RESUMO: Expor argumentos e análises sobre as funções declaradas e latentes (ou reais) do Direito Penal facilita a visão contrastante dos objetivos nesses dois campos. O presente texto discorre sobre alguns questionamentos que se fazem necessários mediante práticas policiais que selecionam os autores, fazendo com que a busca por punir o indivíduo de um determinado crime não é tão explícita assim como a função declarada afirma, mas está ligada fortemente ao fator indivíduo, com suas características raciais, sociais e econômicas. A função latente discorre sobre este procedimento das instituições brasileiras. É nesse segundo ponto que se dará maior ênfase, visando apontar o papel do Direito Penal na reprodução da desigualdade social e a atuação policial como reflexo desse objetivo.
Palavras chave: Direito Penal. Violência estrutural. Atuação policial. Desigualdade social. Direitos Humanos.
Introdução
O Direito Penal, dependendo da abordagem pelo discurso da teoria jurídica da pena ou da teoria criminológica da pena, pode revelar diferentes objetivos nesse campo. Na primeira hipótese, tem-se o discurso oficial o qual abrange as funções declaradas que apresentam a função de conter o crime aplicando penas àqueles que violem o bem jurídico tutelado. A vida, a integridade física, a honra, o patrimônio são exemplos de bens jurídicos tutelados pelo ordenamento jurídico brasileiro que exigem uma resposta penal caso sejam ameaçados. Na segunda teoria, no entanto, critica as funções declaradas buscando apresentar fatores empíricos que exprimem as funções latentes ou reais desse campo. Essas funções se revelam na manutenção da violência estrutural das sociedades contemporâneas.
Em busca de defender a sociedade, o sistema penal age sobre aqueles que cometem delitos por meio de penas que busquem intimidar o indivíduo (para que ele não volte a praticar o crime) e, ao mesmo tempo, fornecer um recado para a sociedade de que não se deve praticar crimes, caso contrário, haverá punição. No entanto, quando se observa o cotidiano, o sistema prisional, a atuação policial, há um ponto que reside nas funções latentes, não declaradas, dessa concepção: o alvo do sistema penal. Se as funções declaradas funcionassem na prática, não seria possível divergências no tratamento entre os indivíduos, uma vez que o ordenamento prevê tratamento igualitário para todos o qual sustenta o Estado Democrático de Direito. Essas funções declaradas, porém, servem para fornecer ao Estado uma visão de neutralidade, como se agisse conforme os objetivos manifestos pelo sistema de justiça criminal:
“A mudança da fonte formal (a lei) para a fonte material (o modo de produção) do Direito significa trocar a lógica formal por uma lógica material (ou lógica dialética), utilizada pela Criminologia crítica como método para pensar o crime e o controle social nas sociedades contemporâneas, embora a dogmática jurídica permaneça sob a égide da lógica formal, como lógica jurídica clássica” [1]
Desenvolvimento
Apresentar fatores que revelam as funções latentes que existem na sociedade contemporânea auxilia a percepção da reprodução da desigualdade. Inicialmente, é necessário apresentar as idealizações nos sistemas de trabalho da sociedade capitalista. O Direito Penal auxilia na manutenção da classe possuidora do capital, em detrimento da classe proletária que não possui o mesmo acesso aos bens jurídicos econômicos e sociais tutelados por esse campo do Direito.
“Assim, através das definições legais de crimes e de penas, o legislador protege interesses e necessidades das classes e categorias sociais hegemônicas da formação social, incriminando condutas lesivas das relações de produção e de circulação da riqueza material, concentradas na criminalidade patrimonial comum, característica das classes e categorias sociais subalternas, privadas de meios materiais de subsistência animal”[2]
Além das definições legais que o sistema penal busca manter no poder o grupo hegemônico, ele se utiliza de mecanismos como a atuação policial seletiva buscando afastar os grupos vulneráveis na sociedade e a implementação de um dos meios mais utilizados no mundo para a distância da convivência em sociedade: a prisão. Inicialmente, tem-se a atuação policial seletiva, visando atuar essencialmente nos grupos marginalizados. Nesse aspecto da atuação policial essencialmente nas camadas em que se encontram pobres e negros, tem-se o fortalecimento da chamada violência estrutural a qual abrande a grande desigualdade social decorrente da concentração de riquezas, poucas oportunidades de emprego e as demais questões decorrentes da elite que atingem, principalmente, essa camada da população. Em segundo momento, tem-se a prisão como medida essencial ao objetivo da distância entre as classes sociais:
“O estudo das funções latentes da prisão e, em geral, da justiça penal, bem como as análises históricas dos sistemas de punição, mostram as relações que subsistem entre tal estudo e a reprodução do status quo nas relações sociais. Desde seu início, a instituição carcerária moderna, nas formas em que ela ainda não se distinguia das casas de trabalho ou dos asilos para pobres e marginais, tem sido sempre uma instituição de disciplina dos grupos marginalizados na sociedade”[3]
A instituição carcerária, destarte, visa agrupar os indivíduos que destoam do grupo hegemônico para inseri-los em um local que os afastarão da sociedade devido às suas características distintas de tal grupo. Por isso que a ressocialização, medida que visa a ser empregada logo após a libertação de um preso para poder ser recebido de forma útil para a sociedade, o que não acontece na prática. E tal objetivo não ocorre não somente pelo fato da negação da reinserção desse indivíduo no meio social, mas também porque a própria instituição carcerária não auxilia na busca por esse fim. Aquele que é inserido no sistema carcerário aprende a viver em um lugar fechado o que destoa da noção de aprender a conviver socialmente.
