A melhoria das estradas e dos veículos que nelas trafegam em combinação com velhos problemas culturais brasileiros, como o hábito de deixar animais soltos na beira da estrada, são causas para o alarmante crescimento do número de acidentes nesta seara. Como é sabido, na grande maioria das vezes nestes casos os danos são graves, com grande incidência de vítimas, e em muitos casos fatais.
Infelizmente este é mais um triste capítulo da guerra do trânsito no Brasil que mata mais do que em lugares onde existe verdadeira guerra armada.
O trânsito brasileiro produz anualmente números superiores de vítimas aos de nações em guerra. Em média, mais de quarenta e cinco mil pessoas perdem a vida em acidentes nas vias públicas brasileiras. A dimensão desta verdadeira tragédia que marca profundamente as famílias brasileiras é bem pior quando se observa o número de vítimas com sequelas. No Brasil mais de duzentas e cinquenta mil pessoas ficam parcialmente inutilizadas por acidentes de trânsito todos os anos. Esta tenebrosa carnificina gera prejuízos para toda a sociedade nas mais variadas ordens, principalmente econômicas e sociais. (in http://m.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1730045-a-guerra-do-transito-e-o-impacto-na-economia.shtml)
Por óbvio, é urgente avançar para se envidar todos os esforços no sentido de garantir uma melhoria na segurança no trânsito. Neste aspecto, cumpre esclarecer que é fato notório a existência de uma crise mundial de segurança viária devidamente documentada pela Organização Mundial de Saúde.
Tais constatações levaram as Nações Unidas a adotar um novo paradigma relacionado ao fenômeno trânsito que inexoravelmente conduz à especificação do Trânsito Seguro como Direito Humano indispensável à promoção da vida e da saúde dos usuários das vias terrestres em todos os continentes.
Com base na declaração aprovada durante a Conferência de Moscou (A/Res/64/255, par. 2) as Nações Unidas proclamaram o período de 2011-2020 com a Década de Ações para Segurança Viária, com o objetivo de estabilizar e, posteriormente, reduzir os índices de vítimas fatais no trânsito em todo o mundo, aumentando as atividades nos planos nacional, regional e mundial.
Como é sabido, o Estado brasileiro é partícipe desta determinação, portanto está obrigado por normativas internacionais a realizar os objetivos para fazer valer o Direito Fundamental ao Trânsito Seguro até o ano de 2020. O escopo de tal iniciativa é vivenciar um trânsito mais seguro e humano, fruto de um ambiente em que se incentive ações que conduzam à paz.
O direito fundamental ao trânsito seguro, formado pela reunião do direito fundamental à liberdade de circulação com o dever de o Estado proporcionar Segurança Pública aos cidadãos determina a forma como nosso Estado Constitucional Democrático de Direito pretende que seja realizado o uso das vias terrestres em todo o território nacional.
Logo, não há como negar a existência em nosso ordenamento jurídico do “Direito Fundamental ao Trânsito Seguro”, mesmo que contido em nosso ordenamento de forma implícita, como decorrência lógica do regime e dos princípios adotados pela Constituição.
Dessa forma, a segurança indispensável ao exercício da liberdade de circulação em condições seguras é o pilar fundamental da atividade reguladora do Estado, visando proteger a vida e a integridade física dos cidadãos que fazem uso das vias terrestres. A leitura atenta à denominação atribuída pelo Legislador Constituinte ao Capítulo I, do Título II, da Constituição da República: “Dos direitos e deveres individuais e coletivos”, associada ao dever de o Estado proporcionar Segurança Pública aos que circulam em vias terrestres do território nacional, confere a exata noção de direito fundamental ao trânsito seguro como uma espécie de dever do Estado, direito e responsabilidade de todos na forma descrita pelo art. 144 da Constituição Federal de 1988.
Exatamente nessa linha de raciocínio, o legislador do Código de Trânsito Brasileiro fez constar do art. 1º, §2º, da Lei de Trânsito, a expressa referência ao princípio do Trânsito em Condições Seguras, verdadeira norma-princípio que rege a interpretação e aplicação de toda a legislação de trânsito brasileira:
“O trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito.”
O princípio citado deve ser entendido em consonância com os dispositivos constitucionais conforme previsão do art. 5º, inc. XV e art. 144, da Carta Magna da República. Não há como deixar de considerar a necessidade de afirmação do Trânsito Seguro como um direito fundamental e ao mesmo tempo um dever do Estado e de toda a sociedade a todos imposto, pois, no conceito de Estado, todos nós integramos o elemento humano indispensável a sua existência.
A realização do Trânsito Seguro, portanto, consiste em dever de todos e de cada um de nós! Se de fato somos um Estado Democrático de Direito que tem por fundamento a dignidade da pessoa humana, como afirmado no art. 1º, III, da Constituição da República de 1988, o fenômeno trânsito não pode ser visto apenas como o exercício de liberdades individuais, pois o dever de respeito pela vida e integridade física e moral do ser humano é essencial, porquanto se não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, não existe dignidade da pessoa humana!
