Resumo: Cada poder da União tem suas funções típicas e atípicas. Quando a função típica do Poder Legislativo entra em descompasso com a realidade social e jurídica atual, entra em cena a figura do ativismo judicial, e do Poder Judiciário modificando a interpretação ou retirando a vigência de normas de direito positivadas. De modo semelhante ao poder de controlar a constitucionalidade de leis, o Poder Judiciário dispõe também do controle de convencionalidade, onde o mesmo analisa a compatibilidade das leis não em face da Constituição Federal, mas dos tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil. Utilizando o instituto do controle de convencionalidade, o STJ descriminalizou o crime de desacato, quando da apreciação de um caso concreto submetido a sua jurisdição. Apesar de a decisão não produzir efeito contra todos (erga omnes), abre um precedente importantíssimo, que poderá ser utilizado em casos futuros, bem como influenciar nas próximas manifestações do STF, quem tem o poder de afastar definitivamente ou não o crime de desacato do ordenamento jurídico pátrio, juntamente com o Congresso Nacional.
Palavras-chaves: Desacato. Descriminalização. Superior Tribunal de Justiça. Controle de Convencionalidade.
Introdução
O presente trabalho aborda a decisão da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ que, no julgamento do recurso especial nº 1.640.084, descriminalizou o crime de desacato em um caso concreto, através de uma breve análise dos institutos jurídicos e fundamentos que cercam as controvérsias quanto a esse tipo de ativismo judicial, muito praticado atualmente no Poder Judiciário brasileiro, que descriminaliza, com e sem efeitos erga omnes, tipos penais até então em plena vigência no ordenamento jurídico pátrio, bem como os reflexos dessa decisão no direito penal como um todo, tomada com fundamento no instituto jurídico do controle de convencionalidade das leis. O STJ tomou essa decisão com base na Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH (Pacto de São José da Costa Rica), conforme será analisado, mais especificamente com fundamento no direito à liberdade de pensamento e de expressão, estabelecido no artigo 13 da Convenção.
1. Descriminalização e controle de convencionalidade
1.1 Noções elementares
Quando o poder legislativo cria ou revoga um crime, o faz por meio de lei – é o princípio da legalidade –, que, nesse caso, deve ser estrita. Apenas leis aprovadas no Congresso Nacional são capazes de tratar de direito penal incriminador, não sendo o mesmo possível por meio de decretos, resoluções, medidas provisórias etc.
A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB (Decreto-lei nº 4.657/1942) define, no seu artigo 2º, que “não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue”. Trata-se do princípio da continuidade das leis. Assim, criado um crime, vigorará sua norma, em regra, até que seja revogado por outra norma de hierarquia igual ou superior.
Conforme já decidido pelo STF[1] e pelo STJ[2], ainda que amplamente aceita socialmente, uma conduta jamais deixará de ser considerada criminosa por meio da incidência do princípio da adequação social. Um tipo penal não perde sua vigência pelo fato de a sociedade não ter mais a concepção e o sentimento de que sua prática representa lesão a um bem jurídico qualquer. O princípio da legalidade está acima da percepção popular acerca do que deve ser considerado crime.
Dessa forma, a atuação do poder judiciário invalidando, em casos concretos, tipos penais é uma forma atípica de se retirar a vigência de normas incriminadoras, sendo a regra a revogação legal. Não obstante, é cada vez maior o número de casos em que o Poder Judiciário, no caso, o STF e o STJ, órgãos judiciários de posição mais elevada que tratam de matéria penal e com jurisdição em todo o território nacional, decidem assim.
