RESUMO: O artigo 306, da Lei n. 9.503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro), tipifica como crime a conduta de embriaguez ao volante, à qual comina a pena de detenção, de 6 meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. Referido delito passou por uma série de alterações ao longo dos anos, as quais agravaram o tratamento penal da matéria, com o objetivo de combater os números alarmantes de acidentes associados ao consumo de álcool. Todavia, algumas dessas mudanças apresentam questões controversas, razão pela qual são objeto de críticas doutrinárias que declaram sua incompatibilidade com os princípios penais da lesividade, responsabilidade penal subjetiva e consunção. Nesse contexto, o presente estudo busca investigar se o combate à embriaguez ao volante legitima a flexibilização de referidos postulados. Empregado o método de abordagem indutivo, foi possível constatar que o crime em estudo é classificado como de perigo abstrato e que tutela bem jurídico supraindividual, elementos que não se mostram compatíveis com princípios do Direito penal tradicional, evidenciando que a proposta legislativa se legitima como uma exigência político-criminal hodierna. Referida exigência impõe a transformação do Direito penal, a fim de que seja instrumentalizado, tornando-se hipertrofiado, simbólico e destituído das garantias penais. Por outro lado, a redução dos índices de acidente de trânsito associados ao consumo de álcool mais parece estar associada ao incremento da fiscalização do que à eficácia da alteração legislativa, colocando em xeque a necessidade de deformação do Direito penal. Conclui-se que o combate às condutas transgressoras sem resultado deve ficar a cargo dos demais ramos do Direito.
Palavras-chave: Embriaguez; Trânsito; Direito penal.
1 Introdução
O artigo 306 da Lei nº. 9.503/97 tipifica a conduta de “Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência”, estabelecendo, em seu preceito secundário, as penas de detenção, de 6 meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor (BRASIL, 2017).
Trata-se de crime: comum e doloso, cujo núcleo é o verbo ‘conduzir’, significando o ato de pôr o veículo em movimento, mediante o acionamento do motor. Ainda da análise do verbo, é possível concluir tratar-se de crime comissivo – já que se exige uma conduta positiva do agente – bem assim instantâneo, dando-se a consumação em um momento determinado (HABIB, 2015).
Todavia, certos aspectos da classificação doutrinária do delito despertam algumas dificuldades quando cotejadas com princípios tradicionais do direito penal. No presente estudo, buscar-se-á analisar referidos aspectos e identificar a incompatibilidade e os princípios violados, na tentativa de esclarecer o que impulsiona esse processo e se ele se afigura legítimo.
2 Aspectos controversos do crime de embriaguez ao volante
Inclina-se a doutrina majoritária a apontar que o bem jurídico objeto de proteção do artigo 306, CTB, e, de um modo geral, de quase todos os crimes previstos no Código de Trânsito é, primariamente, a segurança viária, bem jurídico de natureza supraindividual e de caráter indisponível (HABIB, 2015). Todavia, cumpre destacar a divergência suscitada por Leonardo Schmitt de Bem (2015), para quem os tipos previstos na Lei n. 9.503/97 devem tutelar a vida, a integridade física e o patrimônio daqueles que participam do trânsito, isto é, bens jurídicos de natureza individual, ainda que pertinentes a um número indeterminado de pessoas.
Para este autor, a segurança viária não é um bem jurídico real, senão que uma ficção jurídica, cuja consagração como objeto de tutela do direito penal implica na expansão da pena. Tanto é assim que qualquer transgressão às regras de trânsito, ainda que não sujeite a perigo real àqueles bens individuais, pode ser considerada lesão à segurança viária, sem que esta tenha seu conteúdo necessariamente definido.
Assim, cria-se um bem jurídico fictício que possibilita a antecipação do poder punir, sujeitando à persecução penal comportamentos transgressores, ainda que à revelia de perigo ou de dano a bens jurídicos reais. Bem (2015) observa ainda que as consequências dessa ficção são severas, visto que os objetos de tutela do direito penal têm por função limitar o poder de punir, e não expandi-lo, e que a obediência ao princípio da lesividade se dá apenas de forma aparente.
