RESUMO: Esta pesquisa tem como objetivo primordial demonstrar que o fenômeno do superendividamento, haja vista a oferta desmedida de crédito no Brasil é fato consumado sendo este merecedor da tutela jurídica estatal. Nesse sentido cumpre definir previamente que o consumidor que se classifica com superendividado é aquele que convive em uma situação de risco social uma vez que não é mais capaz de honrar com seus compromissos e ao mesmo tempo está incapacitado de honrar até mesmo com as necessidades básicas de sua casa. No presente trabalho ficará demonstrado que isso além de afetar a dignidade do consumidor enquanto pessoa humana, é causa principal de exclusão social e até mesmo de empobrecimento e miserabilidade das famílias que não conseguem honrar seus compromissos com taxas de juros e cobranças muitas vezes abusivas e que por esse motivo, são merecedores da tutela jurídico civilista-constitucional, constituindo-se inclusive um dever do Estado tutelar os consumidores superendividado.
Palavras-chave:Superendividamento;Consumidor Superendividado; Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
ABSTRACT: This research has the primary objective to demonstrate that the indebtedness of the phenomenon, due to the excessive supply of credit in Brazil is a fait accompli which is worthy of state legal protection. In this sense should first be set to the consumer that ranks with superendividado is one who lives in a social risk since it is no longer able to meet their commitments and at the same time is unable to honor even the basic needs of home. In the present work will be shown that in addition to affecting the consumer's dignity as a human person, is the main cause of social exclusion and even impoverishment and misery of families who can not meet its obligations with interest rates and charges often unfair and which therefore, are deserving of civil law and constitutional legal protection, becoming even a State duty superendividado protect the consumers.
Keywords: overindebtedness; Consumer superendividado; Principle of Human Dignity
1 Introdução
O que se nota nos dias atuais é que impera uma verdadeira cultura do consumo – herança do modelo americano e que nos dias atuais com a oferta de crédito maior (principalmente depois do governo Lula até pouco tempo do governo Dilma) e que atinge todas as classes sociais e também idades.
A oferta de crédito para consumo e aquisição de produtos e serviços se, realizado afrontando o Código de Defesa do Consumidor é um dos gatilhos que ensejam o endividamento.
Tal explica que não foi casual a grande crise que atingiu os Estados Unidos em 2007, no caso, a crise imobiliária, ameaçando a economia mundial e que tem entre seus principais personagens o endividamento das famílias americanas e nem se trata uma coincidência que nos últimos tempos cada vez mais se fala em “análise econômica do direito” que já passa a ser conhecida por AED.
O objetivo primordial deste artigo é verificar que o problema do superendividamento no Brasil, mesmo sendo vultuoso o seu crescimento entre os consumidores com a febre de consumo que nos afligiu nos últimos tempos – excetuando algumas exceções e casos particulares, é uma questão que é encarada como (des)controle financeiro individual (e até mesmo um traço de personalidade que os especialistas no assunto denominam de “prodigalidade”. Dentre os objetivos específicos, compreender as consequências para os fatores econômicos, sociais e jurídicos, advertindo-se que apenas os “superendividados passivos de boa-fé” merecem a tutela do Estado.
A importância do tema é por ser um fato real que aflige a sociedade brasileira, não restando a menor dúvida que se trata de um problema mais de natureza social e econômica, com base em análises que já foram realizadas inclusive, em países como a França. Trata-se de uma omissão que traz consequências diretamente à dignidade da pessoa (cidadão-consumidor) que frequentemente sem condições de suprir suas necessidades mais simples, como exemplo de saúde e alimentação e, pelo sutil nexo de causalidade da responsabilidade pela concessão do crédito, culpa-se e sofre pela situação.
2 O longo processo evolutivo do crédito até culminar no endividamento das sociedades contemporâneas
Iniciando o presente trabalho, primeiramente cuidaremos da definição de crédito que, nas palavras de Giancoli (p. 13, 2008), define-se como “operação de troca de bens, a qual concede a disposição efetiva e imediata de um bem econômico com vistas a contraprestação futura”.
Dessa forma, sustenta-se na mesma direção e pensamento Costa (p. 13, 2002) afirmando que:
Etimologicamente a palavra crédito provém do latim credere, que significa ter confiança. Mais precisamente, o crédito associa-se a duas noções, quais sejam, a confiança e o tempo. Define-se como a faculdade de inspirar confiança por uma duração mais ou menos longa. Desse modo, o crédito é caracterizado pela decorrência de um prazo entre a prestação do credor e aquela do devedor, o que somente é possível porque o credor acredita que o devedor cumprirá sua obrigação nos prazos convencionados.
Em um sentido etimológico, o termo “crédito”, tem suas origens no latim credere que, se defini por “ter confiança”. Assim, especificamente falando, o termo crédito associa-se a duas noções, que são a confiança e o tempo.
Pode também conceituar-se com a faculdade de inspirar confiança por uma duração mais ou menos longa (COSTA, 2002).
Dessa forma, a característica principal do crédito é a decorrência de um prazo que incide entre a prestação do credor e aquela do devedor, o que somente é viável uma vez que o credor acredita, confia no devedor e no seu consequente cumprimento da obrigação segundo os prazos convencionados.
A oferta de crédito assim como aconteceu com a sua evolução, é um dos principais motores da economia segundo Giancoli (p. 13-47, 2008), uma vez que se constitui em indispensável instrumento de estímulo ao desenvolvimento social-econômico de todas as sociedades com o passar dos tempos.
Conforme se infere em trabalhos de historiadores, as primeiras evidências conhecidas sobre o nascimento de operações que tinham como base o crédito aconteceu ainda no período neolítico na antiguidade, sendo, portanto, anterior até mesmo a indústria e a cunhagem de moedas (COSTA, 2002).
Estudiosos acreditam que o credito pode ter tido sua origem remota no sedentarismo agrícola do período neolítico, onde, provavelmente em razão de dogmas divinos, fato comum entre nossos antepassados que gerenciavam até mesmo comportamentos dos grupos, houve a proibição de empréstimo a juros.
No Código de Hamurabi, que é considerado um dos mais antigos e mais bem conservados códigos existentes, encontram-se inúmeras normas que regulamentavam as relações entre credores e devedores (COSTA, 2002).
Esse ordenamento jurídico trouxe uma evolução importante para o que se compreendia por direitos do consumidor e regramento das relações jurídicas que foi o aparecimento da primeira referência a respeito de usura. Também na Grécia antiga, o crédito se mostrou fundamental para a economia sendo praticado nos templos e representando uma parte considerável dos lucros obtidos principalmente no comércio (COSTA, 2002).
Já na Roma antiga, que tinha dentre suas principais características um estimulo bastante intenso com relação às atividades comerciais principalmente com a expansão de terras, aquisição de gado, escravos e grande fluxo de dinheiro considerando-se que era até então o centro da economia global, o crédito teve atuação como grande propulsor da economia, surgindo, já naqueles períodos remotos grande desequilíbrio de ordem social levando-se em conta a exploração creditícia por parte da elite romana, que era constituída pelos patriciados em face dos plebeus, que eram a classe menos favorecida da sociedade constituída basicamente por trabalhadores pobres (GIANCOLI, 2008).
A usura figurou com um dos principais conceitos na economia romana que terminou editar a Lei das XII Tábuas que tinha em seu conteúdo normas jurídicas para regulamentar as relações de consumo e de crédito que acontecia entre as duas classes sociais anteriormente citadas.
Também entre os representantes da igreja católica condenavam severamente a prática da usura segundo seus pensadores, e a discussão envolvendo o tema não ficou apenas no campo religioso, mas nas relações civis e, principalmente como algo que dava a oportunidade de uma eventual condenação divina (GIANCOLI, 2008).
A igreja em sua posição ultraconservadora defendia regras severas condenando empréstimos a juros, permanecendo com esse posicionamento diante da questão da usura até meados do século XII.
A noção de condenação total da usura, sendo fruto da reforma que a igreja católica sofreu que terminaram com a criação dos movimentos luterano e calvinista, foi gradualmente mitigada pela defesa dos empréstimos a juros como forma de desenvolvimento econômico (GIANCOLI, 2008).