No ordenamento pátrio, todos os juízes e tribunais do Poder Judiciário podem exercer o controle de constitucionalidade e de legalidade, mas apenas o STF pode declarar abstratamente a inconstitucionalidade de uma lei (ou apenas de um artigo que defina um crime, por exemplo), por meio do controle concentrado ou abstrato, pela via direta ou da ação. Os tribunais de justiça possuem o mesmo poder quanto às leis estaduais e locais em face da constituição estadual do respectivo estado. Os demais juízes e tribunais, inclusive o STJ, podem declarar a inconstitucionalidade de leis apenas através do controle difuso ou concreto, pela via indireta ou de exceção, ou seja, em um caso concreto submetido a sua análise; jamais abstratamente. O controle de constitucionalidade é aquele exercido em face da Constituição Federal ou de tratados e convenções internacionais com força de emenda à Constituição.
1.2 O controle de convencionalidade
Além do controle de constitucionalidade, há também o controle de convencionalidade, que analisa se as normas internas estão em conformidade com os tratados internacionais ratificados pelo governo e em vigor no país, quando não possuem força de emenda à Constituição. Foi essa a espécie de controle exercida pela 5ª Turma do STJ, no caso da descriminalização do crime de desacato, declarada apenas no caso concreto. Assim, o crime de desacato não deixou de existir, estando ainda em plena vigência.
Deve-se destacar que o controle de convencionalidade não se confunde com controle de constitucionalidade, uma vez que o parâmetro não é a Constituição Federal, mas um tratado ou convenção internacional ratificado pelo Brasil sem força de emenda constitucional. Caso o tratado tenha sido aprovado conforme o rito do artigo 5º, §3º da CF, passando a ter status de emenda à Constituição, incidentalmente, a constitucionalidade de uma norma inferior só pode ser apreciada pelo Plenário do STJ, em razão da cláusula de reserva de plenário[3], mas não por uma Turma, como ocorreu no caso em análise. Abstratamente, como se sabe, apenas o STF poderia apreciar a tal constitucionalidade.
Ensina Mazzuoli[4]:
"Nesse sentido, entende-se que o controle de convencionalidade (ou o de supralegalidade) deve ser exercido pelos órgãos da justiça nacional relativamente aos tratados aos quais o país se encontra vinculado. Trata-se de adaptar ou conformar os atos ou leis internas aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado, que criam para estes deveres no plano internacional com reflexos práticos no plano do seu direito interno. Doravante, não somente os tribunais internacionais (ou supranacionais) devem realizar esse tipo de controle, mas também os tribunais internos. O fato de serem os tratados internacionais (notadamente os de direitos humanos) imediatamente aplicáveis no âmbito do direito doméstico, garante a legitimidade dos controles de convencionalidade e de supralegalidade das leis no Brasil"
A razão de existir do controle de convencionalidade é o fato de que alguns tratados internacionais se encontram em posição hierárquica superior às leis federais, que é o caso das leis penais incriminadoras. De acordo com o STF, possuem natureza supralegal os tratados e convenções internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil. Caso sejam aprovados pelo processo legislativo prescrito no § 3º do artigo 5º da Constituição Federal[5], passam a ter status de emenda à Constituição.
O STJ passou a adotar esse mesmo entendimento, quando a Corte Especial, em julgamento sobre a prisão civil do depositário infiel, decidiu conforme o Recurso Extraordinário 466.343/SP do STF, nos seguintes termos:
“[...] os tratados de direitos humanos têm hierarquia superior à lei ordinária, ostentando status normativo supralegal, o que significa dizer que toda lei antagônica às normas emanadas de tratados internacionais sobre direitos humanos é destituída de validade, máxime em face do efeito paralisante dos referidos tratados em relação às normas infra-legais autorizadoras da custódia do depositário infiel. Isso significa dizer que, no plano material, as regras provindas da Convenção Americana de Direitos Humanos, em relação às normas internas, são ampliativas do exercício do direito fundamental à liberdade, razão pela qual paralisam a eficácia normativa da regra interna em sentido contrário, haja vista que não se trata aqui de revogação, mas de invalidade [...]”. (REsp 914.253/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, CORTE ESPECIAL, julgado em 2/12/2009, DJe 04/2/2010)
2. O tipo penal de desacato
2.1 Tipificação e classificações
Localizado no capítulo II do título XI da parte especial do código penal, sob a denominação “Dos Crimes Praticados por Particular Contra a Administração em Geral”, o artigo 331 descreve o crime de desacato. Eis o seu teor: “Art. 331 - Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa”.