No entanto, a jurisprudência filia-se, sem maiores problemas ao entendimento dominante, admitindo o concurso de crimes, inclusive material, entre a conduta tipificada pelo artigo 306 e aquelas tipificadas pelos artigos 302 e 303 do CTB, respectivamente, homicídio e lesão corporal, ambos culposos e praticados na direção de veículo automotor. Tal entendimento só é possível ao se admitir que os tipos referidos tutelam bens jurídicos distintos – a saber, de um lado, a segurança viária, e de outro a vida e a integridade física – derrogando o princípio da consunção, segundo o qual crime de dano afastaria o de perigo (BEM, 2015).
Outro aspecto controverso do delito em análise refere-se ao seu enquadramento como crime de dano ou de perigo, conforme o grau de ofensa por lei exigido à concretização do ius puniendi estatal. Doutrinariamente, crime de dano é aquele que exige, para a sua consumação, lesão efetiva ao bem que tutela, ao passo em que o de perigo, subdividindo-se em crime de perigo abstrato e de perigo concreto, refere-se à exposição do bem à mera possibilidade de dano. Quanto às subespécies, eis que se diferem no que diz respeito ao aspecto probatório, sabendo-se que o crime de perigo abstrato dispensa a demonstração do perigo em juízo, porquanto é a lei que o presume (CAPEZ, 2016).
A redação original do artigo 306 tipificava a conduta de “Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem ” (BRASIL, 2017, grifo nosso). Tratava-se, portanto, de infração penal de perigo concreto, exigindo-se, no bojo da instrução processual, a demonstração da exposição da incolumidade de outrem à perigo, sob pena de atipicidade da conduta (BEM, 2015).
Ocorre que a Lei nº. 11.705/2008, impulsionada pelo clamor popular, operou modificação na conduta tipificada, para então incriminar o ato de :“Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência” (BRASIL, 2017).
Nesses termos, a nova redação do delito do artigo 306 passou a prescindir da demonstração de perigo, passando a se enquadrar na definição de crime de perigo abstrato (BEM, 2015). Tal classificação permanece até os dias atuais, conforme tipificação mais recente ofertada pela Lei nº. 12.760/2012 (HABIB, 2015).
Todavia, os crimes de perigo abstrato, muito embora se apresentem como principal mecanismo legislativo de enfrentamento à impunidade, parecem revelar uma incompatibilidade insuperável com os alicerces do direito penal, em especial com o princípio da lesividade, o qual tem por desiderato selecionar o objeto do direito penal dentre as condutas mais gravosas perpetradas contra os bens jurídicos mais importantes (HABIB, 2015).
Assim, das vertentes do princípio comumente apontadas pela doutrina, destaca-se aquela segundo a qual é proibido incriminar condutas que, embora desviadas, não afetem bem jurídicos alheios. Trata-se de valiosa herança iluminista, cuja função não é senão a de constituir divisas claras entre o direito e a moral, a vedar a incriminação de condutas que não repercutem diretamente sobre bens jurídicos reais, ainda que a sociedade as encare com desprezo (GRECO, 2010).
No que se refere aos crimes de perigo abstrato, a reprimenda penal não pressupõe lesão ou perigo real ao bem tutelado, visto que é a lei que, mediante presunção absoluta, realiza, para além da conduta perpetrada pelo agente, o elemento faltante para a consumação do delito. Vale dizer, o agente concorre com apenas um dos elementos do tipo, cabendo à lei suprir a exigência trazida pelo princípio em estudo, o que fará mediante presunção que não admite prova contrária (HABIB, 2015).
Até mesmo o elemento subjetivo da conduta é relegado, sabendo-se que, nos crimes dessa natureza, exigir-se-ia a vontade livre e consciente do agente de expor o bem jurídico a perigo. Todavia, cumprindo à lei satisfazer tal requisito, torna-se irrelevante o móvel psicológico que orienta o agente no caso, bastando que sua conduta objetivamente se subsuma ao tipo. Portanto, posto que dispensam a exposição de bens jurídicos a perigo real, os crimes de perigo abstrato não se coadunam com princípio da lesividade e da responsabilidade penal subjetiva, dogmas clássicos do direito penal (HABIB, 2015).
