Resumo: Após a Constituição de 1988, nosso processo penal mudou significativamente. Reformulou-se o Ministério Público, órgão encarregado da acusação e da produção probatória na esfera criminal. O juiz se afastou da investigação, de incumbência da Polícia Judiciária sob controle externo do parquet. Nesse cenário, o trabalho aborda as previsões normativas reguladoras da tramitação do inquérito policial, especialmente quando dispõem sobre a participação do magistrado nesta fase. É realizada abordagem dos sistemas processuais existentes, apontando aquele adotado no Brasil, discutindo-se, ainda, o controle externo da atividade policial pelo Ministério Público. O trabalho se justifica pela necessidade de otimização das investigações, sem olvidar direitos fundamentais. Houve extensa pesquisa bibliográfica, sendo a problemática contextualizada e abordada pelo método descritivo-analítico. Por meio do estudo, possível depreender que vigora em nosso ordenamento o sistema acusatório. Ademais, como fruto do controle externo imposto constitucionalmente, cabe ao Ministério Público fiscalizar a atividade-fim da Polícia Judiciária. Destarte, a tramitação direta do inquérito policial entre o parquet e a Polícia Judiciária, sem a participação do magistrado senão para medidas sob reserva jurisdicional, é procedimento adequado à nova realidade constitucional, especialmente pelo sistema acusatório, pelo controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, e pela razoável duração do processo, garantia fundamental.
Palavras-chave: Inquérito policial. Ministério Público. Polícia Judiciária. Tramitação direta. Constitucionalidade.
Abstract: After the 1988 Constitution, our criminal proceedings have changed significantly. The Public Prosecutor's Office, the body responsible for prosecution and evidence production in the criminal sphere, was reformed. The judge turned away from the investigation, which was the responsibility of the Judiciary Police under external control of the parquet. In this scenario, the paper deals with the normative provisions regulating the police investigation process, especially when they provide about the participation of the magistrate at this stage. The approach of the existing procedural systems is carried out, pointing to that adopted in Brazil, also discussing the external control of the police activity by the Public Prosecution Service. The work is justified by the need to optimize investigations, without forgetting fundamental rights. There was extensive bibliographical research, being the problematic contextualized and approached by the descriptive-analytical method. Through the study, it is possible to understand that the accusatory system is in force in our system. In addition, as a result of the external control constitutionally imposed, it is the responsibility of the Public Prosecutor's Office to supervise the final activity of the Judiciary Police. Thus, the direct investigation of the police investigation between the parquet and the Judiciary Police, without the participation of the magistrate but for measures under judicial reserve, is an appropriate procedure to the new constitutional reality, especially by the accusatory system, by the external control of the police activity by the Public Ministry, and for the reasonable duration of the process, fundamental guarantee.
Keywords: Policial investigation. Attorney’s Office. Judicial Police. Direct processing. Constitutionality.
Sumário: 1. Introdução. 2. Dos sistemas processuais penais: o modelo adotado pela Constituição Federal de 1988. 3. Do controle externo da atividade policial pelo Ministério Público. 4. Da razão da necessidade de releitura do Código de Processo Penal a partir da nova ordem constitucional. 5. Tramitação direta do inquérito policial entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária: da compatibilidade com o texto constitucional. 6. Conclusão. 7. Referências.
1. Introdução
O objeto geral do trabalho realizado se fundamenta na contextualização e abordagem crítica no que concerne às disposições elencadas no Código de Processo Penal no tocante à tramitação do inquérito policial no processo penal brasileiro. A análise das disposições normativas sobre a tramitação do inquérito policial é de grande importância, visto que o momento pré-processual de investigação representa ponto norteador para a atuação do órgão acusador, que formará sua opinio delicti através da atividade da Polícia Judiciária.
Assim sendo, analisam-se assuntos relativos à atuação do juiz, do Ministério Público e da autoridade policial na investigação, delimitando o espaço de ação de cada um desses sujeitos, tão importantes para a atividade de prestação jurisdicional na esfera criminal.
Tendo como objetivo a completa compreensão do presente trabalho, faz-se necessária a análise dos sistemas processuais existentes, visto que, assim, serão apresentados os modelos relativos à gestão da prova processual penal e ao grau de participação do julgador em cada momento da persecução criminal. Após, impõe-se a análise do modelo constitucional vigente em nosso país, o qual tomaremos como elemento norteador para toda a discussão.
Da mesma forma, é necessária a análise de outro relevante instrumento constitucionalmente estabelecido e que também toca umbilicalmente o tema aqui discutido. Trata-se do controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, assunto que também influencia na atuação dos órgãos estatais na apuração de infrações penais e na relação entre a Polícia Judiciária e o Ministério Público, órgãos que gerem e executam a colheita pré-processual de elementos de informação que servirão de base para a deflagração da persecução penal em juízo.
Neste contexto, o trabalho se mostra de elevada importância em um momento em que a sociedade brasileira clama por mais celeridade na atuação dos órgãos judiciários, bem como por mais efetividade na prestação jurisdicional penal, reclamações estas motivadas pelas crescentes ondas de criminalidade e de impunidade em nossa sociedade.
A relevância da pesquisa também se faz transparente quando constatamos que atualmente se discutem grandes temas acerca da atuação institucional de diversos órgãos, assuntos dos quais são exemplos a autonomia da Polícia Judiciária, os poderes instrutórios do juiz criminal e as atribuições investigatórias do Ministério Público.
Assim, a discussão acerca da possibilidade de tramitação direta do inquérito policial entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária, tendo como pano de fundo normas constitucionais e infraconstitucionais, procura legitimar e corroborar a integração entre as diversas instituições envolvidas na persecução criminal.
A construção do artigo acerca do assunto suscitado objetiva, além do que foi exposto até aqui, despertar na academia a análise da desconformidade de normas processuais penais com o texto constitucional, análises estas que buscam legitimar a atuação estatal na repressão e prevenção de delitos, protegendo os bens jurídicos mais relevantes.
2. Dos sistemas processuais penais: o modelo adotado pela Constituição Federal de 1988
O Direito Penal tutela bens jurídicos que foram elencados pelo Estado como os mais importantes para a convivência harmônica entre os indivíduos da sociedade, razão pela qual se dotou esse ramo do direito com a mais grave espécie de sanção estatal, qual seja, a privação da liberdade. Dada tal força com que conta o Direito Penal, este é tratado como ultima ratio, somente sendo aplicado quando todos os demais ramos do direito são insuficientes para a proteção de bens jurídicos.
