RESUMO: O presente artigo analisa a sistemática dos pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas – englobando a federal, as estaduais e as municipais, numa perspectiva ora generalizada, ora individualizada – sob o regime dos precatórios, em cotejo com os direitos fundamentais, no intuito de aferir a harmonização entre aqueles. Examinar-se-á o regime geral e especial para pagamento de crédito de precatórios, e as posteriores alterações promovidas pelas ECs ns. 20/98, 30/2000, 37/2002, e 62/2009, em paralelo com a linha evolutiva dos direitos fundamentais e sua projeção no ordenamento jurídico brasileiro, explícita e implicitamente. Propõe-se, ademais, a questionar a constitucionalidade das alterações ao regime dos precatórios instituído originalmente pelo art. 100 da CRFB/88, pela perspectiva dos direitos fundamentais. A pesquisa possui natureza jurídico-doutrinária, de caráter bibliográfico, uma vez que o objeto de estudo é retirado da própria conjuntura estrutural do ordenamento jurídico. Inter-relacionando doutrina e jurisprudência, através perspectiva proposta pelas leis vigentes, ponderar-se-á a respeito da solução da questão de pesquisa proposta, a fim de melhor preservar a funcionalidade do Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: precatórios, constitucionalidade, direitos fundamentais.
INTRODUÇÃO
Introduzido no âmbito constitucional em 1934, os precatórios correspondem, segundo Carvalho Filho (2012), a verdadeiras requisições do Judiciário ao Executivo, sendo uma prerrogativa da Fazenda Pública em substituição ao procedimento de execução judicial, o que se justifica pela sua atuação no interesse da coletividade e sujeição ao regime de direito público.
Em que se pese, em certos casos, inexistir verbas suficientes para os entes públicos adimplirem suas obrigações – o que contextualiza uma vertente não pormenorizada pelo presente trabalho –, o regime de precatórios é largamente utilizado como legítimo instrumento de moratória positivado através de emendas à Constituição, numa evidente violação dos direitos fundamentais.
É injustificável a atuação do legislador, objetivando alteração de situações jurídicas pacificadas pela definitividade da coisa julgada, instituto fundamental à segurança jurídica. A espera de longos anos pelo recebimento do crédito que os indivíduos têm perante a Fazenda já representa, por si só, clara afronta aos princípios da razoável duração do processo – que se projeta tanto no âmbito judicial, quando administrativo – e da dignidade da pessoa humana, levando-se em conta que muitos dos débitos têm, inclusive, natureza alimentícia.
Nesse contexto, o presente artigo propõe-se a analisar a sistemática dos pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas sob o regime dos precatórios em cotejo com os direitos fundamentais, no intuito de aferir a harmonização entre aqueles, a fim de buscar a unidade da Constituição e a estabilização do ordenamento jurídico pátrio.
1. O REGIME JURÍDICO DE DIREITO PÚBLICO.
É de conhecimento amplo que a Administração deve atuar sempre velando pelos interesses da sociedade, pautando suas ações de acordo com as necessidades coletivas. Importa salientar, contudo, que muito embora vise ao interesse público, não pode o administrador dele dispor, vez que não lhe cabe gozar de livre disposição dos bens que administra já que o titular desses bens é o povo, de quem emana o poder que constitui e fundamenta a República.
Nesse diapasão, pode-se, inclusive, mencionar a necessidade de obediência ao princípio da legalidade que rege toda a atuação da Administração Pública de uma maneira geral, preconizando que o administrador deva pautar sua conduta de acordo com os ditames legais. Isso significa que, se a finalidade pública é o interesse do povo, o administrador não pode agir em desconformidade com ele, sob pena de incorrer em desvio de função pública.
Os bens públicos, como se sabe, submetem-se ao regime jurídico de direito público, distanciando-se do sistema que rege os bens particulares. Nesse sentido, possuem determinadas características específicas advindas do regime jurídico ao qual se submetem, quais sejam: impenhorabilidade, imprescritibilidade, alienabilidade condicionada e não onerabilidade.
O patrimônio público - no que se incluem os respectivos bens supra mencionados - está atrelado ao interesse público. Diante disso, torna-se perfeitamente concebível a existência das características específicas dos bens públicos, estes conceituados pelo Código Civil vigente como todos aqueles que, de qualquer natureza e a qualquer título, pertençam às pessoas jurídicas de direito público, sejam elas federativas, como a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, sejam da Administração descentralizada, como as autarquias, nestas incluindo-se as fundações de direito público e as associações públicas.