Assim, demonstrado que a ficção jurídica da tutela do bem coletivo e a transformação do artigo 306 em crime de perigo abstrato legitimam o recrudescimento do tratamento penal – à revelia mesmo de princípios de garantia clássicos do direito penal – faz-se necessário compreender o contexto em que tais mudanças ocorrem, para que, então, seja possível explicar o tratamento destinado à embriaguez no trânsito.
De acordo com Gomes e Bianchini (2002), com a ascensão do modelo social de Estado (assistencial e intervencionista), houve uma hipertrofia irracional do Direito penal, provocada pela criminalização excessiva de condutas moralmente indesejáveis. Isto é, em virtude da sua eficácia coercitiva e elevada carga simbólica, o Direito penal passou a ser o principal mecanismo de controle social, em processo exemplificado pela tutela penal de bens jurídicos supraindividuais.
Tais bens jurídicos, como é o caso da segurança viária, cujo conteúdo não se pode precisar, provocam a expansão demasiada do poder punitivo, ao contrário do que ocorre com os bens de titularidade individual, que têm a finalidade de limitar o poder de punir estatal (BEM, 2015).
Assim, com a tutela penal de bens coletivos, o modelo clássico, comprometido com a limitação do poder punitivo, foi desfigurado, substituindo o indivíduo pela sociedade no eixo do sistema. Nesse contexto, o Estado, a pretexto de garantir bens jurídicos de titularidade coletiva, passa a dispor de princípios individuais de garantia, instrumentalizando o ser humano em favor da proteção do coletivo (GOMES; BIANCHINI, 2002).
Todavia, estes autores afirmam que o Direito penal, hipertrofiado é ineficaz, considerando o déficit operacional que o acomete, a saber, o número de delitos que adentram o sistema é maior que sua capacidade de reação. E não dando mais conta da proteção de bens jurídicos fundamentais, revela a sua nova finalidade: a de tranquilizar a opinião pública.
Trata-se do Direito Penal Simbólico, a cujo respeito afirmam os autores (p. 105):
Não são poucas as leis que estão assumindo essa forma patológica de expressão do direito, especialmente as que contemplam uma criminalização exageradamente antecipada em relação à lesão do bem jurídico, o que ocorre com frequência para a prevenção de 'riscos' aos bens 'coletivos' ou 'supraindividualizados'.
A consequência desse fenômeno, dado o déficit operacional a que se fez referência, é o descrédito, a médio prazo, do poder de coerção das proibições da legislação penal, muito embora, a curto prazo, atenda às exigências sociais de prevenção de riscos do mundo globalizado, gerando uma a sensação de alívio e segurança à opinião pública. (GOMES; BIANCHINI, 2002).
Este é exatamente o panorama que se tem no que concerne ao delito previsto no art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro. Segundo Jesus (2010), em 1980, a conduta de dirigir veículo sob a influência de álcool era tratada como mera contravenção penal, em tipo previsto no art. 34 da LCP. O Código de Trânsito dispensou novo tratamento à conduta, mais gravoso, seja por destinar-lhe, sob certas circunstâncias, a natureza de crime, seja por cominar pena sensivelmente maior.
A lei 11.705/2008 suprimiu o caráter de crime de perigo concreto, para permitir a punição do autor da conduta, independentemente da exposição a perigo de bens jurídicos de quem quer que seja. Contudo, já àquele tempo, advertia o autor citado para o fato de que o recrudescimento acrítico do tratamento penal apenas atinge o escopo anunciado, qual seja, o de reduzir a ocorrência de acidentes de trânsito causados pelo consumo de álcool, à custa do aumento momentâneo da fiscalização.
De fato, os dados apontam uma redução de 16% dos acidentes fatais na Capital do Estado de São Paulo, ao passo em que, nos demais municípios do mesmo Estado, onde a fiscalização é menor, a redução foi apenas de 7,2% (ANDREUCCETTI, 2017). Assim, embora o resultado seja positivo, trata-se de diminuição ainda pequena e de nexo causal demasiadamente incerto (dado que os números podem ser mais propriamente explicados pelo incremento dos processos fiscalizatórios do que pela exasperação da resposta penal) para que se justifique o endurecimento da lei, à custa da deformação do núcleo duro de garantias do Direito Penal.
