individualismo liberal alçaram a propriedade e os interesses patrimoniais a pressuposto de todos os direitos privados, inclusive o direito de família”[23].
A família que, anteriormente, era constituída para cultuar os mortos, agora passava a ser constituída para que os indivíduos a ela pertencentes conseguissem reunir um bom patrimônio.
Foi com esses ideais patrimonialistas que o Código Civil de 1916 foi editado. Entretanto, é importante destacar que mesmo com o advento dessas novas primazias, a influência da Igreja permanecia no ordenamento jurídico mundial. Tanto no Código Napoleônico quanto no Código Civil de 1916, somente podia ser considerada família aquela decorrente do matrimônio. Ou seja, o casamento era o único legítimo a instituir a família. Segundo Walsir Júnior “aquele era encarado como o assento básico desta”[24]. Dessa forma, qualquer outra modalidade de família que não fosse decorrente do matrimônio era considerada ilegítima e não merecia a tutela jurídica.
A família permanecia com intuito básico de procriação, exatamente como ocorria na cidade antiga[25]. Entretanto, o objetivo principal daquela passa a ser a necessidade de se obter uma prole para o trabalho com fito de conquista patrimonial. O centro gravitacional da família não era o sujeito, e sim o patrimônio[26].
Em síntese, o bem mais precioso da época era o patrimônio, e a família codicística - aquela reconhecida pela lei - era necessariamente a decorrente do matrimônio.
Com o advento do Estado Social, o patrimônio perde espaço para o sujeito. Este torna-se o centro de todo ordenamento jurídico e o princípio da dignidade da pessoa humana ganha enorme destaque mundial.
No Brasil, grandes mudanças vinham tecendo as iminentes transformações jurídicas. O Código Civil de 1916 não trazia regras jurídicas condizentes com a realidade pátria. Em verdade, o Direito se dissonava quase que por completo dos fatos sociais presentes naquela época.
As famílias brasileiras instituídas pelo casamento eram somente aquelas compostas por indivíduos pertencentes à alta classe do país. O matrimônio, que sempre teve custo elevado, não era a realidade fática da maior parcela da população brasileira[27]. Diante desse fato, essas famílias, que não eram consideradas famílias legítimas, não tinham nenhum amparo jurídico.
O Direito, ao invés de se conformar com o fatos sociais, pretendia conformá-los.
Dessa maneira, o sistema jurídico vinha perdendo força e era cada vez mais ineficaz, tendo em vista que não considerava a sociedade à qual se destinava[28].
Frente às mudanças que o Brasil vinha sofrendo em sua cultura e economia, com destaque para o ano de 1930 - tido para muitos como o marco em que a indústria se torna a principal atividade nacional - o legislador se vê obrigado a editar novas normas para coadunar a realidade social com a jurídica. Inúmeras leis esparsas, então, são promulgadas com o intuito de tornar legítimas determinadas situações. São exemplos no direito civil: a Lei nº 833 que passou a admitir como legítimos os filhos havidos fora do casamento; a Lei nº 4.121, conhecida como Estatuto da Mulher Casada; e, a principal inovação jurídica que vinha abalar por vez o matrimônio, a Lei do Divórcio.
Em face da evolução cultural e costumeira, a família não era mais uma instituição voltada para o patrimônio conforme estabelecia o, então vigente, Código Civil de 1916. A família passava a ter novas vertentes e começava a ser considerada como entidade autônoma ao matrimônio[29]. Seu principal objetivo torna-se a realização pessoal afetiva de cada ente nela inserida e não mais a consecução de um fim.
Perante tanta inadequação da lei vigente com a realidade fática, outra solução não existia a não ser uma ruptura total com o antigo ordenamento jurídico. Assim, nasce a Constituição Federal de 1988, que traz como pilar de toda sua estrutura o ser humano e, com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana, o coloca como o bem jurídico principal do ordenamento merecendo a mais efetiva tutela.
Retira-se a ideia de que os indivíduos da família a compõem unicamente para perseguir um fim, como por exemplo a construção de um patrimônio.
A família passa a ter um conceito funcionalizado, autônomo do matrimônio, onde seus indivíduos procuram a realização e crescimento pessoal pautado na liberdade e afeto. A família torna-se um meio para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes.
