1. INTRODUÇÃO:
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por meio de recentes decisões proferidas em sede de Recurso Especial, modificou o seu entendimento, e proclamou tese favorável à inaplicabilidade da Teoria do Adimplemento Substancial nos contratos regidos pelo Decreto-Lei n. 911/69 com as alterações introduzidas pela Lei n. 13.043/2014, à luz dos artigos 421 e 422 do Código Civil favoráveis ao credor fiduciário.
O entendimento o STJ até o início do ano de 2017 era no sentido de permitir a aplicação da mencionada teoria nas relações contratuais garantidas por cláusula de alienação fiduciária, desde que fosse amortizado considerável valor da dívida, oportunidade na qual poderia o devedor postular pela aplicação da demanda menos prejudicial.
2. TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL NOS CONTRATOS REGIDOS PELO DECRETO-LEI 911/69
A chamada Teoria do Adimplemento Substancial tem sido bastante discutido no âmbito dos Tribunais Estaduais do nosso país, o qual garante ao devedor, que tem o seu débito judicializado pelo credor, a prerrogativa de pleitear perante o Poder Judiciário que a demanda contra si intentada lhe seja a menos gravosa possível.
No entanto, a aplicação da referida Teoria não é indistinta. O entendimento jurisprudencial e doutrinário é no sentido de permitir que o direito ao devedor em obter o benefício apenas quando está diante de uma pequena dívida em aberto, em se comparado com a totalidade do negócio jurídico realizado.
Significa dizer que apenas se aplicar-se-á o direito ao devedor requerer a extinção ou modificação da demanda contra si intentada, unicamente nos casos de baixa representatividade da dívida perseguida.
Nesse sentido, além de prescindir da provocação de uma das partes do processo, há a necessidade do julgador analisar o caso específico à luz dos princípios da função social do contrato, bem como os da probidade e boa-fé, estabelecidos nos arts. 421 e 422 ambos do Código Civil de 2002.
Em determinados casos, o entendimento é no sentido de não se poder exigir o bem dado em garantia para o cumprimento da avença principal, se o percentual devido for demasiadamente insignificante.
A grande problemática instalada no cenário nacional amolda-se acerca da vasta e indistinta interpretação conferida ao que se refere este montante insignificantemente devido, especialmente nas relações negociais regidas pelo Decreto-Lei n. 911/69, que estabelece as normas de processo sobre alienação fiduciária.
O referido Decreto-Lei 911/69, em seus artigos 2º, § 3°, 3º, § 2º, dispõem o seguinte:
Art. 2o No caso de inadimplemento ou mora nas obrigações contratuais garantidas mediante alienação fiduciária, o proprietário fiduciário ou credor poderá vender a coisa a terceiros, independentemente de leilão, hasta pública, avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, salvo disposição expressa em contrário prevista no contrato, devendo aplicar o preço da venda no pagamento de seu crédito e das despesas decorrentes e entregar ao devedor o saldo apurado, se houver, com a devida prestação de contas. (Redação dada pela Lei nº 13.043, de 2014)
(...)
§ 3º A mora e o inadimplemento de obrigações contratuais garantidas por alienação fiduciária, ou a ocorrência legal ou convencional de algum dos casos de antecipação de vencimento da dívida facultarão ao credor considerar, de pleno direito, vencidas tôdas as obrigações contratuais, independentemente de aviso ou notificação judicial ou extrajudicial
Art. 3o O proprietário fiduciário ou credor poderá, desde que comprovada a mora, na forma estabelecida pelo § 2o do art. 2o, ou o inadimplemento, requerer contra o devedor ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, a qual será concedida liminarmente, podendo ser apreciada em plantão judiciário. (Redação dada pela Lei nº 13.043, de 2014)
(...)
§ 2o No prazo do § 1o, o devedor fiduciante poderá pagar a integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, hipótese na qual o bem lhe será restituído livre do ônus.
Consoante legislação supramencionada, nos casos de inadimplemento das obrigações contratuais garantidas mediante alienação fiduciária, poderá o credor valer-se da Ação de Busca e Apreensão, cuja decisão que ordenará a apreensão do veículo objeto da garantia será deferida liminarmente.
Observa-se que o mencionado Decreto-Lei, cujas alterações foram dadas pela Lei 13.043/2014, em momento algum limita ao credor fiduciário o direito de aplicar as normas apresentadas nos artigos 2º, § 3°, 3º, § 2, levando-se à conclusão que a fiduciante poderá efetuar a recuperação do bem, mesmo se o devedor estiver em mora em apenas à última parcela.