Mesmo tendo rompido com a tradição que encarava tal situação como algo repreensível haja vista a sua gravidade aos olhos e a interpretação da igreja, a atividade econômica tendo como base o juro passou a ser vista não com tanta excessividade na cobrança dos mesmos.
Com base nessas informações, o que se conclui é que desde o início da humanidade o crédito, que, apesar de estar sendo visto como um vilão em tempos de volta da inflação e estagnação econômica no Brasil, teve um papel importante de ser o legítimo representante da mola propulsora da economia ao longo dos tempos (COSTA, 2002).
Com relação ao seu aspecto negativo, o endividamento ao longo do processo de desenvolvimento da humanidade em sua forma mais perversa é que deve ser considerado também (COSTA, 2002).
O aumento do crédito de fato só ocorreu a partir do século XIX, mesmo ele estando constantemente presente na história e no desenvolvimento econômico das sociedades e, principalmente a partir do século XX houve um aceleramento vertiginoso principalmente com o advento do que hoje se conhece por vendas parceladas que teve sua origem nos Estados Unidos como instrumento de financiamento de aparelhos domésticos (COSTA, 2002).
Com isso, é importante dizer que nos Estados Unidos da América que se consagrou o crédito como grande motor de impulsionamento da economia em uma sociedade caracteriza por ser tipicamente de consumo e cultura do endividamento (COSTA, 2002).
Com isso, também é mérito dos norte-americanos a consolidação da venda a crédito como instrumento de melhoria na qualidade e no nível de vida, forma de alcançar status e inserção social que se fundem na aquisição de automóveis e outros bens eletrodomésticos e modismos.
Nesse sentido, afirma o professor Giancoli (p. 35, 2008) que:
Por se tratar do mercado mais antigo e mais desenvolvido do crédito moderno, os consumidores americanos são por excelência o espelho desse setor de atividade. Espelho para a profissão que lá vai procurar fontes de inovação; após a ideia de venda alienada, passando por técnicas de pontuação e métodos de pagamento.
Nessa mesma linha de pensamento, preleciona Magalhães apud Frade e Leitão Marques (p. 42, 2006) que:
A democratização do crédito remonta aos EUA, país que, antes dos países europeus ocidentais, deixou de interpretar o crédito como sinônimo de pobreza ou de prodigalidade para o encarar simplesmente como um meio de adquirir uma máquina de costura ou automóvel, transformando-o num mecanismo fundamental para dinamizar a economia nacional (Marques e Frade, 2003; Marques et al., 2000). De facto, a economia americana cedo compreendeu os efeitos positivos do crédito aos consumidores no plano macroeconômico, pelo que baseou grande parte do seu crescimento na expansão do crédito a particulares.
Mas o consumismo e a denominada “cultura a crédito” não é um costume consolidado apenas nos Estados Unidos. Também na Europa em sociedades mais desenvolvidas como a Inglaterra e a França, mesmo tendo bases ideológicas e passado por processos históricos diferentes do modo de vida americano, sendo que, nestes países, ao contrário do que acontecia na típica sociedade norte-americana, o começo do desenvolvimento das atividades creditícias destacou-se pelo pensamento e estigma que as classes mais abastadas criaram com relação ao crédito como sinônimo de pobreza ou prodigalidade (LEITÃO MARQUES, 2006).
É um pensamento que se transformou com o passar do tempo e também com o aprimoramento e o desenvolvimento das atividades econômicas.
Com uma peculiaridade muito interessante, o Velho Mundo viu consolidar-se a venda a crédito como uma alternativa para a aquisição de bens duráveis, principalmente móveis e automóveis, direcionando-se dessa forma à clientela que buscava melhoria em sua qualidade de vida (LEITÃO MARQUES, 2006).
Era um tipo de crédito que os próprios comerciantes ofereciam (também os varejistas), bancos e demais instituições financeiras promovendo um desenvolvimento gigantesco, o que oportunizou, já naquele período os primeiros estudos que tratavam sobre a questão do superendividamento (LEITÃO MARQUES, 2006).
Assim, na década de 1960, mais precisamente em 1968 surgiu na Inglaterra um comitê que tinha como presidente Lord Crowther, que estimulou a necessidade de regulamentar e elaborar uma legislação melhor que cuidasse da venda a crédito na sociedade britânica.
O grande marco desse comitê é exatamente a publicação no início de 1971, denominado “Consumer Credit Act”, que trata sobre a regulamentação da situação dos empréstimos e também todo sistema de concessão de crédito da Inglaterra (COSTA, 2002).
Na França, no ano de 1954, teve seu surgimento o Conselho Nacional de Crédito com objetivo de regularizar a duração e também a quantia máxima de crédito com alimentação ao consumidor baseado em seu poder de compra e renda.
Posteriormente, as denominadas Leis Neirtz de meados de 1989 e também do último dia do ano de 1989 traçaram definições para as modalidades normativas, que até os dias atuais constituem a legislação principal que trata sobre o crédito ao consumidor na França (LEITÃO MARQUES, 2006).
De modo geral, o que se denota é que partindo de meados do século XX é o grande desenvolvimento das sociedades capitalistas movidas de forma essencial segundo a necessidade da aquisição de produtos pela massa de consumidores, como forma de melhoria de vida e ascensão social (COSTA, 2002).
Com tudo que foi exposto é possível inferir que o crédito tem um lado positivo e outro negativo. Simultaneamente enquanto ele pode ser um instrumento de desenvolvimento econômico e inclusão social, também ser um instrumento perverso de exclusão social no momento que é adquirido de forma excessiva e sem planejamento (COSTA, 2002).
Assim, o crédito traz para as pessoas felicidades na condição de consumidores, uma vez que a aquisição de bens e serviços muitos deles sonhados e que normalmente não estariam ao alcance, ao menos imediatamente dos consumidores, são indicadores de qualidade de vida, possuindo, portanto, conforme preleciona Marques (p. 15-19, 2000), “efeito hedonista, haja vista que possibilita ao mesmo adquirir, sem esperar e sem ter que dispor de imediato de parte de seus rendimentos, produtos e serviços desejados e necessários à família”.
Mas, vale lembrar que quando ele é contraído de maneira irresponsável, sem planejamento e de forma desmedida, o crédito, ao contrário do que se supõe, tem efeitos perversos e mecanismos que deveriam ser razão de inclusão social, passam a ser meio de exclusão social (LEITÃO MARQUES, 2006).
Costa (p. 89, 2002), o crédito pode transformar-se “em um flagelo que provoca pobreza e miséria”. Com isso, denota-se que o crédito tem ligação profunda com o superendividamento, sendo que a concretização da face negativa deste segundo Bertoncello (p. 9.29, 2010):
Historicamente, a concepção negativa do endividamento está ligada à concepção negativa do próprio crédito, fonte do endividamento. Afinal, o crédito surgiu ligado à noção de culpa e erro, era assimilado à usura e condenado por filósofos e doutrinas religiosas.
No Brasil o fomento do crédito teve seu início pouco antes da década de 50, com o surgimento da venda direta a crédito por lojistas aos consumidores. Desde esse momento delineou-se o cenário propicio para que se desenvolvesse uma cultura de endividamento e também o fenômeno do superendividamento do consumidor brasileiro, conforme será visto na segunda parte deste trabalho.
2.1 O quadro creditício disponível ao consumidor e o estudo do fenômeno do superendividamento no Brasil
Sobre as primeiras iniciativas de inserção de crédito ao consumidor por lojistas, com dito anteriormente na década de 1950, segundo denota-se em Stumer (p. 59, 1992), a saber:
A concessão ao crédito era demorada, trabalhosa e complexa. O candidato ao crédito preenchia um longo cadastro de informações, entre elas indicando o armazém onde realizava compras, o seu alfaiate e, eventualmente, outras lojas onde comprava a crédito. A loja, por sua vez, possuía um quadro de funcionários com a função chamada de informante que (...) percorriam, diária e pessoalmente os locais indicados em busca de informações sobre o crédito da pessoa. O setor de crediário dessas lojas pioneiras possuía cadastro de grande número de pessoas, o que fazia com que ficassem, no início de cada manhã, apinhados de informantes de outras lojas em busca de dados e informações dos clientes já por ela cadastrados.