O artigo 208 da Constituição Federal dispõe de forma clara a ruptura de pensamento quando estabelece que “a assistência à família é assegurada na pessoa de cada um dos seus integrantes”.
A família moderna “é uma família eudemonista, ou seja, voltada para a busca da felicidade”[30].
Embora a base do ordenamento jurídico brasileiro houvesse mudado, o código que regia as situações privadas continuava em vigor. Certo é que todas as leis infraconstitucionais que fossem contrárias à norma constitucional não foram recepcionadas e, dessa maneira, o direito civil encontrava-se defasado e cheio de lacunas.
O legislador, então, promulga o Novo Código Civil. A despeito de ser conhecido como “novo” em algumas partes o Código Civil de 2002 já nasce velho[31]. Isso ocorre, principalmente, por ter sido o Código Civil atual confeccionado em 1975, antes mesmo da Lei de Divórcio que fora promulgada em 1977.
Nessa época, a superação dos valores existentes ainda era tímida. Dessa maneira, o Código Civil misturou características passadas com valores contemporâneos. O legislador foi obrigado a adequar o projeto do código às novas diretrizes trazidas pela norma constitucional superior. Como consequência desses remendos, o texto civil perdeu a atualidade e por vezes cometeu inconstitucionalidades[32].
Um exemplo de patente inconstitucionalidade trazida no corpo do Código Civil de 2002 é a separação legal de bens para o maior de setenta anos, que adiante será tratada no presente estudo.
2.1.1 Regime de bens no Direito de Família norteado pelo Princípio da Liberdade
Tema que possui relevância especial no direito de família é o regime de bens do casal.
Mesmo com o advento da nova ordem constitucional em que o ser humano passa a ser o centro de todo ordenamento e o bem de maior relevância, o patrimônio e o regime de bens ainda são consequências inevitáveis do casamento ou da união[33].
Com a realização do matrimônio, a disponibilidade e administração dos bens, a propriedade, a responsabilidade de cada cônjuge, bem como os efeitos sucessórios, ficam sujeitos ao regime de bens escolhido pelos nubentes. Note-se, que sempre haverá efeito patrimonial do casamento e, dessa maneira, sempre existirá regime de bens.
O Código Civil, frente à importância que o patrimônio tem para a vida do casal, apresentou regras a serem observadas pelos nubentes quanto à propriedade, administração e disponibilidades dos bens.
A norma civil trouxe expressamente quatro modelos de regime de bens, podendo o casal escolher qualquer tipo de regime, inclusive criar um novo, segundo seu livre convencimento, para reger seu casamento.
É importante relembrar que a Constituição Federal em seu artigo 226, §7, é assente ao estabelecer que o planejamento familiar será de livre decisão do casal.
Diante da liberdade que o princípio da dignidade humana, insculpido na Carta Maior como fundamento da República, veio trazer para o Direito de Família, o casal passa a ter autonomia privada para escolher a hipótese de regime de bens trazido pelo Código Civil que melhor se amolde à sua realidade, efetivando, assim, o caráter instrumental da família, visto que a escolha da divisão patrimonial traz diferentes e importantes consequências para o casal.
Nesse sentido, o Código Civil em seu artigo 1639 assentou, também, que “é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver”[34], reafirmando que o princípio da autonomia privada preponderaria na escolha do regime de bens a ser adotado pelo casal e pautaria todo o planejamento familiar, como determinado pela Constituição Federal.
No entanto, o próprio código civil trouxe exceções à regra do livre planejamento familiar. O artigo 1641 da norma civil impôs a incomunicabilidade total dos bens a certos casamentos olvidando totalmente o princípio básico da liberdade que norteia o Direito de Família.
Esse artigo é, portanto, apenas um exemplo claro em que o legislador perdeu a oportunidade de rechaçar do ordenamento jurídico regras que, sem nenhum fundamento jurídico moderno, trazem interferências estatais no patrimônio privado do casal.
Diante dessa confusão de ideais trazidos na nova ordem civil, o legislador acabou por cometer inconstitucionalidades e desperdiçou, também, a chance de trazer inovações jurídicas que já eram fatos sociais no ano de 2002[35], como a própria guarda compartilhada[36].
