RESUMO: Dentre as inovações implementadas pelo Novo Código de Processo Civil, as disposições acerca da reclamação constitucional reforçaram ainda mais a importância desse instrumento no ordenamento jurídico nacional. Sendo esse o contexto, este trabalho teve como objetivo analisar o atual panorama da reclamação no direito brasileiro, com ênfase nas mudanças trazidas pelo novo código, traçando, ao mesmo tempo, um paralelo com a antiga legislação de regência desse instituto. A abordagem destes temas foi realizada de modo descritivo, através de pesquisas em periódicos e obras jurídicas especializadas, assim como na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. A conclusão do estudo permitiu observar que as hipóteses de cabimento da reclamação foram significativamente ampliadas, assim como a competência para seu julgamento, que antes, de modo geral, era restrita às Cortes Supremas. Também ficou evidente como a jurisprudência, sobretudo a do Supremo Tribunal Federal, influenciou o legislador na composição normativa que disciplina a reclamação constitucional.
Palavras-chave: Reclamação constitucional. Novo Código de Processo Civil. Inovações. Aspectos processuais.
ABSTRACT: Among the innovations implemented by the New Code of Civil Procedure, the provisions on the constitutional complaint further reinforced the importance of this instrument of the national legal order. This being the context, this work aimed to analyze the current panorama of the complaint in Brazilian law, with emphasis on the changes brought by the new code, at the same time drawing a parallel with the old regency legislation of this institute. The approach of these themes was made in a descriptive way, through researches in periodicals and specialized legal works, as well as in the jurisprudence of the Federal Supreme Court and the Superior Court of Justice. The conclusion of the study made it possible to observe that the hypotheses for the adequacy of the complaint were significantly expanded, as well as the competence for its judgment, which was generally restricted to the Supreme Courts. It was also evident how the jurisprudence, especially that of the Supreme Court, influenced the legislator in the normative composition that regulates the constitutional complaint.
Keywords: Constitutional complaint. New Brazilian Code of Civil Procedure. Innovations. Procedural aspects.
INTRODUÇÃO
A sobrevivência do Estado Democrático de Direito depende da observância das normas que definem e regulam as competências das instituições por ele criadas. Em raciocínio consequente, para a engrenagem do Estado funcionar de forma correta é essencial que haja respeito à organicidade do sistema judiciário, sobretudo à hierarquia havida entre os órgãos judicantes.
Nada mais subversivo à lógica estruturante de qualquer sistema judicial quando um órgão de menor hierarquia jurisdicional, ou até mesmo um órgão administrativo, afrontam o comando de uma decisão de um tribunal de estatura superior. Além de uma manifesta contradição institucional, tal prática pode trazer à tona o indesejável sentimento de insegurança jurídica, que, dentre os seus malefícios, resulta em descrédito perante o Poder Público.
Não por outro motivo, o legislador criou mecanismos de proteção às decisões das instâncias superiores, objetivando o resguardo da eficácia executiva de seus respectivos comandos normativos. Dentre os vários instrumentos vocacionados a essa função, destaca-se a reclamação constitucional, cuja incumbência processual, basicamente, se destina à preservação da competência e da autoridade das decisões dos tribunais.
Inspirado na relevância desse instrumento, este trabalho teve como objetivo maior expor as inovações trazidas pelo Novo Código de Processo Civil ao instituto da reclamação, especialmente no que toca às hipóteses de cabimento e competência para julgamento.
Aliada a essas e outras inovações, também se buscou, de forma sucinta, traçar a evolução histórica desse mecanismo constitucional, delineando um paralelo entre a legislação atual e a anterior, assim como apresentar outros temas pertinentes à matéria, como os respectivos aspectos processuais e a natureza jurídica da reclamação, realçando-se a divergência do tratamento doutrinário e pretoriano conferido ao tema, com destaque para os julgados do Supremo Tribunal Federal, porquanto guardião maior da Carta Magna.
1. NATUREZA JURÍDICA
Logo de saída, este trabalho adentra em um ponto controvertido na doutrina e na jurisprudência dos tribunais superiores: do que se trata o instituto da reclamação constitucional?