A obediência ao princípio da legalidade, dentre outros, e as próprias características específicas dos bens públicos acima aduzidas refletem especificidades inerentes à Administração Pública. Os atos administrativos são sujeitos a regime jurídico de direito público e, de acordo com José Cretella Junior, citado por Carvalho Filho:
“(...) na medida em que tais atos provêm de agentes da Administração e se vocacionam ao atendimento do interesse público, não podem ser inteiramente regulados pelo direito privado, este apropriado para os atos jurídicos privados, cujo interesse prevalente é o particular”. (CRETELLA, 1986, p. 218, apud FILHO, 2012, p. 100).
2. O INTERESSE PÚBLICO: A SUPREMACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.
É recorrente na doutrina o entendimento de que o interesse público é indissociável do interesse privado, devendo-se entender que o interesse público de que se trata é aquele classificado como primário, relacionado à própria necessidade de satisfação das necessidades coletivas, dentre as quais aponta Barroso (2007) a justiça, segurança e bem-estar social.
Pode-se dizer que a concepção absoluta do poder do Estado vem sendo paulatinamente reduzida, mostrando-se hoje enfraquecida a dicotomia entre o “público x privado”. Se antes o interesse público deveria sempre prevalecer diante de qualquer situação e sob qualquer circunstância, hoje parcela doutrina já propõe a releitura da supremacia do interesse público.
A par disso, Daniel Sarmento atenta:
“a desvalorização total dos interesses públicos diante dos particulares pode conduzir à anarquia e ao caos geral, inviabilizando qualquer possibilidade de regulação coativa da vida humana em comum” (2007, p. 28).
Segundo doutrina de Raquel de Carvalho (2008), se por um lado o interesse público é indisponível e consubstanciado em um princípio do regime jurídico administrativo, por outro, embora não seja a alternativa primeira, pode ser que, em dada realidade, abdicar de determinada vantagem seja a única maneira para proteger-se o interesse público primário. Em síntese, entende-se atualmente que a supremacia do interesse público sobre o interesse privado é, antes de tudo, supremacia dos direitos fundamentais. Segundo afirma:
“É certo que esta supremacia não autoriza a supressão ou comprometimento excessivo dos interesses particulares. Como leciona Marçal Justen Filho, o Estado não existe contra o particular, mas para o particular. Mas, além disso, a supremacia do interesse público não conduz à supressão da pluralidade de interesses jurídicos tuteláveis” (JUSTEN FILHO, 1995, p. 52, apud CARVALHO, 2008, p. 30).
Revela-se pertinente acrescentar que a atuação da Administração sob o regime jurídico administrativo, isto é, de direito público, consiste num binômio expresso através das prerrogativas e sujeições, consistindo as primeiras em privilégios atribuídos à Administração, diante da supremacia do interesse público - genericamente concebida - sobre o privado, e as segundas em restrições impostas à Administração em virtude da indisponibilidade do interesse público. Referido interesse, segundo a doutrina de Celso Antonio Bandeira de Melo (2005), corresponde àquele interesse dos indivíduos vistos como membros de uma coletividade, o que significa dizer que o interesse da coletividade seria composto pelos interesses individuais.
Diante dessa breve introdução, pode-se sintetizar que o agente administrativo, ao praticar atos administrativos no exercício de função pública, o faz sem se dissociar da vontade administrativa que emana de lei e tem o fim de atender ao interesse público – indisponível. A supremacia do interesse público, conforme acima mencionado importa, na verdade, em supremacia dos direitos fundamentais, sendo a dignidade da pessoa humana seu principal sustentáculo.
3. DOS PRECATÓRIOS.
Diante do exposto, à luz do princípio da indisponibilidade, pode-se afirmar que tanto o interesse quanto os bens públicos não pertencem à Administração ou aos seus agentes. Tal qual ensina Carvalho Filho (2012, p. 34) “cabe-lhes apenas geri-los, conservá-los e por eles velar em prol da coletividade, esta sim a verdadeira titular dos direitos e interesses públicos”.
Atuando em nome do povo, a Administração não pode alienar referidos bens da de forma livre ou ilimitada: os bens públicos só podem ser alienados de acordo com as prescrições legais, pois, se por um lado são afetados ao interesse público, por outro deve-se obediência ao princípio da legalidade. Nessa perspectiva, não seria possível também dispor do patrimônio público de forma discricionária diante de uma eventual condenação judicial transitada em julgado. Faz-se necessário, in casu, seguir o rito próprio dos precatórios judiciais.