Tratando-se, pois, o Direito Penal do instrumento que estabelece as sanções estatais mais violentas, para que estas sejam aplicadas é necessária a construção de um processo dialético em que sejam respeitados os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório e todos os mecanismos a eles inerentes, legitimando, pois, a atuação estatal de proteção a bens jurídicos.
O processo dialético necessário para a aplicação das sanções penais pode se dar de formas diferentes, sendo estas, por sua vez, denominadas sistemas processuais penais.
Rangel (2010, p. 50) define o sistema processual penal como sendo “o conjunto de princípios e regras constitucionais, de acordo com o momento político de cada Estado, que estabelece as diretrizes a serem seguidas à aplicação do direito penal a cada caso concreto”.
Há, segundo a doutrina majoritária, dois grandes sistemas processuais penais, o inquisitivo e o acusatório, sendo apontada a existência, ainda, de um sistema intermediário, o misto, que mescla características dos dois sistemas anteriores.
O sistema inquisitivo tem como característica principal a concentração das funções de acusar, defender e julgar em uma única pessoa, que assume, dessa forma, as vestes de um juiz acusador, que também pode ser denominado juiz inquisidor. Tal personagem conta com ampla iniciativa probatória, independentemente do momento em que se encontra a persecução penal, antes ou depois da formação do processo propriamente dito, ou seja, até mesmo na etapa de investigação.
Segundo Rangel (2012, p. 151), também são características do sistema inquisitivo o tratamento conferido ao acusado de mero objeto de investigação, perdendo seu status de sujeito de direitos, bem como o caráter secreto do procedimento, não havendo a publicidade típica dos estados democráticos nem o amplo debate entre as partes, tolhendo-se, assim, o contraditório e a ampla defesa.
Discorrendo acerca de tal sistema, Lima afirma:
Essa concentração de poderes nas mãos do juiz compromete, invariavelmente, sua imparcialidade. De fato, há uma nítida incompatibilidade entre as funções de acusar e julgar. Afinal, o juiz que atua como acusador fica ligado psicologicamente ao resultado da demanda, perdendo a objetividade e a imparcialidade no julgamento. (LIMA, 2011, p. 3-4)
No sistema acusatório, por sua vez, os princípios da ampla defesa, do contraditório e da publicidade, regem todo o processo. Há imparcialidade do órgão julgador e o livre convencimento motivado é o sistema adotado para a apreciação das provas. Para além disso, aqui, o acusado não é mero objeto de investigação, mas, sim, sujeito de direitos, participando ativamente da formação da opinião do julgador, seja se expressando através de sua defesa técnica e da autodefesa, seja através da produção de provas que se mostrem de seu interesse.
Rangel (2012, p. 157) nos ensina que “o sistema acusatório, diante dos direitos e das garantias constitucionais assegurados nos países civilizados, deve ser a mola-mestra para que o indivíduo perca sua liberdade de locomoção e tenha cerceados os demais direitos que dela decorram”.
Capez, por seu turno, explicando o sistema acusatório de acordo com dispositivos em vigor do nosso ordenamento jurídico, preleciona:
É que, no sistema acusatório, a fase investigatória fica a cargo da Polícia Civil, sob controle externo do Ministério Público (CF, art. 129, VII; Lei Complementar n. 73/93, art. 103, XIII, a e e), a quem, ao final, caberá propor a ação penal ou o arquivamento do caso. A autoridade judiciária não atua como sujeito ativo da produção de prova, ficando a salvo de qualquer comprometimento psicológico prévio. O sistema acusatório pressupõe as seguintes garantias constitucionais: da tutela jurisdicional (art. 5º, XXXV), do devido processo legal (art. 5º, LIV), da garantia do acesso à justiça (art. 5º, LXXIV), da garantia do juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII), do tratamento paritário das partes (art. 5º, caput e I), da ampla defesa (art. 5º, LV, LVI e LXII), da publicidade dos atos processuais e motivação dos atos decisórios (art. 93, IX) e da presunção de inocência (art. 5º, LVII). É o sistema vigente em nosso país. (CAPEZ, 2011, p. 85).
Por fim, temos o sistema misto, também chamado de acusatório formal ou francês, em virtude de suas raízes remontarem à Revolução Francesa do século XVIII. Tal sistema se caracteriza pela existência de uma instrução preliminar, secreta e escrita, a cargo do juiz, com poderes inquisitivos, no intuito de colheita de provas, e por uma fase contraditória (judicial) em que se dá o julgamento, admitindo-se o exercício da ampla defesa e de todos os direitos dela decorrentes.
Analisando o sistema misto, Rangel preleciona:
Entendemos que o sistema misto (juizado de instrução), não obstante ser um avanço frente ao sistema inquisitivo, não é o melhor sistema, pois ainda mantém o juiz na colheita de provas, mesmo que na fase preliminar à acusação. Como já dissemos antes, sua adoção no Brasil constituiria um retrocesso social. (RANGEL, 2012, p. 154).
Pela análise dos conceitos apresentados, vê-se que a distinção fundamental entre os sistemas analisados se dá no campo da gestão da prova. Enquanto no sistema inquisitivo o juiz é o gestor da prova, comandando sua colheita em todas as fases da persecução penal (até mesmo na fase pré-processual, de investigação), e comprometendo, assim, sua imparcialidade, no sistema acusatório, a iniciativa probatória é conferida às partes, que, em igualdade de direitos, têm a liberdade de produzir as provas que melhor se adequem às suas estratégias processuais e à busca da verdade real. No sistema misto, por sua vez, o magistrado comanda a produção probatória na instrução preliminar, havendo contraditório apenas na fase judicial, oportunidade em que haverá o julgamento, o que certamente compromete a imparcialidade do julgador, tendo em vista que, como dito, o magistrado participa da colheita de elementos probatórios na investigação.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, em que pese a existência de respeitáveis entendimentos em sentido contrário, adotou-se, em nosso ordenamento jurídico, o sistema acusatório, visto que, conforme preleciona Lima (2011, p. 7), o art. 129, inciso I, da Carta Maior, ao atribuir privativamente ao Ministério Público o exercício da ação penal de iniciativa pública, estipulou, expressamente, a separação das funções de acusar e julgar, atribuindo aquela ao parquet e esta ao juiz.