Com o advento da reforma que aconteceu no sistema financeiro no ano de 1965, iniciou-se a modernização do crédito no Brasil, onde um dos principais acontecimentos que ocorreram foi a instituição do chamado crédito direto ao consumidor (CDC).
Nesse sentido preleciona a Resolução n° 45, de 31 de dezembro de 1966 que obrigou que as instituições financeiras destinassem 40% dos seus recursos para o crédito direto ao consumidor (COSTA, 2002).
Mas a partir da implantação do Plano Real que o crédito em nosso país assumiu traços extraordinários como mecanismo de estímulo à economia de consumo e a cultura do endividamento, tendo como consequências mais graves o superendividamento.
Ocorre que em um ambiente favoravelmente estável, onde os preços que não subiam mais da forma alucinante como era anteriormente, estimulou as instituições financeiras que, em tempos anteriores via sua margem de lucro essencialmente direcionada para captação de depósitos tendo em vista o quadro inflacionário que vigorava, dependessem, a partir do controle da inflação, do crescimento de operações de crédito (COSTA, 2002).
Nesse sentido, conforme estudo sobre o tema crédito e superendividamento dos consumidores em nosso país que foi realizado pelo IDEC (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), (p. 08, 2008), denota-se que:
Com o Plano Real, em julho de 1994, o novo ambiente de estabilização de preços trouxe modificações consideráveis para o sistema financeiro brasileiro, uma vez que, com a estabilização da economia, todas as instituições deixariam de ganhar com a inflação. (.....) O crédito a pessoas físicas, revelou-se importante suporte para sustentação do nível da atividade econômica, dinamizando a demanda interna via ampliação do consumo das famílias. As linhas de crédito disponíveis no mercado para aquisição dos bens são abundantes, porém, não necessariamente vantajosas para quem pretende utilizá-las.
Com isso, infere-se que a liberalização financeira e o consequente crescimento de crédito no Brasil são acontecimentos relativamente recentes e que surgiram tão somente após o advento do Plano Real em 1994, segundo ensinam Lima e Bertoncello (p. 25, 2010):
No Brasil a liberalização financeira e a expansão do crédito é bastante recente, ocorrendo somente após 1994 com a edição do Plano Real e, mais acentuadamente, nos últimos cinco anos, devido á estabilidade econômica e a descoberta de uma parcela da população que estava excluída do sistema formal de crédito.
Os efeitos surgiram tão rápido quanto o plano econômico na vida das pessoas e puderam ser sentidos a partir da irrestrita abertura de crédito que ocorreu conforme preleciona Belik (p. 03, 2001):
Os efeitos se fizeram sentir rapidamente. A venda de refrigeradores aumentou em 140% nos três anos posteriores ao início do Real. Da mesma forma, a venda de televisores cresceu 123% e o consumo de cimento saltou 39% no mesmo período. Comparando-se estas taxas com o crescimento da economia como um todo, os sinais eram claro de um surto de consumo limitado.
Isso criou um estímulo para que as instituições financeiras segundo diretrizes da nova delineação econômica e o cenário geral do país mais favorável ao consumo, criassem as condições necessárias para que o crédito de uma forma ostensiva tendo como objetivo primordial a parcela da população que, conforme alhures, vivia antes à margem dessa oferta e de todo o sistema formal de crédito, no novo cenário que se avizinhava, constituiu-se numa das principais formas de aumentar a lucratividade (COSTA, 2002).
Ressalte-se que o crédito tem um caráter mais democrático entre famílias cujos rendimentos atinge até 10 (dez) salários mínimos e, segundo Lima e Bertoncello (p. 25, 2010), “os quais representam 77% da população brasileira e responsáveis por 71% do consumo do país. O recurso também se popularizou entre mais de cinco milhões do total de 19 milhões de aposentados e pensionistas do Regime Geral da Previdência Social desde 2003, quando foi aprovado o empréstimo com desconto em folha”.
Dessa forma, o crédito em nosso país transformou-se em algo rápido, fácil e ostensivo, direcionado, principalmente para a camada da população classificada com de baixa renda, que, com a estabilidade da economia promovida pelo Plano Real, adquiriu maior poder de consumo, transformando-se instantaneamente na fatia de mercado que objetivava para se aumentar os lucros as instituições financeiras e também o comércio varejista (COSTA, 2002).
O aspecto civil-constitucional
2.2.1 Os principais aspectos sobre a constitucionalização do direito civil
Sobre o tema proposto nesta pesquisa que é o princípio da dignidade humana e a tutela do consumidor superendividado encontra embasamento jurídico exatamente no direito civil-constitucionalizado.
O que se denomina de constitucionalização d direito civil ocorreu com o advento do denominado Estado Social e evolução da Teoria do Contrato, onde se verifica indícios de normas de direito público cuidando do direito privado.
A conhecida definição tradicional contratualista modificou-se com a evolução história do chamado Estado social e da Teoria do Contrato (COSTA, 2002).
A conceituação mais conservadora e tradicional a respeito de contrato, segundo preceitos do Estado Liberal, individualista inspirado no Iluminismo, privilegiava invariavelmente a diferenciação e divisão entre o direito privado, que tinha por função disciplinar e regulamentar relações entre particulares e o direito público, também assegurava o equilíbrio e a estabilidade das relações em que o Estado era personagem atuante (LEITÃO MARQUES, 2006).
Nesta seara, o Código Civil cuidava das relações entre particulares, também denominado de “Constituição do Homem comum”, ao passo que a Constituição, enquanto Carta Magna, cuidava de regulamentar as relações onde ocorresse a participação d poder público segundo definições de Sarmento (p. 70, 2004):
No paradigma do Estado Liberal, a Constituição não se imiscuía no campo das relações privadas. Estas eram disciplinadas pela legislação ordinária, que gravitava em torno do Código Civil, centrado na proteção da segurança jurídica, tão vital aos interesses da burguesia.
Com o surgimento do denominado Estado Social que olhava a sociedade de um modo geral com uma concepção mais cuidadosa com relação às pessoas, levando ao surgimento da Teoria Social do Contrato, onde ocorreu a incidência de normas de direito público, direito constitucional, tanto no campo do direito privado, direito civil, o que se denota da doutrina de Negreiros (p. 50, 2002), a saber:
As relações jurídicas de natureza civil, não importando a sua natureza específica – familiar, obrigacional, real ou sucessória --, passam a disciplinar-se não apenas pelas normas contidas ou derivadas do Código, mas, igualmente, por princípios e regras constitucionais. A hierarquia da normativa constitucional, desde há muito reconhecida sob o ponto de vista teórico, torna-se um objetivo a ser concretizado na prática.
Anteriormente a isso, as relações na esfera privada entre particulares, eram pautadas de forma exclusiva pelas lições do direito privado, sofrendo uma grande interferência de regras de origem constitucional, a partir de uma interpretação de natureza axiológica aberta que objetiva o sujeito em um formato não abstrato, atuante do todo social, e que dava valor e tutelava a dignidade da pessoa humana, segundo os ensinamentos de Sarmento (p. 98, 2004), a saber:
Deveras, a posição hierárquica superior da Constituição, a abertura de suas normas, e o fato de que estas, por uma deliberada escolha do constituinte, versam sobre relações privadas, possibilitam que se conceba a lei Maior como novo centro do Direito Privado, apto a cimentar as suas partes e informar seu conteúdo.
Importante mencionar que a evolução da Teoria Contratual, que permitiu a convergência entre o direito civil e o direito constitucional foi, também, consequência da evolução da Teoria Constitucional que promoveu a normatização dos princípios constitucionais, bem como a consequência da concretização dos sujeitos envolvidos nas relações jurídicas.