Segundo a doutrina, o crime de desacato pode ser classificado como crime simples, comum, de concurso eventual, de ação livre, comissivo ou omissivo, de mera conduta, instantâneo e doloso[6].
2.2 Sujeito passivo e ação penal no crime de desacato
O desacato não se confunde com o crime de injúria, pois esse é realizado fora da presença do funcionário público, enquanto aquele pressupõe que a ofensa seja proferida em sua presença. Por essa razão, enquanto os crimes contra a honra do funcionário público, em razão do exercício de suas funções, são de ação privada ou, alternativamente, de ação pública condicionada à representação, segundo o enunciado da súmula 714 do STF[7], o crime de desacato se processa sempre mediante ação pública incondicionada.
A razão de ser da ação pública incondicionada no crime de desacato se dá pelo fato de que o sujeito passivo primário do crime é o estado, diferentemente do que ocorre no crime de injúria, em que o é o próprio funcionário público - no crime de desacato, esse é o sujeito passivo secundário.
Ensina Cléber Masson[8]:
Todo funcionário público, do mais humilde ao mais graduado, representa o Estado, agindo em seu nome e em seu benefício, buscando sempre a consecução do interesse público. Consequentemente, no exercício legítimo do seu cargo, o agente público deve estar protegido contra investidas violentas ou ameaçadoras. [...] O bem jurídico penalmente protegido é a Administração Pública, especialmente no tocante ao desempenho normal, à dignidade e ao prestígio da função exercida em nome ou por delegação do Estado. Secundariamente, também se resguarda a honra do funcionário público.
No mesmo sentido, ensina Nucci[9] que “no crime de desacato, contudo, o sujeito passivo é o Estado e, apenas em segundo plano, também o funcionário público, e isto porque o bem jurídico precipuamente tutelado é o prestígio da função pública”.
Com esse fundamento, não pode a tutela do bem jurídico principal, que é a própria administração pública, estar sujeita à vontade do funcionário. Fica clara a intenção do legislador de preservar a autoridade das manifestações estatais, exercida dentro da legalidade, das ofensas porventura perpetradas por um particular.
3. O ativismo judicial nos órgãos de superposição (STF e STJ)
3.1 Definição e objetivos
A Constituição Federal define no artigo 2º os poderes da União: o legislativo, o executivo e o judiciário, cada qual com suas competências típicas e atípicas. Obviamente, não se trata de uma divisão rígida e taxativa, pois diante da diversidade de temas que se entrelaçam, bem como das mudanças de estruturas sociais e de costumes que não são acompanhados de perto pela legislação, o poder judiciário acaba tomando a iniciativa de criar, no caso concreto, normas que adequem o direito à realidade, ou atualizando a legislação por meio dos instrumentos de interpretação e controle. Isso é o que se denomina por ativismo judicial. O Ministro do STF Luís Barroso afirma que o ativismo judicial concretiza os valores e fins constitucionais[10].
Essa necessidade de atualização imediata da norma regente de um caso concreto, tendo em vista a eficiência do direito em si, e não de um poder específico, é a principal fundamentação dos que são favoráveis ao ativismo judicial. Nesse contexto, é realizada a intepretação da norma no caso concreto, atualizando ou empregando à mesma um sentido novo, ou, até mesmo, contrariando o direito positivado (analisado estritamente de maneira literal), tendo em vista obter-se a solução mais eficaz. Respectivamente: interpretação sociológica e interpretação holística.
3.2 Objetivos do ativismo judicial e a doutrina de Montesquieu
O princípio da separação dos poderes, assim como definido por Montesquieu, é provavelmente a principal crítica à prática do ativismo judicial, partindo de uma premissa formalista, em que cada poder deve atuar dentro de suas competências específicas determinadas em lei, sem a flexibilidade que se vislumbra atualmente no estado brasileiro. Eis a visão legalista do Barão de Montesquieu[11]: “(...) tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas, e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos”.