Neste sentido também se posiciona Rangel (2010, p. 56), quando afirma que “hodiernamente, no direito pátrio, vige o sistema acusatório, pois a função de acusar foi entregue, privativamente, a um órgão distinto: O Ministério Público, e, em casos excepcionais, ao particular”. Esse também é o entendimento de Pacelli (2011, p. 10), que, ao se debruçar sobre o sistema processual penal acusatório, conclui que “o nosso processo é mesmo acusatório”.
Reforçando tal entendimento, afirma Távora:
Com origem que remonta ao Direito Grego, o sistema acusatório é adotado no Brasil, de acordo com o modelo plasmado na Constituição Federal de 1988. Com efeito, ao estabelecer como função privativa do Ministério Público a promoção da ação penal (art. 129, I, CF/88), a Carta Magna deixou nítida a preferência por esse modelo que tem como características fundamentais a separação entre as funções de acusar, defender e julgar, conferidas a personagens distintos. (TÁVORA, 2013, p. 41)
Avena, por seu turno, elucidando bem o tema, assim se manifesta:
Analisando estas duas linhas de pensamento, aderimos à primeira delas, considerando que, de fato, vigora no Brasil o sistema acusatório, entendimento este respaldado em diversas decisões do STF e do STJ. Ora, todos concordam que, embora inexista um dispositivo legal expresso na Constituição Federal de 1988, é dela que se extrai o conjunto de princípios e normas que conduz ao entendimento de que o direito brasileiro agasalhou o sistema acusatório. Por outro lado, também não há dúvidas de que os dispositivos legais pelos quais muitos autores sustentam ter sido adotado o sistema inquisitivo garantista encontram-se incorporados à legislação infraconstitucional. Neste contexto, espelhando a Lex Fundamentalis o modelo acusatório e inserindo a legislação infraconstitucional normas que sugerem o modelo inquisitivo, duas soluções se apresentam: ou se considera inconstitucional, por violação do sistema acusatório, todo e qualquer dispositivo infraconstitucional que consagre procedimento incompatível com as regras desse modelo; ou, então, busca-se conferir a tais previsões legislativas interpretação conforme a Constituição Federal. Cogitar de uma terceira possibilidade, qual seja, a coexistência do sistema inquisitivo previsto em dispositivo de legislação infraconstitucional juntamente com o sistema acusatório assegurado em normas constitucionais, a nosso ver, implica negar vigência à Constituição Federal enquanto Lei Maior. (AVENA, 2012, p. 14)
Diante de tal opção do legislador constituinte, o processo penal brasileiro passou a contar com sujeitos processuais com funções claramente distintas. Enquanto o Ministério Público, instituição essencial à função jurisdicional do Estado, é incumbido da função de acusar, colhendo as provas e elementos de informação necessários para a execução de seu mister, ao juiz cabe o julgamento dos casos concretos trazidos ao conhecimento do Poder Judiciário, agindo de forma imparcial e somente quando provocado.
Para além disso, a iniciativa probatória cabe precipuamente às partes, que buscarão, sempre em conformidade com os direitos fundamentais estabelecidos constitucionalmente, a reconstituição da verdade para que se proporcione um justo julgamento, devendo o juiz se afastar da produção de provas, em especial no momento de investigação, visto que, estando ausente o contraditório nesse momento da persecução penal, a imparcialidade do magistrado restaria seriamente comprometida quando este tomasse contato com elementos formulados sem o enriquecedor debate formulado com o acusado e sua defesa técnica.
3. Do controle externo da atividade policial pelo Ministério Público
O mesmo art. 129 da Constituição Federal, analisado anteriormente, que, em seu inciso I, estabelece, conforme posição doutrinária majoritária, o sistema acusatório, aponta diversas atribuições do Ministério Público em nossa nova ordem constitucional.
A Carta de 1988, efetivamente, consagra o Ministério Público com todas as funções institucionais necessárias à proteção da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. De todas as constituições brasileiras, a de 1988 é a que, realmente, consagra o Ministério Público com funções típicas de um Estado Constitucional Democrático de Direito.
Celso Ribeiro Bastos, citado por Rangel, afirma:
Nenhuma das Constituições pretéritas deu ao Ministério Público o tratamento extensivo de que goza na Constituição de 1988. E não é de minúcias de que se trata. Mas sim de revesti-lo de prerrogativas e competências inéditas no passado. O Ministério Público tem a sua razão de ser na necessidade de ativar o Poder Judiciário em pontos em que este remanesceria inerte porque o interesse agredido não diz respeito a pessoas determinadas, mas a toda a coletividade. (RANGEL, 2012, p. 111)
Dada sua nova feição, a Constituição cidadã dotou o parquet de instrumentos necessários ao exercício de suas nobres funções institucionais. Entre as armas com que conta o Ministério Público está o exercício do controle externo da atividade policial, previsto no inciso VII do art. 129 da Carta da República.
Citando Rodrigo Régnier Chemim Guimarães, Lima afirma:
O controle externo da atividade policial deve ser compreendido como o ‘conjunto de normas que regulam a fiscalização exercida pelo Ministério Público em relação à Polícia, na prevenção, apuração e investigação de fatos tidos como criminosos, na preservação dos direitos e garantias constitucionais dos presos que estejam sob responsabilidade das autoridades policiais e na fiscalização do cumprimento das determinações judiciais’ (LIMA, 2011, p. 229).
Rangel, por seu turno, discorre da seguinte forma:
Não se trata de controle interna corporis como se corregedor fosse dos atos administrativos (in)disciplinares dos servidores policiais. Não. A palavra controle nos é definida como sendo: ‘1. Ato de dirigir qualquer serviço, fiscalizando-o e orientado-o do modo mais conveniente. [...] 4. Fiscalização e domínio de alguém ou alguma coisa’ (Michaelis. Moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1998, p. 578). Portanto, a fiscalização, o domínio que exerce o Ministério Público é sobre a atividade-fim da polícia, qual seja: a investigação policial com o escopo de apurar a prática de uma infração penal. O destinatário final das investigações policiais é o Ministério Público e, por isso, tem ele que exercer controle sobre as diligências que serão desempenhadas pela polícia no sentido de determinar as que são imprescindíveis para formação de sua opinio delicti. (RANGEL, 2012, p. 139)
Pelos conceitos apresentados, vê-se que a atividade de controle exercida pelo Ministério Público decorre do sistema de freios e contrapesos previsto pelo regime democrático. Assim, impõe-se ao parquet um comprometimento maior com a investigação criminal e, consequentemente, um amplo domínio e lisura na produção da prova, a qual lhe servirá de respaldo na eventual propositura da ação penal pública.