No caso de acidentes causados por animais nas vias públicas a realização do princípio do trânsito seguro impõe a adoção de medidas preventivas e a imposição de responsabilidade pelos fatos nos campos administrativo, civil e penal, pois o mesmo fato gera consequências nas três frentes citadas. Como exemplo podemos vislumbrar a aplicação da medida administrativa de apreensão dos animais, a responsabilização civil pelos danos causados e a condenação penal pela prática do crime de perigo.
O Direito Penal, em atenção ao princípio da especialidade, enquadra especificamente o proprietário do animal que causa acidente em via pública no artigo 31 da Lei de Contravenções Penais, quando apresenta a seguinte tipificação: “deixar em liberdade, confiar a guarda a pessoa inexperiente ou não guardar com a devida cautela animal perigoso”. Assim sendo, o proprietário pode responder criminalmente quando o animal esteja solto na pista podendo gerar um acidente.
De outra sorte, é possível, de forma subsidiária ao citado artigo da lei de contravenções penais, a tipificação da conduta no tipo penal do artigo 132 do Código Penal, sempre que houver exposição a perigo concreto, direto e iminente, que reste configurado pelo simples fato de alguém deixar animal solto em via pública, e que não possa ser enquadrado no tipo especial de contravenção penal.
No âmbito da responsabilização civil, o Estado, representado pela União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios pode ser responsabilizado quando o acidente causado por animais acontecer em vias públicas federais, estaduais, distritais ou municipais respectivamente.
Quando a via for concessionada a responsabilidade por acidentes causados por animais na pista é da respectiva concessionária que administra o trecho.
Neste caso específico aplica-se o direito do consumidor, pois o condutor do veículo é usuário do serviço prestado pela empresa responsável que deve assegurar a regular prestação dos serviços garantidores da segurança e manutenção da via pública. Este é o entendimento de nossos Tribunais pátrios :
APELAÇÃO CÍVEL - ACIDENTE VEÍCULO - ANIMAL NA PISTA - CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇOS RODOVIÁRIOS - RESPONSABILIDADE OBJETIVA - DEVER DE RESSARCIR OS DANOS MATERIAIS DECORRENTES DO ACIDENTE. - "Conforme jurisprudência desta Terceira Turma, as concessionárias de serviços rodoviários, nas suas relações com os usuários, estão subordinadas à legislação consumerista. Portanto, respondem, objetivamente, por qualquer defeito na prestação do serviço, pela manutenção da rodovia em todos os aspectos, respondendo, inclusive, pelos acidentes provocados pela presença de animais na pista. Recurso especial provido." (STJ, REsp 647710/RJ, Ministro CASTRO FILHO, 30/06/2006) - Recurso provido em parte.(TJ-MG - AC: 10647120011455001 MG, Relator: Veiga de Oliveira, Data de Julgamento: 28/05/2013, Câmaras Cíveis / 10ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 07/06/2013)
Neste aspecto, tornou-se clássica em nosso direito a lição pela qual a simples presença de animais na pista coloca em risco a segurança dos usuários da rodovia. Dessa forma, as concessionárias devem responder pela falha na prestação do serviço, na forma do previsto no Código de Defesa do Consumidor, cabendo a elas aplicar as medidas preventivas de apreensão dos animais que estejam vagando soltos pelas vias públicas.
A responsabilidade civil do Estado ou das concessionárias não ilide a do proprietário dos animais como vacas, cabras, jegues, cachorros, e outros. Difícil é encontrar o dono do animal causador do dano, pois sempre que acontece um acidente o responsável costuma não assumir a culpa pela falha na guarda e quase nunca é identificado pelas autoridades por falta de marcação ou outra identificação. Por óbvio, cabe aos entes responsáveis pelas vias em caso de condenação ação regressiva contra o proprietário do animal de acordo com o que prevê a nossa legislação civil.
Como é sabido, não é possível responsabilizar o animal pelo acidente de trânsito por falta de capacidade jurídica deste. O atual Código Civil Brasileiro prevê, em seu artigo 936, a responsabilidade civil do dono de animais, perigosos ou não, ex vi: “O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força maiores”. Para a nossa legislação basta, portanto, a existência de nexo de causalidade entre o comportamento do animal e o dano verificado para que surja o dever de indenizar, visto que, no caso em exame, adotou-se a responsabilidade objetiva, independentemente da culpa do dono do animal.
A responsabilidade de quem administra a via ou do dono do animal como assevera a legislação citada pode ser ilidida pela existência de caso fortuito ou força maior e, também, há a possibilidade de ocorrência de culpa exclusiva da vítima, pois o inciso XI do art. 220 do CTB é claro em exigir do condutor que reduza a velocidade do veículo de forma compatível com a segurança do trânsito sempre que houver a aproximação de animais na pista.