O controle de convencionalidade não se trata de um mero ativismo judicial em que os julgadores impõem o seu ponto de vista em conflito com a legislação, mas de uma maneira de adequar entre si normas de diferentes hierarquias e, consequentemente, dar harmonia ao ordenamento jurídico.
4. Principais excertos da decisão do STJ que descriminalizou o crime de desacato
4.1 Fundamentação legal
Em 15 de dezembro de 2016, o STJ decidiu, em recurso especial[12], que o crime de desacato não pode mais ser considerado crime. Tal decisão foi tomada, conforme já parcialmente exposto, com fundamento no controle de convencionalidade do artigo 131 do código penal em relação à Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH (Pacto de São José da Costa Rica). No relatório, o Ministro Ribeiro Dantas, relator, resume:
"o processo em tela apura suposta prática de crime de desacato pelo recorrente (art 331 do Código Penal), crime que não existe mais em nosso ordenamento jurídico. É que a Relatoria para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos firmou entendimento de que as normas de direito interno que tipificam o crime de desacato são incompatíveis com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos."
A defesa do réu, representada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, requereu a absolvição do mesmo, com relação ao crime de desacato, com base no artigo 13 do Pacto de São José da Costa Rica, que estabelece a proibição de atos e legislações que atentarem contra o direito à liberdade de pensamento e expressão. Eis o seu texto:
Artigo 13 - Liberdade de pensamento e de expressão:
1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha.
2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar:
a) o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;
b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.
3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias e meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões.
4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2.
5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.
Alegou a defesa que o crime de desacato é incompatível com o artigo acima, por violar a liberdade de pensamento e expressão nele resguardada.
Na instância inferior, o TJSP se manifestou no sentido de que “o Tratado não é incompatível com o crime de desacato, pois a garantia da liberdade de expressão e pensamento não autoriza ofensa gratuita dirigida a servidores públicos”; alegando ainda que “a previsão do delito de desacato insere-se em hipótese de responsabilidade ulterior pela ocorrência das violações mencionadas no item 2 do art. 13 da Convenção”, não tendo acolhido a pretensão da defesa. Já no STJ, o Relator Ministro Ribeiro Dantas discordou dessa tese, nos seguintes termos:
“O art. 2º, c/c o art. 29, da Convenção Americana de Direitos Humanos prevê a adoção, pelos Estados Partes, de ‘medidas legislativas ou de outra natureza’, visando à solução de antinomias normativas que possam suprimir ou limitar o efetivo exercício de direitos e liberdades fundamentais: [...] Artigo 29. Normas de interpretação. Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de: a. permitir a qualquer dos Estados Partes, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista [...]”.
O parecer da Subprocuradoria-Geral da República foi pelo provimento da alegação defensiva do recurso especial, sob os seguintes argumentos:
“[...] A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) já se pronunciou no sentido de que a criminalização do desacato contraria a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). [...] Na colisão entre normas de direito interno e previsões da CADH, as regras de interpretação nela previstas (art. 29) determinam a prevalência da norma do tratado. [...] O Supremo Tribunal Federal já firmou entendimento de que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo país e incorporados ao direito interno na forma do artigo 5º, § 2º, da Constituição brasileira, têm natureza supralegal (RE n. 466.343). [...] Resta inviabilizada a condenação por desacato com fundamento em norma interna incompatível com Tratado Internacional de Direitos Humanos (norma supralegal), do qual o Brasil é signatário”.
