RESUMO: O Novo Código de Processo Civil vem, dentre outros objetivos, concretizar a sistemática dos precedentes judiciais. A colar do debate a respeito da mitigação do sistema o civil lawpara o commowlaw é imperioso perceber a necessidade dos atores processuais no respeito e uniformização da jurisprudência. Ainda, cotejar esse debate dentro do controle exercido pelo Poder Judiciário e pelo Tribunal de Contas nas ações do Poder Executivo.
ABSTRACT: The New Code of Civil Procedure comes, among other objectives, to materialize the systematics of judicial precedents. The strain of the debate over the mitigation of the civil law system for the common law is imperative to realize the need of procedural actors in the respect and standardization of jurisprudence. Also, to compare this debate within the control exercised by the Judiciary and by the Court of Auditors in the actions of the Executive Power.
Introdução
O novo Código de Processo Civil - a Lei Federal nº 13.015/2015 - entrou em vigor em 18.03.2016, após pouco menos de 43 (quarenta e três) anos da vigência do revogado Código de 1973.
Tramitando por 05 (cinco) anos no Congresso Nacional, o novo CPC trouxe significativas mudanças na base teórica e prática da ritualística processual. Nas palavras do Prof. Fredie Didier Jr, “deve se ter um olhar de um novo código de processo civil e não de uma reforma do código anterior”.
Dentro dos diversos temas que sofreram radicais e polêmicas mudanças (vide que o Código já foi objeto de reforma - Lei Federal nº 13.256/2016), tem despertado o interesse do interprete a nova sistemática de precedentes obrigatórios.
Dentro de uma discussão em torno da mitigação do sistema processual (alguns doutrinadores defendem a mitigação do sistema processual do civil law para o commum law) surge aos atores processuais a necessidade do respeito e uniformização da jurisprudência. Uma nova sistemática que é denominada de precedente obrigatório ou também chamado de precedente vinculante. Ou ainda, existem doutrinadores que classifica essa nova metodologia como precedentes vinculantes fortes ou muito fortes.
A Prof. Teresa Arruda Alvim traz expressão ímpar para tratar sobre a sistemática de precedentes: "o precedente se liga a idéia de autopoiese". Um sistema que se auto nutre. Nesse sentido, o novo CPC obriga uma nova dinâmica no julgamento das Cortes, trazendo o aplicador do direito e o julgador a uma nova postura.
Em sendo assim, o presente artigo pretende estabelecer um estudo, sintético, sobre a evolução do instituto, traçando um resumo histórico das reformas que antecederam o Novo Código de Processo Civil. Apurando se, de fato, existe mutação do direito processual civil Brasileiro, aproximando-o ao commumlaw. Ao final, busca avaliar a mudança desse parâmetro, essa nova maneira de julgar, dentro do controle de políticas públicas efetuado pelo Tribunal de Justiça e pelo Tribunal de Contas.
Das Reformas Processuais que antecederam o Novo Código de Processo Civil.
O Código de Processo Civil de 1973 nasceu com uma resposta às severas críticas que a Doutrina fazia ao Código de Processo Civil de 1939. A evolução dos estudos dos institutos processuais, somados à experiência prática, demandavam uma reforma legislativa. O Prof. Alfredo Buzaid, na preleção ao seu curso universitário, afirmará que o Código de 1939:
Foi obra de vergonhosa improvisação, ao faltar uma preparação científica indispensável não só em relação aos princípios fundamentais que o informam na sua primeira parte, mas, sobretudo, por não evitar a desarmonia com as outras partes, especialmente aquelas que regulam os recursos e a disciplina da execução.
Coube, portanto, ao então Ministro da Justiça, o próprio Prof. Alfredo Buzaid, a elaboração do ante projeto, em 1964, do então Novo Código de Processo Civil.
Não se pode esquecer que, exatamente neste período, o Brasil passava pelo golpe militar. Os famosos “anos de chumbo”, que quedaram, em 1968, com a edição do AI-5, com o fechamento do Congresso, a autorização do Executivo para legislar, a suspensão de garantias constitucionais e legais como vitaliciedade, inamovibilidade ou estabilidade dos juízes, a permissão para o presidente demitir, remover, aposentar, transferir juízes, empregados e militares, e a suspensão das imunidades parlamentares. A linha adotada neste período foi tão dura que o AI-13 criou a pena de banimento do território nacional, a todo cidadão “inconveniente, nocivo ou perigoso à segurança nacional”. Em nome da “Segurança Nacional” toda e qualquer arbitrariedade era permitida e “legalizada”. Os poderes outorgados ao “executivo” foram de tamanha excepcionalidade que permitiram ao governo legislar sobre assuntos relevantes através de Decretos-Leis. A Constituição de 1967 foi a materialização desses poderes (BUENO, 2010, p. 392)
Alfredo Buzaid apresentou o projeto em Janeiro de 1964. Apresentado, coube a revisão aos Professores José Federico Marques, Luis Machado Guimarães e Luis Antônio de Andrade, sendo, por meio da mensagem nº 210 de 1972, levado à apreciação do Congresso Nacional que o transformou em Projeto de Lei sob n.º 810/1972. Referido projeto foi posteriormente admitido e promulgado por meio da Lei n.º 5.869 de janeiro de 1973, que fez surgir o Código de Processo Civil de 1973.
Mesmo ante esse contexto político, o Código de Processo Civil de 1973 teve importantes avanços. Além de unificar a legislação processual que se encontrava esparsa, representava o melhor entendimento da Doutrina da época, apresentando uma evolução na sistemática técnica, bem como limitações e ponderações novas as figuras processuais, em especial, aos poderes do Juiz.
Dessa maneira o CPC/73 continuou extremamente vinculado ao sistema do civil law que existia na Codificação de 1939. Manteve a mesma influência do sistema Romano, mantendo-se afastado do “direito comum” – do communlaw. O Codex revogado apontava como fonte principal e primordial do julgador a “lei”. Teria esta o condão de dispor, prever e propor soluções as questões a serem julgadas. Os entendimentos firmados não tinham o relevo de limitar ou condicionar as decisões judiciais.