Entre as diversas tarefas insertas no amplo conceito de atividade policial, está o instrumento pelo qual a Polícia Judiciária apura as infrações penais que chegam ao seu conhecimento, qual seja, o inquérito policial, conforme se depreende do ensinamento de Greco:
Conforme esclarece o Manual de Formação em Direitos Humanos para as Forças Policiais, ‘a investigação do crime constitui a primeira etapa fundamental da administração da justiça. Trata-se do meio pelo qual aqueles que são acusados de um crime podem ser levados a comparecer perante a justiça a fim de determinar a sua culpabilidade ou inocência. É também essencial para o bem-estar da sociedade, pois o crime causa sofrimento entre a população e compromete o desenvolvimento econômico e social. Por estas razões, a condução das investigações criminais de forma eficaz e em conformidade com a lei e com os princípios éticos é um aspecto extremamente importante da atividade policial. (GRECO, 2013, p. 68)
Destarte, tendo em vista que, exercendo o controle externo da atividade policial, cabe ao Ministério Público a fiscalização sobre a atividade-fim da Polícia Judiciária, qual seja, a apuração de infrações penais, e que o inquérito policial materializa a tarefa de investigação realizada pela autoridade policial, é incumbência do parquet o controle sobre o instrumento investigatório aqui analisado, isto para que o destinatário do inquérito forme sua opinio delicti com todos os elementos necessários para uma eficaz persecução penal em juízo, bem como para afastar o juiz da investigação pré-processual, deixando-se de comprometer, assim, sua imparcialidade.
4. Da razão da necessidade de releitura do Código de Processo Penal a partir da nova ordem constitucional
O Código de Processo Penal atualmente vigente em nosso país ingressou no ordenamento jurídico através da promulgação, em 03 de Outubro de 1941, do Decreto-Lei nº. 3.689, cuja entrada em vigor se deu em 01 de Janeiro de 1942, conforme art. 810 do diploma aqui analisado.
Vê-se, portanto, que a elaboração de nosso Código se deu em um contexto peculiar. Vejamos.
No Brasil, imperava o Estado Novo, regime ditatorial liderado por Getúlio Vargas que se consolidou com a Constituição Federal de 1937, chamada de Constituição Polaca. No cenário global, por seu turno, em 1941 vivia-se período de grande efervescência totalitária, pois os regimes nazista e fascista da Alemanha e da Itália, respectivamente, demonstravam seu poder militar e doutrinário durante a primeira metade da II Guerra Mundial.
Getúlio Vargas, então, contando com amplo apoio da força integralista brasileira, flertava com as forças nazi-fascistas, com cujas ideias totalitárias compactuava.
Nesse contexto, então, é promulgado o Código de Processo Penal, cuja inspiração foi a legislação processual fascista italiana, que concentrava poderes nas mãos de um juiz inquisidor, rejeitava um órgão acusador forte e independente como o Ministério Público, e deixava de lado direitos fundamentais do acusado, relegando-o à posição de mero objeto de investigação.
Os paradigmas reinantes durante a promulgação do Código de Processo Penal, que, logicamente, influenciaram na sua elaboração, foram rompidos com o advento da Constituição Federal de 1988, que elencou diversos direitos fundamentais relativos ao processo criminal, conferindo aos acusados em geral relevantes garantias contra o arbítrio estatal presente outrora no exercício do jus puniendi. O réu, agora, já não mais gozava do status de objeto de investigação, mas, sim, de sujeito de direitos.
Além do novo tratamento conferido aos acusados, a nova ordem constitucional, conforme já explanado, atribuiu o exercício da ação penal pública a um órgão forte e independente, essencial à função jurisdicional do Estado, qual seja, o Ministério Público, que, para a boa execução do seu mister, conta com inúmeros instrumentos, como o papel de exercer o controle externo da atividade policial.
Constata-se, pois, que, enquanto a Constituição Federal de 1988, em consonância com as premissas básicas de um Estado Democrático, instituiu, entre nós, um modelo processual penal em que se respeitam direitos humanos fundamentais e em que se separam, claramente, as funções de acusar e julgar, o Código de Processo Penal, em sua gênese e em muitas das disposições ainda vigentes, nos transmite uma ideia totalitária, anti-democrática, sendo necessária, portanto, uma releitura de muitas de suas normas, que devem passar por uma filtragem constitucional.
5. Tramitação direta do inquérito policial entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária: da compatibilidade com o texto constitucional
Visto, pois, que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu o sistema processual penal acusatório, afastando, destarte, o juiz da função de colheita de elementos probatórios, em especial durante a fase investigatória, apontou o Ministério Público como o titular exclusivo da ação penal pública e atribuiu também ao parquet a função de exercer o controle externo da atividade policial, cabe-nos, agora, apontar as razões pelas quais compatibiliza-se com o texto constitucional a tramitação direta do inquérito policial entre a Polícia Judiciária e o Ministério Público, devendo haver, nessa fase da persecução criminal, participação do Poder Judiciário tão somente para a apreciação de medidas sobre as quais incide a chamada reserva de jurisdição.
Deve-se ressaltar, inicialmente, que, além do art. 10, §§ 1º e 3º, do Código de Processo Penal (que rechaçam a tramitação direta ora defendida), outros dispositivos do Código de Processo Penal que permitem ao magistrado uma atuação bastante ativa durante a fase de investigação também são veementemente criticados pela doutrina. Moscovici, por exemplo, analisando o art. 5º, inciso II, do Código de Processo Penal, que permite ao magistrado requisitar a instauração de inquérito policial, assim se manifesta:
Quanto às principais disposições textuais elencadas acima, destaca-se que, no que concerne à possibilidade de instauração do inquérito policial de ofício, pelo magistrado, é imperioso afirmar-se pela não recepção de tal dispositivo processual, por clara afronta à sistemática Acusatorial elencada na Carta de 1988.