A necessidade de se executar através do mecanismo próprio preconizado para as execuções contra à Fazenda Pública dá-se em razão da importância de se preservar o interesse público em face de direitos individuais: o fato de um particular executar uma grande quantia individualmente e através do procedimento comum de execução poderia colocar em risco a prestação de serviços ou implementação de políticas públicas pela Administração para toda a coletividade.
Sobre isso, assevera Leonardo Carneiro da Cunha, in verbis:
“Os bens públicos são revestidos dos atributos da inalienabilidade e impenhorabilidade, motivo pelo qual se revela inoperante, frente à Fazenda Pública, a regra de responsabilidade patrimonial insculpida no art. 591 do CPC. Desse modo, a execução por quantia certa contra a Fazenda Pública deve revestir-se de matiz especial, não percorrendo a senda da penhora, nem da apropriação ou expropriação de bens para alienação judicial, a fim de satisfazer o crédito executado” (2011, p. 282).
Seguindo o raciocínio, afirma Didier:
“Qualquer crédito, independentemente de sua natureza, está sujeito ao precatório. A única ressalva que existe, atualmente, se relaciona com o valor: os créditos de pequeno valor não se sujeitam ao precatório” (2014, p. 722).
Previsto inicialmente no art. 100 da Constituição Federal e disciplinado no Código de Processo Civil no art. 130, a matéria foi alterada pelas Emendas Constitucionais ns. 20/98, que modificou o art. 100 da CRFB/88; 30/2000, que também modificou o art. 100 da CRFB/88 e acrescentou o art. 78 ao ADCT; 37/2007, modificando mais uma vez o art. 100 da CRFB/88 e acrescentando os arts. 86 e 87 ao ADCT; e, por fim, pela EC n. 62/2009, que, além de modificar o art. 100 da CRFB/88, acrescentou o art. 97 ao ADCT.
Acerca do que dispõe o CPC, Humberto Theodoro Júnior leciona que este prevê, ipsis litteris:
“[...] um procedimento especial para as execuções por quantia certa contra a Fazenda Pública, o qual não tem a natureza própria de execução forçada, visto que se faz sem penhora e arrematação, vale dizer, sem expropriação ou transferência forçada de bens. Realiza-se por meio de simples requisição de pagamento, feita entre o Poder Judiciário e Poder Executivo, conforme dispõem os arts. 730 e 731 do Código de Processo Civil”. (2010, p. 261).
Preconiza o art. 100 da CRFB/88 que os pagamentos devidos pelas Fazendas públicas Federal, Estadual, Distrital e Municipal, em virtude de sentença judiciária, serão feitos – seguindo-se a devida ordem cronológica – mediante a apresentação dos precatórios.
De acordo com a legislação constitucional, é proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para o fim de pagamento mediante precatórios, bem como a expedição de precatórios suplementares ou complementares de valor pago (caput do art. 100 da CRFB/88). Também é vedado o fracionamento, repartição ou quebra do valor da execução para fins de enquadramento de parcela do total em requisição de pequeno valor, cujo pagamento segue um rito diferenciado (§8º do art. 100 da CRFB/88).
O STF, contudo, já se posicionou no sentido de não violar o art. 100, §4º (agora §8º, com a EC n. 62/2009), da CF (...) o fracionamento do valor da execução em parcelas controversa e incontroversa sem que isso implique alteração do regime de pagamento, que é definido pelo valor integral da obrigação. (...) Asseverou-se que a vedação prevista no §4º (§8º, acrescente-se) do art. 100, da CF, não teria ocorrido no caso em análise e que a obrigatoriedade de sentença transitada em julgado (CF, art. 100, §1º - §5º com a EC n. 62/2009) fora observada, uma vez que da parte incontroversa não cuidará a sentença dos embargos à execução, sendo, assim, possível a expedição de dois precatórios, um relativo à parte incontroversa e outro, posterior, quando for definido o valor referente à parte controversa[1].
A verba necessária ao pagamento dos débitos advindos de sentenças transitadas em julgado – constantes de precatórios judiciais – deve ser incluída no orçamento das entidades de direito público até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, sendo os respectivos valores atualizados monetariamente (§5º do art. 100 da CRFB/88).