Após a sua publicação, um movimento social começou a questionar a capacidade de advogados e juízes. Os já recorrentes problemas de formalismo exacerbado, o alto custo do processo e a lentidão passaram a movimentar correntes por modificação da nova legislação publicada.
Diante de tal demanda, diversas alterações ocorreram desde a publicação do Código de 1973, buscando sempre à simplificação dos atos em geral e procedimentos para uma maior agilidade do serviço jurisdicional. Apenas para exemplificação, cita-se: I - Lei 7.347/85 (Ação Civil Pública); II - Lei 8.009/90 (Impenhorabilidade do imóvel residencial do executado – bem de família); III - Lei 8.078/90 (Código de defesa do Consumidor); IV - Lei 8.952/94 (disciplina a tutela antecipada e a tutela específica das obrigações de fazer e não fazer); V - Lei 9.079/95 (Processo monitório); VI - Lei 9.099/95 (derroga a antiga Lei de Pequenas Causas e disciplina os Juizados Especiais); VII - Lei 9.245/95 (altera significativamente o procedimento sumário); VIII - Lei 9.307/96 (Lei da arbitragem); IX - Lei 9.868/99 (disciplinou o processo de ação direta de constitucionalidade ou de constitucionalidade); X - Lei 10.444/02 (alterações relativas à tutela antecipada, ao procedimento sumário, à execução forçada).
Densificando ainda mais a necessidade de implementação de instrumentos de celeridade e efetividade processual, o Legislador Constituinte Reformador editou a EC 45/04 (denominado como a “Reforma do Judiciário”), instituindo, entre diversos instrumentos de reforma processual, a razoável duração do processo. Mas, em especial, a EC nº 45/04 criou o instrumento da Súmula Vinculante. Acrescendo o Artigo 103-A, esse novo instrumento causou divisão na Doutrina. Parte entendendo que causaria “engessamento” (Dalmo Dallari, LênioStreck, Djanira Maria Sá e outros) e a outra parcela elogiando a tendência a pacificação de entendimentos jurisdicionais (André Ramos Tavares, Alfredo Buzaid, Cândido Rangel Dinamarco, Carreira Alvim, Caio Mario da Silva Pereira, Ives Gandra da Silva Martins, Miguel Reale, Sepúlveda Pertence, Teresa Arruda Alvim Wambier, dentre outros).
Tal medida foi uma tentativa de resposta ao alto grau de judicialização e a alta taxa judiciária.
Em pesquisa realizada pelo CNJ em diversos países se constatou que taxa de congestionamento no Brasil é muito alta. Segundo o texto do documento: “O Brasil é o país que apresenta maior taxa de congestionamento, 70% seguido de Bósnia e Herzegovina e Portugal, com 68 e 67%, respectivamente. Observa-se elevada diferença entre a taxa mais alta, de 70%, e a mais baixa de 3%, referente à Federação Russa. Assim como a maior taxa de congestionamento, O Brasil também apresenta o maior número de advogados por magistrado, seguido por Itália e Malta, com 25 e 33 advogados, respectivamente, conforme apresentado na tabela. Com a elevada proporção de advogados em relação a magistrados pode indicar que existe elevada propensão ao litígio e relativa incapacidade de fazer frente a essa tendência, analisou-se o coeficiente de correlação entre a proporção de advogados por magistrados e a taxa de congestionamento. Obteve-se como resultado um valor de 61,8%. Isso significa que há relação alta de significativa entre essas duas variáveis. Ou seja, quanto maior o número de advogados por magistrado, maior tende a ser a taxa de congestionamento desses países. [...]. O Brasil possui a terceira maior produtividade quando comparado aos países da Europa. Não obstante, contrariamente à Dinamarca, essa produtividade é ainda inferior à carga de trabalho, e isso se reflete em uma taxa de congestionamento alta. Pode-se dizer que o Brasil está em posição intermediária entre a Bósnia e Herzegovina e a Dinamarca.
Além da segurança jurídica e a tentativa de evitar decisões contraditórias a casos semelhantes.
Iniciou-se ai, de maneira mais clara, a aplicação do neoconstitucionalismo, como movimento que visa a concretizar os direitos fundamentais, irradiando os seus efeitos e diretrizes em todo o ordenamento jurídico, em específico, sobre os institutos processuais.
Nas palavras do Prof. Luís Roberto Barroso:
“Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si – com a sua ordem, unidade e harmonia-, mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. A constitucionalização identifica um efeito expansivo das normas constitucionais que se irradiam por todo o sistema jurídico. Os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Lei Maior passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional. À luz de tais premissas, toda interpretação jurídica é também interpretação constitucional. Qualquer operação de realização do Direito envolve a aplicação direta ou indireta da Constituição. Direta, quando uma pretensão se fundar em uma norma constitucional; e indireta quando se fundar em uma norma infraconstitucional, por duas razões: a)antes de aplicar a norma, o intérprete deverá verificar se ela é compatível com a Constituição, porque, se não for, não poderá fazê-la incidir; e b) ao aplicar a norma, deverá orientar seu sentido de alcance à realização dos fins constitucionais.”.
Em termos que a doutrina denominou de “neoprocessualismo”.
Dentro desse contexto, a presidência do Senado Federal instituiu, em 2010, comissão de juristas para elaboração de anteprojeto de novo Código de Processo Civil, que se converteu no PLS n.º 166/2010. Discutido e aprovado no Senado Federal, o projeto seguiu para casa Revisora, onde tramitou sob a denominação de PL n.º 046/2010. Convertido na Lei nº 13.015/2015.
O Novo Código de Processo Civil possui uma lógica distinta do Código revogado. Com mudanças que passam pela própria estrutura (que contempla uma parte geral com seis livros, uma parte especial com três livros e uma parte complementar), passando por prever uma parte principiológica, em clara aceitação do neoconstitucionalismo, trazendo ainda, novos institutos, como a mediação, a conciliação, a cooperação nacional e internacional, o negócio jurídico processual, a calendarização do processo e, em especial, no que atine a nossa abordagem, o precedente judicial.