Com isso, segundo se extrai das afirmações anteriores do autor, denota-se que a normatização dos princípios constitucionais, que resultam de uma evolução da Teoria Constitucionalista, faz previsão com relação ao texto da Constituição como fonte suprema que deve pautar todo o direito, não importando se ele é de natureza pública ou privada, sendo que sobre esse assunto, Perlingieri (p. 05, 2005) autor, que teve enorme influência na doutrina jurídica europeia exercendo sua influência inclusive no pensamento civil-constitucional brasileiro preleciona:
A Constituição ocupa o lugar mais altos da hierarquia das fontes, precedendo, na ordem, as normas da Comunidade Europeia, as leis ordinária (e portanto os Códigos, que são leis ordinárias, incluindo o Código Civil), as leis regionais, os decretos do Poder Executivo e outros tipos de normas, usos, etc.
É uma interpretação que nos dias atuais já está sedimentado e enfrentou resistências por parte da doutrina que, por outro lado, acreditava em um “papel simbólico” com relação à Constituição Federal, sem poder vinculante, uma vez que a concepção de Estado Social e as transformações propostas por esta nova condição que figurava no cenário social brasileiro representavam um risco enorme aos interesses da classe mais abastada da sociedade e que detinha um poder econômico maior e mais influente conforme descreve Sarmento (p. 72, 2004), a saber:
Tal doutrina, que dominou o Direito Constitucional durante boa parte do século XX, e que, apesar de seu anacronismo, ainda não foi totalmente destronada, pelo seu enraizamento no imaginário dos operadores jurídicos, acabava neutralizando os avanços das constituições sociais e dos seus valores de justiça distributiva. Ela reconhecia plena eficácia jurídica à parte da Constituição que garantia a status quo, mas negava qualquer aplicabilidade às normas que impunham transformações e representavam risco para os interesses das classes hegemônicas.
Um pensamento que vigorou no continente europeu por um bom tempo foi que na situação de uma ausência de jurisdição constitucional, a ideia de que a Constituição abarcaria um rol de princípios políticos, que invariavelmente estavam sob a dependência dos preceitos de um legislador para que surtisse efeitos concretos.
Seria uma constituição direcionada totalmente para os chamados poderes constituídos especificamente ao Executivo e ao Legislativo, mas não seria de acesso de juízes, muito menos voltada para os cidadãos (no caso, ter acesso).
Com isso, segundo Sarmento (p. 76, 2004), preleciona que:
Felizmente a evolução da Teoria Constitucional apontou para o sentido de normatização da Constituição Federal inaugurando o processo de afirmação dos interesses sociais, posto que vincula todo o ordenamento à Lei Maior numa interpretação axiológica sempre em busca da efetividade da justiça social, o que se vislumbra perfeitamente no ordenamento brasileiro.
Diante desse cenário, o Brasil, onde o ordenamento jurídico tem suas bases sustentadas numa Constituição calcada sobre princípios e valores humanitários, como exemplo da dignidade da pessoa humana e o Estado Democrático de Direito, e que a Carta Magna dedica um vasto capítulo aos direitos fundamentais, infere-se que desencadear a força normativa da Lei Fundamental e daí propaga-la sobre todos os setores da vida na sociedade humana e de tão abrangendo também o do ordenamento jurídico, faz dela fundamental, para aqueles que preocupam-se com a promoção da chamada justiça substantiva (LEITÃO MARQUES, 2006).
Nesse sentido, coma interpretação restritiva que as normatizações dos princípios constitucionais promovem em todo o ordenamento que se encontra sob a influência de preceitos constitucionais, importante compreender as afirmações de Negreiros (p. 56, 2002) que ensinam que:
Nutrindo-se desta força normativa atribuída aos princípios constitucionais, a adoção da perspectiva civil-constitucional impõe ao interprete a tarefa de reordenar valorativamente o direito civil, preenchendo as formas conceituais e as categorias lógicas desta área do Direito com o conteúdo axiológico estampado na Constituição.
Novo contexto constitucional, em que se insere o direito privado reflete uma interpretação mais próxima da realidade social inaugurando uma nova fase no direito civilista, que se preocupa com o alcance da justiça social.
Ocorre que o ordenamento jurídico a parte, também conhecido como legislação específica se constitui em instrumento que recebendo o aval da Constituição Federal incorreu em profundas transformações no cenário jurídico nacional no que tange o tratamento dado a questão do superendividamento por financiamentos e oferta de crédito desmedida (LEITÃO MARQUES, 2006).
Dessa forma, o Código Civil não ficou de fora preocupando-se também em assegurar as regras do jogo (no sentido de estabilidade de normas); com relação às leis especiais, estas estabeleceram mudanças sem cerimônia, de modo também a assegurar os objetivos sociais e econômicos delineados pelo Poder Público (COSTA, 2002).
Ocorre que o Estado persegue e tem como objetivo determinadas metas e nessa direção, programas de natureza assistencial como forma de ajudar essas pessoas, intervindo também sistematicamente na economia e em seus rumos, valendo-se do dirigismo contratual acentuado (COSTA, 2002).
Nesse sentido, o legislador brasileiro trabalha incessantemente no sentido de atender a demanda setorial crescente, que, para os menos inclinados em prol dessa causa afirmarem tratar-se de uma “orgia diferente”.
Mesmo com todo aprimoramento e amadurecimento inclusive de nossas instituições democráticas, o ordenamento jurídico brasileiro em sua nova configuração do direito civil-constitucionalizado pôde ser, verdadeiramente, experimentado a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 que, cuidou de inserir no ordenamento normas de alcance abstrato atribuindo nova roupagem ao direito civil, tendo-se, como exemplo, a inserção no ordenamento do princípio da dignidade da pessoa humana, do princípio da igualdade e também do princípio da solidariedade social (LEITÃO MARQUES, 2006).
Nesse sentido, o legislador constituinte buscou orientar sua interpretação com relação aos negócios jurídicos, principalmente com relação aos de natureza contratual, por meio da implementação de uma constituição com alta observância social, ou como muitos preferem chamar “constituição cidadã” que tem como foco principal de suas motivações as questões sociais e os interesses de toda uma sociedade buscando a “legítima justiça social”, segundo Farias (p. 24, 2005) que ainda sustenta:
Assim, proclama-se, não sem razão, que a Constituição da República de 1988 promoveu verdadeira reconstrução da dogmática jurídica a partir da afirmação da cidadania como elemento propulsor.
O advento do atual Código Civil que não pode necessariamente ser chamado de novo, uma vez que seu anteprojeto data o ano de 1972, não trouxe muitas inovações, e, acompanhando essa mesma tendência, recebeu muitas emendas em seu projeto original, e segundo Farias (p. 19, 2005), “com o propósito de promover sua adaptação à nova ordem constitucional”.
Dessa forma, é verdadeiro a afirmação de que o direito civil-constitucional tem condições de reunir em torno de sua esfera de atuação princípios e valores de natureza constitucional que cuidam de nortear as relações privadas levando-se em conta a proteção e o desenvolvimento da pessoa humana, destacando com certa supremacia, o princípio maior da dignidade da pessoa humana constante do artigo 1°, inciso III da Constituição Federal e neste sentido, reafirma Negreiros (p. 61-62, 2002) que:
O compromisso do direito civil com a tutela da dignidade da pessoa humana é, portanto, assumido pela perspectiva civil-constitucional como inapelável consequência da sujeição das relações interprivadas aos ditames constitucionais. Muito mais que autonomia e liberdade individuais, o ordenamento civil e, para efeito deste trabalho, a ordem contratual em particular são instrumentos de realização existencial da pessoa humana-pelo que, sob pena de afrontar a Constituição, o interprete e aplicador do Direito deve dar primazia á realização existencial em detrimento da realização patrimonial (...)
Ainda, com relação às palavras de Negreiros, o professor Tepedino (p. 22, 2004) faz questão de expressar no sentido de:
Trata-se, e uma palavra, de estabelecer novos parâmetros para definição da ordem pública, relendo o direito civil à luz da constituição, de maneira a privilegiar, insista-se ainda uma vez, os valores não patrimoniais e, em particular, a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento da sua personalidade, os direitos sociais e a justiça distributiva, para cujo atendimento deve se voltar a iniciativa privada e as situações jurídicas patrimoniais.