A resposta vai depender da corrente adotada.
Basicamente, existem seis posicionamentos acerca da natureza jurídica da reclamação constitucional, vale dizer, para parte da doutrina, a reclamação pode ser considerada ação constitucional, para outros, recurso, sucedâneo recursal, incidente processual, direito de petição ou correição parcial.
A doutrina processualista predominante, a exemplo de Daniel Amorim Assumpção Neves (NEVES, 2016, p. 1.620), adotou a corrente da natureza jurídica da reclamação como modalidade de ação constitucional, encampando essa opção doutrinária em razão dos requisitos processuais exigidos para o manejo desse instrumento, que se assemelham a uma ação judicial comum.[1]
Por sua vez, seguindo a tese da Professora Ada Pellegrini Grinover[2], o Supremo Tribunal Federal – em direção contrária à doutrina majoritária –, adotou o entendimento de que a reclamação situa-se no plano do direito constitucional de petição, positivado no art. 5º, XXXIV, da Constituição Federal, conforme restou decidido no julgamento da ADI 2212/CE, relatada pela Ministra Ellen Gracie[3].
Ilustrativamente, destaca-se fragmento da ementa do sobredito julgado, que deixou clara a corrente perfilhada pelo Supremo sobre a natureza jurídica da reclamação, a saber:
[...] A natureza jurídica da reclamação não é a de um recurso, de uma ação e nem de um incidente processual. Situa-se ela no âmbito do direito constitucional de petição previsto no artigo 5º, inciso XXXIV da Constituição Federal. [...]
A seu turno, o Superior Tribunal de Justiça, que já chegou a considerar a reclamação como espécie de ação constitucional[4], amoldou sua jurisprudência à linha de precedentes da Suprema Corte, adotando, atualmente, o entendimento de que a reclamação constitucional equivale ao exercício do direito de petição.[5]
Firmadas essa importante distinção, seguindo a definição exposta por Marinoni, Arenhart e Mitidiero, pode-se conceituar a reclamação como modalidade de “ação que visa a preservar a competência de tribunal, garantir a autoridade das decisões de tribunal e garantir a eficácia dos precedentes das Cortes Supremas e da jurisprudência vinculante das Cortes de Justiça”. [6]
De uma forma ou de outra, é certo que a reclamação é instrumento jurídico autônomo, tanto que a inadmissibilidade ou o julgamento do recurso interposto contra a decisão proferida pelo órgão reclamado não prejudica o julgamento da reclamação, conforme dispõe o art. 988, § 6º, do CPC de 2015. Por conseguinte, é possível impugnar simultaneamente uma decisão mediante recurso e reclamação, e, além disso, mesmo em caso de inadmissibilidade ou julgamento do recurso, a reclamação não perde o seu objeto.[7]
2. ORIGEM
A origem do instituto da reclamação remonta ao direito estadunidense, a partir do julgamento do caso McCulloch v. Maryland, julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1819 (PACHECO, 2002, p. 604), onde foi difundida a ideia central da Teoria dos poderes implícitos (implied powers).
Em 1957, a reclamação foi incorporada formalmente ao Direito brasileiro através do Regimento Interno do STF (arts. 156 a 162).
Somente a partir da Constituição Federal de 1988, a reclamação passou a ter status constitucional (art. 102, inciso I, l e art. 105, inciso I, f). No plano infraconstitucional, esse instrumento jurídico foi previsto na Lei n. 8.038/1990 (arts. 13 a 18), no Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça (arts. 187 a 192) e na Lei n. 11.417/2006 (art. 7º), que dispõe acerca da súmula vinculante.
Atualmente, a reclamação encontra-se disciplinada, também, nos arts. 988 a 993 do Código de Processo Civil de 2015, cujo texto, já ampliado pela Lei n. 13.256/2016, inovou consideravelmente o tratamento normativo da matéria, tendo inclusive, em seu art. 1.072, IV, revogado os dispositivos da Lei n. 8.038/1990 referentes à reclamação.