No entanto, a Teoria do Adimplemento Substancial vem sido aplicada nas relações regidas pelo Decreto-Lei 911/69, pelos Tribunais do país, o que vem causando uma verdadeira insegurança jurídica no cenário nacional.
Tem sido preocupante a incerteza instalada pela referida teoria, pairando dúvidas acerca de qual o percentual mínimo para os Magistrados aplicarem nos contratos garantidos por alienação fiduciária (1), ou se a mesma é ou não aplicável à espécie (2).
2.1 DO INDISTINTO ENTENDIMENTO ACERCA DO PERCENTUAL MÍNIMO
Em atenção ao percentual mínimo, a jurisprudência abaixo transcrita revela que um mesmo Tribunal de Justiça, possui entendimento distinto acerca do valor mínimo para aplicar a Teoria do Adimplemento Substancial.
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. CONTRATO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. NÃO PAGAMENTO DE CERCA DE 15% DAS PARCELAS CONTRATUAIS. CUMPRIMENTO DE QUASE 85%. INCIDÊNCIA DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. DEVIDA AÇÃO DE COBRANÇA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO NÃO PROVIDO.
1. No caso, registre-se a possibilidade de ser aplicada a teoria do adimplemento substancial, como feito pelo juiz de 1º grau, segundo a qual nas hipóteses em que a extinção da obrigação pelo pagamento esteja muito próxima do final, é de ser negada a resolução do contrato, devendo o credor obter o saldo devedor por meio da devida ação de cobrança, sendo, portanto, inadequada a interposição de ação de busca e apreensão.
2. Na hipótese, o Apelante fundamentou sua insurgência na impossibilidade de cumprimento da sentença, restituindo-se o automóvel ao Réu, informando já ter sido ter vendido o mesmo. Certo é que a possibilidade ou não de cumprimento da obrigação de fazer estabelecida na sentença, não enseja a reforma da sentença, pois a consequência da impossibilidade da restituição do automóvel (impossibilidade da tutela específica), acarreta tão somente, a conversão da obrigação de fazer em perdas e danos, na forma do art. 461, §§ 1º e 2º, do CPC, (Classe: Apelação,Número do Processo: 0504603-13.2014.8.05.0080, Relator(a): Pilar Celia Tobio de Claro, Primeira Câmara Cível, Publicado em: 19/04/2017)
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO COM PEDIDO DE LIMINAR. CONTRATO DE FINANCIAMENTO COM ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. INADIMPLÊNCIA. MORA DO DEVEDOR. NOTIFICAÇÃO. VALIDADE. COMPROVAÇÃO. MORA DO CREDOR. NÃO-CARACTERIZAÇÃO. PAGAMENTO DE 68,75% DAS PARCELAS. TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. NÃO CARACTERIZAÇÃO, NA ESPÉCIE. BUSCA E APREENSÃO. DEFERIMENTO. AVALIAÇÃO/ALIENAÇÃO DO BEM. SALDO EM FAVOR DO DEVEDOR. RESTITUIÇÃO. SENTENÇA MANTIDA. APELO IMPROVIDO.
Em contratos de financiamento com garantia fiduciária, uma vez incorrendo o devedor-alienante em inadimplência e comprovada a mora, o credor-fiduciário está autorizado a buscar o bem.
É válida a notificação realizada por Cartório de Comarca diversa daquela em que o devedor-alienante tem seu domicílio.
Não comprovada a onerosidade excessiva, resta descaracterizada a mora do credor.
O pagamento de apenas 68,75% das parcelas do financiamento não pode ser considerado como adimplemento substancial da obrigação, teoria que não se aplica aos contratos celebrados com alienação fiduciária em garantia.
Deferida a busca e apreensão e consolidada a propriedade do bem em nome do credor-fiduciário, deve-se proceder à avaliação do veículo ou sua alienação, garantindo ao devedor-alienante o direito à restituição dos valores apurados que (e se) forem superiores à dívida.
Sentença mantida. Apelo improvido.