Com relação ao que tange a dignidade da pessoa humana, é importante afirmar que esta concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas.
Esse fundamento afasta a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual.
A dignidade é um valor espiritual e moral inerente às pessoas, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos (LEITÃO MARQUES, 2006).
Com isso, infere-se que a constitucionalização representou um enorme avanço em termos jurídicos para as relações de consumo e relações jurídicas obrigacionais no que diz respeito aos contratos, sendo profundas são as transformações que incorrem nas relações de equilíbrio contratual considerando que as mesmas passaram a ser regidas segundo os princípios pautados nos ideais de justiça, solidariedade e igualdade entre as partes (LEITÃO MARQUES, 2006).
Mais ainda, com relação ao princípio maior da dignidade da pessoa humana, que trouxe contribuição significativa para essas questões consumeristas.
Por fim é possível inferir que diante de tudo que foi exposto, uma nova forma de visão a respeito do direito civil-constitucional sob o prisma de uma mudança intrínseca, interna no ordenamento jurídico, denotou ao direito privado novos contornos passando este a ser embasado por normas de direito constitucional, atribuindo-lhe uma roupagem de natureza mais social e cidadã, respeitando as pessoas na sua intimidade, promovendo a inclusão social e o desenvolvimento socioeconômicos do país (LEITÃO MARQUES, 2006).
Com isso, as relações jurídicas tornaram-se mais justas e igualitárias e o fenômeno do superendividamento que será tratado de forma mais detalhada no próximo capítulo passou a ter regulamentação no ordenamento jurídico pátrio onde teve respaldo segundo a visão do direito civil-constitucional, buscando a efetividade da justiça social (COSTA, 2002).
Todavia, é importante deixar claro que ainda entre as instituições financeiras por algum motivo que se desconhece impera uma despreocupação de forma efetiva com relação ao consumidor diante da fenomenologia no Brasil, isso tanto na fase na fase pré-contratual, quanto na fase pós-contratual, o que, contraria expressamente tudo que foi dito anteriormente e principalmente a codificação civil-constitucional que vigora no nosso país (LEITÃO MARQUES, 2006).
Sem dúvidas tutelar o consumidor superendividado, sobretudo com vistas à manutenção de sua dignidade como pessoa, significa dar efetividade à justiça social contemplada pela nossa Carta Magna e cristalizada em princípios como o da dignidade da pessoa humana que será estudado no próximo tópico.
2.3 Os principais aspectos do superendividamento do consumidor
Para que um problema seja tratado, inicialmente é necessário realizar o seu diagnóstico. No Brasil o início do reconhecimento do superendividamento ocorre, principalmente entre outras situações, à bem sucedida experiência de pesquisa de universidades do sul do país interessadas na questão (COSTA, 2002).
Realizada uma pesquisa sobre o tema em 2004, sendo ainda bastante atual mostrou que entre outros dados:
O número de devedores “passivos” é quatro vezes maior que o de devedores “ativos” (é considerado devedor ativo aquele que “gasta mais do que ganha” e passivo, o que, pela facilidade exacerbada de concessão do crédito e/ou diante de uma situação que não estava prevista como doença, desemprego, nascimento de filho – vê-se em condições de endividamento;
Que a maioria dos entrevistados deve para mais de dois credores;
Que a grande maioria não recebeu o contrato, nem antes – como determina os artigos 46 e 52 do Código de Defesa do Consumidor - CDC – nem depois da realização do negócio;
Que apenas para 21% dos entrevistados foi exigida alguma garantia.
Foi daí que inúmeras conclusões foram produzidas e se consolidaram na denominada “Carta de Porto Alegre” que, dentre inúmeras necessidades a da criação de “concordata para o consumidor”, da aplicação do direito de arrependimento nas ofertas de crédito (conforme o CDC em seu artigo 49) assim como da provocação à aplicação do artigo 480 do Código Civil às questões de endividamento do consumidor (tendo em vista a lacuna deixada pelo artigo 7º do CDC).
Mesmo assim, as explicações sobre a responsabilidade por endividamento mesmo não tendo sido ainda avaliadas de forma mais clara pelo Superior Tribunal de Justiça, denota-se que certos tribunais estaduais (tendo como o exemplo o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul) já é possível encontrar matéria julgadas sobre decisões como verbete superendividamento.
Com isso, levando-se em consideração a uniformização da interpretação legislativa infraconstitucional, é bem provável que todos os demais tribunais tomem decisão no mesmo sentido.
Defensorias públicas estaduais como no caso do Rio de janeiro e do Rio Grande do Sul, há pelo menos cinco anos tratam de forma sistemática sobre a questão do superendividamento. No caso da primeira defensoria (a do Rio), inclusive, ocorreu a criação de um Núcleo especializado em Consumidor Endividado.
Assim, levando-se em consideração a atuação do sistema de justiça e a consequente interligação de suas funções, certamente trata-se de uma “provocação” jurisprudencial institucionalmente qualificada pela brilhante atuação institucional da Defensoria no sentido de contribuir para que se produzam novas correntes jurisprudenciais mais hábeis e ainda mais qualificadas para tratar com a realidade (triste realidade, no caso) subjetiva e objetiva de um cidadão endividado[1]. Em outras palavras não se trata de uma coincidência o fato de que as decisões que tratam especificamente sobre superendividamento sejam de Tribunais onde há a atuação especializada da Defensoria Pública (LEITÃO MARQUES, 2006).
É importante frisar que o endividamento não é um caso particular do Brasil, mas trata-se de um fenômeno em escala global porque com a facilidade do crédito, as formas de pagamento cada vez mais dinamizada e principalmente no contexto de uma sociedade que cada vez mais compra por meios eletrônicos como sites de internet com um relacionamento totalmente impessoal e facilitado (quanto a forma de aquisição e de pagamento) e esses fatores se tornaram motivo de preocupação das associações de consumidores na América Latina, como exemplo do Chile, da Argentina, Brasil e Uruguai assim como acontece em países mais desenvolvidos como os europeus e os Estados Unidos (COSTA, 2002).
É uma questão que alimenta esse fenômeno nesses países, são causas comuns, mesmo se tratando de sociedades distintas que são: o crédito fácil (no caso brasileiro, tem diminuído nos últimos tempo em razão dos problemas econômicos atuais), a propaganda enganosa e de maneira agressiva, a desinformação (que inclusive é um dever do fornecedor segundo o CDC), e a inevitável e irresistível tentação de realização de empréstimos a juros altos para saldar outras dívidas já contraídas em tentações de compras ou mesmo na forma de agravamento de um quadro de endividamento anterior que, se desdobra em um superendividamento posterior (LEITÃO MARQUES, 2006).
Como será exaustivamente ao longo do presente trabalho, a questão do superendividamento repercute negativamente é claro, nos mais diversos aspectos da vida em sociedade, mas o principal é que necessário se mostra a transcendência da proteção do consumidor estendendo-se inclusive à proteção do equilíbrio econômico de um país (COSTA, 2002).
2.4 Conceituando o superendividamento
Sobre o tema proposto é fundamental que seja iniciado prestando-se a devida atenção ao que preleciona Marques (2004, p. 1053) onde a autora adverte que “o direito brasileiro está sendo chamado a dar uma resposta justa e eficaz a esta realidade complexa” e a autora continua a seguir:
O tema da cobrança de dívidas e da inexecução está intimamente ligado ao tema do superendividamento. O superendividamento define-se, justamente, pela impossibilidade do devedor - pessoa física, leigo e de boa – fé, pagar suas dívidas de consumo e a necessidade do Direito prever algum tipo de saída, parcelamento ou prazos de graça, fruto do dever de cooperação e lealdade para evitar a "morte civil" deste falido – leigo ou falido – civil. (...)