3. HIPÓTESES DE CABIMENTO
Originariamente, a Constituição Federal de 1988 previu duas hipóteses de cabimento de reclamação constitucional, tendo como destinatários apenas o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça.
A primeira hipótese, trata da reclamação como forma de preservação da competência das Cortes Supremas; por sua vez, a segunda, faz desse instrumento constitucional uma garantia da autoridade das decisões desses tribunais. Mais recentemente, a Emenda Constitucional n. 92/2016, estendeu tais hipóteses ao Tribunal Superior do Trabalho, conforme se verifica do art. 111-A, § 3º, da Constituição Federal.
Por outro lado, com a finalidade de regulamentar o § 3º do art. 103-A da Carta Magna, a Lei n. 11.417/2006 tratou, em seu art. 7º, de uma terceira hipótese de cabimento da reclamação constitucional, vale dizer, contra ato administrativo ou decisão judicial que contrariar ou aplicar indevidamente súmula vinculante.
Como se verá adiante, além de replicar essas três hipóteses de cabimento, o Código de Processo Civil de 2015 estabeleceu novas situações que autorizam o uso da reclamação.
Assim, nos termos do art. 988 do Novo Código de Processo Civil, a reclamação será cabível para:
1) Preservar a competência do tribunal;
2) Garantir a autoridade das decisões do tribunal;
3) Garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
4) Garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência.
Logo no inciso I do art. 988 (reforçado pelo § 1º), já é possível perceber uma grande novidade legislativa, que consistiu em ampliar o cabimento da reclamação aos demais tribunais, como os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais.
Anteriormente à vigência do novo código, o STF entendia que a reclamação poderia ser utilizada perante os Tribunais de Justiça, desde que houvesse previsão expressa nas respectivas Constituições estaduais (MARINONI et al., 2015, p. 920), entendimento que, por sua vez, deixava uma lacuna, e.g., quanto aos Tribunais Regionais Federais.
O objetivo que se extrai dessa hipótese reside em evitar que órgãos de jurisdição inferior usurpem a competência dos tribunais superiores. Para além da proteção das competências definidas na Constituição, essa medida visa resguardar a organicidade hierárquica do sistema judiciário.
A propósito, o STF entende ser cabível reclamação constitucional nos casos em que o Presidente de Turma Recursal, usurpando competência outorgada à Suprema Corte, nega seguimento a agravo de instrumento interposto contra decisão que inadmitiu recurso extraordinário.[8]
Na mesma toada, o inciso II do art. 988 dispõe sobre o cabimento da reclamação para fins de preservação da autoridade das decisões proferidas pelo tribunal.
Esse dispositivo tem como finalidade garantir que o teor das decisões emanadas pelos tribunais será rigorosamente cumprido pelos juízos a eles subordinados.
Por sinal, quando do julgamento da reclamação n. 3.828/SC, o Superior Tribunal de Justiça, manifestou-se pela procedência da ação pelo fato de o juízo de grau jurisdicional inferior resistir ao cumprimento de decisão do tribunal superior, sob o fundamento de que a decisão ainda não era definitiva, em face da existência de recurso ainda pendente de julgamento. Nesse caso, o STJ entendeu que, como o recurso interposto contra sua decisão não se sujeitava a efeito suspensivo, o juízo a quo não poderia se negar a cumprir à decisão da instância superior, cuja executoriedade, nessa hipótese, é imediata.[9]
Em notável precedente, a Segunda Seção do STJ também já admitiu a reclamação constitucional como forma de assegurar a eficácia executiva de decisão tomada em julgamento de conflito de competência, cujo resultado tenha sido desconsiderado pelo órgão jurisdicional declarado competente pela Corte Superior.[10]
Ato contínuo, o inciso III do art. 988 enuncia que a reclamação constitucional será cabível, também, como forma de garantir o respeito às súmulas vinculantes e às decisões do Supremo Tribunal Federal proferidas em sede de controle concentrado de constitucionalidade (ADI, ADC e ADPF).