Ressaltam os olhos a série de dispositivos legais que buscam a estabilização da jurisprudência e o respeito ao precedente judicial. Destaque-se que, como bem lembra o Prof. Humberto Theodoro Júnior, durante a tramitação do Projeto de Lei no Congresso Nacional, a Casa Revisora (Câmara dos Deputados), chegou a criar um Capítulo específico intitulado “Do Precedente Judicial”, que fora depois alterado pelo Senado Federal, mantendo-se ainda uma série de dispositivos regulando-o.(Art. 476, inciso II; Art. 477, § único; Art. 500; Art. 882, inciso V; Art. 847, etc).
Dos Precedentes Judiciais
Como visto, o processo de uniformização e consolidação do entendimento jurisprudencial é anterior ao novo CPC. A EC nº 45/04 ao trazer ao texto constitucional a Súmula Vinculante, caminhou decisivamente no estabelecimento de um sistema de precedentes judiciais que vinculem as demais decisões.
A opção do legislador a utilização dos precedentes como técnica de decisão mostra-se como uma tendência do legislador a uniformidade e estabilidade das decisões judiciais:
A despeito de serem valores implícitos da própria sistemática recursal, a uniformidade e estabilidade das decisões judiciais foram elevadas a patamar de destaque no Projeto de NCPC, a ponto de o novel Codex declarar expressamente, no art. 520, que os “tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável.
É que, muito embora o próprio texto constitucional, ao escalonar os órgãos jurisdicionais e reservar-lhe funções como a de uniformizar a interpretação de dispositivo constitucional (STF) ou de lei federal (STJ), espere que tais entendimentos sejam adotados não apenas pelos Tribunais hierarquicamente inferiores como também pela comunidade jurídica, a prática indica variadas situações em que se insiste na adoção de tese jurídica manifestamente contrária.
E mais, reforçando a tendência de aplicação da técnica dos precedentes:
Este movimento de transição foi fortalecido pela EC 45/2004 que permitiu os julgamentos dos Recursos Extraordinários pelo STF em repercussão geral (regulamentado pelos art.s 543ª e B, CPC) e das técnicas de julgamento repetitivos absorvidas por reformas legais na legislação processual.
Estas modificações vêm promovendo paulatinamente um novo olhar sobre o modo de aplicação do direito e impõem a necessidade de que tematizemos o modo como os Tribunais vêm promovendo seus julgamentos.
O “velho” modo de julgamento promovidos pelos Ministros (e Desembargadores) que, de modo unipessoal, com suas assessorias, proferem seus votos partindo de premissas próprias e construindo fundamentações completamente díspares, não atende a este novo momento que o Brasil passa a vivenciar.
Portanto, o novo Código de Processo Civil consolida a superação de determinados dogmas irrestritos do civil Law, passando a adotar institutos e técnicas típicascommon Law. O “império da lei” passa a dar espaço às técnicas de julgamento do sistema inglês.Nesse sentido a Prof. Darilê Marques da Matta:
Assim, com a estreia do precedente vinculante na legislação, conforme previsão do novo CPC, faz-se necessário estudar os conceitos trazidos por esta novidade processual. O Brasil que desenvolveu sua tradição jurídica com base no direito legislado de origem civil Law, agora precisa se adaptar à utilização de decisões judiciais também como fonte do direito para resolução de casos futuros.
O sistema de precedentes previsto no novo CPC é um reflexo da aproximação entre dois grandes sistemas: civil Law e common Law, tendo em vista que a doutrina dos precedentes vinculantes teve sua origem no direito inglês. Essa influência do direito estrangeiro é nítida no atual texto do novo CPC e é válida, pois busca trazer elementos para resolver o problema de insegurança jurídica no direito brasileiro.
Importante que se destaque desde já que o principal marco distintivo dos sistemas é a fonte do direito. “A ideia clássica estabelecida é a de que, na primeira, a solução do caso concreto é alcançada pela norma extraída do julgamento de caso anterior semelhante. Ao passo que, nos países tradição de civil Law, o julgamento pauta-se, prioritariamente, no direito legislado (statute Law), por meio da aplicação de norma jurídica reconstruída a partir do texto legal previamente existente”
O civil Law tem sua base fundamental no direito comercial. Além de inspirações composta pelo direito civil romano e direito canônico. O primeiro associado à autoridade do imperador, o segundo ligado ao domínio espiritual, diretamente ligada à autoridade da igreja.
O civil Law, portanto, tem clara fundamentação na codificação, materializadas em cinco códigos: código civil, código comercial, código de processo civil, código penal e o código de processo penal. Mesmo que evoluindo para tipificação de cláusulas gerais, dando maior atuação do juiz sobre a avaliação da lei, ainda compõe-se de alta carga de valoração e subsunção da lei ao caso concreto. Alta valoração ao livre convencimento motivado e a ocorrência de decisões contraditórias a casos semelhantes.
De outro lado, a common Law, nas palavras do Prof. Tadeu Cincurá de A S. Sampaio:
É caracterizada pelo pragmatismo, valorização do caso concreto e desapego por abstrações numa construção histórica de fortalecimento do procedente. O método de raciocínio se dá pela apreciação do “caso a caso” com sistema discursivo do direito, marcado profundamente pela ideia de sistematicidade. Tem os princípios superiores do direito com um produto da razão que, ao elaborá-los, revela uma ordem universal num processo de simplificação. Enfim, valoriza a argumentação e o discurso.
E é assim que o sistema do common Law sustenta-se na técnica dos precedentes, no qual dois casos iguais estão sujeitos à mesma solução.
Afasta-se, de outra mão, da certeza lógica do dogma legislativo, convivendo com uma maior flexibilidade. Exatamente nesse sentido, o common Law pauta-se nos costumes de um país no qual as decisões judiciais são declaração de direito que podem ou não ser precisas.
E ainda, o common Law, na concepção da teoria positivista, existia por ser estabelecido por juízes que possuíam Law-MarkingAuthority, sendo o direito, então, produto da vontade dos magistrados: não algo meramente descoberto, porém, criado.
O common Law, portanto, pautado na técnica dos precedentes, firma ao julgador premissas a serem adotados no julgamento do caso concreto posto.
Importante que não se confunda precedentes, com jurisprudência ou ainda com jurisprudência dominante.
