Resumo: Responsabilidade civil do Estado por morte de detento. artigos 5º, XLIX, e 37, §6º da Constituição Federal. Este artigo tem por objetivo tecer breves considerações sobre a responsabilidade civil do estado, investigando as teorias que embasaram essa responsabilização no decorrer da evolução desse instituto, bem como, realizar a exegese dos dispositivos que amparam a teoria do Risco Administrativo, teoria ora aplicada, estudar as hipóteses de ruptura do nexo de causalidade, expor a divergência doutrinária existente quanto a teoria a ser aplicada nas hipóteses de responsabilidade civil por omissão, e por fim, promover a análise do Recurso Extraordinário 841.526 RS que tratou de maneira inovadora o tema sob exame.
Palavras- chave: Responsabilidade civil do Estado- Morte de detento- Teoria do risco administrativo.
1-INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por escopo promover uma análise pormenorizada da responsabilidade civil do Estado no caso de morte de preso em presídio, com esteio no art. 5º[1] inc. XLIX c/c art. 37, §6 ambos da Carta Magna. Tal tema tem sido alvo de crescente investigação doutrinária e jurisprudencial, mormente, em virtude do caos que tem se instalado no sistema prisional brasileiro, que por sua superlotação, tem inviabilizado o cumprimento das penas em condições dignas, bem como, dificultado o controle estatal sobre os detentos, culminando, muitas vezes, em rebeliões e chacinas.
A fim de realizar esse estudo, teceremos considerações sobre responsabilidade civil do Estado, bem como, sobre as teorias que embasaram a responsabilização do ente público no decorrer do tempo, examinaremos a teoria que foi positivada no Texto Constitucional, assim como, causas que levam a ruptura no nexo de causalidade, e, por fim, estudaremos detidamente o recurso extraordinário 841.526 do Estado do Rio Grande do Sul da relatoria do Ministro Luiz FUX, tal julgado é inovador na medida que explicita situações em que o nexo de causalidade se rompe, mesmo em casos de óbito de detentos sujeitos a custodia estatal, nesse ponto, cumpre-nos observar, em cada caso concreto, se a morte do presidiário poderia se concretizar ainda que não estivesse sobre a guarda do ente público, tal análise deve ser realizada com base no princípio da razoabilidade, afim de depreender se havia possibilidade do Estado agir para evitar a morte do preso.
2. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO: da Irresponsabilidade até o Risco Administrativo
Ao discorrer sobre o tema, o autor Helly Lopes Meirelles (2004, p.624), afirma que tal responsabilidade é: “A que impõe à Fazenda Pública a obrigação de compor o dano causado a terceiros por agentes públicos, no desempenho de suas atribuições ou a pretexto de exercê-las”. No mesmo sentido, Diógenes Gasparini (2008, p.1025), define dito instituto como sendo: “A obrigação que se lhe atribui [ao Estado] de recompor os danos causados a terceiros em razão de comportamento unilateral comissivo ou omissivo, legítimo ou ilegítimo, material ou jurídico que lhe seja imputável”.
O dito conceito surge a partir do entendimento de que sobre a égide do Estado democrático de Direito, o ente público - como sujeito de direitos e obrigações - não pode se furtar a ressarcir os danos, que por ventura venha a causar em decorrência do desempenho de suas funções. Ocorre que se o mesmo foi eleito guardião das necessidades essenciais de seu povo e para atingir esse objetivo, retira dos mesmos os recursos financeiros necessários. Deve prestar eficazmente os serviços públicos essenciais a que se dispõe, e, caso venha a macular bens jurídicos nesse processo, deve ressarcir seus detentores em decorrência do natural risco envolvido no desempenho de tais atividades.
Primeiramente, há de se esclarecer que a dita punição pode incidir sobre qualquer atitude estatal desempenhada ao exercer uma de suas três funções, quais sejam: a Judiciária, a Legislativa e a Administrativa; por isso é errônea a expressão responsabilidade da administração pública, contudo, há que se concordar que esta é a função que mais comumente gera o dever de responsabilizar.
Hoje é pacífico, tanto na doutrina como na jurisprudência, o entendimento de que a responsabilidade do ente estatal não deve ser regida pelo Direito Privado, mas pelo Direito Público, todavia, especificamente, pelo Direito Administrativo, posto que, se fundamenta em princípios específicos compatíveis com sua posição jurídica de supremacia frente aos seus súditos, se assim não fosse, os particulares lesionados não veriam seu direito ao ressarcimento concretizado, já que se encontram em posição de hipossuficiência.
Nesse mesmo norte, manifesta-se pertinentemente Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, p. 980 - 981):
Sem embargos, a responsabilidade do Estado governa-se por princípios próprios, compatíveis com a peculiaridade de sua posição jurídica, e, por isso mesmo, é mais extensa que a responsabilidade que pode calhar ás pessoas privadas (...) Com efeito: seja porque os deveres públicos do Estado o colocam permanentemente na posição de obrigado a prestação multifárias das quais não se pode furtar, pena de ofender o Direito ou omitir-se em sua função própria, seja porque dispõe do uso normal de força, seja porque seu conteúdo onímodo e constante com os administrados lhe propicia acarretar prejuízos em escala macroscópica, o certo é que a responsabilidade estatal por danos a de possuir fisionomia própria, que reflita a singularidade de sua posição jurídica. Sem isto o acobertamento dos particulares contra os riscos da ação pública seria irrisório e por inteiro insuficiente para resguardo de seus interesses e bens jurídicos.
Ademais, impede observar que os administrados não têm como se evadir ou se quer minimizar os perigos de dano provenientes da ação do Estado, ao contrário, do que sucede nas relações privadas. Deveras: é o próprio poder público que dita os termos de sua presença no seio da coletividade e é ele quem estabelece o teor e a intensidade de seu relacionamento com os membros do corpo social.
Diante do exposto, há que se firmar que a dita responsabilidade é de natureza civil, não por ser regida pelo Direito Privado, mas por possuir caráter eminentemente contraprestativo e reparatório. Contudo, não obstante regido diretamente pelo Direito Administrativo, deve-se observar que por sua abrangência a responsabilização do ente público espalha-se por vários campos do Direito, devendo ser analisada de forma interdisciplinar, observando preceitos insculpidos na lei maior e em normas infraconstitucionais, tais como: o Direito Civil, o Direito Processual, o Direito Administrativo, Direito Econômico, além dos princípios gerais do Direito.
Cabe, ainda, considerar que por ser uma pessoa jurídica o Estado é uma ficção, um ser intangível que não pode praticar atos ou abster-se dos mesmos por si só, o ente estatal só atua no mundo do Direito por meio de seus agentes e deve, portanto, responder pelos danos causados por eles ao prestarem os serviços públicos essenciais.
Sobre essa questão, posiciona-se José dos Santos Carvalho Filho (2006) afirmando que, para que se vislumbre o dever de indenizar atribuível ao Estado, devem concorrer necessariamente três sujeitos, são eles: o Estado, o lesado e o agente do Estado. Neste plano, o ente estatal é obrigado pelo direito positivado a arcar com os prejuízos causados por seus agentes, por meio de indenizações.
Depois das importantes considerações acerca do seguinte tema, nos debruçaremos agora na análise da evolução doutrinária desse instituto, investigando as teorias que serviram como fundamento para o mesmo no decorrer de sua evolução.
Inicialmente[2], logo após a consolidação do Estado enquanto instituição sólida e soberana, vigorou a teoria da irresponsabilidade estatal. Esta se consolidou em meio ao absolutismo monárquico e firmava-se na soberania do poder público, representado na pessoa do rei, a dita teoria, consubstanciava-se na regra inglesa da infalibilidade real preconizada por frases como: the king can do no wrong (o rei não pode errar)[3].
