RESUMO: O presente estudo busca fazer uma análise bibliográfica acerca da responsabilidade penal da pessoa jurídica no ordenamento jurídico brasileiro, uma grande celeuma doutrinária advinda com a possível previsão constitucional contida no art. 225,§3º e Lei 9605/98 – Lei dos Crimes Ambientais. Apresentam-se as principais objeções à responsabilidade penal da pessoa jurídica e seu confronto com o ordenamento instituído, como também os argumentos daqueles que são favoráveis a essa forma de responsabilização. A doutrina desfavorável, considerando a pessoa jurídica como um ente fictício, assevera, como corolário, que esta não possui volição própria, sendo, desse modo, incapaz de praticar crimes, principalmente em virtude dos conceitos dogmáticos de conduta e culpabilidade, nesse contexto a lei ambiental dispôs de modo impreciso as figuras típicas concernentes à pessoa jurídica, bem como não criou mecanismos próprios e adequados para possível responsabilidade penal da pessoa jurídica na seara jurídica brasileira.
Palavras-chave: Responsabilidade penal, Pessoa Jurídica, Incompatibilidade, ordenamento jurídico pátrio.
INTRODUÇÃO
A responsabilidade penal da pessoa jurídica é um dos temas mais controversos da seara penal, que enseja diversos debates e posições distintas. A controvérsia surgiu com a Constituição de 1988 que preceitua em seu art. 225,§ 3° que “as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”. Dez anos após a Constituição Federal, com o advento da Lei 9.605/98, esta expressamente contém em seu texto normativo a responsabilidade penal da pessoa jurídica nos crimes ambientais.
Devido a entendimentos diversos a respeito do tema, há posições que merecem destaque, os que afirmam ser possível a responsabilidade penal da pessoa jurídica, com fundamento na Teoria da Personalidade Real, pela qual as pessoas jurídicas não são abstrações ou ficções legais, mas entes reais com vontade e personalidade próprias, que podem sim cometer crimes; e os que advogam que a pessoa jurídica não pode cometer crimes, corrente a qual nos perfilhamos neste estudo. Os argumentos utilizados na defesa da impossibilidade de responsabilidade penal da pessoa jurídica destacam-se: a pessoa jurídica não tem vontade, capaz de configurar dolo e culpa que são figuras indispensáveis no direito penal democrático; a pessoa jurídica não age com culpabilidade, não possui capacidade de discernimento para entender e querer, não tem consciência da ilicitude e mais as penas só podem ser aplicadas às pessoas físicas, pois as penas têm por intuito prevenir crimes e reeducar o infrator, a CF em seu art. 5° inciso XLV consagra que a responsabilidade penal é intrínseca aos seres humanos, pois estes são os únicos dotados de consciência, vontade e capacidade de compreensão do fato e da ação. Logo, tão óbvio que a Constituição Federal não autoriza expressamente a responsabilidade penal, desta feita às pessoas jurídicas reservam-se as sanções civis e administrativas.
Para que a responsabilidade penal da pessoa jurídica seja aplicada de forma constitucional em nossa legislação, é necessário uma reformulação da teoria do delito hoje vigente em nosso direito, com a introdução de institutos de responsabilização penal particulares e adequados à pessoa jurídica. A norma contida no art. 225, § 3° da Constituição Federal de 1988 e prevista de modo superficial na Lei 9.605/98 é imprópria e precária para a responsabilização penal das pessoas jurídicas.
Nos países onde a responsabilidade penal da pessoa jurídica é implantada a realidade é bem distinta da nossa, nesses países a pessoa jurídica criminalmente punida, pode sofrer danos irreparáveis à sua imagem diante da coletividade. Mas essa não é a realidade brasileira, já que as infrações cometidas pelas pessoas jurídicas chegam sequer ao conhecimento da sociedade.
Em sendo assim, com base nos elementos acima delineados, a presente pesquisa tem por objetivo traçar a viabilidade da responsabilização penal da pessoa jurídica no direito brasileiro, percorrendo sua trajetória na legislação brasileira, explicitando o perfil acerca do atual disciplinamento da responsabilização no nosso ordenamento jurídico e por fim, demonstrar a sua incompatibilidade com o nosso direito da forma como posta atualmente.
A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA NOS CRIMES AMBIENTAIS
1.A LEI 9605/98: LEI DOS CRIMES AMBIENTAIS
Diante dos reclamos da sociedade brasileira quanto à ineficaz proteção ambiental e da imperiosidade em se reprimirem as crescentes agressões ao meio ambiente, o legislador ordinário fez ingressar no ordenamento jurídico nacional a Lei n° 9.605/98, mais conhecida por Lei dos Crimes Ambientais, reguladora da aplicação de sanções (penais e administrativas) às pessoas físicas e jurídicas que lesem o ambiente. Assim, com esse diploma legal, foi pela primeira vez instituída (expressamente) a responsabilidade penal dos entes jurídicos na esfera infraconstitucional pátria, relativamente aos delitos ambientais e, em estrita obediência ao comando constitucional.
Portanto, verifica-se que, desde 1998, o ordenamento brasileiro conta com a previsão constitucional e legal acerca da responsabilidade penal das corporações por crimes ambientais (no Art. 3.° da Lei n° 9.605/98). Dessa maneira entende-se, porque o Art. 3.° da Lei dos Crimes Ambientais veio a regular diretamente o Art. 225, § 3.° da Carta Magna.
1.1 O Art. 3.° da Lei dos Crimes Ambientais
De forma expressa e inequívoca, o Art. 3.° da Lei n° 9.605/98 veio a consagrar, no âmbito infraconstitucional, a efetiva responsabilização penal das corporações quando elas cometerem delitos ambientais no seu interesse ou benefício e através de decisão do seu representante ou de seu órgão colegiado.
Ademais, no parágrafo único daquele dispositivo, o legislador ainda tratou da questão da responsabilidade das pessoas naturais partícipes e coautoras do crime perpetrado pela pessoa coletiva. Por seu turno, gize-se o que literalmente dispõe o Art. 3.° da referida lei:
As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato.
Depreende-se, da singela leitura desse comando, que foram fixados dois requisitos legais (concorrentes) para a existência da responsabilidade do ente coletivo por delitos ambientais, quais sejam: ter sido o ilícito praticado por meio de decisão do seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão administrativo; e ter sido o crime cometido no seu benefício ou interesse. Vale lembrar, ainda, que na ausência de um desses requisitos legais, não haverá responsabilização da pessoa moral, existindo somente a responsabilidade da pessoa física.
Verifica-se, por outro lado, da leitura do parágrafo único daquele dispositivo, que não foi excluída a responsabilidade penal do indivíduo coautor ou partícipe do delito cometido por uma pessoa jurídica, estabelecendo, para esses caso. Frente a tais peculiaridades fixadas pelo Art. 3.° da lei dos crimes ambientais, percebe-se que elas merecem algumas considerações, como se fará abaixo.
1.1.1Requisitos legais
O primeiro requisito legal, disposto no já mencionado artigo da Lei n° 9.605/98, diz respeito ao fato de ter sido o ilícito ambiental cometido mediante decisão do representante legal ou contratual, bem como do órgão colegiado da pessoa jurídica. Esse pressuposto enumerado pela lei, guarda grande similitude com um dos requisitos objetivos arrolados pela doutrina para se responsabilizar a pessoa coletiva, que é a vinculação imediata dessa última com o indivíduo que materialmente cometeu o crime por ela, ao cumprir uma decisão corporativa. Tal requisito é de suma relevância para haver a responsabilização do ente coletivo nos precisos parâmetros da lei ambiental.
De acordo com Luís Paulo Sirvinskas (2005), devem-se compreender os representantes legais e contratuais, como os indivíduos que têm a prerrogativa de dirigir as atividades da pessoa jurídica (como um todo) e poder de decisão em virtude, respectivamente, da lei e o do contrato ou estatuto social. Já o citado órgão colegiado deve ser entendido como o órgão composto de várias pessoas (físicas ou jurídicas) e criado pelo ente moral para a tomada de decisões.
Desse modo, partindo a decisão corporativa que ensejou o delito ambiental do representante (legal ou contratual) ou de um órgão colegiado da corporação, esse primeiro pressuposto restará configurado.
O segundo requisito trazido pelo Art. 3.° da referida lei é aquele que perfaz a exigência de ter sido a infração praticada no interesse ou benefício da entidade jurídica. Cumpre somente aqui lembrar, mais uma vez, que não é primordial a real satisfação do interesse ou aquisição do benefício pela corporação para se configurar esse pressuposto, sendo suficiente apenas que o crime tenha sido praticado com um ou ambos daqueles fins.