Cabe ressaltar que mesmo os créditos de natureza alimentar estão sujeitos ao regime ora analisado. Apesar de não se submeterem a ordem cronológica de pagamento dos precatórios gerais, submetem-se a ordem cronológica de crédito de natureza alimentar (sistemática da preferência), tendo essa segunda lista preferência sobre a primeira dos precatórios gerais. Submetem-se, também, a uma lista preferencial de pagamento os débitos de natureza alimentar cujos titulares tenham sessenta anos ou mais na data de expedição do precatório, ou sejam portadores de doença grave na forma da lei (sistemática da superpreferência).
Por fim, não se submetem ao regime dos precatórios os pagamentos de obrigações definidas em leis como de pequeno valor, conhecidos como RPV – requisições de pequeno valor (§3º do art. 100 da CRFB/88). No âmbito federal, a Lei 10.259/2001 que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais na esfera da justiça federal, definiu obrigação de pequeno valor de acordo com os artigos colacionados a seguir:
Art. 17. Tratando-se de obrigação de pagar quantia certa, após o trânsito em julgado da decisão, o pagamento será efetuado no prazo de sessenta dias, contados da entrega da requisição, por ordem do Juiz, à autoridade citada para a causa, na agência mais próxima da Caixa Econômica Federal ou do Banco do Brasil, independentemente de precatório.
§ 1o Para os efeitos do § 3o do art. 100 da Constituição Federal, as obrigações ali definidas como de pequeno valor, a serem pagas independentemente de precatório, terão como limite o mesmo valor estabelecido nesta Lei para a competência do Juizado Especial Federal Cível (art. 3o, caput).
Por sua vez, o supra mencionado artigo 3º assim dispõe:
Art. 3o Compete ao Juizado Especial Federal Cível processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como executar as suas sentenças.
Portanto, para a Fazenda Federal fixou-se o parâmetro do “pequeno valor” o valor de 60 salários mínimos. Já no que tange ao limite para os Estados, Distrito Federal e Municípios, assim como prevê o art. 87 do ADCT, até que se dê a publicação das leis definindo o conceito de “obrigação de pequeno valor”, devem ser considerados os valores de 40 salários mínimos para os Estados e Distrito Federal, e de 30 salários mínimos para os Municípios, conforme o §3º do art. 13 da Lei n. 12.153/2009.
4. DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.
Gilmar Mendes afirma:
“O avanço que o direito constitucional apresenta hoje é resultado, em boa medida, da afirmação dos direitos fundamentais como núcleo da proteção da dignidade da pessoa e da visão de que a Constituição é o local adequado para positivar normas asseguradoras dessas pretensões”. (2010, p. 307).
Como se sabe, a positivação dos direitos fundamentais é resultado de um longo processo histórico, cujas raízes podem ser vislumbradas com a sedimentação do cristianismo, responsável pela difusão da ideia de que a dignidade do homem necessita de proteção especial. Robert Alexy (2005, p. 32), por exemplo, contextualiza a declaração de igualdade em São Paulo: “não há judeu nem grego, não há varão nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus”.
Muito embora o reconhecimento dos direitos fundamentais evidencie-se a partir das primeiras Constituições escritas, como consequência do pensamento liberal e das teorias contratualistas do século XVII e XVIII, acontecimentos anteriores tiveram importância ímpar no desenvolvimento e maturação das ideias, dentre os quais se cita a elaboração da Magna Carta de 1215, que limitou a atuação do Estado no campo tributário em prol da nobreza. Diante de sua importância, faz-se necessária a menção, também, a Paz de Westfália (1648), o Habeas Corpus Act (1679) e ao Bill of Rights (1688).
As teorias contratualistas influenciaram de modo significativo as declarações de direitos instituídas a partir da Revolução Francesa em 1789, defendendo que, por derivarem da própria natureza humana, certos direitos são preexistentes à própria concepção de Estado.
Nesse mesmo contexto, a Declaração de Direitos da Virgínia, de 1776, preconizava em seu o art. 1º que todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes, possuindo determinados direitos inatos, dos quais não se desfazem ao viver em sociedade[2].
Na concepção de Gilmar Mendes:
“Os direitos fundamentais assumem posição de definitivo realce na sociedade quando se inverte a tradicional relação entre Estado e indivíduo e se reconhece que o indivíduo tem, primeiro, direitos, e, depois, deveres perante o Estado, e que os direitos que o Estado tem em relação ao indivíduo se ordenam ao objetivo de melhor cuidar das necessidades dos cidadãos” (2010, p. 309).
A doutrina costuma classificar os direitos fundamentais em sua evolução histórica em dimensões - nomenclatura mais contemporânea - justamente, segundo Pedro Lenza (2014, p. 1056), “por entender que uma nova “dimensão” não abandonaria as conquistas da “dimensão anterior”.