Contudo, a esta época, admitia-se responsabilização quando leis específicas a previssem de forma expressa, além disso poderia ser caracterizada a responsabilidade do funcionário público, se a conduta lesiva realizada derivasse de um comportamento exclusivo seu. No entanto, dificilmente havia ressarcimento, quer em decorrência do pequeno patrimônio do funcionário que, no mais das vezes, não tinha condições de arcar com os prejuízos causados, quer pela dificuldade em provar a culpa exclusiva do mesmo.
Tal teoria hodiernamente é considerada arcaica e absurda, e por esse motivo foi amputada do ordenamento jurídico de todos os países que a adotavam. Os últimos a extirpá-la foram a Inglaterra e os Estados Unidos, respectivamente, através do Crown Proceeding Act[4] de 1947, e pela Federal Tort Claims Act[5] de 1946.
Tempos depois, com o advento da noção de Estado de Direito, preconizou-se que ao ente público deveria ser atribuídos direitos e obrigações, tais como o eram às outras pessoas jurídicas. Nesse sentido, ao fim do século XIX após a Revolução Francesa, passou a vigorar a teoria da culpa civilista, ou da culpa civil, a mesma implantou um sistema, no qual, para fins de reparação pecuniária, o Estado igualava-se ao cidadão comum. Nesses termos, para que se configurasse o dever de indenizar, fazia-se mister a prova de dolo ou culpa por parte dos agentes públicos, ainda necessitando-se estabelecer uma diferenciação entre os atos de império e de gestão, conforme observaremos agora.
Os atos de império eram praticados pelo Estado de acordo com as normas de Direito Público, através das quais o mesmo atestando sua soberania sobre os seus súditos, utilizava-se de todas as suas prerrogativas e privilégios, impondo-os de forma unilateral e coercitiva, já os atos de gestão, aproximavam-se de atos de Direito Privado, eles eram praticados pelo ente público em pé de igualdade com o particular, tais atos eram realizados para conservação do patrimônio e gerenciamento de serviços. Só esses últimos eram susceptíveis de gerar direito a indenização em caso de dano.
Contudo, diante da impossibilidade prática para o particular determinar concretamente quais eram os atos de império e quais os atos de gestão e da não menos difícil tarefa de individualizar a culpa do funcionário público prestador do serviço danoso, tal ressarcimento raramente se dava.
Posteriormente, surgiram as teorias publicistas proclamando que a responsabilidade do Estado não pode firmar-se sobre as mesmas bases que a responsabilidade dos particulares, não podendo, portanto, pautar-se exclusivamente no código civil, pois o ente público está sujeito a prerrogativas, normatizações diferentes, que são variáveis conforme a necessidade dos serviços públicos a serem prestados, devendo-se sopesar os direitos estatais e os direitos individuais dos cidadãos a ele submissos.
São três as teorias que surgiram com base nesse ponto diferenciador entre o ente público e o particular, todas elas oriundas de um tronco comum: a teoria da culpa do serviço, a teoria da responsabilidade sem culpa ou a teoria do risco e a teoria do risco integral.
A teoria da falta do serviço é também chamada de teoria da culpa administrativa, ela foi preconizada por Paul Duez (Apud, Meireles, Helly Lopes, 2004) na França. A dita teoria foi inovadora, à medida que, não se desvinculando da ideia de culpa, a transferiu da pessoa do agente púbico para o próprio serviço público, sendo desnecessária a individualização da mesma, restando apenas demonstrar a ineficácia do serviço. Da mesma forma, não se faz premente determinar qual o agente que causou o dano, nem traçar sua responsabilidade, por isso, essa teoria também é chamada de teoria da culpa anônima.
Segundo a já referida teoria, para que se firmasse perante o ente estatal o dever de responsabilizar, bastava que se consumasse a faute Du service[6], a qual se dava em três circunstâncias: quando o serviço público inexistia, quando funcionava de modo insatisfatório ou funcionava de forma retardatária. No entanto, tal teoria deixava ao particular a árdua tarefa de provar que o fato danoso se deu em decorrência do mau funcionamento do serviço prestado pelo ente público, ou seja, cabia-lhe o ônus da prova.
Sobre o tema proclama Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2006, p.621), conforme vejamos:
(...) essa culpa do serviço ocorre quando: o serviço público não funcionou (omissão), funcionou atrasado ou funcionou mal. Em qualquer dessas três hipóteses, ocorre a culpa (faute) do serviço ou acidente administrativo, incidindo a responsabilidade do Estado independente de qualquer apreciação da culpa do funcionário. (...).
Contudo, diverge a doutrina acerca da natureza jurídica dessa teoria, para Celso Antônio Bandeira de Mello (2008) a mesma é subjetiva, já para Helly Lopes Meirelles (2004), a dita teoria possui caráter objetivista. Há, no entanto, que se considerar que mesmo a corrente doutrinária que julga a falta do serviço, teoria subjetiva reconhece que em determinados casos, diante da impossibilidade prática de se provar a culpa, a mesma resta presumida, sob pena da ineficácia dessa modalidade de responsabilização. Nesse sentido, afirma o já citado autor Celso Antonio Bandeira de Mello (2008, p. 988):
Em inúmeros casos de responsabilidade por faute Du service necessariamente haverá de ser admitida uma “presunção de culpa”, pena de inoperância dessa modalidade de responsabilização, ante a mais extrema dificuldade (às vezes intransponível) de mostrar que o serviço operou-se abaixo dos padrões devidos, isto, com negligencia, imprudência ou imperícia, vale dizer, culposamente. Em face da presunção de culpa, a vítima do dano fica desobrigada de comprová-la.
A nosso ver, a responsabilidade do Estado nos termos dessa teoria é de fato subjetiva, contudo, há que se apregoar uma modalidade de culpa diversa da prevista no Código Civil, nesse caso a culpa é do ente público, e como tal, possui características próprias sendo, desta forma de natureza especial. Logo a mesma deve emanar da própria constatação da falta ou falha do serviço prestado, sendo presumida nos casos em que não se possa provar tal culpa em decorrência do dano gerado pela prestação defeituosa do serviço.
Tratemos agora da denominada Teoria do Risco Criado (Risco Suscitado) tese esta utilizada para justificar a responsabilidade do ente público diante de circunstâncias especificas, pois, somente é aplicável nas situações em que o Estado mantém alguém ou alguma coisa sob sua custodia, nesses casos, o ente público assumiu um risco diferenciado, por meio de um comportamento positivo, o que faz surgir modalidade objetiva de responsabilização. Matheus Carvalho (2016) exemplifica a aplicação dessa teoria ao narrar o caso de um detento que foge do presídio e invade uma casa que fica em suas redondezas causando danos aos moradores, nesse caso, afirma, o Estado deve responder objetivamente pelos danos causados à vizinhança, pois assumiu o risco da ocorrência delas ao construir um presidio em uma região residencial e não zelou em garantir a segurança necessária. O autor, continuando ressalta que abalizada doutrina entende que, segundo está teoria, o Estado responde mesmo em situações nas quais ocorrem casos fortuitos, desde que se comprove que, a custódia do poder público é uma condição sem a qual o dano não teria ocorrido, essa circunstância é denominada de fortuito interno (caso fortuito).
A teoria do risco Administrativo é um dos fundamentos para a responsabilidade objetiva e baseia-se em princípios de ordem pública e jurídica, lastreando-se nos preceitos da justiça distributiva que determinam que: já que os benefícios da atuação do ente Público devem ser rateados entre todos os seus súditos, igualmente deve haver a divisão de todos os ônus e encargos sociais entre os mesmos, para tanto o Estado arca com o prejuízo por ele causado através dos recursos do erário público, receita essa formada pela contribuição de todos os cidadãos a ele submissos.