Ante a confusão sistêmica que o nosso ordenamento pátrio concede ao termo jurisprudência, verdadeira confusão é causada entre os três institutos.
Quando utilizamos o termo jurisprudência, quer-se referir ao conjunto de decisões não díspares e harmônicas sobre um mesmo tema. Esse conjunto de decisões não impede o conjunto de decisões distintas, inclusive, em sentido oposto. Daí, surge o termo jurisprudência dominante, o que quer dizer que existe um conjunto dessas decisões que permeia de maneira mais consolidada e aplicada do que o outro.
Diferente, é o precedente. Primeiro, o precedente não significa conjunto de decisões, mas uma decisão que consolida um posicionamento. Nesse sentido:
“Em resumo, quando falamos de precedente judicial, devemos considerar que estamos fazendo referência apenas a uma decisão. Nada obstante, devemos reconhecer que esse traço característico nos leva apenas à conclusão de que um precedente é uma decisão judicial. Precisamos saber quando uma decisão judicial é um precedente.
No caso Alleghenycoutry General Hospital v. NLRB, julgado em 1979, a Corte de Apelações da Terceira Região dos Estados Unidos, explicou que “um precedente judicial atribui uma consequência jurídica específica para um conjunto detalhado de fatos em um caso julgado ou decisão judicial, passando, então, a ser considerado como algo que fornece a regra para a determinação de um caso subsequente envolvendo fatos materiais idênticos ou semelhantes que surgem no mesmo tribunal ou em um juízo inferior na hierarquia judicial”
Em sendo assim, o precedente se consubstancia em uma decisão judicial que termina por ter potencial para solucionar outras situações, pautadas em questões jurídicas ou fáticas similares.Especificando pelo Tribunal e pela matéria a distinção, o Prof. Marinoni:
“A jurisprudência é produto do trabalho das Cortes de Justiça – isto é, dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais. A função dessas Cortes não é formar precedentes – é prolatar decisões justas e, em sendo o caso, efetivá-las adequada e tempestivamente. As Cortes de Justiça são Cortes de controle e de jurisprudência: interpretam e aplicam o Direito, controlando o trabalho realizado pelos juízes de primeiro grau, e produzem jurisprudência. Ao julgar os casos, porém, essas Cortes evidenciam possíveis soluções para os problemas interpretativos nesses encerrados. Os precedentes não se confundem com a jurisprudência, assim como as Cortes Supremas não se confundem com as Cortes de Justiça. Os precedentes constituem razões generalizáveis que podem ser extraídas dos julgamentos dos casos pelas Cortes Supremas – razões necessárias e suficientes para a solução de determinados problemas interpretativos. As Cortes Supremas existem não para efetuar controle de cada decisão prolatada pelas Cortes de Justiça – existem, pelo contrário, para interpretar o direito constitucional (STF) e o direito federal (STJ), outorgando adequado sentido aos textos, e para orientar a interpretação dos demais órgãos do Poder Judiciário e da sociedade civil. São Cortes de interpretação e de precedentes”.
Objetiva o precedente, a um só tempo, decisões mais previsíveis, estáveis, adicionando respeito e confiança aos jurisdicionados, concretizando a isonomia, a economia processual, a duração razoável do processo e, finalmente, o desestímulo à litigância
Nesse sentido, imperioso destacar as premissas essenciais para o uso dos precedentes, em lições muito claras do Prof. DierleNunes,veja-se:
Nesse aspecto, o processualismo constitucional democrático por nós defendido tenta discutir a aplicação de uma igualdade efetiva e valoriza, de modo policêntrico e comparticipativo, uma renovada defesa de convergência entre o civil law e common low, ao buscar uma aplicação legítima e eficiente (efetiva) do Direito para todas as litigiosidades (sem se aplicar padrões decisórios que pauperizam a análise e a reconstrução interpretativa do direito), e defendendo o delineamento de uma teoria dos precedentes para o Brasil que suplante a utilização mecânica dos julgados e súmulas em nosso país. Nesses termos, seria essencial para a aplicação de precedentes seguir algumas premissas essenciais: 1º - Esgotamento prévio da temática antes de sua utilização como um padrão decisório (precedente): ao se proceder à analise de aplicação dos precedentes no common law se percebe ser muito difícil a formação de um precedente (padrão decisório a ser repetido) a partir de um único julgado, salvo se em sua análise for procedido um esgotamento discursivo de todos os aspectos relevantes suscitados pelos interessados. Nestes termos, mostra-se estranha a formação de um "precedente" a partir de um julgamento superficial de um (ou poucos) recursos (especiais e/ou extraordinários) pinçados pelos Tribunais (de Justiça/regionais ou Superiores). Ou seja, precedente (padrão decisório) dificilmente se forma a partir de um único julgado. 2º - Integridade de reconstrução da história institucional de aplicação da tese ou instituto pelo Tribunal: ao formar o precedente o Tribunal Superior deverá levar em consideração todo o histórico de aplicação da tese, sendo inviável que o magistrado decida desconsiderando o passado de decisões acerca da temática. E mesmo que seja uma hipótese de superação do precedente (overruling) o magistrado deverá indiciar a reconstrução e razões (fundamentação idônea) para a quebra do posicionamento acerca da temática. 3º - Estabilidade decisória dentro do Tribunal (staredecisis horizontal): o Tribunal é vinculado às suas próprias decisões: como o precedente deve se formar com uma discussão próxima da exaustão, o padrão passa a ser vinculante para os Ministros do Tribunal que o formou. E impensável naquelas tradições que a qualquer momento um ministro tente promover um entendimento particular (subjetivo) acerca de uma temática, salvo quando se tratar de um caso diferente (distinguishing) ou de superação (overruling). Mas nestas hipóteses sua fundamentação deve ser idônea ao convencimento da situação de aplicação. 4º - Aplicação discursiva do padrão (precedente) pelos Tribunais Inferiores (staredecisis vertical): as decisões dos tribunais superiores são consideradas obrigatórias para os tribunais inferiores ("comparação de casos"): o precedente não pode ser aplicado de modo mecânico para os Tribunais e juízes (como v.g. as súmulas são aplicadas entre nós). Na tradição do commomlaw, para suscitar um precedente como fundamento, o juiz deve mostrar que o caso, inclusive, em alguns casos, no plano fático, é idêntico aos precedentes do Tribunal Superior, ou seja, não há uma repetição mecânica, mas uma demonstração discursiva da identidade de casos. 5º - Estabelecimento de fixação e separação das ratione decidendi dos obter dicta da decisão: a ratiodecidendi (elemento vinculante) justifica e pode servir de padrão para a solução do caso futuro; já o obter dictum constituem-se pelos discursos não autorizativos que se manifestam nos procedimentos judiciais "de sorte que apenas as considerações que representam indispensavelmente o nexo estrito de causalidade jurídica entre o fato e a decisão integram a ratiodecidendi, onde qualquer outro aspecto relevante, qualquer outra observação, qualquer outra advertência que não tem aquela relação de causalidade é obiter: um obiterdictum, ou, nas palavras de Vaughan, um gratisdictum". 6º - Delineamento de técnicas processuais idôneas de distinção (distinguishing) e superação (overruling) do padrão decisório: A ideia de se padronizar entendimentos não presta tão só ao fim de promover um modo eficiente e rápido de julgar os casos, para se gerar uma profusão numérica de julgamentos. Nestes termos, a cada precedente formado (padrão decisório) devem ser criados modos idôneos de se demonstrar que o caso em que se aplicaria um precedente é diferente daquele padrão, mesmo que aparentemente semelhante, e de proceder à superação de seu conteúdo pela inexorável mudança social - como ordinariamente ocorrem em países de common law.