Assim sendo, os direitos fundamentais de 1ª dimensão seriam aqueles aduzidos pelas Revoluções americana e francesa do século XVIII, relacionados principalmente às liberdades públicas e direitos políticos. Possuem pretensão universalista, de maneira abstrata e sem maiores pretensões sociais, sob a perspectiva de um Estado abstencionista – que, posteriormente, mostrou-se deficitário por não corresponder às demandas da sociedade. Segundo a doutrina de Bonavides, ipsis litteris, tais direitos correspondem a:
“Faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado” (2010, p. 563-564).
Os direitos fundamentais de 2ª dimensão, por sua vez, surgiram em resposta ao papel deficitário do Estado visualizado a partir dos processos de industrialização, intensificados com a Revolução Industrial europeia no século XIX. As péssimas condições de trabalho associadas aos déficits estruturais compreendidos no processo de modernização geraram o aumento da desigualdade social, tendo eclodido movimentos como o cartista e a Comuna de Paris, reivindicadores de direitos trabalhistas e seguros sociais. Através disso, os Estados passaram a positivar direitos sociais, coletivos, culturais e econômicos, sendo os documentos mais relevantes representativos do período a Constituição do México (1917), a de Weimar (1919) e o Tratado de Versalhes (1919). Sobre esses direitos, Bonavides constata, ipsis litteris:
“(...) passaram primeiro por um ciclo de baixa normatividade ou tiveram eficácia duvidosa, em virtude de sua própria natureza de direitos que exigem do Estado determinadas prestações materiais nem sempre resgatáveis por exiguidade, carência ou limitação essencial de meios e recursos. De juridicidade questionada nesta fase, foram eles remetidos à chamada esfera programática, em virtude de não conterem para sua concretização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos da liberdade” (Revista latino-americana de estudos constitucionais. Número 2. Julho/dezembro de 2003. Vol. 3. 14 capítulo. P. 353. Livraria Del Rey).
É o que hoje se conhece por reserva do possível, que preconiza que a obrigação impossível não poderá ser exigida diante da escassez de recursos por parte do Estado, o que, contudo, não deve ser oposto à efetivação dos Direitos Fundamentais (desde que a insuficiência orçamentária não seja real).
Os direitos fundamentais de 3ª dimensão refletem as mudanças ocorridas na sociedade internacional contemporânea, isto é, as intensas trocas de informação, o desenvolvimento tecnológico e científico. Novas preocupações sociais são identificadas, e junto a elas a necessidade de se proverem medidas de proteção ao meio ambiente, o que faz com que os direitos relacionados a essa dimensão sejam considerados como transindividuais, destinados à proteção do ser humano com um alto grau de universalidade.
Por fim, e de acordo com a melhor doutrina de Norberto Bobbio (1992), os direitos fundamentais de 4ª geração são aqueles relacionados aos avanços no campo da engenharia genética, enquanto que Bonavides (2010), por sua vez, leciona que seriam aqueles derivados da globalização política, dentre os quais pode-se citar a democracia e o pluralismo[3].
5. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM CHOQUE: O REGIME DOS PRECATÓRIOS E AS ALTERAÇÕES PROPOSTAS PELAS ECS NS. 30/2000, 62/2009.
De acordo com o art. 5º, §1º da CRFB/88, as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Isso significa dizer que as normas constitucionais estão aptas à sua pronta aplicação pelos juízes, por possuírem todos os meios e elementos necessários à sua incidência. É irrelevante, portanto, a atuação do legislador infraconstitucional para que tais normas tenham sua concretização efetivada.
O que acontece, tal qual oportunamente tratado por José Afonso da Silva (2012), é que determinadas normas são passíveis de futura restrição pela lei infraconstitucional de acordo com os critérios que a Administração entender serem convenientes.
Muito embora os direitos já estejam garantidos, lei posterior poderá restringir a liberdade de seu exercício, como no caso do exercício de profissão. A aplicabilidade é o que varia, sendo imediata nos casos de normas definidoras de direitos e garantias individuais (1ª geração) – normas de eficácia plena e contida, e mediata para os casos de direitos sociais, culturais e econômicos (direitos fundamentais de 2ª geração) – normas de eficácia limitada (SILVA, 2012).