Para que se configure o dever de reparação, nos termos dessa teoria, prescinde-se da ideia de culpa, analisa-se apenas o nexo causal, o liame estabelecido entre o mau funcionamento do serviço público e o dano sofrido pelo particular. O dito fundamento foi estabelecido em decorrência do risco natural envolvido na prestação dos serviços de competência do ente público e de sua supremacia frente ao particular.
Neste sentido, se manifesta o já citado José dos Santos Carvalho Filho (2006, p.462):
Passou-se a considerar que, por ser mais poderoso, o Estado teria que arcar com o risco natural decorrente de suas numerosas atividades: à maior quantidade de poderes havia de corresponder um risco maior. Surge então a teoria do risco administrativo, como fundamento da responsabilidade objetiva do Estado.
Complementando a fundamentação dessa teoria, afirma Helly Lopes Meirelles (2004, p.626) que: “O risco e a solidariedade social, são, pois, os suportes desta doutrina, que, por sua objetividade e partilha de encargos conduz a mais perfeita justiça distributiva”.
Ratificando esse entendimento, manifesta-se Antônio A. Queiroz Teles (2000, p. 455): “Considera, em suma, a teoria em análise, ser o dano causado pela administração pública ao particular uma espécie de ônus público que não deve recair sobre apenas uma, ou algumas pessoas, mas ao contrário, deve ser repartido igualmente entre todos”.
Conforme já exposto e confirmado pelos entendimentos doutrinários acima citados, não apenas o risco serve de fundamento para a adoção da teoria objetiva, mas também a necessidade de preservar o princípio da legalidade, da justiça social e a igualdade entre todos os contribuintes, ou seja, se todos repartem os benefícios da atuação Estatal igualmente todos devem suportar os ônus dela decorrentes, sob pena de ferir a o princípio da isonomia, e impor a determinados membros do corpo social que suportem sozinhos um prejuízo que decorrerá em última instância da prestação de um serviço que beneficia a toda a coletividade, num flagrante ato de injustiça.
Faz-se mister ressaltar, ainda, que apesar de não haver necessidade de prova de culpa, essa modalidade de responsabilização admite que sejam levantadas hipóteses de exclusão e de diminuição da responsabilidade do Estado, a primeira ocorre em caso de culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior, já a segunda se dá em caso de culpa concorrente entre o Estado e a vítima.
Ainda no campo das teorias publicistas surge a teoria do risco integral, esta teoria estabelece que o ente público deve ser elevado a condição de segurador universal, nesses termos, sempre indenizaria todo e qualquer dano suportado por seus súditos, desde que, esteja envolvido no evento, não há causas capazes de minorar ou excluir dita obrigação. Tal teoria, no entanto, jamais foi acolhida por nossa legislação, posto que, seja por demais danosa e tenderia a gerar a falência Estatal, bem como, inviabilizar a atuação do mesmo na realização dos serviços públicos fundamentais, além de sobrecarregar imotivadamente os demais membros da sociedade não envolvidos no evento danoso, já que, são eles que ajudam na composição do erário público, utilizado para fazer frente às necessidades sociais.
3- A RESPONSABILIDADE DO ENTE ESTATAL POSITIVADA E A EXEGESE DAS FACETAS (SUBJETIVA E OBJETIVA) DA REPARAÇÃO CIVIL PELO ENTE PÚBLICO.
A responsabilização do ente público está estampada na atual Constituição pátria em seu art. 37, § 6°, conforme é possível depreender pela análise do texto a seguir:
Art. 37 (...)
§ 6° As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nesta qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa (in.: PLANALTO, 2017).
A responsabilidade civil do Estado, conforme se vislumbra, se biparte em duas relações distintas, a primeira é traçada entre o ente estatal e o particular. Esta é de natureza objetiva, fulcrada na teoria do risco administrativo; já a segunda relação se estabelece a pretexto de ação regressiva, entre o agente prestador do serviço danoso e o Estado, é de natureza subjetiva, fundando-se no art. 186 do Código Civil, tendo em consequência caráter de Direito Privado.
Cabe dissecar, por hora, cada uma dessas relações.
A responsabilidade objetiva do Estado, conforme já demonstrado, é fruto de uma lenta evolução, é, também, uma grande conquista, posto que a comprovação da culpa por parte do agente que representa o ente público não é mais pré-requisito para sua configuração. Hoje, é necessária apenas a comprovação de que o fato danoso decorreu da ação de um agente público (que tenha agido no exercício de sua função ou a pretexto de exercê-la ), bem como, que se comprove o dano decorrente desta atuação e o nexo de causalidade, ou seja, o liame que liga a conduta do agente estatal ao dano.
A outra relação que se estabelece para fins de responsabilidade é traçada entre o ente público e o agente estatal. O estado poderá acionar o agente causador do dano para dele reaver o valor pago ao ofendido a título de indenização desde que comprove que o mesmo agiu com dolo ou culpa.
Nesse cenário cabe-nos explanar sobre a chamada Teoria da Dupla Garantia, segundo esta tese que foi acolhida pela Corte Suprema, não pode o lesado propor ação diretamente contra o agente público que causou o dano, isto porque, no momento que o texto constitucional previu a responsabilização do ente público nos termos do art. 37§6º, garantiu ao mesmo tempo o direito do particular de ser indenizado pelos danos sofridos, e ao agente público o direito de só ser cobrado pelo Estado, a razão de ser desse entendimento está no fato de que a conduta praticada pelo agente não deve ser imputada a ele enquanto particular, mas sim, ao Estado. Tal entendimento se respalda no princípio da impessoalidade, sendo decorrência normal da teoria do órgão ou teoria da imputação voltiva.
Segundo o entendimento do já citado Diógenes Gasparini (2008, p.1039): “A ação regressiva é medida judicial, que propicia ao Estado reaver o que desembolsou à custa do patrimônio do agente causador direto do dano, que tenha agido com dolo ou culpa no desempenho de suas funções”.
Pela exegese do texto, apesar de entendimentos em sentido contrário, pode-se depreender que a dita ação só pode ser ajuizada a partir do momento em que se concretiza o prejuízo para ente público. Nestes termos, o momento oportuno será após o trânsito em julgado da ação que condenou a fazenda pública ao pagamento dos danos, ou, nos casos em que se consolide um acordo, a partir da data do pagamento, pois nessa situação haverá a efetiva diminuição do erário público.
Alguns doutrinadores – entre eles Diógenes Gasparini (2008) - afirmam que apesar do texto constitucional não ser expresso, não deixa margem para discricionariedade do ente estatal, ou seja, não delega a Administração Pública, por meio de seus procuradores a faculdade de decidir se ajuizará ou não a ação regressiva, posto que, uma vez comprovada a culpa ou o dolo do agente público o Estado deverá impetrar dita ação dentro do prazo legal. O transcurso de tal prazo tem o condão de implicar em falta funcional para os procuradores estatais, contudo, não gera perda do direito da Fazenda Pública, já que o mesmo é imprescritível nos termos do § 5° do art. 37 da CF.
Continuando o estudo do supracitado dispositivo, é possível depreender que a partir da norma maior de 88, pode-se definir claramente a abrangência da responsabilidade estatal, determinando contra quem a mesma pode incidir. Nesses termos, a Carta Magna atual foi um marco que possibilitou que cessassem as divergências levantadas pela doutrina e pela jurisprudência nacionais.
Hoje, resta positivado de forma objetiva que são responsáveis pelos danos oriundos da prestação defeituosa dos serviços públicos as pessoas jurídicas de direito público, sejam componentes da administração direta, ou seja, os entes da federação (União, Estado, DF e municípios) ou indireta, quais sejam, autarquias e fundações públicas, e as pessoas jurídicas de direito privado que prestem serviços públicos em regime de concessão, permissão ou autorização. Está responsabilização deve ocorrer sempre que se comprove que, por meio de seus agentes, tais pessoas jurídicas causaram danos aos particulares, contudo, para que o dever reparatório se configure faz-se mister que ditos agente atuem nesta qualidade[7].