Nestes termos, uma das soluções apontadas por Gomes e Bianchini (2002) é a de que infrações sem vítimas determinadas, sem resultado e que tutelam meras ideologias sejam descriminalizados, restando os demais ramos do Direito como mecanismos de controle. De outra sorte, o homicídio e a lesão corporal, verdadeiros crimes de dano, e, ainda, os crimes de perigo, desde que não se prescinda da demonstração do perigo concreto, continuariam a ser objeto do Direito Penal.
3 Conclusão
Realizadas as considerações doutrinárias acerca do crime de embriaguez ao volante, foi possível constatar que o tipo previsto no art. 306, do CTB, tem por objetivo tutelar o bem jurídico segurança viária, de titularidade coletiva e de natureza indisponível. Ademais, averiguou-se que, após a reforma legislativa realizada em 2008, o crime em estudo tornou-se de perigo abstrato, dispensando, em sede de instrução probatória, a demonstração da exposição da segurança viária a perigo real.
Todavia, referidas características não se compactuam com os alicerces do direito penal clássico, que vê, nos bens de tutela, função limitadora do poder punitivo estatal. É que a consagração da segurança viária como objeto de proteção permite a antecipação da intervenção do direito penal, que passa a alcançar condutas sem resultado. Para além disso, permite a exasperação da reprimenda, na medida em que autoriza a acumulação formal e material entre o crime de perigo e os crimes de dano previstos nos artigos 302 e 303, do CTB, tudo com fulcro na tese de que aludidos tipos tutelam bens jurídicos diversos.
Derroga-se, assim, um princípio de prevenção de conflitos entre normas penais, a saber, o da consunção, permitindo que uma mesma conduta seja punida duas vezes, em clara violação da garantia constitucional de proibição do bis in idem. Não obstante, viola também o princípio da lesividade, considerando a natureza de crime de perigo abstrato, cujo efeito, ainda que de natureza colateral, é autorizar a punição de condutas ainda não ofensivas à vida, à integridade física ou ao patrimônio de terceiros, estes, sim, bens jurídicos reais e de conteúdo determinável.
Por fim, foi possível concluir que tais respostas legislativas, implementadas através de reformas sucessivas do Código de Trânsito, relativizam garantias penais clássicas, em um processo que se origina com a ascensão do modelo social de Estado, excessivamente intervencionista.
Contudo, a flexibilização de garantias penais é um preço alto demais a pagar por um resultado (redução do alto número de acidentes de trânsito associados ao consumo do álcool) possivelmente atribuível a uma causa diversa, qual seja, o incremento da fiscalização Estatal.
Nesse sentido, defende-se que os tipos de perigo abstrato, notadamente o previsto no art. 306, do CTB, sejam descriminalizados e relegados à tutela dos demais ramos do direito, a saber, o civil e o administrativo. Reserva-se, assim a ultima ratio do ordenamento à repressão das condutas concretamente ofensivas a patrimônio, vida e integridade física dos indivíduos, como sói ocorrer ante o influxo do princípio da lesividade.
Referências
BEM, Leonardo Schmitt de. Direito penal de trânsito. 3. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015.
BRASIL. Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997. Disponível em: . Acesso em: 06 de fevereiro de 2017.
ANDREUCCETTI, G. et al. Reducing the legal blood alcohol concentration limit for driving in developing countries: a time for change? Results and implications derived from a time-series analysis (2001-10) conducted in Brazil. Disponível em: . Acesso em: 6 de fevereiro de 2017.
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, parte geral: (arts. 1º a 120). 20ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. 1 v.
GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. O direito penal na era da globalização: hipertrofia irracional (caos normativo), instrumentalização distorcionante... São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. 10 v.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 12. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010.
HABIB, Gabriel. Leis penais especiais: tomo III. Salvador: Editora Juspodivm, 2015.
JESUS, Damásio E de. Crimes de trânsito: anotações à parte criminal do código de trânsito (Lei n.9.503, de 23 de setembro de 1997). 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
Graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CUNHA, Augusto Cézar Lopes. Críticas ao crime de embriaguez ao volante: uma análise à luz de princípios penais tradicionais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 mar 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49706/criticas-ao-crime-de-embriaguez-ao-volante-uma-analise-a-luz-de-principios-penais-tradicionais. Acesso em: 23 dez 2024.
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