Como se sabe, decorre naturalmente dessas súmulas e decisões a produção de eficácia contra todos (erga omnes) e efeito vinculante para os demais órgãos do Poder Judiciário e para a administração pública direta e indireta de todos os entes políticos (art. 102, § 2º, CF). Portanto, é imperiosa a observância do comando normativo introjetado nesses atos.
Nada obstante, na linha de precedentes do Supremo Tribunal Federal, os atos impugnados na reclamação precisam se ajustar, com exatidão, aos julgados-paradigmas proferidos em sede de controle abstrato de constitucionalidade, sob pena de desvirtuamento desse instrumento jurídico-constitucional.[11]
Nada obstante, cumpre ressaltar que, em caso de omissão do Poder Público ou de ato administrativo que desrespeitem enunciado de súmula vinculante, a via reclamatória só poderá ser percorrida em caso de prévio esgotamento de processo administrativo próprio, nos exatos termos do art. 7º, § 1º, da Lei n. 11.417/2006.
Frise-se, ainda, que, segundo a jurisprudência do STF, não é cabível a reclamação fundada em violação de súmula sem efeito vinculante[12], ou quando o ato que supostamente ofendeu à autoridade de súmula com efeito vinculante for anterior à decisão emanada da Corte Suprema.[13]
Por fim, o art. 988, inciso IV, do CPC/2015, estabeleceu o cabimento de reclamação constitucional para garantir a observância de acórdão ou precedente proferido em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência. Cuida-se de mais uma relevante inovação trazida pelo novo código correlata ao instituto da reclamação.
Inclusive, o § 4º do mesmo dispositivo, assim como o § 1º do art. 985, elastecem o raio de alcance das hipóteses previstas nos incisos III e IV para admitir o uso da reclamação, também, quando da aplicação indevida da tese jurídica firmada e da sua não aplicação aos casos que a ela correspondam.
Aliás, é de se observar que as hipóteses previstas nos incisos III e IV do art. 988 revelam o nítido desejo do legislador – permeado em todo o Código de Processo Civil –, de prestigiar a segurança jurídica e o respeito à força vinculante dos precedentes (stare decisis).
4. OBJETO DA RECLAMAÇÃO
Quanto ao objeto, a reclamação poderá ser deduzida contra qualquer ato administrativo ou decisão judicial que contrarie as hipóteses de cabimento acima transcritas, com exceção do atos emanados do próprio Supremo Tribunal Federal, bem como seus órgãos fracionários, vale dizer, respectivas Turmas e Ministros integrantes do tribunal.[14] Isso porque tais atos são juridicamente imputados à autoria do próprio Tribunal em sua inteireza,[15] e cuja impugnação não pode ser franqueada pelo acesso da via reclamatória.
Por consequência natural do princípio da separação dos Poderes, a reclamação não poderá ser manejada contra atos do Poder Legislativo, uma vez que este Poder não se submete à eficácia geral e ao efeito vinculante das decisões proferidas pelo STF em sede de fiscalização normativa abstrata. Até porque o legislador poderá editar nova lei com idêntico conteúdo normativo, sem que se ofenda a autoridade daquelas decisões.[16]
Relativamente às decisões judiciais, o entendimento do Supremo Tribunal Federal já estava consolidado no sentido da impossibilidade do manejo da reclamação após o trânsito em julgado da decisão judicial atacada, sendo este o teor do enunciado da Súmula 734 do STF, replicado no art. 988, § 5º, I, do CPC/2015, com a redação dada pela Lei n. 13.256/2016.
Assim como a jurisprudência do Supremo, a regra é lógica, dado que a reclamação não é vocacionada a desconstituir a coisa julgada, isto é, não pode operar como sucedâneo de ação rescisória ou outra medida judicial tendente a reformar decisão judicial.[17]
Logo no inciso subsequente, também foi estabelecido ser inadmissível a reclamação proposta para garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, quando não esgotadas as instâncias ordinárias.
Por “esgotamento das instâncias ordinárias”, explica Daniel Assumpção que “o legislador aparentemente pretendeu afastar o cabimento de reclamação constitucional contra sentença que desrespeita precedente fixado em julgamento de recurso especial e extraordinário repetitivo” (NEVES, 2016, p. 1.628).