Continuando a exegese do dispositivo em questão, cabe analisar a amplitude do vocábulo “agente” inserido na regra constitucional, o mesmo tem sentido amplo e não se confunde com a nomenclatura “servidor” que é mais restrita envolvendo uma relação mais estreita de trabalho com o ente público. Por agente público deve-se entender toda pessoa que atua em nome do Estado, tendo amplo poder decisório - como os membros do Executivo ou do Legislativo- ou exercendo a mais simples função, a forma de investidura, também, não é relevante. Inclui-se em tal conceito segundo alguns doutrinadores, os servidores de fato que agindo em favor do ente público causar danos a terceiros.
Entendem a Doutrina e a jurisprudência que não é indispensável que o cargo de agente público seja causa determinante do evento lesivo, exige-se apenas que o mesmo contribua como causa ocasional do sinistro, ou seja, fundamental é que a posição de agente estatal tenha de algum modo servido como subsídio para a prática do ato, como instrumento possibilitador para a ocorrência do mesmo.
Cabe ressaltar, ainda, que o dispositivo constitucional em estudo não faz diferenciação com relação a quem poderá ser o sujeito do direito ao ressarcimento, por isso, pela análise da letra da lei pode-se inferir que qualquer pessoa pode ser detentora deste direito, desde que tenha sido vitimada por um vício ocorrido na atuação estatal, o Supremo Tribunal Federal tem se pronunciado no mesmo sentido.
A responsabilização do ente público também está insculpida no artigo 43 do Código Civil, conforme se pode observar pela transcrição do dispositivo: “Art. 43. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos de seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvando direito de regresso contra os causadores de dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.” (in.: PLANALTO, 2017).
Tal responsabilidade como vislumbramos, está em consonância com a expressa na Constituição Federal, salvo por omitir a citação feita sobre a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos.
4- HIPÓTESES DE RUPTURA DO NEXO DE CAUSALIDADE COMO EXCLUDENTES AO DEVER DE REPARAÇÃO.
Analisaremos, primeiramente, os casos de culpa exclusiva da vítima. Nestas situações, prova-se que apesar de aparentemente existirem todos os pressupostos do dano, quais sejam, a ação danosa, o dano e o nexo causal estabelecido entre ambos. Não foi a ação do pretendido agente que gerou o dano, mas a da vítima, sendo o primeiro mero instrumento para a realização do acidente, conforme vislumbramos através dessa observação, mostra-se inexistente a relação de causalidade, nesse sentido, não se forma o liame, não se constituindo, também, o dever de indenizar.
Diferente é a situação, na qual, a vítima apenas concorre para a configuração do dano, sendo sua culpa é parcial. Neste caso, não se rompe o nexo causal e, portanto, não desaparece a obrigação de reparação, a mesma é apenas atenuada, se biparte proporcionalmente entre os envolvidos no sinistro.
Nesse sentido, citamos os ensinamentos de Odete Medauar (Apud, Helena Elias Pinto, 2008, p.145):
Outra causa situa-se na chamada culpa da vítima, exclusiva ou concorrente; neste caso, a conduta da vítima contribui para o dano que a mesma sofreu; se a vítima teve participação total no evento danoso, a Administração se exime completamente; se o dano decorreu simultaneamente de conduta da vítima e da Administração, está responde parcialmente. Por exemplo: vítima, que dirige veículo embriagada, ultrapassa sinal vermelho e abalroa veículo oficial.
Outra situação capaz de elidir o dever de ressarcimento é o chamado fato de terceiro. Caracteriza-se quando o autor da causa determinante é pessoa aparentemente alheia ao fato danoso e não aquela que foi indicada como tal, nesse caso, o dever de reparação se extingue com relação a pessoa aparentemente responsável, pois quanto a ela, a conduta se revestirá das características do fortuito, sendo imprevisível e inevitável, rompendo-se o nexo causal, subsiste, no entanto, com relação ao terceiro que efetivamente causou o dano.
Analisemos, agora, o caso fortuito e a força maior. O parágrafo único do art. 393 do CC. não os diferencia, enunciando-os da seguinte forma: “O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”.
A doutrina ao analisar as ditas escusativas diverge ao estabelecer uma diferenciação e delimitar o conceito adequado para cada uma dessas expressões. Uma das linhas doutrinárias afirma que o caso fortuito é um fato da natureza, enquanto a força maior ocorre em decorrência da ação humana e a outra se posiciona de forma diametralmente oposta, são exemplos de autores que se acostam a primeira forma de pensar: Paulo Nader, Caio Mário, Diógenes Gasparini, já Carlos Roberto Gonçalves se acosta a corrente contrária.
Alguns autores, como Yussef Said Cahali (2007), afirmam que no Direito Administrativo existe uma diferença quanto à abrangência de tais vocábulos, prescrevem que o caso fortuito tem âmbito interno e a força maior tem âmbito externo e esta seria a diferença ontológica entre os mesmos, os que assim se posicionam entendem que só a força maior é capaz de exonerar da obrigação de indenizar.
Neste artigo não diferenciaremos as expressões, pois faremos a análise com base na letra do § 1° do art. 393 CC., acreditamos que ambas as escusativas isentam da obrigação de compor perdas e danos, posto que, decorram de circunstâncias imprevisíveis, inevitáveis e irresistíveis, de modo que a causa determinante do sinistro não advém da ação de qualquer agente, ou quando embora decorrente de dita atuação, tais causas elidentes ocorram de tal modo imprevisível que não permitam que o mesmo tome qualquer atitude para evitá-las, não se configuram, assim, os pressupostos que fundamentam o dever de indenizar, e deste modo, não há nexo de causalidade que ligue essa obrigação a alguém.
Por fim, cabe-nos destacar, que os excludentes de ilicitude não são apenas os três acima estudados, já que, para a configuração da responsabilidade civil objetiva se exige a ocorrência de conduta (ação ou omissão), nexo de causalidade e dano, toda vez que um desses elementos não estiver presente não se materializar o dever de indenizar. As hipóteses supracitadas de excludente estão relacionadas a hipóteses de ruptura do nexo causal. Nesse sentido também entende Carvalho (2016).
5- ANÁLISE DA DIVERGÊNCIA DOUTRINÁRIA NO QUE CONCERNE A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR OMISSÃO
Embora a doutrina e a jurisprudência nacionais estejam pacificadas quanto à questão da responsabilidade do Estado pelos danos que venha a causar em virtude de condutas ativas praticadas por seus agentes, tal uniformidade não ocorre quando se trata dos prejuízos ocasionados em consequência de conduta omissiva dos mesmos. As divergências centram-se primordialmente em dois pontos, quais sejam: a teoria a ser adotada e os requisitos próprios para a constituição do dever de indenizar em casos de omissão.
Antes de adentrarmos nessa questão, cabe-nos relembrar sinteticamente os elementos para a concretização da responsabilidade civil subjetiva e da objetiva. São pressupostos para a configuração da primeira: a ação ou a omissão geradora do dano, o nexo de causalidade, o dano e o elemento subjetivo - que representa a intenção - em suas duas facetas: o dolo ou a culpa. Já no que concerne à segunda, esse último elemento, ou seja, subjetivo, não é considerado.
Em posse de tais conhecimentos, faz-se mister recordarmos também as teorias que fundamentam essas duas formas de responsabilização, os adeptos da teoria subjetivista a fundamentam com base na teoria da culpa administrativa, já os que adotam a teoria objetivista embasam seu posicionamento na teoria do risco administrativo.
Para melhor investigarmos os fatos geradores dessa discordância, faz-se mister que novamente transcrevamos o § 6° do art. 37 da Constituição Federal do Brasil, conforme vejamos:
Art.37 (...)