1.2 Abandono pelos Tribunais Superiores do Sistema da Dupla Imputação
Atualmente, o STJ e o STF adotam a corrente que afirma ser possível a responsabilização penal da pessoa jurídica por delitos ambientais independentemente da responsabilização concomitante da pessoa física que agia em seu nome.
O principal argumento desta corrente é pragmático e normativo: pode haver responsabilidade penal porque a CF/88 assim determinou.
Vale ressaltar que o § 3º do art. 225 da CF/88 não exige, para que haja responsabilidade penal da pessoa jurídica, que pessoas físicas sejam também, obrigatoriamente, denunciadas.
Esta corrente é defendida, dentre outros, por Vladimir e Gilberto Passos de Freitas:
“(...) a denúncia poderá ser dirigida apenas contra a pessoa jurídica, caso não se descubra a autoria das pessoas naturais, e poderá, também, ser direcionada contra todos. Foi exatamente para isto que elas, as pessoas jurídicas, passaram a ser responsabilizadas. Na maioria absoluta dos casos, não se descobria a autoria do delito. Com isto, a punição findava por ser na pessoa de um empregado, de regra o último elo da hierarquia da corporação. E quanto mais poderosa a pessoa jurídica, mais difícil se tornava identificar os causadores reais do dano. No caso de multinacionais, a dificuldade torna-se maior, e o agente, por vezes, nem reside no Brasil. Pois bem, agora o Ministério Púbico poderá imputar o crime às pessoas naturais e à pessoa jurídica, juntos ou separadamente. A opção dependerá do caso concreto.” (Crimes Contra a Natureza. São Paulo: RT, 2006, p. 70).
Afirma a jurisprudência do STJ e do STF:
É possível a responsabilização penal da pessoa jurídica por delitos ambientais independentemente da responsabilização concomitante da pessoa física que agia em seu nome. A jurisprudência não mais adora a chamada teoria da “dupla imputação”. STJ. 6ªTurma. RMS 39;173-BA, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 6/8/2015 (Info 566). STF. 1ª Turma. RE 548181/PR, Rel. MiN. Rosa Weber, julgado em 6/8/2013 (Info 714).
Assim segundo o entendimento jurisprudencial, é possível a responsabilização penal da pessoa jurídica por delitos ambientais independentemente da responsabilização concomitante da pessoa física que agia em seu nome.
1.3 Penas cominadas às Pessoas Morais
No que tange à sistematização das sanções penais, constata-se que o legislador ambiental não foi muito feliz, sobretudo quanto às penas aplicáveis às pessoas jurídicas. Tal opinião é quase que unânime entre os estudiosos dos Direitos Penal e Ambiental, estando na mesma trilha até alguns partidários da responsabilização penal das corporações. De toda maneira, tais imprecisões da Lei n° 9.605/98 em relação à cominação de penas aos entes coletivos, não se constituem em óbices intransponíveis para a efetiva punição daqueles entes, como se verá depois. Entretanto, faz-se mister examinar a mais notável crítica tecida pela doutrina acerca da referida sistemática de imposição de penas às corporações. Tal crítica defende que o princípio constitucional-penal da legalidade, consubstanciado no brocardo nullum crimem, nulla poena sine praevia lege e constante do Art. 5.°, XXXIX da Carta Magna, bem como do Art. 1.° do Código Penal, seria manifestamente violado em razão da maneira pela qual a lei ambiental impõe sanções penais às pessoas jurídicas.
Nesse diapasão, de acordo com os partidários dessa crítica, o princípio da legalidade seria quebrado porque não há expressa cominação especial (no preceito secundário da norma incriminadora) de penas às pessoas morais, na parte especial (crimes em espécie) da Lei n° 9.605/98. Essa acepção apoia-se no fato de as citadas normas incriminadoras serem silentes quanto à sanção específica do ente coletivo e preverem somente penas corporais (inaplicáveis às corporações) e/ou multa. Por outro lado, não obstante a supracitada lei prever explicitamente as penas aplicáveis às pessoas jurídicas nos artigos 21 a 24 da sua parte geral (cominação genérica de pena), os críticos ainda suscitam lesão ao princípio da legalidade (não há pena sem prévia cominação legal), pois julgam inexistir naquele diploma legal normas integradoras (hipóteses de substituição da pena privativa de liberdade, requisitos e limites para tanto) da parte geral com a especial.
1.3.1Multa
Como é cediço, a pena de multa consiste no pagamento ao fundo penitenciário, pelo condenado, da importância fixada pelo juiz na sentença condenatória e calculada em dias-multa. Essa é a noção dada à pena de multa pela lei penal pátria e que é idêntica à dada pela lei ambiental, acrescentados ainda alguns aspectos. Senão observe-se o que estatui o Art. 18 da supracitada lei, citado por Paulo Affonso Leme (2005):
A multa será calculada segundo os critérios do Código Penal; se revelar-se ineficaz, ainda que aplicada no valor máximo, poderá ser aumentada até três vezes, tendo em vista o valor da vantagem econômica auferida.
Assim, vê-se que a multa a ser aplicada pelo magistrado à pessoa moral não diverge em nada (essencialmente) daquela a ser aplicada à pessoa natural, pois será calculada nos mesmos parâmetros do Código Penal (Art. 49), divergindo somente quanto à determinação do seu valor, tendo em vista a capacidade econômica da corporação delinquente. Nesse diapasão, segundo os ditames do Estatuto Repressor, a pena de multa aplicada ao ente moral poderá ter de 10 (no mínimo) a 360 (no máximo) dias-multa, podendo ter o dia-multa valor não inferior a 1/30 do salário mínimo vigente à época do crime e não superior a cinco vezes esse salário.
Nesses termos, caso a multa mostre-se ineficaz, mesmo aplicada no seu valor máximo, o magistrado pode triplicar o seu valor, consoante o comando do Art. 18 da já referida lei e observando a vantagem econômica obtida pela corporação com o crime. Conforme Sirvinskas (2005), a pena de multa pode chegar à casa dos milhões, na hipótese do juiz se utilizar dessa faculdade no caso concreto, perfazendo-se numa sanção suficientemente elevada, até para as grandes sociedades empresárias. Por fim, é de bom alvitre lembrar que a pena de multa não se confunde com a prestação pecuniária, a qual é tipo de pena restritiva de direitos aplicável unicamente ao indivíduo (Art. 8.°, IV da lei ambiental) e consiste num pagamento em dinheiro destinado à vítima.
1.3.2Restritivas de direitos
A Lei n° 9.605/98, afastando-se da sistemática do Código Penal, como não poderia ser diferente, trouxe no seu Art. 22 três espécies de sanções restritivas de direitos, as quais são completamente compatíveis com a punição das pessoas jurídicas, pois tais penas são dotadas de um forte aspecto patrimonial. Isto posto, observe-se o que preceitua o mencionado comando legal e seus parágrafos:
Art. 22. As penas restritivas de direitos da pessoa jurídica são: I - suspensão parcial ou total de atividades; II – interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade; III - proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações.
§ 1º A suspensão de atividades será aplicada quando estas não estiverem obedecendo às disposições legais ou regulamentares, relativas à proteção do meio ambiente. § 2º A interdição será aplicada quando o estabelecimento, obra ou atividade estiver funcionando sem a devida autorização, ou em desacordo com a concedida, ou com violação de disposição legal ou regulamentar. § 3º A proibição de contratar com o Poder Público e dele obter subsídios, subvenções ou doações não poderá exceder o prazo de dez anos.
A primeira pena restritiva de direitos enumerada por esse dispositivo legal consiste na suspensão parcial ou total de atividades da pessoa coletiva que não estiver cumprindo as disposições legais e/ou regulamentares referentes à proteção ambiental. Consoante a lição de Paulo Affonso Leme (2005) sobre esse ponto, de conformidade com a extensão, a potencialidade e a origem do dano ambiental, o julgador poderá ordenar a suspensão parcial ou total das atividades exercidas pelo ente moral. Por oportuno, vale recordar que essa modalidade de sanção restritiva de direitos é demasiadamente relevante, no sentido de impedir que certas corporações deem continuidade às suas atividades contrárias à saúde humana e à vida animal e vegetal. Ressalte-se, por fim, que essa sanção mostra-se compatível com alguns tipos penais da já referida lei que trazem como elementos normativos seus a desobediência a certas normas legais e regulamentares.