Exatamente dentro desse contexto, o Novo Código de Processo Civil passa a adotar dentro de sua técnica de julgamento a sistemática dos precedentes, verbis:
O projeto do novo Código de Processo Civil procurou enfrentar dois dos maiores males que afligem atualmente a sociedade brasileira na seara jurídica: a fragmentação e a instabilidade da jurisprudência. Em diversos pontos, o projeto revela verdadeira mitigação do rígido modelo de civil Law que tradicionalmente conhecemos, aproximando-nos em razoável medida da família da common Law.
A sistemática dos precedentes judiciais encontra-se espalhada em diversos momentos da nova codificação. Em especial, como dever dos Juízes e dos Tribunais de respeito aos precedentes firmados.
Aos Magistrados, indiscriminadamente, outorga a obrigação de respeito aos precedentes firmados (Art. 489, §1º, inciso V e VI). Residindo a sua falta, inclusive, em causa de nulidade do comando sentencial.
De outro lado, aos Tribunais outorga a obrigação de uniformização e publicidade dos precedentes firmados (Art. 926, §2º e Art. 927, §5º).
Ainda expedientes como o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR (Art. 976) e o Incidente de Assunção de Competência - IAC (Art. 947) são também claras demonstrações do legislador da aceitação e aplicação da sistemática de precedentes na novel codificação.
Nas sábias palavras do Prof. ElpídioDonizetti:
A fim de que não paire dúvidas, é bom que se repita a expressão contida no caput do dispositivo (Art. 927): “os juízes e tribunais observarão”. Não se trata de faculdade, e sim de imperatividade. De início, pode-se pensar que o CPC/2015 está afastando a independência dos juízes e o princípio da persuasão racional, que habilita o magistrado a valer-se do seu convencimento para julgar a causa. Entretanto, ontologicamente, não há diferença entre a aplicação da lei ou do precedente, a não ser pelo fato de que, de regra, este contém mais elementos de concretude do que aquela. Tal como no sistema positivado, também no staredecisis o livre convencimento do juiz incide sobre a definição da norma a ser aplicada – aqui por meio do confronto da ratiodecidendi extraída do paradigma com os fundamentos do caso sob julgamento -, sobre a valoração da provas e finalmente sobre a valoração dos fatos pelo paradigma escolhido, levando-se em conta as circunstâncias peculiares da hipótese sobre julgamento.
Assim, havendo precedente sobre a questão posta em julgamento, ao juiz não se dá opção para escolher outro parâmetro de apreciação do Direito. Somente lhe será lícito recorre à lei ou ao arcabouço principiológico para valorar os fatos na ausência de precedentes. Pode-se até utilizar de tais espécies normativas para construir a fundamentação do ato decisório, mas jamais se poderá renegar o precedente que contemple julgamento de caso idêntico ou similar. Essa força normativa cogencial encontra a sua racionalidade no fato de que cabe ao STJ interpretar a legislação infraconstitucional e ao STF dar a última palavra sobre as controvérsias constitucionais. Assim, por mais que o julgador tenha outra compreensão da matéria sub judice, a contrariedade só terá o condão de protelar o processo por meio de sucessivos recursos, e consequentemente, de adiar a resolução da controvérsia.
Ainda no mesmo sentido:
Acreditamos, porém, que o projeto de Novo Código de Processo Civil supracitado constitui um avanço importante nessa direção.
Diferente da legislação sobre súmulas, que atribui efeito vinculante a um verbete geral e abstrato enunciado pelos tribunais superiores com mesmo nível de generalidade da lei e enunciando, já de antemão e de forma definitiva, a suposta interpretação da ratiodecidendi, a nova proposta busca, também, “regular os casos em que a eficácia vinculante não incide, de modo a permitir a correta distinção entre o caso que deu origem ao precedente vinculante e um caso concreto posterior que, por ser diferente daquele não deva ser julgado da mesma maneira.
Esse ânimo de permitir a ampla discussão sobre a aplicabilidade do precedente faz a nova proposta se aproximar do modelo argumentativo e discursivo do common Law inflez, o que para nós é um grande avanço tendo em vista a ilegitimidade que a súmula jurisprudencial adquiri no sistema jurídico brasileiro, já que ela pretende ser uma enunciação de normas tão gerais e abstratas quanto a lei, abarcando ex ante não apenas o caso específico dos autos, mas também uma série casos hipotéticos que nunca foram discutidos com informações completas observando-se o denominado MootnessPrinciple (princípio da vinculação ao debate).