Nessa hipótese, o legislador acabou por revelar, a contrario sensu, uma nova modalidade de cabimento da reclamação para o Supremo Tribunal Federal e para o Superior Tribunal de Justiça, uma vez que a reclamação só poderá ser ajuizada quando houver pronunciamento definitivo do tribunal local acerca da causa.
Logo, caso essa decisão se trate de uma sentença, será cabível apelação, a fim de esgotar a via ordinária. Na hipótese de decisão monocrática proferida em segundo grau de jurisdição, o raciocínio é análogo, porquanto recorrível mediante agravo interno (art. 1.021, caput, CPC/2015). Em um ou outro caso, a reclamação constitucional só poderá ser intentada em caso de esgotamento da via recursal comum.[18]
Outro aspecto importante relativo ao objeto é contemporaneidade.
A decisão ou o ato administrativo que se busca atacar deve ter sido concretizado após a decisão ou precedente cuja autoridade se busca resguardar, com exceção, obviamente, da reclamação ajuizada com a finalidade de preservação da competência dos tribunais, haja vista que, nesse caso, não depende de decisão anterior que as legitime. Essa orientação, inclusive, encontra ressonância na jurisprudência do STF, conforme já destacado neste trabalho.[19]
Cumpre salientar, ainda, que o Supremo decidiu recentemente não ser admissível formular pedido preventivo na reclamação, ou melhor dizendo, não se admite a “reclamação preventiva”.[20]
5. ASPECTOS PROCESSUAIS
Basicamente, o procedimento da reclamação constitucional encontrava espeque nos Regimentos Internos do STF e do STJ, bem como nas Leis n. 8.038/1990 e 11.417/2006.
Conforme já frisado, o Novo Código de Processo Civil – de forma inovadora –, disciplinou com maior profundidade o instituto da reclamação, devendo servir, atualmente, como diploma normativo principal na análise das questões relativas a essa ferramenta jurídica.
Como ocorre, via de regra, com qualquer instrumento jurídico, para o ajuizamento da reclamação, é necessário ter legitimidade. Logo no caput do seu art. 988, o CPC deixa claro que esse instrumento poderá ser manejado pelas partes interessadas ou pelo Ministério Público.
Por parte interessadas leia-se não apenas as partes integrantes de um processo ao qual a reclamação esteja umbilicalmente vinculada. Também é possível que terceiros interessados utilizem tal instituto, desde que demonstrem o interesse jurídico no caso concreto. Essa, por sinal, é a visão de Daniel Assumpção acerca do tema (NEVES, 2016, p. 1.629):
“É preciso cuidado ao conceituar o interesse necessário à parte na legitimidade ativa da reclamação constitucional. Não é possível limitar a legitimidade às partes do processo originário, até porque é cabível a reclamação constitucional independentemente da existência de processo. Ademais, mesmo quando existe um processo em trâmite, não se pode descartar a priori a existência de terceiros juridicamente interessados, que também terão legitimidade para a propositura da reclamação constitucional, o que fica claro no processo coletivo (comum e especial).
Entendo que o interesse deve ser demonstrado, no caso concreto, pelo autor da reclamação constitucional, por meio da comprovação de possível repercussão do processo em trâmite ou do ato administrativo praticado em sua esfera jurídica. Ainda que não precise demonstrar qualquer sucumbência no caso concreto (como ocorre na hipótese de usurpação de competência), sendo incorreto associar o interesse da parte a uma eventual melhora em sua situação prática, deve demonstrar que a ilegalidade cometida pode juridicamente atingi-lo.”