Infelizmente não é rara a hipótese em que o motorista inadvertidamente ou intencionalmente não reduz a velocidade diante da presença de animais na pista e vem a sofrer acidente de trânsito, muitas vezes com gravíssimas consequências. Nestes casos, é o motorista o responsável pelo acidente, descabendo responsabilizar qualquer outro sujeito de direito.
Importante destacar que o art. 26, inciso I do Código de Trânsito Brasileiro obriga a todos aqueles que de alguma forma se relacionam com o trânsito o dever de se abster de constituir qualquer espécie de perigo ou obstáculo ao trânsito, o que vem a proporcionar densidade normativa às hipóteses de culpa exclusiva da vítima em acidentes de trânsito.
No caso de acidentes de trânsito com animais silvestres, que também acontecem aos milhares em nosso país, cumpre destacar a necessidade que além das medidas aplicáveis aos animais domésticos, existe a necessidade de se incrementar uma melhoria na sinalização, implantação de redutores de velocidade, cercas e passagens que viabilizem a travessia segura dos animais.
Em todos estes aspectos, a questão da educação no trânsito é fator primordial para a redução destes índices, pois a conscientização de todos os envolvidos altera em muito as práticas que causam acidentes.
No específico âmbito administrativo cumpre observar a previsão do Código de Trânsito Brasileiro, que se fosse adequadamente cumprida poderia evitar inúmeros acidentes de trânsito, reduzindo drasticamente os trágicos números existentes.
Como é sabido, o disposto no art. 53 do Código de Trânsito Brasileiro impõe que a circulação de animais seja sempre acompanhada de um guia. De fato, em vias públicas brasileiras não é permitido pela legislação de trânsito a circulação de animal só ou em grupo desacompanhado de guia.
Neste caso específico, a legislação prevê a aplicação de uma medida administrativa prevista no inciso X do art. 269 do Código de Trânsito Brasileiro que impõe o recolhimento dos animais que se encontrem soltos nas vias e na faixa de domínio das vias de circulação.
O cumprimento desta sanção pelas autoridades de trânsito exige que sejam feitas patrulhas das estradas brasileiras com o objetivo de recolhimento de todos os animais que estejam soltos, e por conseguinte possam vir a causar acidentes. Esta é sem dúvida a melhor forma de prevenir estes acidentes.
No caso de apreensão o animal silvestre pode ver restituído à autoridade competente e o doméstico ao seu dono mediante o pagamento de multa e encargos devidos. Quando o proprietário do animal não aparece deverá o mesmo ser submetido a leilão na forma da previsão contida no § 13.º do art. 328 do CTB.
Muito comum é ouvir as mais variadas desculpas das autoridades para o não cumprimento desta norma que impõe as patrulhas para recolhimento de animais soltos nas vias públicas. Dizem os responsáveis que falta caminhão ou materiais para apreender os animais, lugar para guardar, efetivo em número suficiente para dar conta das atribuições rotineiras e mais esta função atribuída por lei às autoridades de trânsito e muitas outras.
Antes de prosseguir é imperioso reconhecer, com absoluta certeza, que se tais medidas administrativas fossem adotadas milhares de mortes e sequelas de acidentes de trânsito tanto de seres-humanos quanto de animais causados por este tipo de colisão seriam evitados em nosso país, ajudando-nos a cumprir os compromissos internacionais assumidos, assegurando de forma efetiva o primado constitucional e legal do trânsito seguro nesta seara, bem como uma melhoria nos indicadores ambientais de preservação de nossa fauna silvestre. Portanto, é preciso que esta lei pegue!
Neste diapasão, impinge asseverar que é possível prevenir a grande maioria dos acidentes causados por animais domésticos nas vias públicas brasileiras. Para tanto, basta dotar os responsáveis nos três níveis da federação, de acordo com as competências administrativas respectivas, de equipamentos e lugares adequados para a guarda dos animais, sem despesa alguma para a sociedade, sendo suficiente para alcançar tal desiderato que o Estado financie tais custos com as verbas arrecadadas na aplicação das sanções administrativas no momento da recuperação pelos donos e nos leilões dos animais apreendidos e não recuperados pelos donos. Outra maneira de dotar a norma de efetividade é estabelecer mecanismos para o credenciamento de empreendimentos particulares para a prestação de serviços públicos de apreensão, guarda, cobrança de encargos e multas de devolução e leilão de animais encontrados soltos nas vias públicas brasileiras, nos moldes do que acontece nos casos dos serviços prestados por particulares no emplacamento de veículos.
Advogado da União, Mestre em Direito pela Universidade Mackenzie - SP e bacharel em direito pela Universidade Federal do Paraná.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, Rodrigo Fernando de Freitas. Responsabilidade e prevenção dos acidentes de trânsito causados por animais nas vias públicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 fev 2017, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49612/responsabilidade-e-prevencao-dos-acidentes-de-transito-causados-por-animais-nas-vias-publicas. Acesso em: 23 dez 2024.
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