Em face desse dispositivo processual penal, deve-se aplicar o art. 40, também do CPP, no sentido de se remeter as informações recebidas ao Ministério Público para que esse órgão cumpra as determinações cabíveis no caso concreto, respeitando-se sua atribuição constitucional elencada no art. 129 da Carta Maior. (MOSCOVICI, 2013, p. 13)
Analisando, agora, o art. 13, inciso II, do Código de Processo Penal, que prevê a possibilidade de determinação de diligências, pelo magistrado, ainda em fase de inquérito policial, continua Moscovici:
Quanto à determinação de diligências, pelo magistrado, ainda em fase de inquérito policial, entende-se que ‘se ainda não há o exercício pleno do direito de agir, não deve haver intervenção do Estado-juiz’. A fase instrutória prévia, qual seja, o inquérito em sede policial, não tem espaço para a atuação jurisdicional, até por ser concebido como uma fase que antecede tal esfera de poder, estando a cargo da autoridade policial, que sofre o controle externo do Ministério público, determinar o que entende pertinente, no âmbito das investigações travadas no caso concreto. Se não há ação, a legislação não deveria determinar a possibilidade de atuação do juiz, uma vez que ainda sequer houve a provocação do poder Judiciário. (MOSCOVICI, 2013, p. 13-14)
Vê-se, pois, que, com base nas disposições constitucionais que dizem respeito ao sistema acusatório e ao papel do Ministério público de exercer o controle externo da atividade policial, o magistrado deve se afastar das atividades desenvolvidas durante a investigação prévia realizada pela Polícia Judiciária, isto para que não seja comprometida a imparcialidade necessária para sua correta atuação jurisdicional. Neste sentido, assim preleciona Pacelli:
O juiz, nessa fase, deve permanecer absolutamente alheio à qualidade da prova em curso, somente intervindo para tutelar violações ou ameaça de lesões a direitos e garantias individuais das partes, ou para resguardar a efetividade da função jurisdicional, quando, então, exercerá os atos de natureza jurisdicional. (PACELLI, 2010, p. 57)
Hamilton é outro que prega um total afastamento do juiz criminal da fase que antecede à ação penal, razão pela qual assim discorre:
Em tal etapa do procedimento, só encontra justificativa a presença do magistrado quando pratica atos jurisdicionais que tenham por fim assegurar direitos fundamentais não relacionados, diretamente, com o fato em apuração. É o caso, por exemplo, das cautelares de natureza pessoal ou real, em que (...) a presença do juiz se faz necessária. É o caso, verbi gratia, quando da decretação de uma prisão preventiva, e um arresto ou, ainda, por ocasião do arbitramento de uma fiança. Ao juiz, na fase preparatória da ação penal, só compete a prática de atos de natureza jurisdicional, devendo, em razão disso, ficar afastado da prática de providências que não lhe competem, designadas, na doutrina, como atividades judiciárias em sentido estrito, ou, ainda, pela expressão mais difundida, de funções judiciárias anômalas. Puro eufemismo: perdoem-me os doutos, para indicar uma anomalia processual. (HAMILTON, 1998, p. 243-262)
Diferente não pode ser o raciocínio aplicado quando da análise do disposto nos §§ 1º e 3º do art. 10 do Código de Processo Penal, que estabelecem, respectivamente, que o inquérito policial concluído deve ser remetido ao juiz e que cabe ao magistrado deferir a prorrogação de prazo para a continuidade das investigações.
Ora, sendo adotado, entre nós, o sistema acusatório, o objetivo do inquérito policial é colher elementos de informação acerca de autoria e materialidade suficientes para formar a opinio delicti do membro do Ministério Público. Ademais, sendo a investigação policial um procedimento inquisitório, realizado sem a observância dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, a participação do magistrado nessa fase poderia comprometer sua imparcialidade, visto que teria contato com provas produzidas unilateralmente pelos órgãos de acusação, prejudicando a qualidade da futura prestação jurisdicional.
Outro ponto que merece ser destacado é o fato de que, durante a investigação, o simples deferimento de prorrogação prazo pelo magistrado para continuidade das apurações, que, na prática forense, é sempre uma concordância com a manifestação do Ministério Público, não é uma atividade de natureza jurisdicional, mas, sim, meramente administrativa, desvirtuando-se, portanto, das finalidades institucionais do Poder Judiciário e colaborando para a morosidade da Justiça.
Para além desses aspectos, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 129, inciso VII, claramente estabelece que é atribuição do Ministério Público exercer o controle externo da atividade policial, gênero no qual se inclui, logicamente, o inquérito policial.
Corroborando tal entendimento, Rangel, com maestria, assim preleciona:
A regra constitucional do controle externo da atividade policial é um reforço ao sistema acusatório, pois deixa nítido e claro que ao Ministério Público é endereçada a persecutio criminis, afastando o juiz de qualquer ingerência na colheita de provas. Destarte, as regras dos §§ 1º e 3º, ambos do art. 10, bem como do art. 23, todos do CPP, estão revogados por força do disposto no inc. VII do art. 129 da CRFB. O inquérito policial, hoje, tem um único endereço: o Ministério Público. Cabe ao promotor de justiça receber os autos do inquérito e, analisando-os, determinar seu retorno, no prazo que estipular, à delegacia de origem, para a consecução de alguma diligência imprescindível ao oferecimento da denúncia. Não estamos com uma visão corporativista, mas, sim, fazendo uma interpretação sistemática de todo o arcabouço jurídico-constitucional e processual vigente. O juiz deve afastar-se da persecução preparatória da ação penal e somente se manifestar quando for provocado para decretar qualquer medida cautelar, seja real ou pessoal. (RANGEL, 2010, p. 202)
No mesmo sentido, Pacelli:
Embora o nosso código em vigor defira ao judiciário a competência para a prorrogação do prazo para encerramento do inquérito, deve-se observar que o inquérito dirige-se exclusivamente à formação da opinio delicti, isto é, do convencimento do órgão responsável pela acusação. O juiz, a rigor, nem sequer deveria ter contato com a investigação, realizada que é em fase anterior à ação penal, quando não provocada, até então, a jurisdição. Somente quando em disputa, ou em risco, a lesão ou ameaça de lesão a direitos subjetivos ou à efetivação da jurisdição penal é que o judiciário deveria – e deve – manifestar-se na fase investigatória, como juiz das garantias individuais, no exercício do controle judicial da legalidade dos atos administrativos. (PACELLI, 2011, p. 64)
Lima (2011, p. 82), corroborando tal entendimento, nos ensina que, a despeito de o art. 10, § 1º, do Código de Processo Penal, dispor que os autos do inquérito policial devem ser encaminhados primeiramente ao Poder Judiciário e somente depois ao Ministério Público, não há como se admitir, por conta da adoção do sistema acusatório pela Constituição Federal, que ainda subsista a necessidade de remessa inicial dos autos ao Poder Judiciário, razão pela qual o dispositivo aqui analisado não foi recepcionado pela Constituição Federal.