Inclusive, a Suprema Corte possui o entendimento de que são legitimados à propositura de reclamação todos aqueles que sejam prejudicados por atos contrários às decisões que possuam eficácia vinculante e geral (erga omnes). Entretanto, caso o precedente tido por violado tenha sido tomado em julgamento de alcance subjetivo, tal como se dá no controle difuso de constitucionalidade ou no recurso extraordinário, somente é legitimado ao manejo da reclamação as partes que compuseram a relação processual do julgado.[21]
Seguindo essa linha argumentativa, o STF já admitiu o uso da reclamação em razão de descumprimento de decisão proferida em habeas corpus, reconhecendo, neste caso, a legitimidade do reclamante, uma vez que a decisão tida por descumprida tinha o alcançado.[22]
Por outro lado, quando ao Ministério Público, enquanto fiscal da ordem jurídica, a legitimidade para a reclamação é manifesta, haja vista o interesse público inerente ao respeito à competência, à autoridade das decisões e dos precedentes vinculantes dos tribunais, nos termos do art. 178, I, do Código de Processo Civil.
Destaque para julgado do Supremo onde foi reconhecida a legitimidade ativa autônoma do Ministério Público estadual para ajuizar reclamação perante o STF, sem necessidade de ratificação da petição inicial pelo Procurador-Geral da República.[23]
Importa ressaltar, ainda, que mesmo quando o Ministério Público não for a parte requerente da reclamação, deverá desempenhar o papel de fiscal da lei (custos legis), tendo vista do processo por 5 (cinco) dias, contados após o decurso do prazo para informações e para o oferecimento da contestação pelo beneficiário do ato impugnado, a teor do que dispõe o art. 991 do novo código de processo.
No que toca à legitimidade, há de ser ressaltado, ainda, que o próprio art. 990 do CPC/2015 estende à qualquer interessada a possibilidade de impugnação do pedido do reclamante, circunstância legal que só reforça a tese da legitimação ampla conferida à reclamação, contanto que, repise-se, seja demonstrado o respectivo interesse jurídico no deslinde da questão.
Como na sistemática atual a legislação autoriza a propositura da reclamação perante qualquer tribunal, a competência para seu julgamento é atribuída ao órgão jurisdicional cuja competência se busca preservar ou cuja autoridade se pretenda garantir, nos termos do § 1º do art. 988 do CPC, sem se olvidar das hipóteses em que a reclamação é restrita ao Supremo Tribunal Federal, na forma do art. 988, inciso III, do CPC de 2015.
Nesse passo, a reclamação deve ser endereçada ao respectivo presidente do tribunal competente para o seu conhecimento (art. 988, § 2º).
Nos termos do art. 988, § 3º, após o recebimento, a reclamação será autuada e distribuída ao relator do processo principal, sempre que possível. Isso porque nem sempre haverá um processo prévio que torne prevento determinado membro de tribunal, como, p. ex., na hipótese de reclamação que vise a preservação da competência, devendo a petição, nesses casos, ser distribuída de forma livre, mediante sorteio, na forma do art. 930, caput, do Código de Processo Civil.
Noutro giro, a petição inicial da reclamação deve atender os requisitos ordinários previstos no art. 319 do CPC, devendo ser instruída com as respectivas provas documentais, conforme § 2º do art. 988.
Ao analisar a peça inicial, o relator deverá proceder com um juízo de admissibilidade, tendo poderes, inclusive, para determinar a sua emenda, nos termos do art. 321 do Novo Código de Processo Civil.[24] Superado esse exame preliminar da inicial, o relator da reclamação deverá adotar as providências previstas no art. 989 do CPC.
Inicialmente, o relator requisitará informações da autoridade a quem for imputada a prática do ato impugnado, o qual deverá prestá-las no prazo de dez dias. Concomitantemente, a fim de evitar dano irreparável, também poderá ordenar a suspensão do processo ou do ato impugnado. Por último, o relator determinará a citação do beneficiário da decisão impugnada, que terá o prazo de quinze dias para apresentar a sua contestação.
Essa última diligência – citação do beneficiário da decisão impugnada –, representa mais uma inovação trazida pelo Novo CPC, já que apenas as duas primeiras constavam do art. 14 da Lei n. 8.038/1990, hoje revogado.
Durante a fase instrutória da reclamação, é possível facultar a sustentação oral às partes e ao Ministério Público, na forma do art. 937, caput e inciso VI, do CPC, observadas, quanto ao processamento, as regras do regimento interno do respectivo tribunal. Essa intervenção, frise-se, já era admitida pelo Supremo durante as sessões de julgamento da reclamação.[25]
Já no julgamento, em caso de procedência do pedido, o tribunal cassará a decisão que tiver exorbitado o seu julgado ou determinará outra medida adequada à solução da controvérsia, nos termos do art. 992 do Código de Processo Civil.