Segundo Flávia Piovesan, in verbis:
“(...) o princípio da aplicabilidade imediata dos direitos e garantias fundamentais investe os Poderes Públicos na atribuição constitucional de promover as condições para que os direitos e garantias fundamentais sejam reais e efetivos” (1995, p. 92).
Conforme visto, os direitos fundamentais individuais (1ª geração) traduzem-se nos direitos de liberdade, propriedade e, conforme depreende-se da leitura do art. 5º da CRFB/88, de segurança, além do direito à vida, sendo todos perfeitamente autoaplicáveis. Nesse sentido, independem de qualquer atuação do legislador infraconstitucional, já que não se trata de norma de eficácia limitada, a aplicação da razoável duração do processo, a garantia à segurança e à propriedade.
No que se refere ao regime dos precatórios, o constituinte originário previu, no art. 33 do ADCT, que ressalvados os créditos de natureza alimentar, o valor dos precatórios judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição, incluído o remanescente de juros e correção monetária, poderá ser pago em moeda corrente, com atualização monetária, pelo prazo máximo de 8 anos, a partir de 1º de julho de 1989, por decisão editada pelo Poder Executivo até 180 dias da promulgação da Constituição.
Em que pese as críticas que se fazem às concessões de moratórias, o art. 33 do ADCT - que concede a moratória de 8 anos para o pagamento dos precatórios judiciais, ressalvados os créditos de natureza alimentar - é norma instituída pelo próprio constituinte originário, e a jurisprudência do Supremo é pacífica em inadmitir a tese das normas constitucionais inconstitucionais.
Em havendo eventuais contradições entre normas insculpidas na Constituição Federal, deve o intérprete, valendo-se dos princípios hermenêuticos constitucionais, em especial o da unidade, eliminar as aparentes antinomias de modo a compatibilizá-las de acordo com o restante do sistema. Como se sabe, o poder constituinte originário é ilimitado e não deve obediência a nenhuma ordem jurídica. No caso, portanto, não se pode alegar que a moratória prevista no art. 33 do ADCT viola o princípio da segurança ou ofende a coisa julgada, devendo a Constituição ser considerada em sua globalidade para que haja harmonização dos espaços de tensão (CANOTILHO, 2003).
Contudo, o constituinte reformador, através da EC n. 30/2000, estabeleceu mais uma moratória ao acrescentar o art. 78 ao ADCT, que prevê que, ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 do ADCT e suas complementações, e os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo, os precatórios pendentes na data de promulgação da EC n. 30/2000 e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas no prazo máximo de 10 anos, permitida a cessão dos créditos.
Referida moratória foi intensamente criticada, tendo sido impetradas pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e pela Confederação Nacional da Industria, inclusive, duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ns. 2.356 e 2.362 que ainda se encontram pendentes de julgamento[4]), cujos pedidos das medidas cautelares foram deferidos pelo STF em 25 de novembro de 2010, suspendendo a eficácia do artigo 2º da EC n. 30/2000.
Durante o julgamento das cautelares, o Min. Celso de Mello, em seu voto de desempate, ressaltou que o Congresso Nacional, ao impor o parcelamento impugnado aos precatórios pendentes de liquidação na data de publicação da referida emenda, teria incidido em várias transgressões às normas constitucionais, porquanto desrespeitaria a integridade de situações jurídicas consolidadas definitivamente, o que, por sua vez, prejudica o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido, além da violação ao princípio da separação de poderes e o postulado da segurança jurídica. Além disso, a moratória privaria de eficácia imediata a própria sentença judicial já transitada em julgado, violando o princípio da separação de poderes e a segurança jurídica, valor essencial do Estado Democrático de Direito.
Entretanto, enquanto a moratória legal preconizada pela EC 30/2000 não tem seu mérito julgado pelo Supremo (ambos os processos encontram-se conclusos para relator), tecem-se mais alguns comentários acerca das latentes inconstitucionalidades que dela decorrem.
Diferir o pagamento de uma condenação já transitada em julgado da Fazenda Pública a um particular, no presente caso do art. 78 do ADCT, pelo prazo de 10 anos colide frontalmente com o princípio da segurança jurídica que deriva da coisa julgada, por oportunizar que se excepcione e relativize-se uma situação intangível, que é a sentença transitada em julgado. Este autor acredita que, em tendo o constituinte originário estabelecido a garantia do §5º do art. 100 da CRFB/88, nenhuma manifestação do poder derivado poderia trazer uma situação menos favorável ao jurisdicionando e credor, pelo princípio implícito da vedação ao retrocesso que protege os direitos fundamentais já reconhecidos.
