Resumo: Nascidas em razão da necessidade de fiscalizar a prestação de serviços públicos pela iniciativa privada, controlando a qualidade na prestação do serviço e estabelecendo regras para os setores de sua atuação, as agências reguladoras são autarquias sob regime especial, caracterizadas por independência administrativa, estabilidade de seus dirigentes, autonomia financeira e ausência de subordinação hierárquica. São também dotadas de poder normativo, sendo este o cerne do presente trabalho. Foi realizada pesquisa bibliográfica, perpassando pelo entendimento de autores consagrados na legislação de direito administrativo como Carvalho Filho (2016). Marinela (2016), Mazza (2016), Moreira Neto (2003) e coletâneas organizadas por Di Pietro (2004) e Moraes (2002). Concluiu-se que o poder normativo das agências reguladoras não abrange o poder de regulamentar leis, não lhes sendo possível inovar na ordem jurídica ou contrariá-la, sendo, contudo, necessário manter a sua autonomia político-administrativa e econômico-financeira de aludidas autarquias.
Palavras-chave: Agências reguladoras. Fiscalização. Controle. Poder normativo.
Sumário: 1. Introdução. 2. Desenvolvimento 3. Conclusão. 4. Referências.
Introdução
O Estado sempre teve o encargo de zelar pela boa prestação dos serviços públicos. Contudo, com o acelerado processo de privatizações e reformas estatais que ocorreu no Brasil a partir de 1990, tornou-se necessário fiscalizar e controlar a atuação dos investidores privados que passaram a desempenhar tais serviços.
Desta forma, revelou-se imperiosa a instituição de órgãos reguladores, que foram sendo implementados através da promulgação de sucessivas emendas constitucionais (EC nº 5, de 15-08-1995; EC nº 6, de 15-08-1995; EC nº 8, de 15-08-1995 e EC nº 9, de 9-11-1995), as quais deram ensejo à redação dos arts. 21, XI, e 177, §2º, III, ambos da CF/88, que constituem a legislação constitucional correlata ao tema.
Neste contexto, é sobre agências reguladoras que versa o presente trabalho: autarquias sob regime especial, caracterizadas por independência administrativa, estabilidade de seus dirigentes, autonomia financeira e ausência de subordinação hierárquica. Elas são responsáveis pela regulamentação, controle e fiscalização de serviços públicos, atividades e bens transferidos ao setor privado.
Para tanto, a elas foi atribuída por lei, competência para estabelecer regras disciplinadoras acerca de seus respectivos setores de atuação, sendo dotada, portanto, de poder normativo.
Conforme Mazza (2016, p. 201):
Tal poder normativo tem sua legitimidade condicionada ao cumprimento do princípio da legalidade na medida em que os atos normativos expedidos pelas agências ocupam posição de inferioridade em relação à lei dentro da estrutura do ordenamento jurídico.
Glauco Martins Guerra (2004, in Direito Regulatório, p. 325) invocou as lições de Francisco Campos sobre o tema:
“A lei condiciona estritamente a produção normativa de preceitos e regras de caráter jurídico (...)”, invocando a “prudente discrição do administrador” para receber uma capacidade de constituir regras e preceitos meramente administrativos, com o fito de conferir medidas regulamentares à execução da lei.
Neste contexto, pretende o presente estudo trazer à baila considerações acerca do poder normativo das agências reguladoras.
Como recurso metodológico foi utilizada pesquisa bibliográfica correlata à literatura publicada sobre aludido conteúdo, em especial doutrina e artigos científicos divulgados no meio eletrônico, fundando-se o que ora é pontuado nas ideias e concepções de doutrinadores como Mazza (2016), Carvalho Filho (2016), Marinela (2016), Di Pietro (2004) e Moreira Neto (2003).
Desenvolvimento
As agências reguladoras nasceram da necessidade de fiscalizar a prestação de serviços públicos pela iniciativa privada, controlando a qualidade na prestação do serviço e estabelecendo regras para o setor. Sobre o contexto histórico, elucidativas são as lições de Moreira Neto (2003) sobre o surgimento das agências reguladoras:
A constatação de que o Estado não tem recursos suficientes para todos os investimentos necessários e que, além disso, é geralmente um mau administrador, conduziu ao processo de transferência para o setor privado da execução de ampla gama de serviços públicos. Mas o fato de determinados serviços públicos serem prestados por empresas privadas concessionárias não modifica a sua natureza pública: o Estado conserva responsabilidades e deveres em relação à sua prestação adequada. Daí a privatização haver trazido drástica transformação no papel do Estado: em lugar de protagonista na execução dos serviços, suas funções passam a ser as de planejamento, regulação e fiscalização. É nesse contexto histórico que surgem, como personagens fundamentais, as agências reguladoras. (MOREIRA NETO, 2003, p. 30-31)
As primeiras agências reguladoras instituídas foram a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica, criada pela lei 9427/96), a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações, criada pela lei 9472/97) e a ANP (Agência Nacional do Petróleo, criada pela lei 9478/97).