O problema é tão grande e tantas situações vem ocorrendo no Brasil que o direito não poderia mais ficar inerte e se viu cobrado a dar uma resposta justa e eficaz para a sociedade e principalmente, para essa grave e complexa realidade que nos rodeia e, nesse sentido mais ainda com relação à definição de superendividamento com relação à pobreza no Brasil (COSTA, 2002).
A grande massificação e a facilidade de acesso ao crédito que tomou conta do Brasil nos últimos cinco anos – nesse contexto destaca-se que pelo menos 50 milhões de novos clientes bancários entraram para o mercado! – a forte privatização dos serviços essenciais e públicos, que atualmente são acessíveis a todos praticamente não importando qual seu orçamento, mas observando duras regras de mercado, além de uma sistemática propaganda sobre o crédito popular, principalmente, aliado a força e o alcance dos meios de comunicação de massa e a tendência de se praticar uma forma abusiva e impensada de se utilizar o crédito facilitado, ilimitado no tempo e nos valores, até mesmo descontando diretamente na folha de aposentados e funcionários públicos, são fortes candidatos a levar o consumidor e sua família a um estado de superendividamento (LEITÃO MARQUES, 2006).
Conforme preleciona Marques (2004), é importante observar e conceder uma oportunidade para aquele que de boa-fé, mesmo encontrando-se em uma situação de muitas dívidas, tenha o direito mínimo de renegociá-las com seus credores, elaborando-se e implementando-se um plano de pagamento como determina a legislação francesa, para que, posteriormente, esse consumidor tenha novamente a chance de retornar ao mercado de consumo de forma mais consciente e educado financeiramente para gerenciar; a partir desse momento de forma coerente suas finanças.
Em se tratando da realidade brasileira, o ordenamento jurídico pátrio não conta com uma lei que evite a falência individual, da mesma forma como ocorre com pessoas jurídicas que encontra amparo e respaldo na Lei de Falência (Lei n° 11.101/2005), assim, nesta situação, faz-se urgente e necessária uma aplicação efetiva e concreta do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) de modo que se evite situações de superendividamento seja no aspecto pré (CDC, art. 29 a 44) como no pós-contratual (CDC, arts. 81 a 105), além do contratual propriamente dito (CDC, arts. 46 a 54) (LEITÃO MARQUES, 2006).
Nesse sentido, extrai-se do artigo 52 do Código de Defesa do Consumidor, entre outros (cite-se os artigos 39 e 46, por exemplo), onde, pouco se cumpre as instituições financeiras essas preleções (o valor dos juros anuais é inserido sem destaque, normalmente em letras menores, não deixando claro as consequências do pagamento mínimo, os limites de créditos – principalmente nos cartões de crédito são aumentados sem que haja pedido ou autorização expressa do consumidor, utilizando-se inclusive, termos técnicos de economia, muitas vezes incompreensíveis para leigos) (LEITÃO MARQUES, 2006).
A questão do superendividamento é muito mais complexa e não se trata objetivamente de um problema de ordem material somente. Envolve sentimentos, necessidades, anseios e expressam sentimentos de angústia que muitas vezes não se traduzem materialmente pela necessidade de se envolver em dívidas. Dessa forma, denota-se não se tratar pura e simplesmente de um descontrole de ordem individual como assinala o Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública de Minas Gerais em descrição abaixo mencionada:
(...) a problemática ora enfrentada não se resume a um caso isolado ou esporádico, fruto da incúria da parte autora, mas sim a fenômeno mundial que vem despertando a preocupação de legisladores e juristas de diversos países, cujas consequências não se adstringem à mera esfera patrimonial, mas atingem à saúde física e emocional dos devedores, violando sua dignidade como pessoa humana e, por vezes, desagregando seu núcleo familiar, com sequelas, portanto, para toda a sociedade[2].
Algumas atitudes – mesmo não sendo tão contundentes quanto o necessário tem sido tomado para coibir o superendividamento – todas no âmbito legislativo, como exemplo, pode-se mencionar a Lei nº 11.800, de 2008[3], também a Lei nº 12.039, de 2009[4] e a Lei n° 11.785, de 2008, que fez profundas alterações na redação do parágrafo terceiro do artigo 54 do Código de Defesa do Consumidor que passou a vigorar com a seguinte redação:
Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, cujo tamanho da fonte não será inferior ao corpo doze, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor.
Nota-se que a situação de superendividamento do consumidor afronta o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (artigo 1°, inciso III, da Constituição Federal e o artigo 4° Código de Defesa do Consumidor), que nestes casos se vê em uma situação de total comprometimento de suas despesas pessoais e familiares como água, luz, aluguel, impostos.
Faz-se necessário estar atendo ao que “o oferecimento de crédito pelas instituições financeiras deve ser feito de forma responsável, desestimulando o superendividamento dos consumidores”[5].
2.5 Peculiaridades do consumidor superendividado
É fato que o consumidor em situação de superendividamento fica totalmente impossibilitado, por melhor que sejam suas intenções, de honrar com seus compromissos financeiros, retirar seu nome dos órgãos de proteção ao crédito, colocando-se em uma situação de total impossibilidade de acesso ao crédito e também de continuar consumindo (COSTA, 2002).
Todos esses fatores negativos comprometem até mesmo sua vida no âmbito pessoal, criando problemas de relacionamento familiar, de trabalho, e, frequentemente, afetando inclusive a saúde (em uma visão mais abrangente ainda, contribui para o aumento das possibilidades de exclusão social).
Entretanto, ressalte-se que para que o consumidor se qualifique na condição de “superendividado”, é necessário atender ao requisito de ser pessoa física e de boa fé (COSTA, 2002).
No caso, em se tratando de superendividado passivo, onde fique comprovado uma situação de inadimplência contumaz, por exemplo, (aqui considerando-se tratar de assunção de dívidas em prejuízo de necessidades vitais para o consumidor) (LEITÃO MARQUES, 2006).
Com relação ao consumidor de má fé – o denominado superendividado ativo – não consegue tal proteção uma vez que não atende às premissas necessárias à tutela.
Vale lembrar que aquele que se enquadra como “superendividado” é tão somente aquele consumidor, pessoa física que adquire produto ou serviço como destinatário final de modo a atender as necessidades pessoais.
Dessa forma, excluir-se-á os consumidores considerados equiparados segundo previsão dos artigos 17 e 29 do Código de Defesa do Consumidor.
2.6 Caracterizando a boa fé do consumidor: pessoa física
O princípio da boa-fé está inserido no Código de Defesa do Consumidor, no artigo 4º, inciso III, levando-se em consideração tratar-se de um princípio básico e bilateral, e que necessariamente tem que ser respeitado pelas duas partes da relação jurídica: consumidor e fornecedor.
Trata-se de uma forma que o legislador encontrou para assegurar tanto o equilíbrio quanto a transparência na relação.
No artigo 51, inciso IV, que faz menção às cláusulas abusivas, este relega o consumidor em desvantagem exagerada, não sendo este compatível com o princípio da boa-fé. Essa é a opinião de especialistas como Costa (p. 118, 2006,).
Sendo estes considerados pessoas de boa-fé, os consumidores que se classificam como superendividado, aprisionados em uma espiral de dívidas que crescem numa velocidade estonteante, terminam por fazer sacrifícios de modo que sua situação se torna cada vez mais delicada para conseguir saldar dívidas antigas.
Por outro lado, são classificados como de má fé os consumidores que, deliberadamente, tomaram vários empréstimos que eles conscientemente sabiam que se tratava de uma soma muito superior à sua disponibilidade para pagamento ou ainda, os que se encontravam em uma situação de insolvência notória, não resistindo a tentação tomavam novos empréstimos para efetuar novas despesas criando assim uma bola de neve em suas vidas (COSTA, 2006).
Logo não é dessa forma que se compreende (juridicamente falando) o consumidor superendividado como aquele que age de má-fé (denominado superendividado ativo).
2.6.1 O consumidor inadimplente
A denominada inadimplência (também conhecida por “falta de pagamento) acontece quando o consumidor atrasa seus compromissos. Um dos principais sinais da inadimplência é exatamente quando ocorre um crescimento dela com relação as denominadas contas fixas (água, luz, telefone, condomínio, plano de saúde) é um sinal claro de que este consumidor está tendo problemas financeiros e começando a se endividar ou já se encontra numa situação e superendividamento (COSTA, 2006).