Além das questões levantadas acima, que por si só já deveriam ser suficientes para impedir a constante edição de leis ou emendas que restringem a abrangência de direitos fundamentais, faz-se necessário mencionar que os direitos e garantias individuais são considerados cláusula pétrea de acordo com o §4º do art. 60 da CRFB/88. Muito embora seja conhecido que o fato de ser cláusula pétrea não impede a edição de leis que sobre ela versem, sabe-se que referidas leis não podem diminuir ou restringir a abrangência daquela, devendo restringir-se a aumentar seu campo de incidência.
Nessa ótica, mostra-se extremamente inapropriado o fato de uma Emenda Constitucional - que, pelo seu caráter inovador e impeditivo do engessamento da Constituição deveria acrescentar normas mais modernas e de acordo com as realidades e anseios sociais - diminua direitos e garantias fundamentais, como o fizeram as EC ns. 30/2000 e 62/2009 especialmente no que tange à concessão de moratórias.
A EC n. 62/2009, dentre outras coisas, possibilitou aos Estados, Distrito Federal e Municípios em mora na quitação de precatórios vencidos – relativos à administração direta ou indireta – na data de publicação da referida emenda, a realização dos pagamentos de acordo com as normas estabelecidas no próprio art. 97 do ADCT, sem necessidade de obediência às orientações do art. 100 da CRFB/88, exceto em seus §§ 2º, 3º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º e 14º, com possibilidade de parcelamento de até 15 anos e sem prejuízo dos acordos de juízos conciliatórios já formalizados na data de promulgação da Emenda em questão.
De acordo com o art. 97, os pagamentos seriam realizados a partir de destinação percentual da receita corrente líquida[5], que varia de 1% a 35% e, na crítica ótica de Pedro Lenza, “observa-se que quanto mais incompetente for o governante, menor será o volume financeiro para o pagamento dos precatórios” (2014, p. 870).
O parâmetro legal para a atuação discricionária do chefe do executivo é intoleravelmente extenso, o que põe em xeque o próprio direito à segurança do indivíduo em face do Estado, além de afrontar a coisa julgada. As liberdades individuais conquistadas ao longo do tempo, principalmente sob a perspectiva dos direitos e garantias fundamentais, não se coadunam com referida vaga delimitação do poder do Estado, e a existência de um preceito legal em moldes tais consubstancia uma verdadeira afronta ao direito ao não retrocesso.
Se no que tange a destinação de verbas orçamentárias há uma certa liberdade de atuação do agente público, in casu a conjuntura diz respeito ao pagamento de condenações por sentenças transitadas em julgado, e conferir opção ao Executivo no que tange aos precatórios configura violação ao direito de propriedade e ao princípio da separação de poderes.
De maneira bastante responsável, o STF reconheceu e declarou a inconstitucionalidade do art. 100, §15, e de todo o art. 97 do ADCT (ADIs ns. 4.357 e 4.425). Destaca-se o seguinte trecho da ementa:
“O regime especial de pagamento de precatórios para Estados e Municípios criado pela EC n. 62/2009, ao veicular nova moratória na quitação dos débitos judiciais da Fazenda Pública e ao impor o contingenciamento de recursos para esse fim, viola a cláusula constitucional do Estado de Direito (CF, art. 1º, caput), o princípio da Separação de Poderes (CF, art. 2º), o postulado da isonomia (CF, art. 5º), a garantia do acesso à justiça e a efetividade da tutela jurisdicional (CF, art. 5º, XXXV), o direito adquirido e a coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI).”[6]-[7]
Diante da manifestação do STF, faz-se necessário observar a finalidade do sistema dos precatórios para adequá-la com os direitos fundamentais. Se, por um lado, de fato, pode inexistir verbas suficientes para designação do pagamento dos credores da Fazenda, por outro deve-se ter em mente que não respeitam a unidade constitucional as normas que violam, diminuem ou menosprezam direitos fundamentais, sob o pretexto de legitimar a mora administrativa pela premissa do binômio do interesse público genérico e indisponibilidade dos bens públicos.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
A inexistência de uma consciência normativo-sistemática do legislador, que leve em conta os direitos fundamentais dos cidadãos, oportuniza o surgimento de normas que serão repetidamente declaradas inconstitucionais, o que, sem dúvidas, representa um gasto público que poderia ser evitado.