O poder que é conferido às instituições para agir conforme a lei traz questionamentos acerca de como esse poder poderia ser questionado além das formalidades. Tem-se a atuação policial que busca nas funções declaradas legitimar o papel do sistema de controle, utilizar do poder de polícia em prol de uma suposta segurança. Segurança que visa legitimar o papel da polícia, uma vez que estaria protegendo os interesses de todos quando se combate o crime. No entanto, essa segurança perde seu fundamento no ponto em que é praticada de forma a assegurar a ordem social rica e branca e evitar que indivíduos negros e pobres não façam parte desse convívio social e, se vier a fazer, que seja agindo com os mesmos costumes e práticas que o grupo hegemônico possui. Ou seja, há também a implementação do controle de cultura por parte das instituições.
Com a exposição de argumentos sobre fatos empíricos que revelam as funções latentes do direito penal, cabe abordar a questão dos direitos humanos. Direitos que são veementemente defendidos por diversos autores da sociedade, no entanto, são passíveis de ponderação ou até justificação pela sua não aplicação quando se fala de suspeição de um indivíduo que está no meio do grupo social vulnerável na esfera social. Quando a polícia atua no determinado local, visando encontrar as características físicas e sociais que caracterizam os que cometem delitos, os direitos os humanos são deixados em segundo plano. Uma das ações que podem exemplificar tal fato é colocar os presos em bagageiros de transporte. Não há aparato legal que sustente tal ato, no entanto, é comum e permitido no meio social, ainda mais se esse cidadão que é posto nesse inadequado local é pobre e negro:
“Era para ser evidente, pelo menos para as mentes que comungam da efetividade dos direitos humanos para todos, de que o transporte de pessoas privadas de liberdade no bagageiro dos veículos de segurança pública – ainda mais quando incentivada pela mídia televisiva - desrespeita e avilta o ser humano, além de denegrir a imagem da sociedade que ainda permite o exercício dessa violência para justificar uma manifestação de poder estatal”[4].
O emprego desse exemplo busca retratar como são vistos e tratados aqueles que pertencem aos grupos vulneráveis. Não possuem segurança frente ao sistema penal e ainda são atingidos por ele diariamente. “O controle penal intervém sobre pessoas e não situações. A pessoa é considerada pelo direito penal como uma variável independente e não como uma variável dependente das situações”[5].
Conclusão
Com o intuito de questionar as funções que o Direito Penal possui mediante diferentes atores da sociedade, o presente texto analisa as práticas policiais seletivas, a agressão a direitos humanos que abarcam visões de como a manutenção da suporta “ordem” revela objetivos não declarados. A maior parte da sociedade comunga dessas visões porque também se adequa a manutenção do grupo hegemônico e por isso se sustenta por preconceitos e medidas negativas diante de pessoas que não fazem parte de seu círculo social, ou seja, ainda existe restrição com aqueles que diferem das suas características físicas, sociais, políticas e econômicas.
É indispensável analisar as funções latentes do sistema penal e refletir perante a atuação policial e a questão da desigualdade social e, com isso, torna-se possível perceber as intrínsecas relações existentes nesses campos. E, para que se possa transformar tal realidade, é imprescindível que a sociedade seja vista como um fator fundamental para legitimar diversas práticas nas instituições brasileiras. Estas envolvem crenças de gerações para gerações o que implica na dificuldade de transparecer na realidade as funções declaradas. São meramente formais com objetivo de propor a falsa ideia de neutralidade do sistema penal e o seu ilusório tratamento igualitário a todos os indivíduos.
Referências
Congresso Nacional de Defensores Públicos (11.: 13-16 nov. 2013: Espírito Santo) Livro de teses e práticas exitosas: Defensoria Pública e seus novos desafios / 11. Congresso Nacional dos Defensores Públicos. SANTOS, Juliani Viali. A atuação da defensoria pública na superação de paradigmas históricos: Transporte de pessoas presas no bagageiro dos veículos de segurança.
BARATTA, Alessandro. Direitos humanos: Entre a violência estrutural e a violência penal. Fascículos de Ciências Penais, Porto Alegre, pp. 44 – 61, abr./maio/jun. 1993 a.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – Parte Geral - 5.ed. - Florianópolis: Conceito editorial, 2012.
[1] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – Parte Geral - 5.ed. - Florianópolis: Conceito editorial, 2012.
[2] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – Parte Geral - 5.ed. - Florianópolis: Conceito editorial, 2012.
[3] BARATTA, Alessandro. Direitos humanos: Entre a violência estrutural e a violência penal. Fascículos de Ciências Penais, Porto Alegre, pp. 44 – 61, abr./maio/jun. 1993 a.
[4] Congresso Nacional de Defensores Públicos (11.: 13-16 nov. 2013: Espírito Santo) Livro de teses e práticas exitosas: Defensoria Pública e seus novos desafios / 11. Congresso Nacional dos Defensores Públicos. SANTOS, Juliani Viali. A atuação da defensoria pública na superação de paradigmas históricos: Transporte de pessoas presas no bagageiro dos veículos de segurança.
[5] BARATTA, Alessandro. Direitos humanos: Entre a violência estrutural e a violência penal. Fascículos de Ciências Penais, Porto Alegre, pp. 44 – 61, abr./maio/jun. 1993 a.
Estudante de Direito na Universidade de Brasília .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DANIELLA ALKMIM DE ARAúJO, . As funções do Direito Penal na reprodução da desigualdade social e a violação de direitos humanos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 mar 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49623/as-funcoes-do-direito-penal-na-reproducao-da-desigualdade-social-e-a-violacao-de-direitos-humanos. Acesso em: 23 dez 2024.
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