Outra sanção restritiva de direitos arrolada pela lei de crimes ambientais (Art.22 e seu § 2.°) é a interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade, aplicável pelo juiz penal sempre que esses estiverem funcionando sem autorização, ou em divergência com a concedida, ou ainda com violação de preceitos legais ou regulamentares. Ao contrário da pena de suspensão de atividades, a qual poderá ser imposta temporária ou definitivamente à pessoa moral, a pena de interdição será sempre aplicada temporariamente. Conforme Paulo Affonso Leme, a sanção de interdição é equivalente ao embargo da obra, do estabelecimento ou da atividade e, caso esses continuem a funcionar, o próprio juiz penal que condenou a corporação deve ordenar a abertura de inquérito policial, para a apuração da prática do ilícito do Art. 359 do Código Penal. A relevância da presente sanção reside no fato de se impelirem os entes coletivos a se adaptarem à legislação ambiental (lato sensu), antes mesmo de iniciar qualquer obra ou atividade.
A proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações é uma terceira pena restritiva de direitos, consoante a redação do Art. 22 da Lei n° 9.605/98. Dessa forma, uma vez condenada na presente pena, a pessoa jurídica estará terminantemente impedida de contratar com a Administração Pública (direta e indireta), com ou sem processo licitatório. Contudo, tal proibição de contratar com o Poder Público não deve ser levada ao extremo de se impedir o acesso da pessoa moral aos serviços públicos essenciais (água, energia elétrica, esgoto, por exemplo), tendo o julgador a missão de reger-se pelo Princípio da Razoabilidade na fixação dessa pena.No pertinente à vedação da corporação de obter subsídios, doações ou subvenções do Poder Público, entende-se que as verbas públicas (dinheiro do contribuinte) não podem, evidentemente, ser repassadas às pessoas morais criminosas, estando a lei ambiental em perfeita sintonia com os Princípios Básicos da Administração Pública, sobretudo com os da Legalidade e da Moralidade.
1.3.3Prestação de Serviços à Comunidade
Diferentemente da sistematização das sanções feita no Estatuto Repressor pátrio, a lei dos crimes ambientais considera (somente quanto à pessoa moral) a pena de prestação de serviços à comunidade como forma de pena autônoma e não como uma espécie de pena restritiva de direitos. Não obstante isso, tal pena de prestação de serviços à comunidade a ser imposta à corporação que cometeu crime ambiental, tem a mesma natureza daquela que é aplicada à pessoa física. Ao tratar das modalidades da já referida sanção, o Art. 23 da Lei n° 9.605/98 estatui que:
A prestação de serviços à comunidade pela pessoa jurídica consistirá em: I - custeio de programas e de projetos ambientais; II - execução de obras de recuperação de áreas degradadas; III - manutenção de espaços públicos; IV - contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas.
Diante desse elucidativo comando legal, cumpre somente apresentarem-se algumas pequenas considerações da doutrina sobre as apresentadas espécies da pena de prestação de serviços.
Quanto ao custeio de programas e de projetos ambientais, vale mencionar que essa sanção é de grande ajuda para a tutela do meio-ambiente e que a pessoa moral deverá apenas custear o projeto ou programa, não sendo da sua responsabilidade a elaboração e execução dos mesmos. Embora a lei ambiental a coloque entre as penas de prestação de serviços à comunidade, a presente sanção possui, notadamente, índole pecuniária e não consiste em serviço algum.
No que tange à execução de obras de recuperação de áreas degradadas, ela se mostra mais eficaz quando aplicada ao ente jurídico que detém melhor capacidade técnica, em razão das atividades que desenvolve, para executar diretamente a recuperação da área deteriorada. Por último, deve-se lembrar que a mencionada pena não se confunde em nada com a reparação civil dos danos causados pela corporação ao meio ecológico, a qual poderá ser pleiteada na esfera competente.
Em relação à manutenção de espaços públicos, faz-se mister que o juiz, ao fixá-la na sentença condenatória, determine especificamente sobre qual bem público de uso comum do povo ou uso especial da administração recairá a manutenção a ser feita pela pessoa jurídica, bem como especifique a forma dessa mantença.
Já no que diz respeito à pena de contribuição a entidades ambientais ou culturais públicas, vislumbra-se que a mesma tem, à semelhança da pena de custeio de programas ambientais, um forte cunho pecuniário. Ademais, os jurisconsultos pregam que o julgador pode fixar essa contribuição a ser realizada pela pessoa moral como um pagamento de certa quantia em dinheiro ou como uma permissão de uso de determinado bem seu.
Vistas essas sucintas considerações, merece ser trazida à baila uma derradeira e relevante ponderação feita por Paulo Affonso Leme (2005), no sentido de que “Será oportuno que se levantem os custos dos serviços previstos no Art. 23 para que haja proporcionalidade entre o crime cometido, as vantagens auferidas do mesmo e os recursos econômicos e financeiros da entidade condenada.” Assim, tal orientação haverá sempre de nortear o magistrado quando da fixação desse tipo sanção aos entes coletivos.
1.3.4Liquidação Forçada
A despeito de não estar no rol do Art. 21 da lei de crimes ambientais, a liquidação forçada é a sanção mais gravosa a ser aplicada às pessoas jurídicas. Ela está prevista no Art. 24 do supracitado diploma legal o qual estatui que:
A pessoa jurídica constituída ou utilizada, preponderantemente, com o fim de permitir, facilitar ou ocultar a prática de crime definido nesta Lei terá decretada sua liquidação forçada, seu patrimônio será considerado instrumento do crime e como tal perdido em favor do Fundo Penitenciário Nacional.
Diante desse enunciado legal, afere-se o quão drástica é a mencionada sanção, a qual impõe a dissolução da corporação e ainda o confisco do seu patrimônio em favor do fundo penitenciário nacional. Todavia, há quem entenda que os bens do ente moral devessem ser perdidos em favor da recuperação do meio ambiente lesado e não daquele fundo. Por outro lado, existem autores (a exemplo de Galvão) que sustentam ser a liquidação forçada um efeito da condenação da pessoa jurídica e não uma pena propriamente dita, visto que está ausente do elenco do Art. 21 da lei ambiental. Entretanto, a doutrina majoritária a compreende como uma sanção acessória aplicável aos já tão citados entes. Nesse sentido e ainda enunciando um pressuposto processual para que a pena de liquidação forçada seja imposta pelo julgador, Gilberto e Vladimir Passos de Freitas (2000) asseveram que:
A liquidação é uma autêntica pena acessória e deverá, por isso mesmo, ser objeto de expresso pedido na denúncia. Se assim não for, não poderá o juiz impô-la na sentença, pois estaria sacrificando o direito de ampla defesa da ré.
Essa pena acessória denota-se revestida de cunho eminentemente preventivo e dificilmente será aplicada em um caso concreto, pois faz-se necessária à sua imposição, a prova da preponderância da atividade corporativa em permitir, facilitar ou ocultar a prática de crime ambiental.
2. Argumentos doutrinários em contrário da Responsabilidade Penal da PJ
Mostra-se cada vez maior, no Brasil e no mundo, a necessidade de se utilizar o Direito Penal contra as pessoas jurídicas, em virtude da criminalidade moderna, onde aquelas exercem relevante papel. Não obstante esse motivo e a já consolidada previsão constitucional, existem renomados autores que defendem a tese da irresponsabilidade penal das pessoas coletivas, a exemplo de René Ariel Dotti, Luiz Regis Prado, Cezar Roberto Bitencourt, José Henrique Pierangelli, Miguel Reali Júnior, entre outros.
Os adeptos dessa corrente fundam-se, primeiramente, na Teoria da Ficção acerca da natureza jurídica da pessoa moral, considerando-a como um ente fictício, abstrato e criado pela lei. A partir daí, os referidos autores defendem suas posições com argumentos baseados nos dogmas do Direito Penal clássico, o qual erigiu suas bases sobre o pensamento liberal do século XVIII.
Segundo Luiz Regis Prado (2001), os fundamentos principais dessa corrente contrária à responsabilização das pessoas jurídicas, resumem-se: na incapacidade de conduta típica, na incapacidade de culpabilidade (Princípio da Culpabilidade) e na incapacidade de ser penalizada (Princípio da Personalidade da Pena) de tais entes jurídicos, elementos imprescindíveis à conformação da responsabilidade penal subjetiva.