§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. (in.: PLANALTO, 2017)
Uma das grandes controvérsias travadas na seara do Direito Administrativo Nacional, no que concerne a responsabilização do Estado por omissão, guarda relação com a análise do vocábulo “causarem” grafado de forma expressa no artigo supracitado.
Os autores que se acostam à teoria subjetiva alegam que tal verbo foi introduzido no corpo da constituição com o intuito de restringir os casos em que o Estado pode ser responsabilizado de forma que, no entender desses, se o ente público não age, não tem como causar dano.
Assim, leciona Diógenes Gasparini (2008, p. 1043):
O texto constitucional em apreço exige para a configuração da responsabilidade objetiva do Estado ação do agente público, haja vista a utilização do verbo “causar” (causarem). Isso significa que se a de ter por pressuposto uma atuação do agente público. Nesses casos a culpa do Estado é presumida, invertendo-se, portanto, o ônus da prova. Sendo assim, não haverá responsabilidade objetiva por atos omissivos, devendo a vítima, nesses casos, provar a culpa do Estado, pois sua responsabilidade é subjetiva.
Os doutrinadores que adotam a teoria objetiva para os casos de inércia do Poder Público alegam que o verbo “causar” diz respeito ao gênero “conduta” que abarca tanto as condutas ativas como as condutas omissivas.
Assim, pronuncia-se Sergio Cavalieri Filho (2007, p.230): “Em nosso entender, o art. 37, § 6°, da Constituição, não se refere apenas à atividade comissiva do Estado; pelo contrário, a ação a que alude engloba tanto a conduta comissiva como omissiva.”.
Se acosta a vertente subjetivista Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, p. 977), que ensina:
Quando o dano foi possível em decorrência de uma omissão do Estado (o serviço não funcionou, funcionou, tardia ou ineficientemente) é de aplicar-se a teoria subjetivista. Com efeito, se o Estado não agiu não pode ser ele logicamente o causador do dano. E, se não foi o autor, só cabe responsabilizá-lo se descumpriu um dever legal que lhe impunha obstar ao evento lesivo. (...) Com efeito: inexistindo obrigação legal de impedir certo evento danoso (obrigação, de resto, só cogitável quando haja possibilidade de impedi-lo mediante ação diligente), seria um verdadeiro absurdo imputar ao Estado responsabilidade por um dano que não causou, pois isto equivaleria a extraí-la do nada; significaria pretender instaurá-la prescindindo de qualquer fundamento racional ou jurídico.
Tal autor é um dos maiores defensores da teoria subjetiva em nosso país, o mesmo explicita em sua obra, de forma minuciosa, todos os desdobramentos da teoria da culpa anônima, argumenta que a responsabilidade do ente público por omissão sempre se dará em decorrência de um comportamento ilícito, já que, a seu ver, não pode existir nenhuma conduta ilícita realizada pelo Estado que não ocorra em decorrência da culpa ou do dolo. A primeira se caracteriza em casos de negligência, imprudência ou imperícia; já o segundo, é constatado quando o Estado deveria agir com um determinado grau de eficiência - pautado dentro das possibilidades reais médias- a fim de evitar a ocorrência de determinado dano e não o faz.
Alega que de forma nenhuma a inação estatal será entendida como causa, será antes, mera condição e estabelece uma diferenciação entre esses dois conceitos, afirmando que o primeiro compreende os fatos que geram de forma positiva um determinado resultado; já o segundo, caracterizar-se-ia como sendo determinado evento que não se concretizou, mas que se tivesse ocorrido teria impedido o resultado.
Afirma que conferir ao Estado a responsabilidade objetiva em caso de danos oriundos de culpa equivaleria a transformá-lo em segurador universal. Contudo, explicita que apesar do caráter eminentemente subjetivista de tal responsabilidade, deverá, por vezes, haver presunção da culpa em caso de serviço mal prestado, conforme vejamos:
Nos casos de “falta de serviço” é de admitir-se uma presunção de culpa do Poder Público, sem o quê o administrado ficaria em posição extremamente frágil ou até mesmo desprotegido ante a dificuldade ou até mesmo impossibilidade de demonstrar que o serviço não se desempenhou como deveria. (Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, p. 999).
Manifestando-se de forma diametralmente oposta, postulam os que adotam a teoria objetiva, dentre eles Yussef Said Cahali (2007, p. 221):
(...) desde que exigível da Administração a execução de obra ou prestação de serviço que teriam prevenido ou evitado o evento danoso sofrido pelo particular, identifica-se na conduta omissiva estatal a causa bastante para determinar a responsabilidade objetiva do Estado por sua reparação: no simples conceito de descumprimento de obrigação exigível já embutida a ideia de culpa, só elidível se não demonstrada a excludente da inexigibilidade do ato omitido, posto como causa do dano, se demonstradas as exceções convencionais do caso fortuito, da força maior, do ato próprio do ofendido”.
Tal autor afirma que uma vez exigível a atuação do ente público na execução de obras ou prestação de serviços a sua inação autoriza a responsabilidade civil pelos prejuízos que venha a causar ao particular, independentemente da comprovação do elemento subjetivo. Nesse caso, a seu ver, a omissão administrativa consubstancia-se como causa do dano, ou ainda, quando aliada a fatores estranhos – como fatos da natureza, de terceiros ou do próprio ofendido – caracterizar-se-á como concausa para a ocorrência do dano, nestas situações, o ente estatal será punido de forma proporcional a sua conduta objetivamente. De forma oposta, leciona que quando não for exigível de forma razoável que o ente público haja a sua omissão não será causa jurídica do evento, ao contrário, configurar-se-á como mera consequência do dano e não terá o condão de gerar o dever de reparação.
Observa ainda que a razoabilidade da exigência da atuação do ente estatal só poderá ser verificada caso a caso, durante a investigação de questões concretas, continua explicitando que a frequência com que determinada atividade do Estado tem sido julgada omissa, permite que se elenquem as situações em que normalmente se vislumbra a dita inércia causadora de dano. Cita alguns exemplos em que transparece o dever de indenizar, tais como: acidentes de trânsito causados pela falta de sinalização de bueiros e obras públicas; queda de árvores; em casos de atividade de risco, que corresponde à guarda e a fiscalização de coisas perigosas; a assistência médico-hospitalar e a internação; estabelecimento de ensino; inundações, desmoronamento e enchentes; nas situações em que os agentes policiais são omissos, dentre outras.
No mesmo sentido, acolhe a teoria objetivista Sérgio Cavalieri (2007), após declarar que o ato ilícito é gerado tanto em decorrência de comportamentos comissivos como omissivos, o dito autor traça a diferenciação entre a omissão genérica e a omissão específica afirmando que somente a última tem o condão de gerar a obrigação para o ente público de reparar o dano, desta forma, define-se a omissão específica, como a que gera diretamente uma situação favorável para que o dano aconteça. Em caso de omissão genérica não há ligação direta e lógica entre o prejuízo e a inércia estatal.
Na mesma esteira, manifesta-se Matheus Carvalho (2016) afirmando que, hodiernamente, para se averiguar qual o padrão normal e razoável a se esperar de um serviço público, deve-se fazer uma investigação tomando como base o princípio da Reserva do possível, ou seja, deve haver compatibilidade entre a estruturação da forma de prestar os serviços públicos com o orçamento público, continua afirmando, que se o serviço está sendo prestado dentro do padrão entendido como normal, e mesmo assim, ocorre o dano não há que se responsabilizar o ente público pelo dano causado. De outro norte, o ente público não pode furtar-se da obrigação de oferecer o mínimo existencial necessário a sobrevivência dos administrados, utilizando para tanto da alegação vazia da reserva do possível.