(Classe: Apelação, Número do Processo: 0804925-23.2015.8.05.0274, Relator(a): Telma Laura Silva Britto, Terceira Câmara Cível, Publicado em: 12/04/2017 )
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO DAS RELAÇÕES DE CONSUMO. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. DEFERIMENTO DO PEDIDO LIMINAR FORMULADO PELA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. APLICABILIDADE. POSSIBILIDADE DIANTE DO CUMPRIMENTO DE GRANDE PARTE DO CONTRATO. AGRAVO PROVIDO. DECISÃO REFORMADA.
1. A situação fática posta a acertamento reclama uma análise mais parcimoniosa da questão, à luz da teoria do adimplemento substancial e da dignidade da pessoa humana, devendo ser reconhecida com cautela, sobretudo quando evidente o desequilíbrio financeiro entre as partes contratantes, como na hipótese.
2. Ademais, deve-se levar em consideração não só a inadimplência em si, mas também o cumprimento da avença durante a normalidade contratual, sendo que, a partir dessa análise, entre adimplemento e inadimplemento deve o Juiz aferir a legitimidade da resolução do contrato, com base nos princípios
da função social e da boa-fé objetiva, os quais servem de sustentáculo de todo o nosso ordenamento jurídico.
3. In specie, resta configurado o adimplemento substancial do contrato, de um total que corresponde a 63% do valor total dodébito, não se mostrando razoável a busca e apreensão do bem, devendo o credor, caso haja parcelas não quitadas ao final do contrato, perseguir o crédito através de ação de cobrança.
4. Recurso provido.
(Classe: Agravo de Instrumento, Número do Processo: 0021593-17.2016.8.05.0000, Relator(a): Marcia Borges Viana, Quinta Câmara Cível, Publicado em: 15/02/2017 )
As ementas dos Acórdãos acima transcritos, todos proferidos pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, evidenciam a verdadeira insegurança existente em razão da duvidosa aplicação da referida teoria.
Enquanto que o mesmo Tribunal entende que o percentual de 68,75% de amortização das parcelas do financiamento não pode ser considerado como adimplemento substancial da obrigação, outro julgado entende que apenas 63% do valor total do débito adimplido, aplica-se a referida Teoria dasubstancial performance, e extingue a ação de busca e apreensão, ou seja, em percentual inferior à decisão que não a aplicou!
A mesma problemática estava instaurada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, como se vê no julgamento do RESP nº 1.051.270, que entende pela aplicação da teoria a partir do percentual de 86%, enquanto que o RESP nº 272739 entende pela aplicação se houver sido inadimplido apenas a última parcela:
DIREITO CIVIL. CONTRATO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL PARA AQUISIÇÃO DE VEÍCULO (LEASING). PAGAMENTO DE TRINTA E UMA DAS TRINTA E SEIS PARCELAS DEVIDAS. RESOLUÇÃO DO CONTRATO. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. DESCABIMENTO. MEDIDAS DESPROPORCIONAIS DIANTE DO DÉBITO REMANESCENTE. APLICAÇÃO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL.
1. É pela lente das cláusulas gerais previstas no Código Civil de 2002, sobretudo a da boa-fé objetiva e da função social, que deve ser lido o art. 475, segundo o qual "[a] parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos".
2. Nessa linha de entendimento, a teoria do substancial adimplemento visa a impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença, com vistas à realização dos princípios da boa-fé e da função social do contrato.
3. No caso em apreço, é de se aplicar a da teoria do adimplemento substancial dos contratos, porquanto o réu pagou: "31 das 36 prestações contratadas, 86% da obrigação total (contraprestação e VRG parcelado) e mais R$ 10.500,44 de valor residual garantido". O mencionado descumprimento contratual é inapto a ensejar a reintegração de posse pretendida e, consequentemente, a resolução do contrato de arrendamento mercantil, medidas desproporcionais diante do substancial adimplemento da avença.
4. Não se está a afirmar que a dívida não paga desaparece, o que seria um convite a toda sorte de fraudes. Apenas se afirma que o meio de realização do crédito por que optou a instituição financeira não se mostra consentâneo com a extensão do inadimplemento e, de resto, com os ventos do Código Civil de 2002. Pode, certamente, o credor valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, como, por exemplo, a execução do título.
5. Recurso especial não conhecido.
(REsp 1051270/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 04/08/2011, DJe 05/09/2011)
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. Busca e apreensão. Falta da última prestação.
Adimplemento substancial.
O cumprimento do contrato de financiamento, com a falta apenas da última prestação, não autoriza o credor a lançar mão da ação de busca e apreensão, em lugar da cobrança da parcela faltante. O adimplemento substancial do contrato pelo devedor não autoriza ao credor a propositura de ação para a extinção do contrato, salvo se demonstrada a perda do interesse na continuidade da execução, que não é o caso.