Veja-se, de maneira preliminar, o que afirma René Ariel Dotti (2001), o defensor mais fervoroso da irresponsabilidade penal das pessoas coletivas no direito penal brasileiro:
A tentativa de atribuir a capacidade penal às pessoas jurídicas é mais um projeto de desestabilização do sistema penal positivo na medida em que estimula a impunidade quando a investigação deixar para segundo plano a identificação dos prepostos da pessoa coletiva.
O presente entendimento reflete a preocupação de alguns autores em se deixar impunes os ‘verdadeiros’ autores físicos dos delitos ‘supostamente’ cometidos pelas pessoas morais, na medida em que as investigações policiais se conformariam apenas em apontar o ente jurídico por meio do qual a pessoa natural delinquiu. Como foi dito pouco acima, a grande maioria dos doutrinadores que se opõem à responsabilidade criminal das corporações partem do pressuposto de que as mesmas são apenas criações fictícias da lei, abstrações jurídicas sem vontade própria, com supedâneo na Teoria da Ficção, cujo maior expoente foi Savigny. A partir dessa conjectura é que eles elaboram suas principais alegações dogmáticas na órbita penal. Assim, consoante Luiz Regis Prado, confirmando tal conjectura, a pessoa jurídica deve ser considerada como sendo apenas um ser abstrato, pois lhe falta a vontade e inteligência do homem natural; ademais, a realidade existencial da corporação funda-se nas decisões dos seus representantes, as quais, por uma ficção legal, são como suas consideradas.
Dessa forma, agora já se pode iniciar propriamente o exame dos principais argumentos opostos à referida responsabilização da pessoa moral, iniciando-se pela alegação de que ela não é capaz de ação própria, no sentido penal. Após explicitar o conceito e os elementos da conduta, como elemento do fato típico, e situando-a na Teoria Geral do Crime, José Henrique Pierangelli leciona que “Uma vez estabelecido que a ordem jurídico-penal só regula condutas humanas, estabelecemos que as pessoas jurídicas não possuem capacidade de conduta.” A opinião do mencionado autor funda-se, resumidamente, na já citada Teoria da Ficção acerca da natureza da pessoa coletiva, cujo entendimento é o de que esta não é dotada de vontade autêntica, desvirtuada da dos seus integrantes ou representantes; como corolário disso, sem vontade não existe conduta e, sem essa, não há crime. Mais à frente, Pierangelli conclui sobre o argumento ora analisado e consoante o jurista, a vontade de ação dirigida a uma finalidade (como primeiro elemento da conduta) é um acontecimento psicológico inexistente na pessoa moral e que apenas se pode atribuir-lhe uma conduta involuntária ou uma noção da face objetiva da ação. Destarte, devido à suposta ausência de autodeterminação (vontade e consciência), a corrente adversa à já mencionada responsabilização defende a incapacidade dos entes morais terem uma conduta legalmente tipificada como infração penal.
Outrossim, pode-se destacar um segundo argumento desfavorável à responsabilidade criminal das pessoas jurídicas, qual seja, a culpabilidade, constitucionalmente assegurada, como pressuposto para aplicação da pena àquele que tenha praticado um delito, e que proíbe a responsabilidade penal sem culpa no Brasil. Desse modo, a par do exato conceito de culpabilidade e dos seus elementos hodiernamente postos pela doutrina (imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa), Prado (2001) doutrina que:
A culpabilidade penal como juízo de censura pessoal pela realização do injusto típico só pode ser endereçada a um indivíduo (culpabilidade da vontade). Como juízo ético-jurídico de reprovação, ou mesmo de motivação normal pela norma, somente pode ter como objeto a conduta humana livre.
Nesses termos, os adeptos desta corrente consideram que, se somente a ação humana psicologicamente livre é suscetível do juízo de reprovação social (culpabilidade lato sensu), as ações das pessoas morais, pelo contrário, são incapazes de serem apreciadas por tal juízo. Por isso, os teóricos supracitados proclamam que a pretendida responsabilidade criminal da corporação é uma responsabilidade penal sem culpa ou objetiva, o que é vedado pela Constituição Federal.
Além da dificuldade quanto à culpabilidade em geral, seu principal elemento, que é a imputabilidade, também é utilizada em desfavor da já citada forma de responsabilidade criminal. Segundo Bittencourt (1999), as condições bio-psicológicas para que haja um ‘entendimento’, imprescindíveis para haver a imputabilidade, são atributos exclusivos da pessoa física, os quais não podem ser transpassados para a pessoa jurídica.
Quanto ao segundo elemento da culpabilidade, qual seja, o potencial conhecimento da antijuridicidade, também utilizado como alegação da presente corrente, René Ariel Dotti (2001) afirma que:
A pretensão de se incriminar as pessoas coletivas esbarra na impossibilidade de se conceber que uma empresa comercial, por exemplo, tenha possibilidade de formar a “consciência da ilicitude” da atividade que é desenvolvida pelos seus prepostos e servidores.
Em relação à exigibilidade de conduta diversa, como terceiro elemento da culpabilidade, os juristas defensores do brocardo societas deliquere non potest creem que esse elemento é compatível com a responsabilização criminal das pessoas jurídicas, não tecendo maiores considerações sobre o mesmo. Todavia, os jurisconsultos partidários da irresponsabilidade penal das corporações, concluem, quanto ao já citado argumento, que na ausência de qualquer dos três componentes da culpabilidade, ela não existirá e, desse modo, sem culpabilidade não se admite aplicação de pena no âmbito do Direito Penal pátrio.
Na sequencia, outro argumento pró-irresponsabilidade das pessoas coletivas reúne-se no princípio constitucional penal da personalidade das penas (Art. 5°, XLV da Constituição) e nas sanções penais em si mesmas consideradas. Dito princípio prega, literalmente, que na seara criminal nenhuma pena passará da pessoa do condenado ou, por outras palavras, é vedada a aplicação de pena a quem não seja autor ou partícipe de delito. Nesses termos, consoante essa garantia individual, Shecaira (2005), ao apresentar esse argumento dos seguidores da não responsabilização da pessoa moral, aduz:
A condenação de uma pessoa jurídica poderia atingir pessoas inocentes como os sócios minoritários (que votaram contra a decisão), os acionistas que não tiveram participação na ação delituosa, enfim, pessoas físicas que indiretamente seriam atingidas pela sentença condenatória.
Os adversários da responsabilidade criminal das pessoas jurídicas, igualmente afirmam que as penas impostas àquelas não teriam o condão de intimidá-las ou reeducá-las, visto que elas supostamente não possuem vontade, quebrando a finalidade preventiva especial da sanção penal. Nesse mesmo diapasão, consoante Prado (2001), compreende-se que as ideias de prevenção e de ressocialização concernentes à pena, não têm propósito em relação aos entes coletivos, pois os mesmos não sentem o caráter psicológico da pena.
Uma outra alegação relativa à sanção penal, diz respeito à impossibilidade material de se aplicar às pessoas morais penas privativas de liberdade (detenção e reclusão), ainda consideradas como o meio primordial de punição usado pelo Estado em face das pessoas físicas; tal arguição explica-se pelo fato de não se poder colocar os entes coletivos, de per si, ‘atrás das grades’.
Por fim, uma última alegação, de ordem político-criminal, dos que defendem o adágio societas delinquere non potest, reside na desnecessidade de se responsabilizar penalmente a pessoa coletiva; assim seria porque rígidas medidas sancionadoras de ordem civil e administrativa seriam suficientes para reprimir a utilização daquela em fins ilícitos (lato sensu), por seus integrantes ou diretores.
Segundo Prado, a responsabilização penal individual dos membros ou dirigentes da pessoa jurídica apresenta-se suficiente e não obsta que se imputem sanções civis, administrativas ou tributárias àquela, quando for ‘empregada como instrumento’ para a prática de infrações penais, resultando, como corolário, a inutilidade da sua responsabilização criminal. Vale ressaltar que o presente argumento mostra-se profundamente influenciado pelos Princípios da Intervenção Penal Mínima e da Fragmentariedade, os quais pregam, em resumo, uma intervenção do Direito Penal apenas nos fragmentos dos interesses jurídicos mais relevantes à sociedade, e quando os outros ramos jurídicos não conseguirem tutelá-los.
Conclui-se, afinal, que a maioria dos argumentos desfavoráveis à responsabilidade penal das pessoas morais giram em torno da noção de vontade e da sua presumida ausência naqueles entes, com arrimo na Teoria da Ficção.