4.2 Competência do STJ em recurso especial para apreciar o caso
O relator apresenta, a seguir, a tese que atesta a competência do STJ para apreciar a alegação defensiva com base no controle de convencionalidade, apresentando sua distinção em relação ao controle de constitucionalidade e o entendimento do STF acerca da posição dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico pátrio:
“O art. 2º, c/c o art. 29, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) prevê a adoção, pelos Estados Partes, de "medidas legislativas ou de outra natureza" visando à solução de antinomias normativas que possam suprimir ou limitar o efetivo exercício de direitos e liberdades fundamentais. [...] Na sessão de 4/2/2009, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar, pelo rito do art. 543-C do CPC/1973, o Recurso Especial 914.253/SP, de relatoria do Ministro LUIZ FUX, adotou o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 466.343/SP, no sentido de que os tratados de direitos humanos, ratificados pelo país, têm força supralegal, "o que significa dizer que toda lei antagônica às normas emanadas de tratados internacionais sobre direitos humanos é destituída de validade." [...] Decidiu-se, no precedente repetitivo, que, ‘no plano material, as regras provindas da Convenção Americana de Direitos Humanos, em relação às normas internas, são ampliativas do exercício do direito fundamental à liberdade, razão pela qual paralisam a eficácia normativa da regra interna em sentido contrário, haja vista que não se trata aqui de revogação, mas de invalidade.’ [...] A adequação das normas legais aos tratados e convenções internacionais adotados pelo Direito Pátrio configura controle de constitucionalidade, o qual, no caso concreto, por não se cuidar de convenção votada sob regime de emenda constitucional, não invade a seara do controle de constitucionalidade e pode ser feito de forma difusa, até mesmo em sede de recurso especial. [...] Por conseguinte, a ausência de lei veiculadora de abolitio criminis não inibe a atuação do Poder Judiciário na verificação da inconformidade do art. 331 do Código Penal, que prevê a figura típica do desacato, com o art. 13 do Pacto de São José da Costa Rica, que estipula mecanismos de proteção à liberdade de pensamento e de expressão”.
4.3 O voto do relator
Eis o entendimento do Ministro Relator sobre o mérito da alegação de descriminalização do desacato com base na Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH (Pacto de São José da Costa Rica):
“A Comissão Interamericana de Direitos Humanos - CIDH já se manifestou no sentido de que as leis de desacato se prestam ao abuso, como meio para silenciar ideias e opiniões consideradas incômodas pelo establishment, bem assim proporcionam maior nível de proteção aos agentes do Estado do que aos particulares, em contravenção aos princípios democrático e igualitário. [...] A adesão ao Pacto de São José significa a transposição, para a ordem jurídica interna, de critérios recíprocos de interpretação, sob pena de negação da universalidade dos valores insertos nos direitos fundamentais internacionalmente reconhecidos. Assim, o método hermenêutico mais adequado à concretização da liberdade de expressão reside no postulado pro homine, composto de dois princípios de proteção de direitos: a dignidade da pessoa humana e a prevalência dos direitos humanos. [...] A criminalização do desacato está na contramão do humanismo, porque ressalta a preponderância do Estado - personificado em seus agentes - sobre o indivíduo. [...] A existência de tal normativo em nosso ordenamento jurídico é anacrônica, pois traduz desigualdade entre funcionários e particulares, o que é inaceitável no Estado Democrático de Direito. [...] Punir o uso de linguagem e atitudes ofensivas contra agentes estatais é medida capaz de fazer com que as pessoas se abstenham de usufruir do direito à liberdade de expressão, por temor de sanções penais, sendo esta uma das razões pelas quais a CIDH estabeleceu a recomendação de que os países aderentes ao Pacto de São Paulo abolissem suas respectivas leis de desacato. [...] O afastamento da tipificação criminal do desacato não impede a responsabilidade ulterior, civil ou até mesmo de outra figura típica penal (calúnia, injúria, difamação etc.), pela ocorrência de abuso na expressão verbal ou gestual utilizada perante o funcionário público”.
Abordando a distinção na relação funcionário público – particular estabelecida pelo conteúdo dos tipos penais definidos como desacato, o Ministro Ribeiro Dantas acrescenta que a Convenção Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, em seu 108º período ordinário de sessões, realizado de 16 a 27/10/2000, aprovou a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão, que afirma no princípio 11:
“Os funcionários públicos estão sujeitos a um maior controle por parte da sociedade. As leis que punem a manifestação ofensiva dirigida a funcionários públicos, geralmente conhecidas como 'leis de desacato', atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação."