Ainda segundo Lima (2011, p. 82), para além das razões de ordem institucional que pregam o afastamento da incidência dos dispositivos em comento, há também um fundamento de natureza prática, visto que a tramitação direta do inquérito policial entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária transforma a investigação em um procedimento mais célere, em respeito à razoável duração do processo, direito fundamental previsto no art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal. Essa também é a posição de Avena, que nos ensina:
Preceitua o art. 10, § 1º, do CPP que o inquérito policial, uma vez concluído e relatado, deverá ser encaminhado pela autoridade policial ao juiz competente. Cabe ressaltar, entretanto, que parcela expressiva da doutrina considera que o referido dispositivo não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, pois esta, no art. 129, incisos I e VIII, estabelece, dentre as funções institucionais do Ministério Público, o ingresso da ação penal pública e a requisição de diligências investigatórias e de inquérito policial. Não bastasse este argumento de natureza jurídica, um outro, agora de caráter prático, aconselharia a remessa do inquérito pelo delegado diretamente ao Ministério Público e não ao juiz, qual seja, evitar o tempo morto dos autos do inquérito policial no cartório judicial, afastar a burocratização e a chamada ‘indústria da prescrição’ e liberar o Juiz e o próprio cartório de atividades anômalas, para que possam dedicar seu tempo e sua energia ao desempenho de sua atividade-fim – aquela ligada à presidência e operacionalização dos processos judiciais. (AVENA, 2012, p. 199)
Pois bem, atento à nova sistemática constitucional, o Estado do Rio de Janeiro promulgou a Lei Complementar nº. 106/2006, intitulada Lei Orgânica do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Tal diploma normativo, em seu art. 35, inciso IV, estabeleceu a tramitação direta do inquérito policial entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária, dispondo que, ao concluir a investigação, a autoridade policial deveria remeter os autos ao parquet, e não ao juiz.
Entretanto, contra tal dispositivo foi ajuizada a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 2.886, ocasião em que a parte autora, qual seja, o Partido Liberal (agora chamado Partido da República), alegou que o Estado do Rio de Janeiro, ao promulgar a lei em questão, acabou por invadir a competência privativa da União para legislar sobre processo, estabelecida no art. 22, inciso I, da Constituição Federal.
O Supremo Tribunal Federal (STF), então, em apertada votação, declarou inconstitucional o dispositivo em comento, porém, não o fez nos termos da petição inicial, mas, sim, alegando que inquérito policial não é processo, mas, sim, procedimento, cabendo, dessa forma, ao Estado-membro legislar de forma concorrente à União, complementando as normas gerais estabelecidas por esta última, na forma do art. 24, inciso XI, da Constituição Federal. Ocorre que, no entendimento do STF, a norma geral em questão é o art. 10 do Código de Processo Penal, que rechaça a tramitação direta do inquérito entre os sujeitos que dele efetivamente participam, sendo, pois, a norma estadual inconstitucional por contrariar a norma geral com que se relaciona.
Vê-se, pois, que a inconstitucionalidade declarada foi apenas de ordem formal, entendimento este que, em nosso sentir, resta equivocado. Isto porque, conforme exaustivamente demonstrado, os §§ 1º e 3º do Código de Processo Penal não foram recepcionados pela Constituição Federal, logo, não há que se falar em norma geral editada pela União, o que faria incidir o § 3º do art. 23 da Constituição Federal, atribuindo ao Estado-membro a competência legislativa plena.
Em que pese o entendimento adotado, cabe destacar que na própria ementa do julgado aqui analisado, o Supremo Tribunal Federal demonstrou que a tramitação direta do inquérito policial é o procedimento mais adequado à sistemática vigente. Vejamos:
O procedimento do inquérito policial, conforme previsto pelo Código de Processo Penal, torna desnecessária a intermediação judicial quando ausente a necessidade de adoção de medidas constritivas de direitos dos investigados, razão por que os projetos de reforma do CPP propõem a remessa direta dos autos ao Ministério Público. No entanto, apesar de o disposto no inc. IV do art. 35 da LC 106/2003 se coadunar com a exigência de maior coerência no ordenamento jurídico, a sua inconstitucionalidade formal não está afastada, pois insuscetível de superação com base em avaliações pertinentes à preferência do julgador sobre a correção da opção feita pelo legislador dentro do espaço que lhe é dado para livre conformação. (STF, ADIn nº. 2.886/RJ, Rel. Min. Eros Grau – DJU 04 de Agosto de 2014)
Em suma, a referida decisão do Supremo Tribunal Federal chegou às seguintes conclusões: (i) a competência para legislar sobre o inquérito não é privativa da União porque não se trata de direito processual (art. 22, inciso I, da CF/88), e sim de mero procedimento em matéria processual, tratando-se, portanto, de competência legislativa concorrente entre a União e os Estados (art. 24, inciso XI, da CF/88); (ii) a inconstitucionalidade reconhecida foi apenas de ordem formal, já que, existindo norma geral da União estabelecendo a remessa do inquérito ao juízo competente (art. 10, § 1º, do CPP), o Estado do Rio de Janeiro não poderia, no exercício da competência suplementar, estabelecer tramitação direta, pois ao fazê-lo violou norma geral da União; (iii) para o STF, conforme já mencionado, o procedimento do inquérito policial, na sistemática atualmente vigente, torna desnecessária a intermediação judicial em casos que não sejam excepcionais, o que significa dizer que o excelso pretório afirmou ser constitucional a matéria de fundo, ou seja, a possibilidade de tramitação direta.
Cabe destacar, ainda, que, obedecendo à nova ordem constitucional, vários atos administrativos foram editados por órgãos ligados ao Poder Judiciário para estabelecer a tramitação direta do inquérito policial entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária. Podemos citar, por exemplo, o Provimento nº. 119/2007 do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, o Provimento nº 05/2010 do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, a Resolução Administrativa nº. 05/2012, do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, o Provimento nº. 37/2009, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, o Provimento nº. 01/2001, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, o Provimento nº 01/2009, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região e o Provimento nº 01/2009, do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.