3. Argumentos doutrinários favoráveis à responsabilidade penal da PJ
Diante da premente exigência de proteção aos bens jurídicos e interesses difusos da sociedade, bem como da verificação de que as pessoas jurídicas, por seus próprios atos, são seus ofensores precípuos, os penalistas de todo o mundo começaram a pregar a efetiva responsabilização penal daquelas; considerando-se essa última, a melhor forma de tutelar o meio-ambiente, a ordem econômica, o mercado de consumo, etc.
Aqui no Brasil, mesmo antes da entrada em vigor da atual Constituição Federal, já havia doutrinadores pugnando pela referida responsabilidade das pessoas jurídicas, a exemplo de Affonso Arinos Mello Franco (1930). Mas foi a partir da vigência da Carta Política de 1988, com a sua possível previsão sobre a responsabilização criminal das corporações, que se multiplicaram os doutrinadores a favor da tese da pessoa coletiva criminosa, não obstante a existência de contundentes alegações em contrário.
Pode-se citar, dentre os muitos jurisconsultos brasileiros que apoiam a presente tese: Sérgio Salomão Shecaira, Damásio de Jesus, Fernando Galvão, José Afonso da Silva, João Marcello de Araújo Junior, Fernando Capez, Arthur Migliari Jr., Paulo Affonso Machado, Vladimir e Gilberto Passos de Freitas, Ives Gandra, Celso Ribeiro Bastos, Ada Pellegrini Grinover, Fausto Martin de Sanctis, Felipe Negreiros Deodato, Walter Claudius Rothenburg, Edis Milaré e tantos outros.
Frise-se, pois, a lição introdutória de Migliari Júnior (2002):
Dentro dessa lógica a entrada da pessoa moral como responsável criminal é um avanço ao efetivo combate ao crime, à verdadeira e real sinalização para a responsabilização do verdadeiro autor do fato jurídico punível, deixando-se de lado as verdades meramente formais, que, a nosso ver, não esgotam o campo do processo penal.
Isto posto, vê-se que os estudiosos defensores da constitucionalmente consagrada responsabilidade penal das corporações enumeram diversos argumentos fundamentando suas posições, alguns de matiz político-criminal e outros tantos de ordem dogmática. Iniciar-se-á pela análise das alegações de caráter político-criminal, passando-se depois para o exame daquelas de matiz dogmático.
Destarte, uma primeira alegação favorável à já citada responsabilização, também aceita pelos seus opositores, diz respeito à enorme dificuldade de se realizar uma efetiva investigação policial dentro de uma empresa (por exemplo), com vistas a colher provas e apurar a responsabilidade individual de um dos seus membros ou empregados, pelo cometimento de crimes. Conforme Maria Celeste Cordeiro, apoiada na lição Edwin Sutherland, quando uma pessoa coletiva persegue, objetiva um plano criminoso, sua própria organização interna oferece infindáveis facilidades para a ocultação de provas, preenchimento de lacunas e generalização de condutas, resultando que na maioria das vezes as investigações se exaurem nos níveis mais baixos da sua hierarquia e não onde as efetivas decisões são tomadas.
Shecaira (2005) traz à baila, por sua vez, um outro argumento de ordem político criminal, desta vez citando Klaus Tiedemann, qual seja:
(...) os agrupamentos criam um ambiente, um clima que facilita e incita os autores físicos (ou materiais) a cometerem delitos em benefício dos agrupamentos. Daí a ideia de não sancionar somente a estes autores materiais (que podem ser mudados ou substituídos) mas também, e sobretudo, a própria empresa.
Esse argumento demonstra realmente a superficialidade e a insuficiência com que o Direito Penal tradicional ou clássico vem tratando da presente temática, responsabilizando individualmente determinados representantes e/ou empregados, facilmente substituíveis, os quais apenas externaram a real ação delituosa do ente coletivo. Até alguns jurisconsultos desfavoráveis à presente responsabilidade dos entes coletivos reconhecem a pertinência de tal alegação, assim como o faz Bittencourt (1999), ao asseverar que “(...) punindo um ou outro membro da organização, esta continuará sua atividade, lícita ou ilícita, através dos demais.” Em decorrência disso, infere-se que a exclusiva responsabilização individual de funcionários ou até de diretores das pessoas coletivas, que tenham agido no interesse delas, não tem a virtude de reprimir a contumaz atividade criminosa daqueles entes, porque aqueles indivíduos podem ser rapidamente substituídos, enquanto que aquelas persistem. Alguns juristas defendem, como já visto, a suficiência da responsabilização civil e administrativa no combate aos ilícitos perpetrados no âmbito dos entes coletivos. Resultando daí a consequente desnecessidade político-criminal da responsabilização penal destes últimos, porque os ‘verdadeiros’ autores da infração já seriam criminalmente responsabilizados.
Todavia, ao rebater essa crítica, os defensores da tese da pessoa moral delinquente sustentam que, em face da moderna criminalidade (ambiental, econômica, etc.), é preciso que o Estado se guie pelo perigo de dano aos bens e interesses jurídicos difusos, ao invés do dano efetivo, pois quando esse surgir já poderá ser impossível sua reparação. Além disso, os citados autores alegam faltar na responsabilidade civil das pessoas jurídicas o escopo preventivo (geral) contido na sanção penal, além do que é uma resposta privada (individual) a um dano causado a um bem difuso da coletividade; já quanto à responsabilidade administrativa, arguem sobre a volatilidade das penas administrativas, principalmente aqui no Brasil, muito influenciadas pelo aspecto político, sendo quase nunca aplicadas aos ‘amigos do rei’ ou àqueles que financiaram a sua eleição.
Entendimento semelhante possui Winfried Hassemer, relevando a importância da proteção do meio-ambiente e da ordem econômica como bens difusos da sociedade, quando citado por Bittencourt (1999) e afirmando que:
(...) nestas áreas, espera-se a intervenção imediata do Direito Penal, não apenas depois que se tenha verificado a inadequação de outros meios de controle não-penais. O venerável princípio da subsidiariedade ou a ultima ratio do Direto Penal é simplesmente cancelado, para dar lugar a um Direito Penal visto como sola ratio ou prima ratio na solução social de conflitos: a resposta penal surge para as pessoas responsáveis por estas áreas cada vez mais (...), senão como a única saída para controlar os problemas.
Desse modo, nos dias de hoje, verifica-se uma grande ineficiência e inutilidade da responsabilização civil e administrativa das pessoas jurídicas, na conjeturada tentativa de se tutelar os supracitados bens e interesses difusos da sociedade. Além do que, ao inverso daquelas duas, a responsabilização penal ainda ensejaria maiores e mais rígidas garantias processuais (devido processo legal, contraditório, ampla defesa, etc.) aos mencionados entes, em razão da utilização do Direito Processual Penal.
Antes de se apresentarem os argumentos de ordem dogmática, favoráveis à efetiva responsabilização penal da pessoa moral, faz-se mister esclarecer que os mesmos fundam-se, inicial e primordialmente, na definição da natureza jurídica do ente coletivo. Senão veja-se o que diz Galvão, introdutoriamente, no mesmo sentido, “A fundamentação dogmática a ser construída para responsabilizar penalmente a pessoa jurídica tem como ponto de partida a definição da natureza do ente moral.”
Enfim, é cediço que os juristas favoráveis à tese da pessoa moral criminosa adotam, à semelhança dos mais conceituados civilistas e do Código Civil vigente as Teorias da Realidade, sobretudo a Teoria da Realidade Técnica, na firmação da natureza jurídica das pessoas coletivas. Tem-se, dessa forma, como a principal consequência da adoção dessa teoria para a presente responsabilização, o fato de ela entender a pessoa jurídica como um ser real, com vontade e objetivos distintos dos que seus membros têm. Como se verá abaixo, os defensores do emendado brocardo societas delinquere potest arrimam suas alegações essenciais nessa compreensão do ente coletivo, sobretudo no fato do mesmo ser dotado de vontade própria, considerada como uma vontade coletiva. Vale acrescentar, apenas a título de comparação, que apesar dos países do Common Law adotarem a Teoria da Ficção, acerca da natureza das pessoas jurídicas, isso não foi empecilho para eles empregarem largamente a citada responsabilidade criminal, o que, contraditoriamente, não ocorre em alguns países do Civil Law, não obstante consagrarem a Teoria da Realidade sobre aquelas entidades coletivas.