Dantas chama a atenção, ainda, dentre as justificativas da elaboração de tal princípio 11, as seguintes:
“[...] Essa distinção inverte diretamente o princípio fundamental de um sistema democrático, que faz com que o governo seja objeto de controles, entre eles, o escrutínio da cidadania, para prevenir ou controlar o abuso de seu poder coativo. [...] Juntamente com as restrições diretas, as leis de desacato restringem indiretamente a liberdade de expressão, porque carregam consigo a ameaça do cárcere ou multas para aqueles que insultem ou ofendam um funcionário público. [...] Nesse contexto, a distinção entre a pessoa privada e a pública torna-se indispensável. A proteção outorgada a funcionários públicos pelas denominadas leis de desacato atenta abertamente contra esses princípios. Essas leis invertem diretamente os parâmetros de uma sociedade democrática, na qual os funcionários públicos devem estar sujeitos a um maior escrutínio por parte da sociedade. [...]”
4.4 Considerações finais
Vislumbra-se no conteúdo das normas citadas um protecionismo destinado ao cidadão, frente às arbitrariedades de quem detém o poder numa relação desequilibrada, que utiliza o fato de representar o estado para cometer abusos despidos de legalidade e impessoalidade.
Destarte, o crime de desacato representaria um recurso de blindagem, utilizado pelas autoridades públicas, em relação a quaisquer críticas ou cobranças dos cidadãos, ferindo, assim, o princípio democrático; inviabilizando o exercício da fiscalização popular por meio da intimidação e da censura. O cidadão pensaria duas vezes antes de questionar legalmente qualquer ato de ilegalidade ou de preterição de seus direitos praticado por aquelas.
Existem projetos de lei tramitando no Congresso Nacional objetivando a revogação do crime de desacato como forma de evitar essa distinção, considerada injusta pelos autores. A fundamentação é plausível, pois, como se sabe, no Brasil é comum a prática do que popularmente passou a ser chamado de “carteirada”, em que ocupantes de cargos de autoridade, ou pessoas de alto poder aquisitivo, utilizam-se dessa vantagem para driblar a lei, passando por cima dos direitos da população comum ou desobedecendo comando legais destinados a todos indistintamente.
5. Conclusão
O tipo penal de desacato ainda encontra-se em plena vigência, pois no Poder Judiciário apenas o STF pode retirar do ordenamento jurídico tipos penais de forma definitiva e erga omnes, através do controle abstrato de constitucionalidade. Podem os delegados de polícia continuar lavrando autos de prisão, os promotores de justiça denunciando e os juízes julgando. Com efeito, chegando à 5ª Turma do STJ, deve ser declarada a descriminalização da conduta pelas razões já expostas, ou sua desclassificação para outro tipo penal (crimes contra a honra, por exemplo). Não obstante, a decisão poderá servir de premissa para juízes e demais tribunais inferiores, bem como influenciar uma possível uniformização desse entendimento no âmbito do STJ e do STF.
Em seu voto, o Ministro Ribeiro Dantas cita um entendimento para fundamentar seu voto contrário à existência do tipo penal do desacato, nos seguintes termos:
“Louvo-me, no aspecto, na argumentação expendida pelo Subprocurador-Geral da República, Doutor NÍVIO DE FREITAS SILVA FILHO, para "ressaltar que eventuais condutas que exorbitem os limites da razoabilidade podem ser suficientemente responsabilizadas por instrumentos de natureza cível e mesmo penal, aplicáveis a toda e qualquer pessoa, mostrando-se desnecessário manter um tipo dotado de conceitos vagos e imprecisos, que tem servido mais como meio de intimidação dos cidadãos do que para a proteção da Administração Pública." (RE 1.640.084 – SP, rel. Min. Ribeiro Dantas, 15.12.2016) (2016/0032106-0)
É necessário que se estabeleça um meio termo entre o abuso de autoridade e o abuso da liberdade expressão. Talvez a exclusão do tipo penal de desacato não seja a melhor opção. Uma reforma no tipo, estabelecendo taxativamente quais são as condutas que representam o desacato, poderia ser uma excelente saída como forma de suprir a evidente imprecisão que o caracteriza, deixando claro que a simples manifestação de uma discordância com os atos praticados pelo agente estatal não caracterizam o crime.