Assim, a inadimplência deve sistematicamente ser combatida, mas nunca com ameaças, constrangimentos ou ofensas ao consumidor, segundo preleciono o próprio Código de Defesa do Consumidor em seu artigo 42 que, segundo o comentário de Benjamim (p. 329, 1999), afirma que “por não consagrar o dispositivo à cobrança judicial, isto é, àquela exercida em função de processo judicial, destina-se, portanto, a controlar as cobranças extrajudiciais, em especial aquelas efetuadas por empresas de cobrança”.
Ressalte-se que a cobrança vexatória, adquire maior gravidade e urge a necessária tutela quando se trata de consumidor superendividado passivo.
O artigo 71 do Código de Defesa do Consumidor menciona a responsabilidade criminal com o objetivo de assegurar os direitos à privacidade e à imagem do consumidor prevendo penas de detenção e multa para aquele que cometer a infração penal de utilizar, no momento de realizar cobrança de dívidas de ameaça e coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas, incorretas ou enganosas ou ainda, de qualquer outro tipo de procedimento que venha a expor o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou ainda, interfira em seu trabalho, descanso ou lazer (COSTA, 2006).
Reafirmando o que foi dito anteriormente, no que diz respeito ao cadastro, dados e demais informações sobre o consumidor devedor em serviços como o Serviço de Proteção ao Crédito (SPC e na Centralizadora dos Serviços dos Bancos S.A. (SERASA) estes “devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão, não podendo contar informações negativas referentes a período superior a cinco anos”, segundo preceitua o artigo 43, §1º do Código de Defesa do Consumidor, deixando bastante claro e evidente que passado o prazo de cinco anos do registro, o mesmo obrigatoriamente deverá ser cancelado (LEITÃO MARQUES, 2006).
A respeito desta questão é de suma importância esclarecer que, ainda que de forma superficial, a questão da mora do fornecedor, já tratada no ordenamento jurídico brasileiro, que cuida exatamente das situações em que se inicia o reconhecimento de que a inadimplência do consumidor decorre do comportamento abusivo do fornecedor (COSTA, 2006).
Infere-se que as decisões judiciais no sentido de formar uma jurisprudência consistente sobreo tema em comento, mais especificamente no que se trata da mora do credor/fornecedor não trata de forma direta sobre a responsabilidade deste sobre a informação prévia e adequada e também o consequente exercício inadequado da liberdade de escolha assim como pela responsabilidade do fornecedor na concessão abusiva de crédito (o que se pode traduzir em uma concessão de crédito em valor maior do que a capacidade de pagamento do consumidor que é, segundo definição legal, vulnerável), sendo que já existe um caminho positivo para melhorar ou coibir essa situação.
2.7 Reflexões a cerca do direito e do consumidor superendividado
Uma expressão que se tornou bastante popular nos últimos 3 anos é a denominada “análise econômica do Direito – AED” que pode ser definida como um exemplar das mais dinâmicas “vanguardas teóricas da Ciência do Direito” que de uma forma bastante direcionada “espelha aquela convergência de valores e perspectivas entre famílias jurídicas que tem sido ditada pela globalização” cuja capacidade produtiva se “contrabalanceia pelas dificuldades e exigências que ela coloca”, citações de (ARAÚJO, p. 170, 2008).
Assim, ressalte-se que, segundo o pensador francês Voltaire, conforme Vasconcelos, afirma que “os raios já delimitavam os círculos antes de serem chamados de raios”.
É obvio que a análise econômica do direito tem seu conteúdo inserido no Código de Defesa do Consumidor brasileiro, que cumpre determinar, como princípio basilar específico e positivado conforme o artigo 4º, inciso III, a “harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (artigo 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores”.
Isso tanto se legitima que o termo consumidor “é classicamente um termo econômico, o que se apresenta como um elemento a ser enfrentado pelo operador do Direito”, segundo denota-se em Adolfo Mamoru Nishiyam apud Jorge (2008):
A maior dificuldade que se verifica é o fato de o termo ‘consumidor’ ser um conceito econômico. Transpondo-se esse conceito para o direito, teremos uma definição de consumidor que poderá ser diversa daquela proposta pela ciência econômica. O conceito econômico toma como base o consumo final e o consumo intermediário. O produtor é considerado consumidor, pois no processo de bens ele também utiliza produtos (insumos) fornecidos por outros. Essa amplitude não é aceita no Direito, que utiliza limites mais restritos.
Segundo se explica pela afirmação acima, se de certo ponto não é possível inviabilizar o crescimento econômico de um país, por outro lado, denota-se como infrutífero o crescimento econômico sem o respeito da dignidade humana. O mais importante no desafio é o encontro do equilíbrio.
2.8 Principais motivos do superendividamento – o atraso do fornecedor e a oferta de crédito desmedida ao consumidor
O conceito de crédito é delimitado na troca de bens ou serviços que acontecem mediante o pagamento futuro ou parcelado em espécie (dinheiro), entre o consumidor e o fornecedor, sucedendo-se por meio dessa relação de consumo à circulação de riquezas no país (ARAÚJO, 2008).
Como resultado das necessidades pessoais das pessoas, bens ou serviços são adquiridos e contratados. Conforme Costa (p. 259-260, 2002)
Na economia do endividamento, tudo se articula com o crédito. O crescimento econômico é condicionado por ele. O endividamento dos lares, funciona como meio de financiar a atividade econômica. Segundo a cultura do endividamento, viver a crédito é um bom hábito de vida. Maneira de ascensão ao nível de vida e conforto do mundo contemporâneo, o crédito não é um favor, mas um direito fácil. Direito fácil, mas perigoso.
Com o advento da Lei nº 10.820 de 17 de dezembro de 2003, houve um surto de oferta de crédito fácil e rápido no Brasil, agravando dessa forma, o problema do superendividamento no país.
Essa lei concedeu a possibilidade do pagamento de empréstimo por meio da prestação mensal em salário, o já muito conhecido “desconto em folha”, principalmente para servidores públicos e aposentados.
Com isso, uma revolução social aconteceu onde a população de baixa renda passou a ter poder de compra e dessa forma acesso a inúmeros bens e serviços que antes a eles eram inacessíveis como eletrodomésticos, veículos, telefonia e muitos outros bens e serviços (ARAÚJO, 2008).
Entretanto, os governantes esqueceram-se de realizar uma educação financeira para que essa fartura de crédito fosse utilizada de forma consciente e responsável, prevenindo o risco do endividamento pernicioso.
Esse incentivo junto a facilidade de consumo de crédito atingiu todas as classes sociais, de ricos até pobres e consequentemente a condição de endividamento se tornou algo, por assim dizer “democrático” atingindo a todos, até mesmo porque, segundo Marques (p. 198, 2004) existe uma clara distinção entre pobreza e endividamento, a saber:
(...) o direito brasileiro está sendo chamado a dar uma resposta justa e eficaz a esta realidade complexa, principalmente se devemos distinguir superendividamento de pobreza em nosso País. A massificação do acesso ao crédito, que se observa nos últimos 5 anos – basta citar os novos 50 milhões de clientes bancários! -, a forte privatização dos serviços essenciais e públicos, agora acessíveis a todos, com qualquer orçamento, mas dentro das duras regras do mercado, a nova publicidade agressiva sobre o crédito popular, a nova força dos meios de comunicação de massa e a tendência de abuso impensado do crédito facilitado e ilimitado no tempo e nos valores, inclusive com descontos em folha de aposentados, pode levar o consumidor e sua família a um estado de superendividamento.