Frente ao exposto, vê-se que um dos mais notórios argumentos favoráveis à mencionada responsabilidade penal, é aquele que afirma ser a pessoa jurídica capaz de ação e, consequentemente, apta a realizar uma conduta típica, pois é dotada de uma vontade própria, porque sem uma conduta tipificada, não há o fato típico previsto em lei (um dos requisitos genéricos do crime), e ausente o último, não existe o crime (no conceito analítico). Eis um brevíssimo relato da posição da conduta típica na Teoria Geral do Delito.
Cumpre construir o presente argumento, primeiramente, situando-se o ilícito penal dentro da Teoria Geral do Direito. Consoante Damásio de Jesus, em apertada síntese, o crime é um fato (como acontecimento do mundo real) e, dentre os fatos, ele se constitui num fato jurídico, pois produz efeitos jurídicos; neste passo, como fato jurídico que é o delito pertence à categoria das ações de efeitos jurídicos involuntários, porque seu efeito jurídico primordial (a pena) não é volitivamente desejado pelo agente. Finalmente, inserido o crime nessa última categoria, ele ainda pertence à subcategoria dos atos ilícitos em geral, ao lado e no mesmo patamar dos ilícitos civis e administrativos.
Uma vez esclarecida a situação do ilícito penal relativamente à Teoria Geral do Direito, afere-se que não existe uma disparidade ontológica e essencial entre o mesmo e os ilícitos civis e administrativos, pertencendo todos eles ao gênero dos atos ilícitos. Entende-se que a diferença entre o crime e os demais ilícitos consiste apenas num fator eminentemente legal, qual seja, a natureza mais gravosa da sanção (pena) atribuída ao ilícito penal, tendo em vista os relevantes bens jurídicos protegidos pela norma penal incriminadora, a qual é conteúdo da lei penal.
Na mesma orientação está Damásio, com fulcro diretamente nos ensinamentos de Nelson Hungria e afirmando que:
O legislador, considerando as circunstâncias do momento, analisando o dano objetivo, o alarme social, a forma de lesão, a reiteração, a reparabilidade ou irreparabilidade da lesão, a insuficiência da sanção civil, deve estabelecer se um fato determinado precisa ou não ser erigido à categoria de crime.
Então, a doutrina e a jurisprudência nacionais vêm aceitando, há alguns anos, a responsabilização civil subjetiva da pessoa moral, pelos ilícitos civis que essa comete por sua vontade coletiva.
Por outro lado, analisando-se mais detidamente a conduta, como um dos elementos do fato típico, tem-se que a mesma é uma ação ou omissão voluntária e orientada para a realização de certo fim, segundo os ditames da doutrina majoritária, a qual adota a Teoria Finalista da Ação. Verifica-se que essa definição da conduta é perfeitamente compatível com a atual concepção da natureza da pessoa jurídica, apesar da conceituação da conduta ter sido elaborada com base somente na pessoa natural e suas peculiaridades. Assim se entende porque a pessoa moral é propriamente dotada de uma vontade coletiva, diversa da aspiração pessoal dos seus integrantes ou dos seus funcionários, e sempre orienta tal vontade para a consecução do escopo em razão do qual foi ela constituída. Por conseguinte, tem-se que os representantes ou os próprios funcionários do ente coletivo são apenas (quase sempre) os que externam a referida vontade coletiva ao mundo, por meio de uma ação ou omissão finalística. Neste diapasão, ressalte-se a lição de Roger Merle e André Vitu sobre a vontade da pessoa jurídica como ponto central da sua conduta, quando trazidos à colação por Shecaira (2005):
(...) a pessoa coletiva é perfeitamente capaz de vontade, porquanto nasce e vive do encontro das vontades individuais dos seus membros. A vontade coletiva que a anima não é um mito e caracteriza-se, em cada etapa importante da sua vida, pela reunião, pela deliberação e pelo voto da assembleia geral dos seus membros ou dos seus Conselhos de Administração, de Gerência ou de Direção. Essa vontade coletiva é capaz de cometer crimes tanto quanto a vontade individual.
Igualmente, há inúmeros jurisconsultos ratificando a posição dos representantes, diretores, ou empregados da corporação, como meros instrumentos da ação fisicamente exteriorizada pela mesma. Dentre aqueles juristas está Walter Claudius Rothenburg e consoante sua lição, colacionada por Migliari Jr (2002), é do conhecimento de todos que os fatos da pessoa coletiva são fisicamente praticados, numa última acepção, pelo indivíduo, e isso jamais obstou o Direito de atribuir tais fatos ao próprio ente moral; além do quê, é na imputação jurídica à pessoa coletiva de fatos materialmente realizados por indivíduos, onde se situa uma das suas razões de ser. No mesmo desiderato, porém, como uma pequena variação dessa arguição da capacidade de conduta do ente moral, outros doutrinadores a sustentam com base numa diferença abstrata de planos lógicos em que atuam as pessoas físicas e jurídicas. Destarte, os mencionados juristas entendem, de acordo com a natureza da pessoa moral e o escopo no qual ela é criada, que o Direito deve considerar e tratar seus atos em um plano teleológico ou finalístico, ao inverso do que deve ocorrer com a pessoa natural, devendo seus atos serem considerados num plano ontológico/ideológico (também ideológico porque nem sempre, ao longo da história, determinados seres humanos foram considerados como ‘pessoas físicas’). Com supedâneo nesses preceitos e adentrando diretamente na atual argumentação, Rafael Mafei Queiroz (2003) afirma que:
O agir de uma pessoa jurídica, assim, é biologicamente igual ao de uma pessoa física, vez que, no plano físico, ambos são levados a cabo por um ser humano, que ora age como sujeito de direito individual (pessoa física), ora como sujeito de direito coletivo (pessoa jurídica, sendo o agente seu representante). Saber se determinada ação concreta é ação de pessoa física ou jurídica vem não da observação física do ato, mas sim da compreensão de seu regramento jurídico (...).
Nesse aspecto, mostra-se novamente a importância, da figura dos representantes, diretores e funcionários dos entes jurídicos, como sendo as pessoas naturais que em qualquer ocasião levam a cabo, fisicamente, as ações das pessoas jurídicas, sempre de acordo com os estatutos, atos constitutivos e regimentos das últimas.
Ultrapassado esse importante argumento, cumpre agora tratar-se de outra pertinente alegação dos defensores da tese da pessoa moral delinquente, qual seja, a de que a corporação é possuidora de capacidade de culpabilidade, ou por outras palavras, que ela é passível de culpabilidade, a qual é sumariamente considerada, pela maioria dos penalistas modernos, como o juízo de reprovação feito sobre o agente que cometeu um fato típico e antijurídico (crime). Dentro da Teoria do Delito, apesar dos pensamentos em contrário ainda serem maioria, a culpabilidade não é entendida como um dos requisitos genéricos do crime, e sim como um pressuposto normativo para a imposição da pena ao agente que praticou um ilícito penal, consoante o entendimento de renomados penalistas e a sistemática adotada pelo Código Penal brasileiro.
Ciente disso e das demais fundamentações dogmáticas acerca da culpabilidade, constata-se não ser tão fácil tomá-la como alegação favorável à referida responsabilização. Na mesma orientação estão vários jurisconsultos, e conforme Rafael Queiroz, a dificuldade em se anuir com a responsabilidade dos entes morais, resulta do fato de que o ser humano, como sujeito de Direito Penal, notadamente delimitou os conceitos dogmáticos da Teoria do Crime, decorrendo daí serem as concepções de ação e culpabilidade adequadas exclusivamente às capacidades da pessoa natural.
Em virtude disso, pode-se compreender a posição contrária de alguns doutrinadores a respeito da responsabilidade penal das corporações, sobretudo quanto à sua capacidade de culpabilidade, alegando tais autores a ausência de vontade e consciência naquelas.
No entanto, tais argumentos não são suficientes para impedir que se mostre uma capacidade de culpabilidade da pessoa coletiva. Da forma como foi exposto acima, já se conferiu ser o ente coletivo realmente dotado de vontade e capaz de ação, o que seria o primeiro passo para se reconhecer sua culpabilidade. Nestes termos, segundo Araújo Junior, o acolhimento da capacidade de ação daquele ente coletivo leva, inevitavelmente, à aceitação da sua capacidade de culpa.