Punir as condutas hoje qualificadas como desacato como crimes contra a honra talvez não seja a melhor opção, tendo em vista que a agressão não é dirigida, em tese, contra a pessoa do funcionário público, ainda que o atinja secundariamente, mas à própria administração, interessada na boa imagem e moralidade dos que a representam. Porém, entendeu o STJ de forma diversa da que foi aqui exposta, prevalecendo o negativo aspecto subjetivo do funcionário público que age contrariamente à lei, e descriminalizou o tipo penal naquele caso específico.
Referências
BARROSO, Luis Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.
GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito penal esquematizado: parte especial – 6. ed. – São Paulo : Saraiva, 2016.
MASSON, Cléber. Direito penal esquematizado, vol. 3: parte especial, arts. 213 a 359-H/Cleber Masson - 6. ed. rev. atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2016.
MAZZUOLI, Valério. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 2ª ed. v.4. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
MONTESQUIEU, Charles de Secondat Baron de. “O Espírito das Leis”. São Paulo: Marins Fontes, 1993.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 1.380.
[1] “[...] O tão-só fato de estar disseminado o comércio de mercadorias falsificadas ou 'pirateadas' não torna a conduta socialmente aceitável, uma vez que fornecedores e consumidores têm consciência da ilicitude da atividade, a qual tem sido reiteradamente combatida pelos órgãos governamentais, inclusive com campanhas de esclarecimento veiculadas nos meios de comunicação [...]” (HC 159.474/TO, Rel. Min. LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, DJe 06/12/2010).
[2] Súmula 502 do STJ – Presentes a materialidade e a autoria, afigura-se típica, em relação ao crime previsto no art. 184, § 2º, do CP, a conduta de expor à venda CDs e DVDs piratas.
[3] Art. 97 da CF: Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.
[4] MAZZUOLI, Valério. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 2ª ed. v.4. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, pp. 133-134.
[5] Art. 5º, § 3º, CF/88: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.
[6] GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito penal esquematizado: parte especial – 6. ed. – São Paulo : Saraiva, 2016.
[7] Súmula 714 do STF – É concorrente a legitimidade do ofendido, mediante queixa, e do ministério público, condicionada à representação do ofendido, para a ação penal por crime contra a honra de servidor público em razão do exercício de suas funções.
[8] MASSON, Cléber. Direito penal esquematizado, vol. 3: parte especial, arts. 213 a 359-H/Cleber Masson - 6. ed. rev. atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2016, p. 757.
[9] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 1.380.
[10] BARROSO, Luis Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 335.
[11] MONTESQUIEU, Charles de Secondat Baron de. “O Espírito das Leis.” São Paulo: Marins Fontes, 1993. Pág. 181.
[12] RE 1.640.084 – SP, rel. Min. Ribeiro Dantas, 15.12.2016 (2016/0032106-0).
Advogado (OAB-PE). Bacharel em direito pela Faculdade Integrada de Pernambuco - FACIPE. Aprovado no concurso público para o cargo de delegado da polícia civil de Pernambuco, em 2016.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FIDELIS, Pedro Paulo da Silva. A descriminalização do crime de desacato no entendimento do Superior Tribunal de Justiça - STJ Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 mar 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49667/a-descriminalizacao-do-crime-de-desacato-no-entendimento-do-superior-tribunal-de-justica-stj. Acesso em: 23 dez 2024.
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