Fazendo novamente um paralelo com a ultrapassada Lei n. 8.038/1990, observa-se que, de forma sutil, o legislador ampliou o leque de opções conferido ao tribunal competente para julgar a reclamação. No regime jurídico anterior, o tribunal, além de poder cassar a decisão impugnada, poderia determinar medida adequada tão somente à preservação de sua competência. Na sistemática atual, essa medida poderá consistir em qualquer ato adequado para a solução da controvérsia, inclusive a preservação da competência.
De forma específica, caso a reclamação tenha sido ajuizada por razões de violação a enunciado de súmula vinculante, ao julgar procedente a reclamação, o Supremo Tribunal Federal anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial impugnada, determinando que outra seja proferida com ou sem aplicação da súmula, conforme o caso. Esse é o comando normativo extraído do art. 103-A, § 3º, da Constituição Federal, replicado no art. 7º, § 2º, da Lei n. 11.417/2006.
Em razão da reclamação ser considerada, tanto pelo STF como pelo STJ, mero exercício do direito de petição, tais Cortes Superiores vem afastando em seus julgados a condenação de verbas sucumbenciais.[26]
Como decorrência do art. 992, e prestigiando o princípio da celeridade processual (art. 5º, LXXVIII, CF), o Código de Processo Civil estabeleceu, ainda, em seu art. 993, que o presidente do tribunal que julgou a reclamação determinará o cumprimento imediato da decisão, ficando a lavratura do acórdão postergada a um momento posterior.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há que se enaltecer a iniciativa legislativa de dedicatória à reclamação de um capítulo específico e minudente, circunstância que corresponde a uma importante evolução no trato legislativo da matéria, já que, a partir da vigência do novo código, este passou a ser o diploma normativo principal que regulamenta o processo e o procedimento da reclamação.
As modificações trazidas pelo Novo Código de Processo Civil resultaram em um nítido aprimoramento da reclamação constitucional, o que acabou por alçar este instituto a um novo patamar no Direito Processual.
Contudo, sem sombra de dúvidas, a maior inovação foi a extensão da via reclamatória aos demais tribunais brasileiros, preenchendo uma lacuna há muito discutida no âmbito acadêmico e jurisprudencial.
Essa medida reforçou, também, o enfoque dado pelo legislador ao respeito aos precedentes e à jurisprudência dos tribunais em geral – ainda que sob a perspectiva limitada ao caso concreto –, servindo como mais um instrumento de estabilização das relações jurídico-institucionais, a serviço da promoção da segurança jurídica.
É certo, também, que ainda pairam sobre a reclamação temas tormentosos que podem vir a ser reavaliados por nossas Cortes Supremas, tal como a natureza jurídica desse instrumento e as respectivas implicações processuais a ele atreladas.
Por ora, resta observar como os tribunais locais e regionais – alguns de forma principiante –, moldarão as suas respectivas normas regimentais e a sua jurisprudência relativa à reclamação, e analisar de que forma esse instituto poderá contribuir ainda mais para o aperfeiçoamento da prestação jurisdicional, que se espera mais célere, segura e efetiva.
REFERÊNCIAS
DIDIER JR., Fredie. Curso de Processo Civil. Volume 2, Teoria da prova direito probatório, teoria do precedente judicial, decisão judicial, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. – 5. ed. rev. atual. e ampl. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2010.
GRINOVER, Ada Pelegrini. A reclamação para garantia da autoridade das decisões dos Tribunais. Revista Jurídica Consulex, ano 6, n. 127, 2002.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil Comentado. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016.
NOVELINO, Marcelo. Curso de direito constitucional. – 10. ed. rev., ampl e atual – Salvador: Ed. JusPodivm, 2015.
PACHECO, José da Silva. O mandado de segurança e outras ações constitucionais típicas. – 4 ed. – São Paulo: RT, 2002.