Se considerarmos uma população que passou décadas desprovida de muitas coisas e de repente, se depara com uma facilidade de oferta de crédito e a possibilidade de melhorar de vida, ter melhores condições e mais qualidade de vida em sua casa, torna-se inevitável não estimular o interesse nos consumidores de partir par ao consumo, uma vez que a sedução da oferta ignora ser, de fato, o serviço de crédito, algo extremamente nocivo e perigoso[6]
2.9 Do empréstimo com desconto em folha (consignado)
Os empréstimos consignados tornaram-se uma verdadeira febre, principalmente entre o funcionalismo público e os aposentados haja vista sua rapidez, praticidade e supostamente “taxa mais baixa de juros”, com o advento da Lei nº 10.820 de 17 de dezembro de 2003 legitimava a autorização para desconto em folha de valores referentes ao pagamento de empréstimos, financiamentos e operações de arrendamento contraídos pelo servidor ou aposentado ou ainda, pensionistas do INSS (ARAÚJO, 2008).
Um fato curioso é que a lei faz a observação de que o pagamento (no caso o desconto em folha) não poderia exceder a 30% (trinta por cento) dos rendimentos para que não comprometesse a saúde financeira do contraente do crédito.
Cumpre esclarecer que toda e qualquer instituição financeira no Brasil tem como acessar informações a respeito de financiamentos em valores que ultrapassem os R$ 5.000,00 (cinco mil reais), sendo estes contraídos por qualquer pessoa no mercado, através do Sistema de Informações de Crédito do Banco Central, que foi regulamentado pela Resolução n° 2.724 de maio de 2000, também conhecido entre os profissionais da área como Central de Risco de Crédito.
Assim, como se sabe que a grande maioria dos empréstimos são celebrados normalmente com prazos que variam de 48 a 60 meses, a maior parcela significativa orbita em valores de R$ 5.000,00 (cinco mil reais). Assim, infere-se que os fornecedores de crédito desta forma, tem plena responsabilidade por colocar clientes em situação de endividamento grave.
2.10 A prática contumaz do anatocismo
Por fim, este último tratará sobre a prática do anatocismo que nada mais é do que prática comum entre os bancos e financeiras de cobrar juros sobre juros também denominada usura pecuniária, que é crime grave a atentar a economia popular.
O superendividamento provocado pela cobrança de juros ilegais oportuniza por parte dos consumidores muitas ações judicias cuja natureza é justamente a revisão de contratos para conseguir reaver valores dos juros que foram considerados pagos de forma excessiva.
Mas, segundo o artigo 192, parágrafo 3º da Constituição Federal que cuida da limitação de juros e tinha sua eficácia bastante limitada levando-se em consideração a realidade da economia atual restou revogado pela Emenda Constitucional nº 40 de 29 de maio de 2003.
Assim, o Decreto-lei nº 22.626 de 1993, também conhecido como “lei da Usura” estabeleceu o limite de cobrança de taxa de juro de 12% ao ano e, também, proíbe a aplicação de juros sobre juros em seu artigo 4º também conhecido como anatocismo e que as instituições financeiras simplesmente desrespeitam livremente, mas mesmo assim ainda é fruto para muitas controvérsias a respeito da sua aplicabilidade.
ANÁLISE E DISCUSSÃO
A cultura do consumo e a oferta crescente de crédito inconsequente incitaram pessoas de classe econômica inferior a adquirir bens e serviços sem critério nem planejamento em relação a sua condição financeira.
Verifica-se que o fenômeno do superendividamento constitui um problema crônico na sociedade brasileira principalmente por conta dos juros muito elevados e o problema do desemprego em um cenário econômico desfavorável.
A justiça tem entendido essa questão como de ordem social e trabalhado em favor do consumidor em prol da reeducação financeira dos mesmos.
O Código de Defesa do Consumidor é bastante cauteloso e defende o consumidor em situação de superendividamento de modo a restabelecer sua dignidade enquanto pessoa humana.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, com base nas informações no que foi extraído dos capítulos anteriores é possível concluir que o superendividamento se constitui em problema de ordem econômica e social no Brasil.
A cultura do consumo e a oferta de crédito de forma desmedida incitaram as pessoas menos abastadas da sociedade a adquirir bens e serviços sem critério e nem planejamento de sua condição financeira.
Ressalte-se que a oferta de crédito que ao menos em tese deveria ser um instrumento de inclusão social assume a sua face mais perversa tornando-se um instrumento, na verdade, de exclusão social.
Esse é o ponto culminante que ficou demonstrado ao longo deste trabalho, ou seja, a exclusão social provocada pelo superendividamento atentando contra a dignidade da pessoa humana (princípio este assegurado constitucionalmente).
Finalmente conclui-se que esses aspectos estão assegurados pelo ordenamento jurídico, pelo amadurecimento democrático e pela consolidação de nossas instituições que se utilizam do código de defesa do consumidor da Constituição Federal e do código civil brasileiro.
REFERÊNCIAS
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LIMA, Clarissa Costa e BERTONCELLO, Karen Rick Danilevicz. Superendividamento aplicado: aspectos doutrinários e experiência do Poder Judiciário. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2010.
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TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 3. ed., Rio de Janeiro-São Paulo-Recife: Renovar, 2004
[1] Tanto isto é verdade que Boaventura de Sousa Santos, em entrevista a Associação Paulista de Defensores Públicos, ao tratar da atuação Defensoria, disse: "Tendo em conta a evolução dos mecanismos e concepções relativas ao acesso à Justiça, a construção de uma Defensoria Pública, nos moldes como está prevista sua actuação no Brasil, acumula difere universalização do acesso através da assistência por profissionais formados e recrutados especialmente para este fim, assistência jurídica especializada para a defesa de interesses coletivos e difusos, diversificação do atendimento e da consulta jurídica para além da resolução judicial dos litígios, promovendo a conciliação e a resolução extrajudicial dos conflitos e ainda atuando na educação para os direitos Antes vantagens potenciais:. A concepção de justiça democrática que tenho defendido tem em especial consideração o papel da defensoria pública na construção de uma nova cultura jurídica de consulta, assistência e patrocínio judiciário.
(...)Estas particularidades distinguem a Defensoria, de entre as outras instituições do sistema de justiça, como aquela que melhores condições tem de contribuir para desvelar a procura judicial suprimida"
[2] Trecho da petição inicial questionando o endividamento de famílias pela concessão abusiva de empréstimos consignados elaborada pelos Defensores Públicos ALEXANDRE GIANNI DUTRA RIBEIRO e ANTONIO CARLOS FONTES CINTRA.
[3] Que alterou o artigo 33 do CDC incluindo o seguinte Parágrafo único. É proibida a publicidade de bens e serviços por telefone, quando a chamada for onerosa ao consumidor que a origina.
[4] Que incluiu o artigo Art. 42-A. Em todos os documentos de cobrança de débitos apresentados ao consumidor, deverão constar o nome, o endereço e o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas – CPF ou no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica – CNPJ do fornecedor do produto ou serviço correspondente.
[5] Trecho da decisão extraída do 2009.001.51393 – APELACAO, DES. SIDNEY HARTUNG - Julgamento: 01/10/2009 - QUARTA CAMARA CIVEL. Transcrição incompleta, ementa integral disponível em www.tj.rj.jus.br.
[6] Tanto que uma das conclusões do I Seminário Internacional Defensoria Pública e Proteção do Consumidor, realizado na cidade de Porto Alegre em outubro de 2004 foi no sentido da "Possibilidade de proposta de disciplina do acesso ao crédito, controlando-se sua publicidade, e, assegurando o amplo acesso com amplo respeito aos direitos do consumidor (v.g., vedando a oferta abusiva e enganosa, da mesma forma que se limita a publicidade de cigarros, bebidas alcoólicas, etc.)
Bacharel em Administração de Empresas pelo CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA - BH, pós graduado em Direto Administrativo, Direito do Consumidor, Direito Constitucional e Gestão de Pessoas. Servidor do Ministério Público do Estado de Minas Gerais há 23 anos e ocupa a função de Agente Fiscal do PROCON-MG há 17 anos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GLADSTON ALMEIDA CAJá, . O superendividamento do consumidor envolvendo a questão da dignidade da pessoa humana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 mar 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49707/o-superendividamento-do-consumidor-envolvendo-a-questao-da-dignidade-da-pessoa-humana. Acesso em: 23 dez 2024.
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