Na espécie, ainda houve a consignação judicial do valor da última parcela.
Não atende à exigência da boa-fé objetiva a atitude do credor que desconhece esses fatos e promove a busca e apreensão, com pedido liminar de reintegração de posse.
Recurso não conhecido.
(REsp 272.739/MG, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 01/03/2001, DJ 02/04/2001, p. 299)
Induvidosa é a total subjetividade para o julgador aplicar a referida teoria e interromper a qualquer momento uma Ação de Busca e Apreensão de veículos, bastando o devedor apresentar formalmente o requerimento nesse sentido, sem ter que desembolsar um centavo das parcelas devidas.
A referida prática, já comum no ambiente jurídico, traz consigo não a limitação ao exercício do direito de ação pelo credor fiduciário, mas principalmente conseqüências econômicas preocupantes.
Por óbvio, as instituições financeiras elevarão suas taxas do financiamento e de administração, por necessitar garantir a recuperação do valor creditado em um tempo menor do parcelamento disponibilizado aos consumidores.
Ao revés, a disponibilização de crédito na praça para a realização de operações desta natureza serão reduzidos, diante do risco evidenciado, e a autorização dada ao devedor em inadimplir aquilo que contratou a partir de determinado percentual.
2.2 NÃO APLICAÇÃO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL EM RAZÃO DO NOVO ENTENDIMENTO ATUAL DO STJ
Aparentemente esta problemática vem ganhando uma solução feliz, uma vez que o Superior Tribunal de Justiça, através da Segunda Seção, modificou sensivelmente o seu entendimento e a interpretação do mencionado mecanismo aos contratos regidos pelo Decreto-Lei 911/69.
Submetido ao rito dos recursos repetitivos – à luz do art. 543-C do CPC/73, restou decidido, no julgamento do REsp 1.622.555-MG, que “a tese do adimplemento substancial não pode ser aplicada nos casos de alienação fiduciária, (…) ou seja, mesmo que o comprador de um bem tenha pago a maior parte das parcelas previstas em contrato, ele tem de honrar o compromisso até o final, com sua total quitação. Sem isso, o credor pode ajuizar ação de busca e apreensão do bem alienado para satisfazer seu crédito”
A referida decisão revela que o STJ atualmente entende que não se aplica a Teoria do Adimplemento Substancial nos contratos garantidos por alienação fiduciária, ressaltando o entendimento inicial de que não existe na legislação em vigor qualquer limitação para o credor fiduciário exercer o direito assegurado nos artigos 2º, § 3°, e 3º, § 2º, do Decreto-Lei n. 911/69 com as alterações introduzidas pela Lei n. 13.043/2014.
É o que se extrai da ementa do julgado:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. CONTRATO DE FINANCIAMENTO DE VEÍCULO, COM ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA REGIDO PELO DECRETO-LEI 911/69. INCONTROVERSO INADIMPLEMENTO DAS QUATRO ÚLTIMAS PARCELAS (DE UM TOTAL DE 48). EXTINÇÃO DA AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO (OU DETERMINAÇÃO PARA ADITAMENTO DA INICIAL, PARA TRANSMUDÁ-LA EM AÇÃO EXECUTIVA OU DE COBRANÇA), A PRETEXTO DA APLICAÇÃO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. DESCABIMENTO.
1. ABSOLUTA INCOMPATIBILIDADE DA CITADA TEORIA COM OS TERMOS DA LEI ESPECIAL DE REGÊNCIA. RECONHECIMENTO.
2. REMANCIPAÇÃO DO BEM AO DEVEDOR CONDICIONADA AO PAGAMENTO DA INTEGRALIDADE DA DÍVIDA, ASSIM COMPREENDIDA COMO OS DÉBITOS VENCIDOS, VINCENDOS E ENCARGOS APRESENTADOS PELO CREDOR, CONFORME ENTENDIMENTO CONSOLIDADO DA SEGUNDA SEÇÃO, SOB O RITO DOS RECURSOS ESPECIAIS REPETITIVOS (REsp n. 1.418.593/MS).