NOTAS
[1] [...] “Prefiro a corrente doutrinária que defende a natureza jurídica de ação da reclamação constitucional (STJ, 1ª Seção, Rcl. 3.828/SC, rel. Min. Eliana Calmon, j. 28/04/2010, DJE 07/05/2010), considerando-se presentes os elementos fundamentais que compõem uma ação: petição inicial veiculando uma pretensão, citação, contraditório, decisão de mérito coberta por coisa julgada material, além de exigências formais que corroboram a conclusão, tais como a exigência de pressupostos processuais positivos, a capacidade de ser parte, de estar em juízo e postulatória, e negativos, a ausência de coisa julgada, de perempção e de litispendência.”
[2] GRINOVER, Ada Pelegrini. A reclamação para garantia da autoridade das decisões dos Tribunais. Revista Jurídica Consulex, ano 6, n. 127, 2002, p. 39/42.
[3] STF - ADI 2212, Rel. Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 02/10/2003, publicado no DJ de 14/11/2003.
[4] STJ - Rcl 3.828/SC, Rel. Ministra ELIANA CALMON, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 28/04/2010, publicado no DJe de 07/05/2010.
[5] Nesse sentido, destacam-se dois precedentes oriundos das Primeira e da Segunda Seção do STJ: AgInt na Rcl 8.853/PB, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 26/10/2016, publicado no DJe de 29/11/2016; Rcl 25.903/MS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 13/04/2016, publicado no DJe de 19/04/2016.
[6] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 920.
[7] Cf. MARINONI et al. Ob. Cit., p. 921.
[8] STF - Rcl 2132, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 19/11/2002, publicado no DJ de 14/02/2003.
[9] STJ - Rcl 3.828/SC, Rel. Ministra ELIANA CALMON, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 28/04/2010, publicado no DJe de 07/05/2010.
[10] STJ - Rcl 1.859/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/06/2005, publicado no DJe de 24/10/2005.
[11] STF - Rcl. 6.735 AgR/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, julgado em 18/08/2010, publicado no DJe de 10/09/2010.
[12] STF - Rcl 17885 AgR, Rel. Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 02/09/2014, publicado no DJe de 25/09/2014.
[13] STF - Rcl 6449 AgR, Rel. Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 25/11/2009, publicado no DJe de 11/12/2009.
[14] STF - Rcl 16767 AgR, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 30/04/2014, publicado no DJe de 29/05/2014.
[15] STF - Rcl 3.916 AgR, Rel. Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 12/06/2006, publicado no DJ de 25/08/2006.
[16] STF - Rcl 13019 AgR, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 19/02/2014, publicado no DJe de 12/03/2014.
[17] STF - Rcl 2090 AgR, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 01/07/2009, publicado no DJe de 21/08/2009.
[18] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil Comentado. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p. 1.628.
[19] STF - Rcl 6449 AgR, Rel. Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 25/11/2009, publicado no DJe de 11/12/2009.
[20] STF - Rcl 4058 AgR, Rel. Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 17/02/2010, publicado no DJe de 09/04/2010.
[21] STF - Rcl 6078 AgR, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 08/04/2010, publicado no DJe de 30/04/2010; STF - Rcl 8454 AgR, Rel. Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 09/12/2009, publicado no DJe de 26/03/2010.
[22] STF - Rcl 2190, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 23/08/2005, publicado no DJ de 14/10/2005.
[23] STF - Rcl 7358, Rel. Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 24/02/2011, publicado no DJe de 03/06/2011.
[24] Cf. MARINONI et al. Ob. Cit., p. 921.
[25] STF - Rcl 3437, Rel. Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 18/10/2007, publicado no DJe de 02/05/2008.
[26] STJ - Rcl 2.017/RS, Rel. Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 08/10/2008, publicado no DJe de 15/10/2008.
Bacharel em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Servidor Público do Tribunal de Justiça da Paraíba (TJPB). Assessor de Juiz de Primeiro Grau.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEITE, Rodrigo de Queiroz. Os novos contornos processuais da Reclamação Constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 fev 2017, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49371/os-novos-contornos-processuais-da-reclamacao-constitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
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