O modelo de precedentes vinculantes adotado pelo Novo CPC exige expressamente, sob pena de nulidade da sentença por ausência de fundamentação, um discurso de aplicação dos precedentes judiciais, por meio de analogias e contra- analogias (distinguish) informadas por princípios jurídicos e pelo princípio da universalizabilidade, que é uma exigência do princípio da “equidade” ou “justiça formal”.
Imperioso destacar ainda que a sistemática de utilização dos precedentes não é infalível, tampouco traduz um sistema perfeito e livre de equívocos:
O sistema de precedentes judiciais jamais eliminará a contradição e a divergência. Ele apenas reduz sua ocorrência, conferindo-lhe maior integridade sistêmica.
[...]
A regra do staredecisis, embora sirva para consistência e uniformidade das decisões, não é inflexível.
Não resta dúvida quanto às severas críticas que se fazem a esse sistema. O engessamento, a limitação ao livre convencimento motivado do julgador, o perigo de aplicação equivocada da técnica de precedentes, gerando tanto ou mais injustiças que o sistema de aplicação da norma ao caso concreto (Civil Law).
A necessidade de aplicação correta das técnicas do distinguishing e/ou overulling são prementes ao interprete do direito na sistemática do precedente:
“Muito se questiona sobre a introdução de um sistema de precedentes no Poder Judiciário brasileiro, sob o argumento de que tal medida provocaria “engessamento do sistema”, pois não haveria espaço para o debate tendo em vista que o que foi decidido deve ser mantido. No entanto, todo sistema de precedentes é dotado de técnicas de flexibilização, tais quais, o distinguishing e o overruling, que objetivam a possibilidade de desenvolvimento do direito, assim como impedem a incidência de injutiças em casos peculiares que demandem solução distintas da prevista no precedente. O direito jurisprudencial “nada tem de estático ou insuscetível de alteração ou adaptação às novas realidades e diferentes situações”. A técnica de distinção, além de rompimento do sistema ou revogação do precedente, que continuará regulando a situação vislumbrada em sua origem; impede a estagnação do direito, atualizando-se de acordo com a nova realidade e situações que, ainda que antigas, não haviam sido observadas. Da mesma forma, a técnica de superação de precedente, pelo overruling possibilita a evolução do direito, adequando-o ao novo contexto social”.
Não existem vicissitudes irrestritas em qualquer das propostas; em qualquer dos sistemas.
Outrossim, destaque-se que há abalizada Doutrina que entende que as modificações introduzidas pelo Novo CPC foram incapazes de modificar a sistemática processual brasileira (civil Law), tampouco introduzir, de fato, a técnica dos precedentes do common Law:
“Por fim, não vejo como, aplicando o que já escrevi, querer enxergar, no CPC de 2015 e nas pouquíssimas vezes que a palavra “precedente” é empregada, algo próximo ao sistema de precedentes do common law. A palavra é empregada, nos dispositivos que indiquei, como sinônimo de decisão proferida (por Tribunal) que o CPC de 2015 quer que seja vinculante (paradigmática, afirmo eu). Nada além disso. É o que basta, penso, para evitar a importação de termos e técnicas daqueles sistemas para compreender o que aparece de forma tão clara e tão evidente no próprio CPC de 2015”
Ainda, o Prof. Pedro Miranda defende que “ainda que haja aproximação dos sistemas do civil law e do commom Law, não se confunde a força dos precedentes em cada um dos sistemas: há pesos absolutamente diferentes”.
Outros, como o Prof. Alexandre Freitas Câmara, entendem que as modificações introduzidas simbolizam o maior respeito à jurisprudência e ao princípio da segurança jurídica do que qualquer mitigação do sistema do civil Law:
A técnica de decidir a partir de precedentes, empregando-os como princípios argumentativos, é uma das bases dos sistemas jurídicos anglosaxônicos, ligados à tradição jurídica do common law. Isto não significa, porém, que o ordenamento jurídico brasileiro, historicamente vinculado à tradição jurídica romano-germânica (conhecida como civil law), tenha “migrado” para o common law. Muito ao contrário, o que se tem no Brasil é a construção de um sistema de formação de decisões judiciais com base em precedentes adaptado às características de um ordenamento de civil law.
A colar do entendimento de renomados autores quanto a inexistência de mitigação do sistema do civil law no direito processual brasileiro, é notável que as mudanças buscam a estabilização da jurisprudência. A conscientização dos aplicadores do direito de que a mutação constante e desarrazoada do posicionamento judicial sobre determinado tema apenas prejudica o entendimento pela sociedade da interpretação das normas vigentes.
Outrossim, como visto, é esta multiplicidade de decisões divergentes razão e justificativa do aumento da litigância, do acumulo de processos nas Cortes Brasileiras, desaguando na morosidade na prestação jurisdicional. É esse círculo vicioso que os precedentes obrigatórios buscam combater e evitar nessa nova fase do processo civil.
A necessidade de releitura do sistema de precedentes no controle do Poder Executivo.
A releitura da aplicação do efeito das decisões judiciais deve ser compreendido e observado no controle efetuado pelo Tribunal de Contas e pelo Poder Judiciário sob as ações do Poder Executivo.
O Tribunal de Contas, nas palavras do Prof. UadiLammêgoBulos, “são órgãos públicos e especializados de auxílio. Visam orientar o Poder Legislativo no exercício do controle externo, sem, contudo, subordinarem-se a ele. Por isso, possuem total independência, cumprindo-lhes, primordialmente, praticar atos administrativos de fiscalização.”.
No exercício do seu papel deve obedecer e aplicar os precedentes obrigatórios estabelecidos pelo sistema judiciário. Deve obediência aos posicionamentos firmados, sob pena de subversão da sistemática adotada pelo Novo CPC.
Nesse desiderato, ad exemplum,debate-se a linha de precedentes firmados pelo Supremo Tribunal Federal – STF quanto à inexistência do poder de controle de constitucionalidade dos Tribunais de Contas, inclua-se o TCE, ante o advento da Constituição Federal de 1988. Não se pode deixar de cotejar que os diversos Tribunais de Contas do Estado, o próprio TCU, continuam a entender que persisti em pleno vigor a competência de controle de constitucionalidade.