2.2 DA INCONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DE SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA PARA O MAIOR DE SETENTA ANOS
Um exemplo, já citado, de patente inconstitucionalidade que o novo Código Civil trouxe em seu corpo é a norma que impõe a separação obrigatória para o maior de setenta anos.
A Constituição Federal de 1988, promulgada pelo legislador ordinário com intuito de ser igualitária, cidadã e democrática, vedou qualquer forma de discriminação em razão de idade ou sexo, trazendo, inclusive, proteção especial aos idosos, mulheres e crianças.
Entretanto, referidos pilares constitucionais foram insuficientes para suprimir da atual codificação civil regras que vão de encontro ao principal objetivo da Carta Maior: a preservação da dignidade humana.
O Código Civil de 1916, influenciado pela característica da família patrimonialista, trazia limitação à escolha do regime de bens pelos nubentes que tinham idade avançada. Nessa época, caso o noivo tivesse mais de sessenta anos ou a noiva tivesse mais de cinquenta anos, obrigatoriamente o matrimônio deveria ser regido pela separação legal de bens. Em outras palavras, havia a total incomunicabilidade de bens dos nubentes. Dessa maneira, tanto os bens conquistados na constância do casamento, quanto aqueles que os noivos traziam consigo, não seriam de forma alguma partilhados. Nesse sentido, não havia a meação nem mesmo dos bens que foram obtidos durante o matrimônio pelo esforço comum dos cônjuges, causando, inclusive, o enriquecimento ilícito de um dos nubentes.
Para fins didáticos, faz-se necessário observar o seguinte exemplo à luz do Código Civil de 1916:
João e Maria – sessenta e quarenta anos de idade respectivamente – após dez anos de relacionamento amoroso, decidiram se casar. João possuía um carro no valor de cinquenta mil reais e Maria possuía uma loja no valor de cem mil reais. Por João possuir, à época, sessenta anos de idade, o regime obrigatório de bens para o casal era o da separação total. Durante o matrimônio, o casal construiu, com esforço de ambos, uma casa que foi avaliada em quinhentos mil reais e registrada, apenas, em nome de João. Após vinte anos de relacionamento, João e Maria decidiram que não queriam mais conviver juntos e optaram pela separação. As consequências patrimoniais da separação foram: João ficou com os cinquenta mil reais de seu carro e com os quinhentos mil reais da casa adquirida no casamento. Já Maria ficou, apenas, com os cem mil de sua loja.
Analise, agora, o mesmo exemplo e suas consequências patrimoniais com a idade dos nubentes trocadas:
João e Maria – cinquenta e nove e quarenta anos de idade respectivamente – após dez anos de relacionamento amoroso, decidiram se casar. João possuía um carro no valor de cinquenta mil reais e Maria possuía uma loja no valor de cem mil reais. Por não haver nenhum impedimento legal, João e Maria decidiram adotar a comunhão parcial como regime de bens do casal. Durante o matrimônio, o casal construiu, com esforço de ambos, uma casa que foi avaliada em quinhentos mil reais e registrada, apenas, em nome de João. Após vinte anos de relacionamento, João e Maria decidiram que não queriam mais conviver juntos e optaram pela separação. As consequências patrimoniais da separação foram: João ficou com seu carro no valor de cinquenta mil reais e com duzentos e cinquenta mil reais da meação da propriedade adquirida no casamento. Já Maria ficou com sua loja no valor de cem mil reais e com mais duzentos e cinquenta mil reais da meação da propriedade.
Diante da enorme discriminação e injustiça que essa regra trazia para o ordenamento, o Supremo Tribunal Federal, no ano de 1964, optou por editar a Súmula nº 377[37] autorizando a comunhão dos bens adquiridos onerosamente durante o casamento. Dessa forma, mesmo perante a separação legal imposta pelo legislador, a Suprema Corte passou a determinar a divisão entre os cônjuges dos bens obtidos por eles ao longo do matrimônio, evitando, assim, o enriquecimento ilícito de uma das partes.