Os direitos fundamentais violados pelas concessões de moratórias, sejam elas previstas legalmente ou não, põem em xeque os próprios fundamentos do Estado Democrático de Direito. Muito além de violar direitos, as moratórias violam a própria legitimação do poder – emanado do povo – que deixa de ser soberano ao ter constantemente sua dignidade individualmente considerada violada.
A concessão de moratórias é genericamente inconsistente pela ampla violação de direitos fundamentais, especialmente nos casos em que o atraso no pagamento não tenha previsão legal. Enquanto o Legislativo não oportunizar uma solução mais consentânea com a normatividade constitucional, sugere-se uma participação mais ativa do Judiciário, atuando de forma a viabilizar o adimplemento dos precatórios dentro dos limites da reserva do possível para viabilizar o mínimo existencial, tal qual se dá com a implementação de políticas públicas, vez que, certas vezes, os débitos tem natureza alimentícia ou poderão refletir direta ou indiretamente na fruição de direitos sociais básicos, como educação ou saúde.
Como se sabe, tem sido considerado viável o controle jurisdicional de políticas públicas, desde que, de uma maneira geral, sejam observados três requisitos (de acordo com os paradigmáticos julgamentos da STA 175, RE 581.352, Suspensão de Segurança 3.154-6/RS, e ARE 639.337): a natureza constitucional da política pública reclamada, a existência de uma correlação entre ela e os direitos fundamentais e a prova de que há omissão ou prestação deficiente pela Administração Pública.
Apenas atentando para as reais restrições orçamentárias e com maior zelo aos direitos fundamentais é que se torna viável a concretização da ordem jurídica preconizada constitucionalmente.
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[1] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, RE 484.770/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Segunda Turma, julgado em 06.06.2006, DJe 01.09.2006.
[2] Disponível em: < http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-bom-povo-de-virginia-1776.html> Último acesso: 27 junho 2015.
[3] Muito embora a doutrina aponte 4 dimensões de direitos fundamentais, Paulo Bonavides (2010) classifica o direito à paz – que, na doutrina de Karel Vazak pertenceria à 3º dimensão – como de 5º dimensão, sendo supremo direito da humanidade e, por sua importância, deve ser considerado em dimensão autônoma (grifo nosso).
[4] Disponível em: e Último acesso em: 27 junho 2015.
[5] Art. 97, §3º do ADCT: “Entende-se como receita corrente líquida, para os fins de que trata este artigo, o somatório das receitas tributárias, patrimoniais, industriais, agropecuárias, de contribuições e de serviços, transferências correntes e outras receitas correntes, incluindo as oriundas do §1º do art. 20 da Constituição Federal, verificado no período compreendido pelo mês de referência e os 11 meses anteriores, excluídas as duplicidades, e deduzidas: I- nos Estados, as parcelas entregues aos Municípios por determinação constitucional; II- nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios, a contribuição dos servidores para custeio do seu sistema de previdência e assistência social e as receitas provenientes da compensação financeira referida no §9º do art. 201 da Constituição Federal”.
[6] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, ADI 4.425, Rel. Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 14-03-2013, DJe 19-12-2013.
[7] De ressaltar que, no mesmo julgamento, o plenário do STF declarou a inconstitucionalidade de dispositivos do art. 100 da CRFB/88 com redação dada pela EC n. 62/2009, que compreendem: a expressão “na data de expedição do precatório” constante do §2º do art. 100 da CRFB/88, por violar a isonomia ao discriminar aqueles que venham a completar 60 anos de idade não até a data de expedição do precatório, mas enquanto pende seu pagamento; a compensação de precatório com débitos tributários prevista nos §§9º e 10 do art. 100 da CRFB/88, por desrespeitar a coisa julgada material, ofender a isonomia entre o Poder Público e o particular e embaraçar a efetividade da jurisdição, e as expressões “índice oficial de remuneração básica de caderneta de poupança” e “independentemente de sua natureza”, constantes do §12 do art. 100 da CRFB/88, por violar o direito da propriedade, na medida em que referido índice de atualização é escancaradamente incapaz de preservar o valor real do crédito, pois a inflação é insuscetível de captação apriorística.
Advogado, especialista em Direito Público com pós-graduação pela Universidade Anhaguera.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUTO, Rafael José Farias. A ineficácia das execuções contra a Fazenda Pública: o regime dos precatórios como afronta aos direitos fundamentais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 fev 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49198/a-ineficacia-das-execucoes-contra-a-fazenda-publica-o-regime-dos-precatorios-como-afronta-aos-direitos-fundamentais. Acesso em: 23 dez 2024.
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