Contudo, o mais completo ato administrativo editado sobre o tema em questão é a Resolução nº 63/2009, do Conselho de Justiça Federal (CJF), que, em seus dez artigos, regula o tema no âmbito de toda a Justiça Federal brasileira. Conforme apontado no corpo da própria Resolução, o CJF normatizou o tema pelo seguintes motivos: adoção do sistema acusatório adotado pela Constituição Federal de 1988, por ser o Ministério Público o destinatário do inquérito policial e o órgão incumbido de exercer o controle externo da atividade policial, por restarem os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa devidamente respeitados na medida em que o Poder Judiciário continua sendo responsável pela apreciação de medidas constritivas de natureza acautelatória, por não haver exercício de atividade jurisdicional no simples deferimento de prorrogação de prazo para a conclusão das investigações policiais, bem como por ser a tramitação direta o modelo que mais se coaduna com a razoável duração do processo elencada como direito fundamental pelo inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição Federal.
A Resolução em comento foi atacada pela Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) através da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 4.305, ainda pendente de julgamento.
Deve ser ressaltado que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se manifestou no sentido da possibilidade de que magistrado federal pode determinar, com base na Resolução do CJF n. 063/2009, a tramitação direta do inquérito policial entre o Ministério Público Federal e a Polícia Federal. Vejamos a ementa do Recurso em Mandado de Segurança n. 46.165-SP, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 19/11/2015 pela 5ª Turma do STJ:
PROCESSUAL PENAL. FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS. OBSERVÂNCIA DO ART. 93, IX, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INQUÉRITO POLICIAL. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO. TRAMITAÇÃO DIRETA ENTRE A POLÍCIA JUDICIÁRIA E O MINISTÉRIO PÚBLICO. ATO ATACADO FUNDADO EM RESOLUÇÃO DO CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. 1. Compete ao magistrado fundamentar todas as suas decisões, bem como afastar qualquer dúvida quanto à motivação adotada – em respeito ao disposto no art. 93, IX, da Constituição Federal –, não estando obrigado, entretanto, a responder, ponto a ponto, todas as alegações das partes. 2. O inquérito policial "qualifica-se como procedimento administrativo, de caráter pré-processual, ordinariamente vocacionado a subsidiar, nos casos de infrações perseguíveis mediante ação penal de iniciativa pública, a atuação persecutória do Ministério Público, que é o verdadeiro destinatário dos elementos que compõem a "informatio delicti"' (STF, HC 89837/DF, Segunda Turma, Relator Min. Celso de Mello, DJe 20/11/2009). 3. A tramitação direta de inquéritos entre a polícia judiciária e o órgão de persecução criminal traduz expediente que, longe de violar preceitos constitucionais, atende à garantia da duração razoável do processo, assegurando célere tramitação, bem como aos postulados da economia processual e da eficiência. Essa constatação não afasta a necessidade de observância, no bojo de feitos investigativos, da chamada cláusula de reserva de jurisdição. 4. Não se mostra ilegal a portaria que determina o trâmite do inquérito policial diretamente entre polícia e órgão da acusação, encontrando o ato indicado como coator fundamento na Resolução n. 63/2009 do Conselho da Justiça Federal. 5. Estando expressamente previsto, na Resolução do CJF, que os advogados e os estagiários de Direito regularmente inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil terão direito de examinar os autos do inquérito, devendo, no caso de extração de cópias, apresentar o seu requerimento por escrito à autoridade competente, não há a configuração de ofensa ao princípio do contraditório, ao da ampla defesa e tampouco ao exercício da advocacia. 6. Recurso desprovido. (STJ. 5ª Turma. RMS 46.165-SP, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 19/11/2015 - Info 574)
No mesmo sentido, o Plenário do Conselho Nacional do Ministério Público aprovou a Proposta de Resolução n. 0.00.000.001045/2013-24, elaborada em conjunto com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e que admite e disciplina em âmbito nacional a tramitação direta do inquérito policial entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária. Observemos a ementa da reunião de aprovação:
PROPOSTA DE RESOLUÇÃO CONJUNTA. CNMP E CNJ. REGULAMENTAÇÃO DE PROCEDIMENTO DE NATUREZA ADMINISTRATIVA. TRAMITAÇÃO DIRETA DO INQUÉRITO POLICIAL ENTRE O MINISTÉRIO PÚBLICO E A POLÍCIA JUDICIÁRIA. POSSIBILIDADE. PRESCINDIBILIDADE, EM REGRA, DA INTERMEDIAÇÃO JUDICIAL. RACIONALIZAÇÃO DO PROCEDIMENTO. CELERIDADE E EFICIÊNCIA. APROVAÇÃO DA PROPOSTA DE RESOLUÇÃO. PUBLICAÇÃO E VIGÊNCIA CONDICIONADAS À APROVAÇÃO DE RESOLUÇÃO PELO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. 1. Trata-se de Proposta de Resolução Conjunta com o Conselho Nacional de Justiça – CNJ apresentada pelo então Conselheiro Nacional Fabiano Augusto Martins Silveira, durante a 10ª Sessão Ordinária de 2013 deste Órgão de Controle, realizada em 30 de julho de 2013, visando regulamentar procedimento de natureza administrativa sobre a tramitação direta do Inquérito Policial entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária. 2. Em observância ao modelo acusatório adotado pela Constituição Federal, visualizamos que não há razão que justifique a imersão do Juiz nos autos das investigações penais pré-processuais, ressalvadas as hipóteses sujeitas à reserva de jurisdição (a exemplo da interceptação telefônica, da busca e apreensão, da quebra de sigilo fiscal, bancário ou de comunicações, do sequestro e da produção antecipada de provas não repetíveis). 3. Com efeito, é forçoso reconhecer que há um inegável risco de que o Juiz tenha o seu conhecimento influenciado pela narrativa de fatos formulada pelos órgãos de persecução penal, sem um contraponto imediato da defesa (contraditório). Destarte, torna-se premente afastar o julgador dos elementos de convicção colhidos em momento apuratório desprovido da paridade de armas. Ao Ministério Público, órgão responsável pelo controle externo da atividade policial e destinatário natural das conclusões reunidas no procedimento investigatório, cabe velar pela celeridade da apuração preliminar, prevenir e corrigir desvios e coibir diligências desnecessárias ou inadequadas. Nesse sentido, tem-se que a intermediação/supervisão judicial do inquérito, que na prática se limita, majoritariamente, a atos pro forma, mostra-se despicienda. 5. Destarte, o inquérito policial não necessitaria ser dirigido primeira ao Juiz e depois ao Órgão Ministerial. O caminho seria direto entre a Autoridade Policial e o titular da ação penal, incumbindo a esse último autorizar ou não a dilação de prazo para investigações. Também assim, caso fosse necessária a realização de outras diligências, ao Membro do MP bastaria a devolução do acervo apuratório à Polícia Judiciária, com a respectiva requisição. 6. Além disso, cumpre destacar que o modelo de tramitação direta proposto nos presentes autos não causa nenhum prejuízo para o controle da legalidade do inquérito policial e para a defesa do investigado, sobretudo porque não afasta do Poder Jurisdicional a possibilidade de analisar o inquérito, a pedido da defesa, em caso de eventual ofensa às garantias constitucionais. 7. Por fim, considerando a necessidade de racionalizar e otimizar os procedimentos relativos à tramitação do inquérito policial em todo o Brasil, com vistas à obtenção de ganhos de eficiência, celeridade e qualidade do material produzido nessa importante fase da persecução penal, impende reconhecer a necessidade da aprovação da presente Proposta de Resolução com o objetivo de uniformização nacional da temática. 8. Diante de todo o exposto, votamos pela APROVAÇÃO da presenta Proposta de Resolução Conjunta, conforme a redação original apresentada pelo então Conselheiro Fabiano Augusto Martins Silveira, ressaltando-se que a publicação e a entrada em vigor da presente proposição desta Corte Administrativa ficará condicionada à aprovação da Resolução Conjunta pelo Conselho Nacional de Justiça. (Proposta de Resolução n. 0.00.000.001045/2013-24. Rel. Cons. Orlando Rochadel Moreira, Acórdão em 14 de Junho de 2016).