Com o advento da Suprema Norma Constitucional, a jurisprudência e doutrina passaram a entender que o artigo do Código Civil, que impunha separação legal, não havia sido recepcionado pela Constituição Federal[38].
Entendia-se, majoritariamente, que a referida diferenciação em razão da idade era inundada de preconceito e que refletia o conceito de uma época passada em que a grande preocupação do ordenamento era a defesa do patrimônio. Tal restrição passou a ser considerada como afronta ao cânone constitucional da dignidade da pessoa humana, além de afrontar os princípios da liberdade e igualdade[39].
Em 1998 o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Cezar Peluso, enquanto Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferiu uma decisão que passou a ser paradigma para o tema.
Nela, esclareceu o então Desembargador, que a norma era absurda[40] e que a mesma disseminava discriminação injusta ao diferenciar categorias de cônjuges. Alertou que o comando legal mutilava a dignidade da pessoa humana ao desconsiderar, de maneira absoluta e inconteste, o poder individual de autodeterminação do ser humano. Por fim, asseverou que a norma sacrificava “em nome de interesses sociais limitados e subalternos, o direito fundamental do cônjuge de decidir quanto à sorte de seu patrimônio disponível, que, não ofendendo direito subjetivo alheio nem a função social da propriedade, é tema pertinente ao reduto inviolável de sua consciência.
Não obstante todo entendimento jurídico, o Código Civil de 2002, surpreendentemente, olvidou de afastar de seu corpo a absurda norma. O artigo 1.641, em seu inciso II, determinava expressamente que era obrigatória a separação de bens para o maior de sessenta anos.
No ano de 2010, entretanto, a Lei nº 12.344 alterou o inciso II do artigo 1.641 do Código Civil e este passou a definir que, a partir daquele momento, a separação de bens passava a ser obrigatória quando um dos nubentes atingisse a idade de setenta anos, e não mais de sessenta.
Pelo que parece, ao insistir no erro, o legislador, ao invés de retirar do ordenamento jurídico a separação obrigatória, apenas passou a considerar que os indivíduos haviam ganhado mais dez anos de capacidade civil plena, ou seja, diante da nova norma civil, os indivíduos que atingirem sessenta anos, agora, continuam capazes de definir o destino do seu patrimônio. Entretanto, os que alcançarem setenta anos, sem nenhum fundamento teórico, passam a ser civilmente incapazes e devem, portanto, observar as imposições legais para casamento.
É importante esclarecer que o regime de bens escolhido pelo casal traz enormes consequências para a vida destes.
Ao determinar o regime de separação legal para o maior de 70 anos, o legislador visa impedir, como dito, a comunhão de bens adquiridos tanto na constância do casamento quanto aqueles que foram adquiridos anteriormente, evitando, assim, a meação até mesmo dos bens que foram obtidos durante o matrimônio pelo esforço comum dos cônjuges.
Outra profunda consequência é que a lei civil determina, em seu artigo 1.829, que no caso de sucessão, aquele que se casar sob o regime de separação legal não concorrerá, para fins de partilha de bens, com os descendentes do de cujus.
2.2.1 Argumentos Favoráveis ao Regime
Não raro é possível encontrar defensores da norma civil imposta pelo Estado aos idosos.
Pontes de Miranda assim dispõe:
[...] para evitar explorações, consistentes em levar-se ao casamento, para fins de comunhão de bens, mulheres em idade vulnerável, ou homens em fase de crise efetiva, a lei cortou cerce a possibilidade das estipulações convencionais de ordem matrimonial e exclui o regime comum. É cogente o da separação de bens[41].
No entendimento de Clóvis Beviláqua[42], as pessoas de idade avançada já passaram da época em que o matrimônio se realiza pelo amor e afeto. Segundo sua doutrina, o legislador receoso que interesses repugnantes levassem os mais velhos a casamentos injustos, colocou obstáculo a essas ganâncias por meio da separação de bens obrigatório.