Nos termos do art. 37, XIX, da Constituição Federal, a criação e a extinção de agência reguladora se dá através de lei específica. Por se tratar de autarquia em regime especial, têm tratamento diferenciado, sobretudo em razão de sua independência em relação ao Poder Público. Consoante Barroso:
No desempenho de suas atribuições, as agências precisam ver preservado seu espaço de legítima discricionariedade, imune a injunções de qualquer natureza, sob pena de falharem em sua missão e arruinarem o ambicioso projeto nacional de melhoria da qualidade dos serviços públicos”. (BARROSO, in Agências reguladoras, 2003, p. 121).
De acordo com Carvalho Filho,
[...] o sistema verdadeiro das agências reguladoras implica lhes seja outorgada certa independência em relação ao governo no que tange a vários aspectos de sua atuação. Se há interferência política do governo, o sistema perde a sua pureza e vocação. Aqui e ali, no entanto, têm surgido investidas e escaramuças de órgãos governamentais, com o propósito de reduzir o poder daquelas entidades, e esse tipo de ingerência denota flagrante distorção no processo de desestatização (CARVALHO FILHO, 2016, p. 521).
Em razão dessa necessária independência de que gozam as agências reguladoras, é ainda alvo de debates o controle a ser exercido por tais entidades. Sobre o tema, Mazza (2016, p. 201) argumenta que:
(...) não se trata tecnicamente de competência regulamentar porque a edição de regulamentos é privativa do Chefe do Poder Executivo (art. 84, IV, da CF). Por isso, os atos normativos expedidos pelas agências reguladoras nunca podem conter determinações, simultaneamente, gerais e abstratas, sob pena de violação da privatividade da competência regulamentar.
Portanto, é fundamental não perder de vista dois limites ao exercício do poder normativo decorrentes do caráter infralegal dessa atribuição:
a) os atos normativos não podem contrariar regras fixadas na legislação ou tratar de temas que não foram objeto de lei anterior;
b) é vedada a edição, pelas agências, de atos administrativos gerais e abstratos.
Portanto, o poder normativo das agências reguladoras não abrange o poder de regulamentar leis, não lhes sendo possível inovar na ordem jurídica ou contrariá-la, porquanto inovar significaria legislar, o que fere os princípios da legalidade (art. 5º, III, da CF) e da separação dos poderes (art. 2º, CF).
Edmir Netto de Araújo (2002, in Agências Reguladoras, p. 55) comunga do mesmo entendimento que Mazza:
[...] suas normatizações deverão ser operacionais apenas, regras que, às vezes aparentemente autônomas, prendem-se a disposições legais efetivamente existentes. É o caso, por exemplo, das regras estabelecidas para licitações nos Editais (que não podem contrariar normas da Lei 8.666/93), das condições exigíveis para concessões/permissões de serviço público e os aspectos que costumam ser englobados na chamada autonomia técnica da agência reguladora ou discricionariedade técnica para definir as regras e os parâmetros técnicos referentes a essas atividades.
No que concerne ao procedimento licitatório, citado por Araújo, pontua Fernanda Marinela que algumas leis criadoras das agências regulatórias tentaram esquivar-se da obediência às formas licitatórias da lei 8666/93 e ilustra com descrição de um caso concreto:
A Lei 9.472/97, denominada norma geral das telecomunicações e que cria a ANATEL, estabelecia que tal agência não estaria sujeita à Lei n. 8.666/93 e poderia definir seus próprios procedimentos para licitação, podendo inclusive adotar modalidades específicas como o pregão e a consulta (art. 54, parágrafo único).
Essa disposição foi objeto de controle de constitucionalidade, via Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 1.668, oportunidade em que o STF, em sede de medida cautelar, declarou inconstitucionais os dispositivos que atribuíam competência normativa autônoma para uma autoridade administrativa disciplinar, matéria pertinente a contratos e licitações que é de competência legislativa da União, para normas gerais. Alguns dispositivos sofreram interpretação no sentido de fixar o entendimento de que a competência apontada é meramente regulamentar, não podendo contrariar as normas gerais.