3. INTERESSE DE AGIR EVIDENCIADO, COM A UTILIZAÇÃO DA VIA JUDICIAL ELEITA PELA LEI DE REGÊNCIA COMO SENDO A MAIS IDÔNEA E EFICAZ PARA O PROPÓSITO DE COMPELIR O DEVEDOR A CUMPRIR COM A SUA OBRIGAÇÃO (AGORA, POR ELE REPUTADA ÍNFIMA), SOB PENA DE CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE NAS MÃOS DO CREDOR FIDUCIÁRIO.
4. DESVIRTUAMENTO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL, CONSIDERADA A SUA FINALIDADE E A BOA-FÉ DOS CONTRATANTES, A ENSEJAR O ENFRAQUECIMENTO DO INSTITUTO DA GARANTIA FIDUCIÁRIA. VERIFICAÇÃO. 5. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. A incidência subsidiária do Código Civil, notadamente as normas gerais, em relação à propriedade/titularidade fiduciária sobre bens que não sejam móveis infugíveis, regulada por leis especiais, é excepcional, somente se afigurando possível no caso em que o regramento específico apresentar lacunas e a solução ofertada pela "lei geral" não se contrapuser às especificidades do instituto regulado pela lei especial (ut Art. 1.368-A, introduzido pela Lei n. 10931/2004).
1.1 Além de o Decreto-Lei n. 911/1969 não tecer qualquer restrição à utilização da ação de busca e apreensão em razão da extensão da mora ou da proporção do inadimplemento, é expresso em exigir a quitação integral do débito como condição imprescindível para que o bem alienado fiduciariamente seja remancipado. Em seus termos, para que o bem possa ser restituído ao devedor, livre de ônus, não basta que ele quite quase toda a dívida; é insuficiente que pague substancialmente o débito; é necessário, para esse efeito, que quite integralmente a dívida pendente.
2. Afigura-se, pois, de todo incongruente inviabilizar a utilização da ação de busca e apreensão na hipótese em que o inadimplemento revela-se incontroverso desimportando sua extensão, se de pouca monta ou se de expressão considerável, quando a lei especial de regência expressamente condiciona a possibilidade de o bem ficar com o devedor fiduciário ao pagamento da integralidade da dívida pendente. Compreensão diversa desborda, a um só tempo, do diploma legal exclusivamente aplicável à questão em análise (Decreto-Lei n. 911/1969), e, por via transversa, da própria orientação firmada pela Segunda Seção, por ocasião do julgamento do citado Resp n. 1.418.593/MS, representativo da controvérsia, segundo a qual a restituição do bem ao devedor fiduciante é condicionada ao pagamento, no prazo de cinco dias contados da execução da liminar de busca e apreensão, da integralidade da dívida pendente, assim compreendida como as parcelas vencidas e não pagas, as parcelas vincendas e os encargos, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial.
3. Impor-se ao credor a preterição da ação de busca e apreensão (prevista em lei, segundo a garantia fiduciária a ele conferida) por outra via judicial, evidentemente menos eficaz, denota absoluto descompasso com o sistema processual. Inadequado, pois, extinguir ou obstar a medida de busca e apreensão corretamente ajuizada, para que o credor, sem poder se valer de garantia fiduciária dada (a qual, diante do inadimplemento, conferia-lhe, na verdade, a condição de proprietário do bem), intente ação executiva ou de cobrança, para só então adentrar no patrimônio do devedor, por meio de constrição judicial que poderá, quem sabe (respeitada o ordem legal), recair sobre esse mesmo bem (naturalmente, se o devedor, até lá, não tiver dele se desfeito).
4. A teoria do adimplemento substancial tem por objetivo precípuo impedir que o credor resolva a relação contratual em razão de inadimplemento de ínfima parcela da obrigação. A via judicial para esse fim é a ação de resolução contratual. Diversamente, o credor fiduciário, quando promove ação de busca e apreensão, de modo algum pretende extinguir a relação contratual. Vale-se da ação de busca e apreensão com o propósito imediato de dar cumprimento aos termos do contrato, na medida em que se utiliza da garantia fiduciária ajustada para compelir o devedor fiduciante a dar cumprimento às obrigações faltantes, assumidas contratualmente (e agora, por ele, reputadas ínfimas). A consolidação da propriedade fiduciária nas mãos do credor apresenta-se como consequência da renitência do devedor fiduciante de honrar seu dever contratual, e não como objetivo imediato da ação. E, note-se que, mesmo nesse caso, a extinção do contrato dá-se pelo cumprimento da obrigação, ainda que de modo compulsório, por meio da garantia fiduciária ajustada.