No mesmo sentido, Zeno Veloso estabelece:
De nossa parte, advogamos, para o tema, uma solução intermediária. Embora reconheçamos que as pessoas de idade alta ou avançada não estão destituídas de impulsos afetivos e da possibilidade de sentirem amor, ternura, pretendendo, desinteressadamente, unir-se matrimonialmente com outrem, devemos também concordar que, na prática, será muito difícil acreditar-se que uma jovem de 18, 20 anos, esteja sinceramente apaixonada por um homem maior de 60 anos, nem muito menos, que um rapaz de 20 anos venha a sentir amor e pura ou verdadeira atração por uma senhora de mais de 50 anos. Tirando as honrosas exceções de praxe, na maioria dos casos, é razoável suspeitar-se de um casamento por interesse. [...] Achamos, porém, que a regra protetiva – o casamento sob o regime imperativo da separação – deve ser mantida. Os amores crepusculares tornam as pessoas presas fáceis de gente esperta e velhaca, que quer enriquecer por via de um casamento de conveniência, o que na linguagem popular se conhece por “golpe do baú[43].
Muito embora esse posicionamento mereça respeito, é possível assegurar que a doutrina brasileira majoritária entende ser o regime de separação legal inconstitucional. Nesse sentido, temos: Maria Berenice Dias, Cristiano Chaves, Nelson Rosenvald, Paulo Lôbo, Gustavo Tepedino, Walsir Júnior, entre outros.
2.2.2 Afronta à Carta Magna, à Convenção Americana de Direitos Humanos e ao Estatuto do Idoso
Certo é que a norma ao estabelecer a faixa etária como único fundamento à diferenciação dos cônjuges traz injustificável discriminação e afronta aos princípios básicos e fundamentais da igualdade e liberdade.
O legislador ao optar por limitar automaticamente a capacidade civil em face do avanço etário não levou em conta os aspectos subjetivos de cada ser humano.
Paulo Lins e Silva defende que tal norma acaba por tratar os “maiores de sessenta anos como verdadeiros moribundos, obrigando-os a uma forma de casamento, para dar proteção à expectativa sucessória dos eventuais descendentes”[44].
É importante notar que tal norma é um reflexo da postura patrimonialista que vem desde o Código Civil de 1916 e que não mais se coaduna com a ordem jurídica promulgada pela Constituição Federal de 1988.
Nota-se que a imposição de regime de bens diferenciado para o idoso afronta também a Convenção Americana de Direitos Humanos, tratado internacional do qual o Brasil é signatário. Ela estabelece em seu artigo 1º:
Os Estados-partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por meio de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.
Não obstante, a Lei Maior além de determinar que a dignidade da pessoa humana é o próprio fundamento do Estado, estabelece, simultaneamente, em seu artigo 230, que as pessoas idosas fazem jus, também, a uma vida digna, e que merecem toda proteção do ordenamento[45].
Diante da prioridade na defesa dos interesses dos idosos e da preocupação que o constituinte originário tinha em dar uma assistência digna ao idoso, o legislador editou, em 2003, o Estatuto do Idoso, dispondo expressamente em seu artigo 2º que “O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”.
Dessa forma, não há dúvidas que ao estipular, no Código Civil de 2002, que a separação de bens é obrigatória para o maior de setenta anos, o legislador cometeu insuperável inconstitucionalidade ao presumir que o ser humano torna-se absolutamente incapaz de dispor acerca do seu próprio patrimônio, direito esse essencialmente disponível, simplesmente por ter atingido determinada idade, ferindo, assim, não só os ditames da base do ordenamento jurídico constitucional como, também, a própria Convenção de Direitos Humanos e o Estatuto do Idoso.
CONCLUSÃO
Diante de todo o exposto, a conclusão que se deduz é clara: o inciso II do artigo 1.641 do Código Civil deve ser revogado por possuir evidente inconstitucionalidade.
Não se trata apenas de injustificável restrição ao princípio da liberdade. O Estado, ao impor tal regra, tratou o ser humano em idade avançada como se incapaz fosse.
Evidente é que a idade avançada não gera, por si só, incapacidade. Não obstante, se a preocupação é com a capacidade civil da pessoa humana, o caminho a ser seguido para verificação da ausência ou não da mesma é pelo processo legal de interdição, onde será, caso a caso, analisada a situação individual da pessoa, tendo em vista que o que se presume no ordenamento é a capacidade, e não a incapacidade do indivíduo[46].