Nessa ADI, foram discutidos vários dispositivos da Lei n. 9.472/97. O art. 22, por exemplo, que definia a competência do Conselho Diretor para introduzir normas próprias de licitação e contratação, sofreu interpretação de que tal competência é somente regulamentar, devendo se submeter às normas gerais de licitação e às suas respectivas leis. O art. 119 teve sua eficácia suspensa, ficando proibida a definição de procedimento administrativo licitatório pela própria ANATEL, na hipótese de permissão, tendo em vista a violação do art. 22, XXVII, da CF. O mesmo destino teve o art. 59, que facultava a contratação de técnicos especializados, determinando o STF que essa contratação se submeta às regras da Lei 8.666/93.
Com essa decisão, não resta dúvida de que a agência reguladora está sujeita à norma geral das licitações, ficando rejeitadas as soluções legislativas similares previstas em outras normas, a exemplo da Lei n. 9.478/97. (MARINELA, 2016, p. 183).
Neste sentido, pertinentes as lições de Araújo (2002, in Agências Reguladoras, p. 55), acerca dos limites do poder normativo:
[...] suas normatizações deverão ser operacionais apenas, regras que, às vezes aparentemente autônomas, prendem-se a disposições legais efetivamente existentes. É o caso, por exemplo, das regras estabelecidas para licitações nos Editais (que não podem contrariar normas da Lei nº 8.666/93), das condições exigíveis para concessões/permissões de serviço público e os aspectos que costumam ser englobados na chamada autonomia técnica da agência reguladora ou discricionariedade técnica, para definir as regras e os parâmetros técnicos referentes a essas atividades.
Não se pode olvidar que a deficiente deslegalização é uma das distorções que podem ser identificadas na intervenção regulatória que, nas lições de Moreira Neto (2003, p. 214), “[...] causa perplexidade e indefinição decisória, resultando em omissão por parte das agências regulatórias, para evitar confrontarem-se com escalões ministeriais e secretarias que tenham competência indevidamente concorrente”.
Sobre o tema, que ainda hoje é controverso, há, consoante expõe Mazza, correntes doutrinárias que defendem e também as que são contra a deslegalização, que teria como objetivo original “delegar a autoridades administrativas o poder de disciplina normativa sobre matérias de competência do Legislativo” (2016, p. 201).
Dentre os argumentos contrários à deslegalização no Brasil, tem-se empecilhos, v.g., o óbice da inovação no processo legislativo e a afronta à Tripartição de Poderes.
Lado outro, há quem defenda que as entidades reguladoras são autoridades especializadas na atuação técnica, estando mais capacitadas para disciplinar os mercados regulados do que o legislador e que, o ato normativo das agências atuará dentro dos limites estabelecidos na lei, porquanto ao ente regulador a lei atribui o papel de preencher a moldura com conhecimentos técnicos à luz da realidade em que a lei vai ser aplicada.
Para as duas correntes, no entanto, os limites constitucionais à deslegalização cingem-se aos temas que exigem reserva de lei formal; assuntos sob reserva de lei complementar e matérias de natureza “nacional” ou “geral”, isto é, que vinculam simultaneamente todas as entidades federativas.
Neste viés, conclui-se ser necessária a reformulação dos limites do controle jurisdicional da atividade regulatória das agências reguladoras, a fim de que, como entende Carvalho Filho, elas não percam sua pureza e vocação.
Conclusão
Diante do exposto, conclui-se que as agências reguladoras, por se tratarem de instituto novo, ainda necessitam de muitas reformulações, sobretudo no que tange ao poder normativo.
Neste contexto, sobrepujam os limites materiais fixados pelo legislador e pela Constituição Federal para o exercício das competências normativas, isto é, a impossibilidade de inovar na ordem jurídica ou contrariá-la.
Por fim, mister pontuar que para o correto desempenho de seu papel, resta clara a necessidade de manter as agências reguladoras afastadas da interferência política do Poder Público, preservando sua autonomia político-administrativa e autonomia econômico-financeira.
Referências
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 30 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016.
MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Direito Regulatório. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, organizadora. Direito regulatório: temas polêmicos. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2004.
MORAES, Alexandre, organizador. Agências Reguladoras. São Paulo; Atlas, 2002.
Graduada em Direito pela Universidade Presidente Antônio Carlos/Barbacena em 2004. Pós-graduanda em Direito Penal Militar e Processual Penal Militar pela Academia da Polícia Militar de Minas Gerais. Tecnóloga em Gestão Pública pela Faculdade Estácio de Sá em 2016. Analista Judiciária do Ministério Público de Minas Gerais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Erica Machado da Costa e. O poder normativo das agências reguladoras Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 mar 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49664/o-poder-normativo-das-agencias-reguladoras. Acesso em: 23 dez 2024.
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