Também partindo desse mesmo pressuposto de ser a pessoa jurídica capaz de conduta, há juristas que alegam ser aquela dotada de uma espécie de consciência, a qual seria compatível com os dois elementos da culpabilidade tidos como inadequáveis ao ente moral, que são a imputabilidade e a potencial consciência da ilicitude. Na mesma esteira está Rothenburg, ao ser citado por Migliari Júnior (2002), asseverando que:
Como a pessoa física, a pessoa moral está dotada de inteligência e vontade. Vejamos. A associação se reúne: há aqui a consciência social. Inscreve na ordem do dia os assuntos a tratar, a discutir: é o equivalente social da atenção, com seus motivos. (...) Por fim, as resoluções são executadas, por meio de verdadeiros atos sociais.
Em razão da mencionada consciência social da pessoa coletiva, restariam analogamente configurados aqueles elementos da culpabilidade, concluindo-se pela existência da aptidão de culpabilidade no seio dos agrupamentos.
Segundo Araújo Junior, outro argumento pró-culpabilidade da pessoa jurídica é aquele atinente a uma nova concepção da culpa, fundada na teoria do risco da atividade daquela e na sua responsabilidade social. Dessa forma, alguns juristas pretendem fixar a culpabilidade do ente coletivo, pelos crimes que ele ou seu representante cometer em seu benefício, decorrentes de sua culpa (em geral) em se organizar e atuar. Finalizando, essa modalidade de culpabilidade apoia o juízo de censura à pessoa coletiva no proveito econômico (de regra) auferido pela mesma com o delito e na sua responsabilidade, numa ótica ética e moral, para com a sociedade na qual atua e obtém lucros.
Além dessas duas arguições fundamentadoras da já referida capacidade de culpabilidade, há ainda uma outra, a qual, ciente da supremacia da Teoria Normativa Pura e da Teoria Limitada (esta derivada daquela) da culpabilidade nos últimos tempos, procura legitimar a adequação da culpa aos entes morais, numa compreensão mais atual da culpabilidade e dos fins da pena. Alguns doutrinadores seguem esta trilha, a exemplo de Shecaira e de Felipe Negreiros.
Nesse diapasão, Shecaira (2005), após demonstrar que a regra atual no Direito Penal brasileiro é a da culpabilidade do fato e que sua base filosófica centra-se na liberdade volitiva do agir, entende que esta última existe na corporação, ao citar a lição de Delmas-Marty:
(...) A presunção do livre-arbítrio sobre a qual repousa a responsabilidade das pessoas morais conserva sua plena razão de ser. Todo aquele que já tenha assistido ao conselho de administração de certas sociedades comerciais sabe quanto a deliberação da escolha é uma realidade. O mecanismo da resolução é bem aquele que a teoria clássica da responsabilidade o descreveu.
A mesma orientação argumentativa, some-se o fato contemporâneo do caráter público dado à sanção penal, advindo da evolução da ciência criminal, no qual prevalece como fim primeiro da pena a reprovação da conduta típica e antijurídica, sendo tal reprovação hábil a validar e reafirmar os bens jurídicos tutelados pela norma penal. Assim, diante desse feitio moderno da pena, conclui-se que os seus escopos de retribuição e ressocialização, devem ser colocados em um segundo plano.
De acordo com Shecaira (2005), defensor dessa tese, somente da censura social é que se pode originar a sanção penal, sob o ponto de vista da sua importância pública e da reafirmação dos mais caros bens jurídicos da sociedade de hoje.
Nestes precisos termos, a culpabilidade dos dias atuais, como juízo normativo de reprovação ante o delito e como pressuposto para a imposição da pena (esta atualmente considerada), pode ser realmente aplicável às pessoas coletivas delinquentes, defronte das feições da criminalidade moderna.
Contudo, ainda há juristas que vão mais longe, alegando a possibilidade da pessoa jurídica ser considerada culpada e sofrer uma reprimenda de matiz moral, em função da sua responsabilização penal. Tal entendimento funda-se no fato de a doutrina e a jurisprudência atuais admitirem a existência de honra na pessoa jurídica, podendo esta ser até vítima de danos morais, conforme a súmula 227 do Superior Tribunal de Justiça. Destarte, Hans Joachim Hirsch, lembrado por Shecaira, afirma que “Ao formular-se a reprovação de culpabilidade da pessoa coletiva, à corporação se aplica plenamente um parâmetro moral. Ele se reflete também no fato de que nas associações de pessoas se reconhece honra.”
Desse modo, denota-se ser a pessoa moral capaz de culpabilidade, seja qual for a vertente argumentativa que se adote, não obstante as compreensíveis arguições em sentido contrário dos criminalistas ortodoxos. Superada esta alegação favorável à já mencionada forma de responsabilidade, parte-se para uma outra arguição dos seus defensores, no mesmo objetivo e cujo conteúdo é o de que a responsabilização das pessoas coletivas não viola o princípio da personalidade das penas. A presente alegação vem a refutar diretamente a crítica feita pelos partidários do vetusto brocardo societas delinquere non potest, segundo a qual a condenação e a decorrente imposição de penas aos entes morais, quebrariam o princípio constitucional-penal da personalidade das penas.
Os entusiastas desse argumento proclamam que o princípio da personalidade das penas não seria violado pela responsabilização da pessoa moral, na medida em que as penas impostas não passariam (diretamente) da pessoa jurídica condenada pela prática de um crime.
Consoante Galvão, poderá apenas ocorrer que sócios e acionistas minoritários, ou que foram contra a ação institucional delitiva, bem como associados ausentes à deliberação, sejam indiretamente atingidos pela sanção penal imposta à pessoa coletiva, pois esse é um efeito ordinário e indissociável de qualquer tipo de pena, até quando aplicadas às pessoas físicas, como exemplo existe o fato de a família do condenado recluso ou detento, sofrer indiretamente os efeitos da sanção àquele fixada, porque ficam privados do seu convívio e do seu apoio financeiro no sustento do lar. Assim sendo, infere-se, dos ensinamentos dos mentores desta alegação, que o retro citado princípio não é transgredido, com a responsabilização penal das corporações (lato sensu), pois somente elas sofrem diretamente as consequências da pena.
Um outro ponto a favor da tese da pessoa jurídica criminosa, arrolado pelos seus teóricos, é a característica do ente moral ser compatível com todas (genericamente) as espécies de penas previstas no ordenamento jurídico-penal brasileiro, à exceção da pena privativa de liberdade, obviamente, porquanto mostra-se materialmente impossível enclausurar uma associação, um sindicato ou uma fundação, por exemplo. Todavia, os juristas que pugnam pela irresponsabilidade penal das corporações utilizam tal exceção, equivocadamente, para fundamentar suas posições, arguindo ainda ser a pena privativa de liberdade a reprimenda precípua em relação aos indivíduos. Tal entendimento é totalmente descabido nos dias de hoje, tendo em vista a crise em que se encontra aquela espécie de sanção penal no Brasil, pois ela vem deixando de atender às finalidades da pena lato sensu, impostas pela Ciência Criminal, além de ser extremamente dispendiosa para o Estado.
Conforme Shecaira (2005), a prisão é a forma mais extrema de sanção penal, é a expressão máxima (de regra) do jus puniendi no Estado brasileiro, e deve ser utilizada somente quanto aos delitos mais graves; além do que, hoje, a doutrina majoritária luta pela diminuição e moderação do seu emprego, mostrando-se uma grande contradição doutrinária criticar a impossibilidade da sua imposição junto às pessoas jurídicas.
A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA E SUA INCOMPATIBILIDADE COM O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO.
No direito penal brasileiro em interpretação conforme os valores constitucionais deve-se ter a consciência de sujeito ativo como o ser humano, imputável ou não, que realiza o fato previsto em lei como crime, e assim também o sujeito passivo da cominação legal.
A pessoa jurídica não pode ser sujeito ativo do fato, por não possuir capacidade de ação, já que a ocorrência da vontade, inserido no fato penalmente relevante, é privativo do ser humano e dele não se dá em relação aos entes coletivos.
Embora haja a previsão expressa contida na Lei 9605/98, podem ser citadas duas correntes de pensamento que ministram a irresponsabilidade penal da Pessoa Jurídica.
A primeira corrente expressa que a Constituição Federal não criou a responsabilidade da pessoa jurídica, pois a correta interpretação do §3º do art.225 não sugere a possibilidade penal da PJ. Afirmando que o dispositivo utiliza a expressão ‘condutas’, referindo-se às pessoas físicas, sujeitas as sanções penais; e a expressão ‘atividades’, referindo-se às pessoas jurídicas, sujeitas as sanções administrativas.