Veja-se que tais decisões são adotadas, a despeito do STF, em reiteradas decisões quanto a revogação da Súmula 347(cite-se: MS 27.796/MC, DJe 09.02.2009 e MS 29.123/MC, DJe 08.09.2010? Min. Ricardo Lewandowski, MS 26.410/MC, DJe 02.03.2007? Min. Cármen Lúcia, MS 27.743, DJe 12.12.2008? Min. Eros Grau, MS 27.232, DJe 19.05.2008 e MS 27.337, DJe 27.05.2008? Min. Ellen Gracie, MS 28.745, DJe 12.5.2010).
O Min. Gilmar Mendes, nos autos do MS 25.888, em decisão singular e esclarecedora, sentenciou que “a própria evolução do sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, verificada desde então, esta a demonstrar a necessidade de se reavaliar a subsistência da Súmula 347 em face da ordem constitucional instaurada com a Constituição de 1988”. In verbis:
Não me impressiona o teor da Súmula n° 347 desta Corte, segundo o qual “o Tribunal de Contas, o exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público”. A referida regra sumular foi aprovada na Sessão Plenária de 13.12.1963, num contexto constitucional totalmente diferente do atual. Até o advento da Emenda Constitucional n° 16, de 1965, que introduziu em nosso sistema o controle abstrato de normas, admitia-se como legítima a recusa, por parte de órgãos não-jurisdicionais, à aplicação da lei considerada inconstitucional.
No entanto, é preciso levar em conta que o texto constitucional de 1988 introduziu uma mudança radical no nosso sistema de controle de constitucionalidade. Em escritos doutrinários, tenho enfatizado que a ampla legitimação conferida ao controle abstrato, com a inevitável possibilidade de se submeter qualquer questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, operou uma mudança substancial no modelo de controle de constitucionalidade até então vigente no Brasil. Parece quase intuitivo que, ao ampliar, de forma significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal, no processo de controle abstrato de normas, acabou o constituinte por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade. A amplitude do direito de propositura faz com que até mesmo pleitos tipicamente individuais sejam submetidos ao Supremo Tribunal Federal mediante ação direta de inconstitucionalidade. Assim, o processo de controle abstrato de normas cumpre entre nós uma dupla função: atua tanto como instrumento de defesa da ordem objetiva, quanto como instrumento de defesa de posições subjetivas.
Assim, a própria evolução do sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, verificada desde então, está a demonstrar a necessidade de se reavaliar a subsistência da Súmula 347 em face da ordem constitucional instaurada com a Constituição de 1988.
Nesse contexto, o próprio Pretório Excelso tem se posicionado de forma crescente e contínua no sentido de que não cabe a outros órgãos que não exercem função jurisdicional apreciarem ou não a constitucionalidade de lei para sua aplicação. E, como sabido, o Tribunal de Contas possui natureza jurídica de órgão administrativo, técnico, de controle e auxiliar do Poder Legislativo. Ou seja, não é investido de caráter jurisdicional.
Algumas Constituições Estaduais tem deixado expresso que o papel de controle e guardião das normas estaduais compete exclusivamente ao Poder Judiciário, afastando, por via direta, o exercício de tal desiderato pelo TCE.
Ainda, nesse mesmo sentido diversos Tribunais de Justiça pelo País tem se posicionado pela impossibilidade de controle de constitucionalidade pelo Tribunal de Contas, ante a superação da Súmula 347 do STF, vide, ad exemplum, decisão dentro do julgamento do Mandado de Segurança nº 0005228.16.2013.8.22.0000, o Pleno do TJ RO reconheceu a impossibilidade do TCE realizar controle de constitucionalidade, in verbis:
O Mandado de Segurança foi impetrado por Humberto da Silva Guedes objetivando o restabelecimento definitivo do pagamento da pensão destinada a ex-governador, por haver o Tribunal de Contas do Estado de Rondônia, com base na Súmula 347 do STF, negado executoriedade à Lei Estadual n. 276/90.
A segurança foi concedida, à unanimidade, com base no voto por mim proferido, ocasião em que argumentei que, apesar da existência da Súmula 347 do STF, no caso em exame o Tribunal de Contas não se acha investido de atribuições institucionais que lhe permitam proceder ao controle de constitucionalidade, a não ser nos limites de suas atribuições. Explico:
A Súmula 347 do STF assim dispõe:
O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público.
Referida Súmula foi editada em 1963, tendo como base o art. 77 da Constituição Federal de 1946, há muito revogado, e num contexto constitucional completamente diferente do atual.
O referido art. 77 não compreendia todas as competências que hoje contém o art. 71 bem como não continha disposição expressa, como a do inc. IX, o qual demonstra ser a atuação do Tribunal de Contas de mera observância da ordem legal.
O contexto constitucional em que foi aprovado o verbete da Súmula 347 do STF, era indubitável o fato de que órgãos não-jurisdicionais, mormente o Tribunal de Contas da União, poderiam afastar a incidência de normas consideradas inconstitucionais, ao fundamento de que a recusa à aplicação de lei inconstitucional não se confundia com a declaração de sua inconstitucionalidade. Atualmente, não se vislumbra distinção entre uma coisa e outra, isso porque exerce o controle incidental de constitucionalidade o juiz ou tribunal que afasta a aplicação da norma, em face da inconstitucionalidade, mesmo sem a declaração ou reconhecimento expresso na decisão.
A Constituição Federal de 1988 em seu art. 71, lista as competências da Corte de Contas, donde se extrai que não foi outorgado ao Tribunal de Contas o poder de apreciar a constitucionalidade de leis ou atos normativos do Poder Público. Inclusive, o inciso IX demonstra que a atuação do referido órgão é no plano, apenas, da legalidade, jamais da constitucionalidade. De acordo com o referido inciso, o Tribunal de Contas deve velar pelo escorreito cumprimento da lei, não cabendo, portanto, questionar lei válida e vigente, e que é usada pelo administrado no exercício de suas atividades, sob pena de perverter a ordem constitucional.