Assim, entende-se que muito embora o ente público deva adimplir os serviços públicos de acordo com suas forças econômicas, o próprio planejamento orçamentários deve levar em consideração quais são as necessidades primeiras da população, e uma vez que as tenha elegido traçar os serviços públicos necessários a atende-las, e não apenas disponibilizar os serviços, mas os prestar dentro do padrão de qualidade que razoavelmente deles se possa esperar. No mesmo sentido conclui Carvalho, explanando: “Neste contexto, para que haja responsabilização do Estado, deve-se analisar se seria possível ao ente estatal impedir a ocorrência do dano dentro das possibilidades orçamentarias.” Carvalho (2016, p.332)
A divergência doutrinaria aqui esboçada bate, inclusive, as portas do Supremo Tribunal Federal, guardião da Carta Constitucional, como tentaremos demonstrar a partir da análise de alguns julgados. A princípio, exporemos a decisão que teve como relator o Ministro Sepúlveda Pertence que demonstra muito bem tal discordância no Recurso Extraordinário 237.516:
EMENTA: Responsabilidade civil do Estado por omissão culposa no prevenir danos causados por terceiros à propriedade privada: inexistência de violação do art. 37, § 6º, da Constituição.
1. Para afirmar, no caso, a responsabilidade do Estado não se fundou o acórdão recorrido na infração de um suposto dever genérico e universal de proteção da propriedade privada contra qualquer lesão decorrente da ação de terceiros: aí, sim, é que se teria afirmação de responsabilidade objetiva do Estado, que a doutrina corrente efetivamente entende não compreendida na hipótese normativa do art. 37, § 6º, da Constituição da República
2. Partiu, ao contrário, o acórdão recorrido da identificação de uma situação concreta e peculiar, na qual – tendo criado risco real e iminente de invasão da determinada propriedade privada - ao Estado se fizeram imputáveis as consequências da ocorrência do fato previsível, que não preveniu por omissão ou deficiência do aparelhamento administrativo.
3. Acertado, assim, como ficou, definitivamente, nas instâncias de mérito, a existência da omissão ou deficiência culposa do serviço policial do Estado nas circunstâncias do caso – agravadas pela criação do risco, também imputável à administração, e também que a sua culpa foi condição sine qua da ação de terceiros – causa imediata dos danos -, a opção por uma das correntes da disceptação doutrinária acerca da regência da hipótese será irrelevante para a decisão da causa.
4. Se se entende - na linha da doutrina dominante -, que a questão é de ser resolvida conforme o regime legal da responsabilidade subjetiva, a matéria é infraconstitucional, insusceptível de reexame no recurso extraordinário.
5. Se se pretende, ao contrário, que a hipótese se insere no âmbito normativo da responsabilidade objetiva do Estado (CF, art. 37, § 6º), a questão é constitucional, mas sempre a partir dos fatos nela acertados - a decisão recorrida deu-lhe solução que não contraria a norma invocada da Lei Fundamental. STF, RE 237.561, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 18-11-01.
Tal decisão enfatiza a divergência doutrinaria por nós já abordada quanto a este tema, bem como, demonstra que a escolha da teoria a ser empregada não diz respeito apenas à determinação da natureza jurídica desta forma de responsabilização, mas antes, tem o condão de fixar a norma regulamentadora de tal dever de reparação, a saber, se seria esta a Constituição ou o Código Civil e da mesma forma determinar a que ramo do direito esta pertence, se ao Direito Público ou ao Direito Privado.
Ainda sobre tal controvérsia, citaremos a decisão proferida pelo Ministro Marco Aurélio que se acosta a teoria subjetivista em sede do Recurso Extraordinário n° 140270-9:
(...) RESPONSABILIDADE CIVIL - ESTADO - MORTE DE POLICIAL MILITAR– ATO OMISSIVO VERSUS ATO COMISSIVO. Se de um lado, em se tratando de ato omissivo do Estado, deve o prejudicado demonstrar a culpa ou o dolo, de outro, versando a controvérsia sobre ato comissivo - liberação, via laudo médico, do servidor militar, para feitura de curso e prestação de serviços - incide a responsabilidade objetiva. (STF, RE 140270, Rel. Ministro Marco Aurélio, DJ 18/10/1996)
A partir desse julgado, vislumbramos o entendimento doutrinário de que o artigo 37§ 6° da Constituição Federal apenas abarca condutas comissivas, deixando as omissivas sobre a tutela dos artigos. 186 e 927 do Código Civil, em caso de responsabilização relegando a responsabilização de tais condutas o caráter de subjetivas. Tornando obrigatório, nesses casos, a comprovação da falta do serviço público, ou da culpa anônima, ou seja, deve-se perquirir se o serviço não existia, existia mais não funcionou ou se funcionou de forma intempestiva.
E por fim, transcreveremos o julgado prolatado nos autos do Recurso Extraordinário 109.615- 2 RJ, cujo relator foi o Ministro Celso de Mello que se acostando na corrente objetiva:
EMENTA: INDENIZAÇÃO - RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO PODER PÚBLICO – TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO - PRESSUPOSTOS PRIMÁRIOS DE DETERMINAÇÃO DESSA RESPONSABILIDADE CIVIL – DANO CAUSADO A ALUNO POR OUTRO ALUNO IGUALMENTE MATRICULADO NA REDE PÚBLICA DE ENSINO – PERDA DO GLOBO OCULAR DIREITO – FATO OCORRIDO NO RECINTO DE ESCOLA PÚBLICA MUNICIPAL – CONFIGURAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO MUNICÍPIO – INDENIZAÇÃO PATRIMONIAL DEVIDA - RE NÃO CONHECIDO.
- A teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros desde a carta Política de 1946, confere fundamento doutrinário à responsabilidade civil objetiva do Poder Público quando houver dado causa, por ação ou omissão. Essa concepção teórica, que informa o princípio constitucional da responsabilidade objetiva do Poder Público, faz emergir, da mera ocorrência de ato lesivo causado à vítima pelo Estado, o dever da indenizá-la pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido, independentemente de caracterização de culpa dos agentes estatais ou demonstração de falta do serviço público.
- Os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o eventus damni e o comportamento positivo ( ação) ou negativo (omissão) do agente público , (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva, imputável a agente do Poder Público, que tenha, nessa condição funcional, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do comportamento funcional (RTJ 140/636) e (d)a ausência da causa excludente da responsabilidade estatal (RTJ 55/503- RTJ 71/99- RTJ 99/ 1155 – RTJ 131/417).
(...) - O Poder Público, ao receber o estudante em qualquer dos estabelecimentos da rede oficial de ensino, assume o grave compromisso de velar pela preservação de sua integridade física, devendo empregar todos os meios necessários ao integral desempenho desse encargo jurídico, sob pena de incidir em responsabilidade civil pelos eventos lesivos ocasionados ao aluno.
- a obrigação governamental de preservar a intangibilidade física dos alunos, enquanto estes se encontram no recinto do estabelecimento escolar, constitui encargo indissociável do dever que incube ao Estado de dispensar proteção efetiva a todos os estudantes que se acharem sob a guarda imediata do Poder Público nos estabelecimentos oficiais de ensino. Descumprida essa obrigação, e vulnerada a integridade corporal do aluno, emerge a responsabilidade civil do Poder Público pelos danos causados a quem, no momento do fato lesivo, se achava sob sua guarda, vigilância e proteção das autoridades e dos funcionários escolares, ressalvadas as situações que descaracterizam o nexo de causalidade material entre o evento danoso e a atividade estatal imputável aos agentes públicos.
Neste julgado, o supracitado Ministro Celso de Mello acosta-se a teoria do risco administrativo que fundamenta a responsabilidade objetiva do Estado, para tanto elenca resumidamente todos os pontos principais acerca desta, conceitua tal responsabilidade definindo seus elementos caracterizadores, afirma que a mesma se concretizara tanto diante de condutas ativas como omissivas dos agentes do Poder Público, exigindo apenas que estes ajam nesta qualidade.