Nesse sentindo, dispõe Maria Berenice Dias:
A limitação, além de odiosa, é inconstitucional, pois, ao se falar no estado da pessoa toda cautela é pouca. A plena capacidade é adquirida quando do implemento da maioridade e só pode ser afastada em situações extremas e por meio de processo judicial de interdição, que dispõe de rito especial (arts. 1.177 a 1.186 do CPC). É indispensável não só a realização de perícia, mas também é obrigatória audiência onde o interditando é interrogado pelo magistrado. Raros processos são revestido de tantos requisitos formais, sendo imperiosa a publicação da sentença na imprensa por três vezes. Tal rigorismo denota o extremo cuidado do legislador quando trata da capacidade da pessoa.
Diante de cultura de tratar o idoso como se incapaz fosse, Ana Carolina Brochado Teixeira e Maria de Fátima Freire Sá, também afirmam:
o princípio da autonomia privada escora-se no direito fundamental à liberdade, englobando seus mais diversos aspectos, inclusive, o de fazer escolhas no âmbito da própria vida. É exatamente essa possibilidade que deve ser efetivada para o idoso, tendo em vista que, não obstante haja previsão constitucional desse direito fundamental, jurídica e socialmente, ele é tratado como incapaz[47].
Não bastando os argumentos apresentados, Walsir Júnior traz mais uma incoerência da norma com o ordenamento jurídico. Explica o doutrinador que com setenta anos ainda é possível ser Presidente do País e Presidente do Congresso Nacional, definindo, assim, os rumos de uma nação, mas não podendo, esses mesmos idosos, decidirem sobre seu próprio regime de bens do casamento[48].
Por tudo relatado, com fundamentos na dignidade da pessoa humana, na liberdade, na igualdade, bem como na autonomia privada, princípios basilares do Estado Democrático de Direito, defende-se, neste artigo, a inconstitucionalidade do regime de separação legal para o maior de setenta anos e a sua necessária revogação.
REFERÊNCIAS
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VELOSO, Zeno. Regimes matrimoniais de bens. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.)Direito de família contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 119-120.
[1] ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUEZ JÚNIOR, Walsir Edson. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 26.
[2] CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Curso de Direito Civil: Institutos Fundamentais. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 6.
[3] ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Introdução à história do direito privado e da codificação: uma análise do novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 33.
[4] ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUEZ JÚNIOR, Walsir Edson. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 6.
[5] LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, Ano 4, n. 24, p. 136-156, jun./jul. 2004, p. 140.
[6] CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Curso de Direito Civil: Institutos Fundamentais. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 11.
[7] CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Curso de Direito Civil: Institutos Fundamentais. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 12-13.
[8] CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Curso de Direito Civil: Institutos Fundamentais. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 13.
[9] ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUEZ JÚNIOR, Walsir Edson. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 7.
[10] PERLINGIERI, Pietro. Perfis de direito civil: introdução ao direito civil constitucional. 2. ed. Tradução de Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 10.
[11] CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Curso de Direito Civil: Institutos Fundamentais. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 13.
[12] CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Curso de Direito Civil: Institutos Fundamentais. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 19.
[13] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. Bahia: JusPODIVM, 2013. p. 360.
[14] SARLET, Ingo, Dignidade da Pessoa Humana e novos Direitos da Constituição Federal de 1988. 2005. p. 106.
[15] VIEIRA, Oscar Vilhena, Direitos fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF, p. 67.
[16] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. Bahia: JusPODIVM, 2013. p. 361.
[17] Dispõe a Constituição Federal em seu artigo 1º caput e inciso III: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: dignidade da pessoa humana.
[18] CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Curso de Direito Civil: Institutos Fundamentais. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 47
[19] PINTO, Paulo Mota. O direito ao livre desenvolvimento da personalidade. In. Portugal-Brasil ANO 2000, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p.188.
[20] Conforme caput do artigo 226 da Constituição Federal de 1988 que dispõe: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”.
[21] ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUEZ JÚNIOR, Walsir Edson. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 40.
[22] ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUEZ JÚNIOR, Walsir Edson. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 3.
[23] LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, Ano 4, n. 24, p. 136-156, jun./jul. 2004, p. 145.