4.1 É questionável, se não inadequado, supor que a boa-fé contratual estaria ao lado de devedor fiduciante que deixa de pagar uma ou até algumas parcelas por ele reputadas ínfimas, mas certamente de expressão considerável, na ótica do credor, que já cumpriu integralmente a sua obrigação, e, instado extra e judicialmente para honrar o seu dever contratual, deixa de fazê-lo, a despeito de ter a mais absoluta ciência dos gravosos consectários legais advindos da propriedade fiduciária. A aplicação da teoria do adimplemento substancial, para obstar a utilização da ação de busca e apreensão, nesse contexto, é um incentivo ao inadimplemento das últimas parcelas contratuais, com o nítido propósito de desestimular o credor - numa avaliação de custo-benefício - de satisfazer seu crédito por outras vias judiciais, menos eficazes, o que, a toda evidência, aparta-se da boa-fé contratual propugnada.
4.2. A propriedade fiduciária, concebida pelo legislador justamente para conferir segurança jurídica às concessões de crédito, essencial ao desenvolvimento da economia nacional, resta comprometida pela aplicação deturpada da teoria do adimplemento substancial.
5. Recurso Especial provido.
(REsp 1622555/MG, Rel. Ministro MARCO BUZZI, Rel. p/ Acórdão Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/02/2017, DJe 16/03/2017)
A importantíssima decisão revela ainda que os princípios da boa-fé objetiva (CC/02, art. 422) e da função social dos contratos (CC/02, art. 421), encontram-se em todo momento ao lado da instituição financeira que disponibilizou o crédito do negócio jurídico, e não do devedor, incumbindo a este cumprir a integralidade da avença, em respeito ao pacta sunt servanda.
Restou evidenciado ainda que a aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial, somente incentivaria a própria inadimplência, causando, de fato, insegurança jurídica no cenário econômico:
“4.1 É questionável, se não inadequado, supor que a boa-fé contratual estaria ao lado de devedor fiduciante que deixa de pagar uma ou até algumas parcelas por ele reputadas ínfimas — mas certamente de expressão considerável, na ótica do credor, que já cumpriu integralmente a sua obrigação —, e, instado extra e judicialmente para honrar o seu dever contratual, deixa de fazê-lo, a despeito de ter a mais absoluta ciência dos gravosos consectários legais advindos da propriedade fiduciária. A aplicação da teoria do adimplemento substancial, para obstar a utilização da ação de busca e apreensão, nesse contexto, é um incentivo ao inadimplemento das últimas parcelas contratuais, com o nítido propósito de desestimular o credor - numa avaliação de custo-benefício - de satisfazer seu crédito por outras vias judiciais, menos eficazes, o que, a toda evidência, aparta-se da boa-fé contratual propugnada.
4.2. A propriedade fiduciária, concebida pelo legislador justamente para conferir segurança jurídica às concessões de crédito, essencial ao desenvolvimento da economia nacional, resta comprometida pela aplicação deturpada da teoria do adimplemento substancial.”
Resta induvidoso que o uso do instituto não pode ser estimulado a ponto de inverter a ordem lógico-jurídica que assenta o integral e regular cumprimento do contrato, até porque é o meio esperado de extinção das obrigações.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A aplicação da referida teoria não traz nenhuma beneficie no cenário econômico do país, pois revela-se como uma carta branca para o devedor deixar de efetuar o cumprimento das suas obrigações, quando possuírem garantia fiduciária.
Neste aspecto, a tendência é se uniformizar o entendimento em todos os tribunais no sentido de não se mais aplicar a Teoria do Adimplemento Substancial nos contratos de alienação fidudiária, regidos pelo Decreto-Lei 911/69, à luz dos princípios da função social, probidade e boa-fé, estatuídos pelos art.s 421 e 422 do Código Civil atual, se inclinarem para garantir o cumprimento integral do negócio jurídico previamente acordado.
4. REFERÊNCIAS
www. stj.jus.br
www.tjba.jus.br
Advogado. Bacharel em direito pela Faculdade Unyahna de Salvador/BA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEMOS, Eduardo Silva. Da teoria do adimplemento substancial nas relações negociais garantidas por alienação fiduciária Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 abr 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49993/da-teoria-do-adimplemento-substancial-nas-relacoes-negociais-garantidas-por-alienacao-fiduciaria. Acesso em: 23 dez 2024.
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