Exposto o desacordo doutrinário e jurisprudencial acerca do tema, nos inclinamos a concordar com a segunda teoria explicitada, qual seja, a objetiva, posto que, entendemos que o texto constitucional ao estabelecer a obrigação de reparação do dano por parte do Estado afirma de forma genérica sem estabelecer diferenciação entre a conduta ativa, ou passiva de seus agentes, desta feita, em que o constituinte não distingue não cabe ao interprete distinguir.
Além do mais, adotar a teoria subjetiva nos parece uma regressão, desrespeita a evolução do direito que vem sendo às duras penas conquistada com o passar dos tempos, pois, a doutrina desenvolveu-se daquela que era a teoria da irresponsabilidade estatal até a teoria do risco administrativo, não nos parece legítimo afirmar que com relação aos casos omissivos tal aperfeiçoamento não se completou.
De outro norte, entendemos que a teoria objetivista em casos de dano por omissão deve ser empregada com ressalvas, analisando-se cada caso concreto, com base no princípio da razoabilidade, a fim de se observar se realmente a nexo de causalidade que ligue o ente público ao dano gerado, assim, conclui-se que deve o ente estatal prestar os serviços com a qualidade que dele se espera, se não o fizer, havendo dano em decorrência da má prestação deve o poder público ser responsabilizado, contudo, se tomou todas as cautelas na prestação do serviços público, se o prestou dentro dos limites do razoável dignificando o cidadão que dele usufrui, e mesmo assim, ocorreu o dano, não deve o poder público ser punido, haja vista que não assume a posição de segurador universal
5-RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR MORTE DE PRESO NO INTERIOR DE ESTABELECIMENTO PRISIONAL: A análise do RE841526 RS
Sobre essa temática existe certa pacificação na doutrina quanto a teoria a ser adotada, contudo, existe divergência quanto a amplitude da responsabilização do ente público, bem como, sobre a possibilidade de se elidir a responsabilidade do Estado nas hipóteses em que, ainda que o serviço público tivesse sido prestado com excelência, o evento danoso teria ocorrido, e o encarcerado iria a óbito.
Assim, deve ser aplicada a teoria do risco administrativo com fulcro no artigo 37, §6º da constituição federal, contudo, a que se observar que tal teoria admite a existência de causas que rompem o nexo de causalidade sob pena de se querer impor ao ente público a figura de garantidor universal, se aplicando a teoria da responsabilidade integral, a qual não encontra guarida no ordenamento jurídico.
Ante todo o exposto, cumpri-nos estudar o Recurso extraordinário 841.526 do Rio Grande do Sul da lavra do Ministro Luiz Fux. Conforme vejamos:
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR MORTE DE PRESO DE DETENTO. ARTIGOS 5º XLIX E 37, §6º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
1-A responsabilidade civil estatal, segundo a Constituição Federal de 88, em seu artigo 37, §6º, subsumisse à teoria do risco administrativo, tanto para as condutas estatais comissivas quanto para as omissivas, posto rejeitada a teoria do risco integral.
2- A omissão do Estado reclama nexo de causalidade em relação ao dano sofrido pela vítima nos casos em que o poder público ostenta o dever legal e a efetiva possibilidade de agir para impedir o resultado danoso.
3- É dever do Estado e direito subjetivo do preso que a execução da pena se dê de forma humanizada, garantindo-se os direitos fundamentais do detento, e o de ter preservada a sua incolumidade física e moral (artigo 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal)
4- O dever constitucional de proteção ao detento somente se considera violado quando possível a atuação estatal no sentido de garantir os seus direitos fundamentais , pressuposto inafastável para a configuração da responsabilidade civil objetiva estatal, na forma do artigo 37, §6º da Constituição Federal.
5-Ad impossibilia nemo tenetur, por isso que nos casos em que não é possível ao Estado agir para evitar a morte do detento (que ocorreria mesmo que o preso estivesse em liberdade), rompe-se o nexo de causalidade, afastando- se a responsabilidade do poder público sob pena de adotar-se contra legem e a opinio doctorum a teoria do risco integral, ao arrepio do texto constitucional.
6-A morte do detento pode ocorrer por varias causas , como, v. g., homicídio, suicídio, acidente ou morte natural, sendo que nem sempre será possível ao estado evitá-la, por mais que adote as precauções exigíveis.
7-A responsabilidade civil estatal resta conjurada nas hipóteses em que o poder público comprova causas impeditivas da sua atuação protetiva do detento, rompendo-se o nexo de causalidade da omissão com o resultado danoso.
8-Repercussão geral constitucional que assenta a tese de que: em caso de inobservância do seu dever específico de proteção previsto no art. 5º, inciso XLIX da constituição federal, o Estado é responsável pela morte do detento.
9- In casu, o tribunal a quo assentou que inocorreu a comprovação do suicídio do detento, nem outra causa capaz de romper o nexo de causalidade de sua omissão com o óbito ocorrido, restando escorreita a decisão impositiva de responsabilidade civil estatal.
10-Recurso extraordinário DESPROVIDO (julgado em 30/03/2016)
Passemos a estudar o referido acórdão, examinando detidamente o voto exarado pelo ilustre ministro supra citado, voto este que foi seguido por todos os Conforme ressaltado no voto exarado pelo ilustre ministro relato, Lux Fux, o voto este que foi seguido por todos os ministros por ocasião do julgamento do caso em sessão plenária. A análise do processo sob exame se centra sobre dois pilares, quais sejam, o poder do Estado de punir e sua obrigatória responsabilização em caso em que cause danos aos reclusos ao sistema carcerário. Por fim, fixa a tese da repercussão geral a ser utilizada em casos similares.
Investigando o já citado voto prolatado, percebe-se que, o douto ministro, se acosta a teoria objetiva, contudo, frisa que em casos de danos causados pela omissão do ente público o nexo de causalidade só se constitui nas situações em que o ente estatal ostentar o dever legal específico de agir, e mais do que isso, só se configurará nas hipóteses em que o ente estatal podia agir com o fim de evitar o resultado, presentes essas duas variantes, muito embora não exista um nexo de causalidade fática, se imputa a responsabilidade ao Estado, por intermédio de uma “causalidade juridicamente estabelecida”[8].
No caso concreto a obrigação legal é imposta ao ente público pelo comando previsto no artigo 5º inciso XLIX da constituição que estabelece : “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”, trata-se de direito fundamental ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana tendo aplicabilidade imediata, conforme proclama o §1º do art. 5º da Constituição Federal, cita-se fragmento do voto sob análise. Conforme vejamos:
(...) visto que o detento, privado que está de sua liberdade e forçado ao convívio prolongado com outros apenados, em situações precárias de habitabilidade, só poderá ter direito a um tratamento digno e humanitário, com respeito, inclusive, à sua integridade física e moral, se o Estado efetivamente agir no sentido de cumprir o dever especial de proteção que a constituição lhe impõe. (...) A realidade prisional brasileira, entretanto está muito distante do cumprimento satisfatório da disposição impositiva do art. 5º, inciso XLIX Constituição Federal.
Sobre a temática de morte de detentos no interior de estabelecimento prisional, não a grande divergência, a doutrina e jurisprudência tem adotado a teoria objetiva fundada na teoria do risco administrativo, ou uma teoria dela decorrente, a teoria do risco criado, adotada nas situações em que o ente público cria o risco da ocorrência do dano por ter assumido a guarda de determinadas pessoas, tendo o ente estatal a responsabilidade de indenizar se dano se concretiza enquanto tais pessoas estão sob sua custódia. Assim, passa-se a discorrer sobre este ponto, citando o entendimento doutrinário citado por Cahali (2007), o mesmo cita os argumentos de Cretella Júnior que ensina que pessoas recolhidas a prisões, bem como, a qualquer estabelecimento sujeito a tutela do Estado, tem direito subjetivo público a proteção dos órgãos públicos, os quais possuem o poder-dever de polícia de resguardar tais pessoas contra qualquer tipo de agressão, seja ela causada pelos outros detentos, causada por policiais ou por pessoas de fora que possam invadir o estabelecimento carcerário e causar danos aos detentos, continua a discorrer o já citado autor e conclui que a partir do momento que o indivíduo é posto sobre a custodia estatal, este ente assume o dever de zelar pela preservação da sua integridade física, protegendo- o de toda sobre de violências que possa vir a sofrer.