Esperamos que o Supremo Tribunal Federal, atento à nova sistemática constitucional e entendendo, consequentemente, que não foram recepcionados os §§ 1º e 3º do art. 10 do Código de Processo Penal, modifique a posição adotada na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 2.886, ratificando, pois, o entendimento de renomados doutrinadores, que, atentos ao sistema acusatório entre nós adotado e ao resguardo de direitos fundamentais acarretado por um Judiciário imparcial e por um Ministério Público forte e independente, entendem ser a tramitação direta do inquérito policial entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária o modelo a ser seguido na persecução criminal.
6. Conclusão
Diante de tudo o que foi até aqui exposto, podemos concluir que a nova ordem constitucional, inaugurada com o advento da Constituição Federal de 1988, estabeleceu, entre nós, o sistema processual penal acusatório, separando, claramente, as funções de acusar, que fica a cargo do Ministério Público (e, excepcionalmente, do particular), e de julgar, tarefa esta incumbida ao Poder Judiciário, o que dá aos jurisdicionados a segurança jurídica de imparcialidade nos julgamentos.
Podemos, concluir, também, que, para além da titularidade da ação penal pública, ao Ministério Público foram atribuídas diversas outras funções institucionais essenciais à função jurisdicional do Estado, entre as quais podemos citar o exercício do controle externo da atividade policial, tarefa esta que aproxima a Polícia Judiciária e o parquet para uma apuração mais eficaz das infrações penais.
Conclui-se, ainda, que, em obediência ao inciso LXVIII do art. 5º da Constituição Federal, que aponta a razoável duração do processo como direito fundamental, a celeridade na apuração, no processo e no julgamento de infrações penais deve ser algo visado pelos órgãos estatais, observando-se, sempre, o respeito aos direitos fundamentais.
Diante deste cenário, não se pode conceber a participação ativa do magistrado na fase investigatória, sob pena de desvirtuamento do sistema acusatório constitucionalmente adotado, eis que o julgador deve se manter afastado da atividade de colheita de prova para preservação de sua imparcialidade.
Da mesma forma, não se coadunam com as normas constitucionais que atribuem ao Ministério Público o controle externo da atividade policial, as normas infraconstitucionais que dispõem que o destinatário do inquérito é o magistrado e que é papel deste deferir a prorrogação de prazo para a continuidade das investigações. Ora, sendo o inquérito um procedimento destinado precipuamente a subsidiar a formação da opinio delicti do parquet, e a este cabendo o controle da atividade policial, não deve ser outro órgão, senão o Ministério Público, incumbido da função de controlar prazos e diligências na função investigatória policial.
Destarte, entendemos que as disposições dos §§ 1º e 3º do Código de Processo Penal, que estabelecem, respectivamente, que o inquérito policial concluído deve ser remetido ao juiz e que cabe ao magistrado deferir a prorrogação de prazo para a continuidade das investigações, não foram recepcionadas pela Constituição Federal de 1988, que, em sentido diametralmente oposto à norma processual em questão, incumbiu ao Ministério Público a titularidade da ação penal pública, como corolário do sistema acusatório, bem como atribuiu ao parquet a função de controle externo da atividade policial. Em outras palavras, as tarefas que, pelo Código de Processo Penal, antes eram do magistrado inquisidor, foram, em 1988, constitucionalmente transferidas ao Ministério Público, órgão essencial à função jurisdicional do Estado.
7. Referências
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BRASIL. Conselho Superior do Ministério Público. Proposta de Resolução n. 0.00.000.001045/2013-24. Rel. Cons. Orlando Rochadel Moreira, Acórdão em 14 de Junho de 2016.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Mandado de Segurança nº. 46.165-SP. Rel. Min. Gurgel de Faria – 5ª Turma – julgado em 19/11/2015 – Informativo de Jurisprudência nº. 574.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn nº. 2.886-RJ. Ação direta de inconstitucionalidade. Incisos IV e V do art. 35 da Lei Complementar nº. 106/2003. Necessidade de adequação da norma impugnada aos limites da competência legislativa concorrente prevista no art. 24 da Constituição Federal. Ação julgada parcialmente procedente apenas para declarar a inconstitucionalidade do inc. IV do art. 35 da Lei Complementar Estadual. / Rel. Min. Eros Grau – DJU 04 de Agosto de 2014.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn nº. 4.035. Pendente de julgamento.
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MOSCOVICI, Igor. Da não recepção das normas processuais penais que permitem ao magistrado a atuação do magistrado criminal na determinação de produção de provas de ofício – Rio de Janeiro, 2013.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AMADO, Mateus Cavalcanti. Da (in)constitucionalidade da tramitação direta do inquérito policial entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 mar 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49814/da-in-constitucionalidade-da-tramitacao-direta-do-inquerito-policial-entre-o-ministerio-publico-e-a-policia-judiciaria. Acesso em: 23 dez 2024.
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