[24] ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUEZ JÚNIOR, Walsir Edson. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 7.
[25] Roma.
[26] MATOS, Ana Carla Harmatiuk. As famílias não fundadas no casamento e a condição feminina. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.16.
[27] ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUEZ JÚNIOR, Walsir Edson. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 7.
[28] CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p.122.
[29] LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, Ano 4, n. 24, p. 136-156, jun./jul. 2004, p. 163.
[30] ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUEZ JÚNIOR, Walsir Edson. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 20.
[31] DIAS, Maria Berenice. Art. 1641: Inconstitucionais limitações ao direito de amar. Disponível em:http://www.mariaberenice.com.br/uploads/1__art._1641__inconstitucionais_limita%E7%F5es_ao_direito_de_amar.pdf.
[32] DIAS, Maria Berenice. Art. 1641: Inconstitucionais limitações ao direito de amar. Disponível em:http://www.mariaberenice.com.br/uploads/1__art._1641__inconstitucionais_limita%E7%F5es_ao_direito_de_amar.pdf.
[33] ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUEZ JÚNIOR, Walsir Edson. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 158.
[34] BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil.
[35] DIAS, Maria Berenice. Art. 1641: Inconstitucionais limitações ao direito de amar. Disponível em:http://www.mariaberenice.com.br/uploads/1__art._1641__inconstitucionais_limita%E7%F5es_ao_direito_de_amar.pdf.
[36] DIAS, Maria Berenice. Art. 1641: Inconstitucionais limitações ao direito de amar. Disponível em:http://www.mariaberenice.com.br/uploads/1__art._1641__inconstitucionais_limita%E7%F5es_ao_direito_de_amar.pdf.
[37] Súmula 377 do STF: No regime de separação legal de bens comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”. Essa súmula do Egrégio Supremo Tribunal Federal espelha o entendimento de que comunicam-se os bens adquiridos na constância do casamento, evitando, assim, um possível enriquecimento ilícito.
[38](…) REGIME DE BENS. Não vigora a restrição imposta no inciso II do art, 258 do CC, ante o atual sistema jurídico que tutela dignidade da pessoa humana como cânone maior da Constituição Federal, revelando-se de todo descabida a presunção de incapacidade por complemento de idade. Apelação provida (Apelação Cível nº 70002243046, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Relator: Maria Berenice Dias, julgado em 11/04/2001).
[39] DIAS, Maria Berenice. Art. 1641: Inconstitucionais limitações ao direito de amar. Disponível em: http://www.mariaberenice.com.br/uploads/1__art._1641__inconstitucionais_limita%E7%F5es_ao_direito_de_amar.pdf.
[40] Apelação Cível nº 007.512-4/2-00, 2ª CDPriv., Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator Juiz Cezar Peluso, julgado em 18.08.1998. In: Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: IBDFAM, n. 1, p.98-103, abr./jun. 1999.
[41] MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito de família: direito matrimonial. Campinas: Bookseller, 2001, v.2, p. 219.
[42] BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil commentado. 7. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1945, p. 169, v. II.
[43] VELOSO, Zeno. Regimes matrimoniais de bens. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.)Direito de família contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 119-120.
[44] LINS E SILVA, Paulo. O casamento como contrato de adesão e o regime legal. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família e cidadania. O novo CCB e a Vacatio Legis. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 359.
[45] BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Artigo 230: “A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”.
[46] ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUEZ JÚNIOR, Walsir Edson. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 172.
[47] TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Envelhecendo com autonomia. In: FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coord.). Direito civil: atualidades II: da autonomia privada nas situações jurídicas patrimoniais e existenciais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 77-78.
[48] ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUEZ JÚNIOR, Walsir Edson. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 173.
Advogada. Especialista em Ordem Jurídica e Ministério Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT). Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília - UNICEUB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Paula Oliveira. O regime de separação de bens obrigatória para a pessoa maior de setenta anos: uma reflexão sobre sua inconstitucionalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 fev 2017, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49107/o-regime-de-separacao-de-bens-obrigatoria-para-a-pessoa-maior-de-setenta-anos-uma-reflexao-sobre-sua-inconstitucionalidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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