Outro argumento desta corrente se fundamenta no art. 5º, XLV, da CF que traz o princípio da pessoalidade da pena, que impede que a responsabilidade penal recaia sobre a PJ, dizendo que a responsabilidade deve recair exclusivamente sobre as pessoas físicas, autoras das condutas criminosas, não se podendo desdobrar nas pessoas jurídicas.
Nesse sentido as lições de René Ariel Dotti (2011) que defende que o art.225,§3º da CF/88:
“Em sua interpretação literal, poderia ensejar o entendimento de que é admissível a responsabilidade penal dos entes coletivos. Porém, a melhor compreensão da norma nos leva à conclusão de que tanto as pessoas físicas como a jurídica podem responder nas ordens civil, administrativa e tributária pelos seus atos; mas a responsabilidade penal continua sendo de natureza estritamente humanos”
E também Cezar Roberto Bittencourt (2011), coloca que:
“no Brasil, a obscura previsão do art. 225,§3º, da Constituição Federal, relativamente ao meio ambiente, tem levado alguns penalistas a sustentarem, equivocadamente, que a Carta Magna consagrou a responsabilidade penal da pessoa jurídica. No entanto, a responsabilidade penal ainda se encontra limitada à responsabilidade subjetiva e individual”
As normas constitucionais atinentes ao procedimento e ao processo seriam inaplicáveis às pessoas jurídicas. Ao final, em processo penal, “ quem teria o “direito ao silencio” ou diante da legislação processual penal, “quem responderia ao interrogatório” A pessoa jurídica? Questiona Sheila Selim.
Na visão desta primeira corrente, é possível se afirmar que o art. 3º da Lei 9605/98 é inconstitucional, por prever responsabilidade penal da pessoa jurídica não contemplada e proibida pela CF. O dispositivo da referida lei ofende materialmente o art. 5º, XLV e art. 225,§3º da Carta Magna, que apenas permite a responsabilização penal das pessoas físicas e não das jurídicas.
A segunda corrente que contempla a não responsabilização penal da pessoa jurídica se fundamenta em que a pessoa jurídica não pode cometer crimes. É o entendimento majoritário na nossa doutrina, podendo citar, Luis Flávio Gomes, José Henrique Pierangelli, Eugenio Raul Zaffaroni, René Ariel Dotti, Luis Régis Prado, Rogério Greco, Vicente Cernicchiaro, entre outros.
Nesse sentido a pessoa jurídica não tem capacidade de ação (de conduta), não tem consciência, vontade e finalidade, sendo assim não podem praticar infrações penais. Punir penalmente a pessoa jurídica seria uma forma de responsabilidade penal objetiva inadmitida no ordenamento penal brasileiro.
As pessoas jurídicas também não possuem culpabilidade, pois não possuem imputabilidade, ou seja, capacidade mental de entender e querer o fato delituoso, nem potencial consciência da ilicitude.
As penas também não podem lhe serem aplicadas em virtude da sua inútil aplicação, pois as penas tem a finalidade de prevenir crimes e reeducar o infrator, impossíveis de serem alcançadas em relação as pessoas jurídicas, que são entes fictícios, incapazes de assimilar os efeitos da sanção penal.
Ainda pode ser sustentado que embora o art. 225,§3° da CF/88 tenha estabelecido a possibilidade da responsabilização penal da pessoa jurídica, tal imputação não seria possível no ordenamento jurídico brasileiro, em razão da teoria do crime adotada pelo nosso Código Penal, que aplica-se exclusivamente para as pessoas físicas. Nesse diapasão, para que a responsabilidade penal da pessoa jurídica seja aplicada de forma constitucional, é necessária uma reformulação da teoria do delito hoje vigente no País, com a inserção de institutos de responsabilização penal específico e adequado à pessoa jurídica. A responsabilidade posta na CF/88 e prevista superficialmente na Lei 9605/98 é escassa e imprópria para a responsabilização penal das pessoas jurídicas.
Ressalta-se que todos os crimes definidos na Lei 9605/98 são também infrações administrativas previstas no Decreto 6514/08. As infrações administrativas previstas nesse Decreto têm redações iguais aos tipos penais incriminadores da Lei 9605/98, que representa que a prática de crime ambiental, importa também em infração administrativa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nota-se que a responsabilidade penal da pessoa coletiva, sobretudo a de direito privado é uma bem-sucedida realidade em vários países do mundo, sendo um eficaz mecanismo para se tutelar os mais caros bens jurídicos de uma coletividade e sendo defendida nos últimos Congressos Internacionais de Direito Penal. Entretanto, a realidade alienígena é distante da realidade brasileira. Para que a responsabilidade penal fosse adotada em outros países foram criados mecanismos próprios e adequados para sua atuação, algo totalmente distinto do que ocorreu no Brasil, onde esta responsabilização foi apenas lançada em nosso ordenamento jurídico sem a sua devida implementação.
Em consequência disto, o presente tema vem suscitando calorosas discussões doutrinárias sobre a sua plausibilidade, pertinência, cabimento e até acerca da clara previsão constitucional. Os eminentes juristas defensores do vetusto brocardo romano societas delinquere non potest, com arrimo na Teoria da Ficção (que prega a pessoa jurídica como sendo um ente fictício, abstrato) e nos dogmas do Direito Penal clássico, alegam, em suma, serem as pessoas coletivas desprovidas de capacidade de ação, de capacidade de culpabilidade e que a responsabilização penal das mesmas implicaria na violação do princípio constitucional-penal da personalidade das penas.
Com o presente artigo se concluiu que a responsabilização penal da pessoa jurídica não é capaz de pôr fim as suas atividades criminosas. Um auto de infração de natureza administrativa quando bem aplicado por um agente competente já se mostra suficiente para inibir as condutas criminosas das pessoas jurídicas ao invés de um demorado processo penal. As multas existentes no Decreto 6.514/08 de valores bem mais elevados aos das sanções por crimes ambientais preocupam muito mais os administradores das pessoas jurídicas, do que um processo penal que se estenderá por longos anos, cujo réu é uma figura inexistente.
Neste debate o direito penal não aparece como a ultima ratio como ele se configura em nosso direito pátrio – a intervenção penal só se mostra legítima quando utilizado como ultima ratio, na falta absoluta de outros meios jurídicos eficazes e menos gravosos - , seguindo esse entendimento quando se trata de responsabilidade penal da pessoa jurídica o direito administrativo é que se configura assim, devido a sua maior reprovabilidade das condutas, imputando as pessoas jurídicas sanções administrativas que chegam ao patamar de R$ 50.000.000,00.
Como acertadamente afirma Silvio Maciel (2010):
“a pessoa jurídica que não respeita o meio ambiente merece punição na severidade proporcional aos danos que causa ao meio ambiente e às nossas vidas. Disso ninguém, com boas intenções, discorda. Mas essa punição pode ocorrer por outros mecanismos jurídicos (legítimos e mais eficazes), sem a necessidade de se “jogar no lixo” a nossa teoria do crime e os intocáveis princípios penais constitucionais.”
O melhor a se fazer é aparelhar devidamente a administração ambiental para que possa atuar de modo eficaz, pois o Poder Judiciário com seus inúmeros problemas não poderá suprir a impotência dos órgãos ambientais em sua função de fiscalização.
Aos entes coletivos poderá ser atribuída outra forma de responsabilidade – civil, comercial, administrativa – por suas atividades ilícitas que se apresentem lesivas, mas não a responsabilidade penal.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO JUNIOR, João Marcello de. Societas delinquere potest – revisão da legislação comparada e estado atual da doutrina. In: GOMES, Luiz Flávio (Org.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
DOTTI, René Ariel. A incapacidade criminal da pessoa jurídica: uma perspectiva do direito brasileiro. In: PRADO, Luiz Regis (Org.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
FALEIROS, José Luiz de Moura. Crimes Ambientais. Disponível em: http://www.uvb.com.br/main/posgraduacao/CienciasCriminais/AulasImpressas/CCTD_Aula05_Extra.pdf. Material da 2ª aula da Disciplina Tutela Penal dos Bens Jurídicos Supra-Individuais,ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Ciências Penais –Universidade Anhanguera-Uniderp – IPAN - REDE LFG.
FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 8. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004
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Bacharela em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa - UNIPÊ, Pós - Graduada em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera Uniderp - Rede de Ensino LFG e Advogada.<br>Cidade: João Pessoa - PB.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Nívea Maria Arcela de. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica e suas Implicações no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 fev 2017, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49581/responsabilidade-penal-da-pessoa-juridica-e-suas-implicacoes-no-ordenamento-juridico-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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