No mesmo norte, tem se pronunciado a suprema corte, conforme se constata pela citação abaixo:
Agravo regimental em recurso extraordinário com agravo. 2. Morte de detento sob custódia da Administração pública. Responsabilidade objetiva do Estado. Art. 37, §6º da constituição Federal. Missão do Estado de zelar pela integridade física do preso. Precedentes do STF. 3.Discussão acerca da existência de culpa do Estado. Necessidade de reexame fático probatório . Súmula 279. 4. Agravo regimental a que se nega provimento (ARE 662.563 Agr, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe de 02/04/2012)
Como já exposto, o Egrégio Supremo Tribunal Federal, tem entendimento consolidado no sentido de afirmar a responsabilidade civil do Estado fundada na teoria objetiva em caso de morte de detento no interior de penitenciária tomando como base a omissão do ente público em cumprir o dever legal de proteção ao preso, contudo, o STF, não tem se debruçado sobre as causas que podem romper o nexo de causalidade e elidir essa responsabilidade. Neste ponto é que o julgado ora analisado traz uma nova visão sobre o tema analisado, pois nele o ministro Luiz Fux traça considerações acerca das situações excepcionais, que podem se concretizar, e são capazes de romper o nexo de causalidade e com isso evitar a responsabilidade do ente público, mesmo em caso de dano causado a presidiário sob a sua guarda.
O supracitado ministro tece considerações acerca de algumas situações, nas quais, normalmente se entende por certa a responsabilidade do Estado, e estabelece que cada situação deve ser analisada com base no caso concreto a fim de perquirir se houve ou não omissão do ente público, e se havia ou não como se exigir razoavelmente que o mesmo agisse a fim de evitar o dano causado. Cita alguns casos específicos, tais como, o suicídio de um detento, no qual, tem- se que averiguar se pelo estado psicológico do detento poderia ou não o ente estatal prever que o mesmo estava propenso a retirar a própria vida, caso fosse possível prever, caberá ao ente público indenizar, em sentido contrário, não surge a obrigação de reparação, da mesma forma, no caso de morte natural do detento, se o ente público provar que foi conferida a assistência médica necessária ao preso e que o mesmo teria ido a óbito estando preso ou não, não há como se vislumbrar direito a indenização, chega-se a mesma conclusão em caso fortuito a exemplo de preso que morre após ser atingido por um raio.
Todos os caso citados servem para constatar que em algumas circunstâncias o Estado simplesmente não tem como evitar a morte do detento, nesses casos rompe-se o nexo de causalidade, não poderia se imputar dever de responsabilização ao ente estatal pelo simples caso do preso está sobre sua custódia, sob pena de se aplicar a teoria do risco integral, teoria não adotada pelo ordenamento pátrio.
No mesmo sentido, a muito tem se posicionado, Cahali (2007, p. 409 e 410), conforme vejamos:
A jurisprudência assim colacionada, ainda que descartando a necessidade de prova de culpa do agente administrativo ou policial, traz com o pressuposto condicionante a responsabilidade civil do Estado a ocorrência de omissão culposa, ou falha de serviço do ente público no cumprimento do dever de vigilância e preservação da integridade física do encarcerado. Assim: “ Nos termos da teoria do risco administrativo, do nexo causal entre este e o fato. Não se exige culpa do agente público. (...) – contudo- (...) Se o Estado não tem um sistema penitenciário adequado e não consegue manter uma vigilância satisfatória de seus presos, responde pelo assassinato deste, por outros detentos. (...) Porém, se, apesar de toda a vigilância exercida sobre os presos , um ou vários deles praticam, contra um companheiro, lesão corporal física, nenhuma responsabilidade pode ser imputada ao Estado.
Voltando ao texto do voto do relator vislumbra-se que, em suma, conclui-se sintetizando a tese para repercussão geral a ser aplicada em casos que versem sobre o mesmo tema, proclamando que: “ Em caso de inobservância do dever legal específico de proteção previsto no artigo, 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal, o Estado é responsável pela morte do detento.” Tal análise deve ser feita levando em consideração as circunstâncias do caso concreto, a fim de determinar se o ente público agiu dentro de suas possibilidades para evitar o dano ou foi omisso, executando o serviço de guarda dos presos displicentemente.
7- CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse artigo buscou tecer considerações acerca da responsabilidade civil do Estado em decorrência dos casos de morte de preso em presídio, explicitando as teorias relacionadas a responsabilidade do ente público no perpassar dos anos, bem como, analisando os dispositivos que tratam do dever de reparação do dano por parte do ente público postos na constituição e no código civil, destrinchamos as principais hipóteses de ruptura de nexo de causalidade, expusemos a divergência quanto a responsabilidade civil do Estado por sua omissão e, por fim, nos dedicamos a estudar o Recurso Extraordinário 841526/RS, que se mostrou extremamente relevante por trazer um novo olhar sobre a responsabilização do ente público em decorrência dos danos causados aos reclusos que se encontram sobre sua guarda. Como exposto, havia certa consolidação doutrinária e jurisprudencial a respeito da aplicação da teoria do risco administrativo em situação de dano causados a pessoas que estão sobre a guarda do Estado, contudo, pouco se falava a respeito da possibilidade dessa responsabilidade ser elidida em circunstâncias nas quais não fosse razoável se exigir que o ente público evitasse o dano causado, ou situações nas quais, ainda que não estivesse detido o presidiário teria vindo a óbito da mesma forma, não considerar tais circunstâncias é simplesmente imputar ao Estado uma responsabilização com base na teoria do risco integral o que não encontra amparo no ordenamento vigente.
8-REFRÊNCIAS
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MEIRELLES, Helly Lopes. Direito administrativo brasileiro. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
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TELES, Antônio A. Queiroz. Introdução ao direito administrativo. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais.
[1] XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral
[2] Cf. Os dados históricos colhidos neste tópico foram consultados em vários autores da seara do Direito Administrativo, tais como: José dos Santos Carvalho Filho (2006), Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2006), Antônio A. Queiroz Teles (2000) e Celso Antônio Bandeira de Mello (2008).
[3] Como também, em outras partes do mundo: quod principi placuit legis abet (o que agrada o príncipe tem força de lei) e Le roi ne peut mal faire (o rei não pode fazer mal).
[4] do inglês, Crown Proceeding Act: ato procedente da coroa.
[5] do inglês, Federal Tort Claims Act: ato federal de reclamação por atos danosos.
[6] Expressão francesa que se traduz literalmente por “falta do serviço”.
[7] haverá responsabilização do Estado quando os agentes públicos gerarem dano agindo nessa condição de agente, ou seja, quando estiverem no exercício da função pública ou a pretexto de exercê-la.
[8] Termo utilizado pelo Ministro Luiz Fux no voto de sua autoria prolatado no bojo do RE 841526RS
advogada; pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera, especialista em Direito Tributário e Processo Tributário pelo UNIPÊ( Centro Universitário de João Pessoa)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: QUEIROZ, Camila Vilar. Responsabilidade civil do Estado por morte do preso em presídio: considerações doutrinárias e análise do RE841.526RS Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 mar 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49615/responsabilidade-civil-do-estado-por-morte-do-preso-em-presidio-consideracoes-doutrinarias-e-analise-do-re841-526rs. Acesso em: 27 dez 2024.
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