Ainda, em conformidade com o artigo 5º, LIII, da Constituição Federal, ninguém será julgado senão pela autoridade competente, e o §1º do dispositivo referido deixa claro que tal garantia tem aplicação imediata, não podendo o Tribunal de Contas, por não ter competência, declarar a inconstitucionalidade de leis ou atos normativos.
Doutrina o Ministro Carlos Ayres Brito que as Cortes de Contas não são órgãos exercentes da função jurisdicional do Estado:
[...] os Tribunais de Contas não exercem a chamada função jurisdicional do Estado. A função jurisdicional do Estado é exclusiva do Poder Judiciário e é por isso que as Cortes de Contas: a) não fazem parte da relação dos órgãos componenciais desse Poder (o Judiciário), como se vê da simples leitura do art. 92 da Lex Legum; b) também não se integram no rol das instituições que foram categorizadas como instituições essenciais a tal função (a jurisdicional), a partir do art. 127 do mesmo Código Político de 1988.¿ ( O Regime Constitucional dos Tribunais de Contas. O Novo Tribunal de Contas: Órgão Protetor dos Direitos Fundamentais. 3ª ed. São Paulo.)
Ora, diante de um sistema de controle de constitucionalidade, não se mostra razoável que órgãos desprovidos de natureza jurisdicional possam avocar competência tipicamente judiciária para emitir juízo de adequabilidade entre atos normativos primários e a Lei Maior, em manifesta subversão da unidade racional que o sistema busca emprestar à fiscalização de constitucionalidade das leis.
Assim, o controle de constitucionalidade que recai sobre normas já integradas ao sistema de direito positivo é de competência privativa do Poder Judiciário, e os órgãos estatais diversos só poderão realizar atipicamente tal controle se o texto constitucional assim expressamente autorizar, o que não ocorre em relação ao Tribunal de Contas.
O princípio de constitucionalidade das leis, que confere segurança e estabilidade às relações jurídicas, somente pode ser elidido por órgãos que detenham competência constitucional expressa para dizer se o ato normativo ou lei questionado se coaduna ou não com a Constituição.
Ressalte-se que admitir que órgãos constitucionais despojados de funções jurisdicionais se neguem a aplicação de lei formal válida, ao fundamento de sua inconstitucionalidade, estar-se-ia compactuando com verdadeira instabilidade do sistema normativo vigente.
No entanto, tanto o TCU, quanto diversos Autores, cite-se, por exemplo, em homenagem ao belo trabalho, o Prof. Luiz Henrique Lima, pautados em jurisprudência ultrapassada, anterior, inclusive, a edição da Carta Constitucional de 1988, continuam a defender e sustentar o controle de constitucionalidade pelos Tribunais de Contas.
Ou seja, desrespeitam os precedentes firmados sobre o tema para entender obtusamente que permaneceria em vigor entendimento jurisprudencial revogado que os beneficia.
De outro lado, em linha semelhante, os Tribunais de Justiça, pautados na premissa do livre convencimento motivado, da liberdade de “dizer o direito no caso concreto”, a efeito de realizar o controle das ações do Poder Executivo, caso a caso, aplica ou deixa de aplicar o entendimento firmado pelos Tribunais Superiores (STF/STJ).
Ad exemplum, cite-se decisão do TJ RO que, em desalinho ao entendimento firmado pelo STF/STJ, quanto à inviabilidade de concessão liminar em Mandado de Segurança para concessão de vantagem ou implantação de adicional remuneratório, terminou por sedimentar decisão contrária.
Não se pode, de fato, esquecer que mesmo no sistema do commowlaw, onde se aplica a séculos a metodologia dos precedentes judiciais, existem expedientes destinados a superação do entendimento firmado (distinguishing e overruling). No entanto, estes expedientes não podem ser utilizados aleatoriamente, sob pena de vulneração integral da sistemática de estabilização de decisões judiciais que vem sendo implantada desde a edição da EC nº 45/04, culminando com o Novo CPC.
Conclusão
A multiplicidade de trabalhos sobre a nova sistemática de precedentes judiciais implantada pelo Novo Código de Processo Civil deixa claro a importância que esse tema irá tomar nas próximas décadas.
A estabilização e uniformização da jurisprudência são ferramentas imprescindíveis para implantação efetiva da celeridade do julgamentos, na medida que tende a reduzir a litigiosidade e a multiplicidade de processos que abarrotam atualmente o Poder Judiciário.
Não há dúvida que essa nova metodologia de respeito e vinculação dos aplicadores do direito ao sistema de precedentes demandará um novo comportamento e uma nova dinâmica processual.
A par de respeitáveis doutrinadores sustentarem que essa medida não representa uma mitigação do sistema do civil law, esse Autor defende que, tal como ocorreu com a criação das súmulas vinculantes (Artigo 103-A da CF), o novo CPC representa mais uma medida de aproximação do sistema processual brasileiro ao sistema do commowlaw. Pode, de fato, não haver, ainda, inteira mitigação dos sistemas processuais, mas representam uma aproximação decisiva entre o civil law e o commomlaw. Medida pela qual, os sistemas de controle das ações do Poder Executivo – Poder Judiciário e o Tribunal de Contas – devem observar essa nova dinâmica de julgamento no exercício de sua competência, sob pena de vulneração de toda sistemática iniciada com a edição da EC nº 45/04 até a vigênciado Novo CPC.
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Min. Gilmar Mendes, MS nº 25.888, DJe 29.03.2006
Procurador do Estado de Rondônia. Assessor Jurídico Chefe da Secretaria do Estado de Planejamento, Orçamento e Gestão. Especialista em Advocacia Pública pela AVM Faculdade Integrada. Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia - UFBA. Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador (2005). Professor de Direito Constitucional, Direito Administrativo e Direito Processual Civil. Atua como Advogado nas áreas Cível, Tributário, Comercial e Trabalhista.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Artur Leandro Veloso de. O precedente e o novo Código de Processo Civil cotejados em face do controle do Poder Judiciário e do Tribunal de Contas sobre o Poder Executivo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 mar 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49699/o-precedente-e-o-novo-codigo-de-processo-civil-cotejados-em-face-do-controle-do-poder-judiciario-e-do-tribunal-de-contas-sobre-o-poder-executivo. Acesso em: 23 dez 2024.
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